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Conselho Federal de Medicina Sociedade Brasileira de Bioética BIOÉTICA CLÍNICA (MEMÓRIAS DO XI CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA, III CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA CLÍNICA E III CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O ENSINO DA ÉTICA) Brasília 2016 Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) Conselho Federal de Medicina – CFM SGAS 915 - Lote 72 CEP 70390-150 – Brasília/DF – Brasil Fone: 55 61 3445 5900 Fax: 55 61 3346 0231 http://portal.cfm.org.br/ Sociedade Brasileira de Bioética – SBB SRTVN – Quadra 702 – Lote P – Ed. Brasília Rádio Center – Sala 1.014 CEP 70719-900 – Brasília/DF – Brasil Fone/Fax: 55 61 3964 8464 http://www.sbbioetica.org.br/ Organizadores José Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches e Leo Pessini Supervisão editorial Paulo Henrique de Souza Revisão e copidesque Stéphanie Roque e Luan Maitan (Tikinet) Projeto gráfico e diagramação Portal Print Gráfica e Editora Ltda-ME / Leandro Rangel Ilustração de capa Victória Romano Tiragem 5.000 exemplares Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética / Organização de José Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches, Leo Pessini. - Brasília: CFM/SBB; 2016. 326 p.; 14x21cm. ISBN 978-85-87077-43-1 1. Bioética clínica. 2. Congresso I. Siqueira, José Eduardo de, org. II. Zoboli, Elma, org. III. Sanches, Mário, org. IV. Pessini, Leo, org. CDD 174.9574 Catalogação na fonte: Eliane Maria de Medeiros e Silva – CRB 1a Região/1678 Agradecimentos Agradecemos ao Conselho Federal de Medicina (CFM) por todos esses anos de parceria com a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e de contribuição para a Bioética nacional e internacional. Somos gratos, em particular, à Gestão 2014-2019 no apoio aos congressos e na elaboração desta publicação. Agradecemos, também, aos professores José Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches e Leo Pessini pelo importante trabalho na organização deste livro. SUMÁRIO Apresentação Prefácio PARTe I: QUeSTõeS de FUNdAMeNTAçãO 1. O conflito público-privado na assistência à saúde (Regina Parizi) 2. Bioética clínica, biopolítica e exclusão social (Márcio Fabri dos Anjos) 3. Justiça sanitária como tema de reflexão para a bioética clínica (Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli e José Roque Junges) 4. Bioética de intervenção – uma breve síntese de seus fundamentos e aplicações em tempos de globalização e desigualdades sociais (Volnei Garrafa e Leandro Brambilla Martorell) 5. Mistanásia: um novo conceito bioético que entra na agenda da bioética brasileira (Leo Pessini e Luiz Antonio Lopes Ricci) 6. Bioética e espiritualidade (Waldir Souza) PARTe II: QUeSTõeS de ÉTICA APLICAdA 7. Tomada de decisão em Bioética Clínica (Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli) 8. Reflexão bioética sobre a responsabilidade cidadã e o ato de cuidar (José Eduardo de Siqueira) 9. Conflitos éticos presentes no início da vida (Mário Antônio Sanches e Evandro Arlindo de Melo) ........................................................................................... 11 ....................................................................................................... 15 .............................................................................. 21 ......................................................................... 37 ............................................................... 55 ............................................. 73 ................................................................... 95 ................................ 123 ............................................ 149 ................ 177 ................. 207 10. Reflexões bioéticas sobre a vida e a morte na UTI (Leo Pessini e José Eduardo de Siqueira) 11. Bio(po)ética narrativa: literatura, teatro e poesia como ferramentas no ensino e na aprendizagem da bioética (Jan Helge Solbakk) 12. Comitês de bioética clínica (Elcio Luiz Bonamigo, Bruno Rodolfo Schlemper Junior e Maria Teresa Campos Velho) Posfácio Sobre os autores Sobre as entidades ................................. 229 ........................ 253 .......................................................................................... 283 ...................................................................................................... 307 ..................................................................................... 312 ................................................................................ 322 Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 11 APReSeNTAçãO A publicação deste livro tem um significado muito importante para a bioética brasileira, pois traduz parte do sucesso que foi o XI Congresso Brasileiro de Bioética, realizado na Pontifícia Universidade Católica de Curitiba (PUCPR), em setembro de 2015. No evento, que também reuniu o III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e a III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética, foram comemorados os 20 anos de fundação da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e homenageados grandes nomes da área, como o professor Giovanni Berlinguer, bioeticista italiano que muito contribuiu para o Brasil, e o professor Paulo Fortes, presidente da SBB (gestão 2009/2011); ambos falecidos em 2015. Portanto, a Sociedade Brasileira de Bioética e o Conselho Federal de Medicina, realizadores do evento, diante da importância e da qualidade técnica de que se revestiram as diversas conferências e palestras, aprovaram a publicação deste material do congresso relativo à bioética clínica. O livro foi organizado em duas partes, sendo que na primeira prevalecem questões que integram a fundamentação da bioética clínica, ou seja, fatores e posicionamentos que repercutem na concepção da saúde e da doença, como a prática clínica baseada em critérios de justiça sanitária, a mistanásia sob o olhar bioético, os conflitos éticos interpostos nas formas de assistência à saúde, as desigualdades sociais como fatores determinantes das condições de vida e saúde, entre outros. A segunda parte do livro, por sua vez, trata da aplicação das questões éticas e bioéticas – como de início e final de vida, doenças de grande impacto epidemiológico e com pouca atenção ou investimento –, bem como de determinados recursos, metodologias e instrumentos que podem nos auxiliar em escolhas e decisões marcadas por sofrimentos morais. Bioética Clínica12 Assim, nós da SBB agradecemos, mais uma vez, a contribuição dos colegas, que além de prepararem suas palestras e/ou conferências, ainda se dispuseram a escrever os capítulos deste livro. Aos leitores desejamos uma ótima leitura. Regina Parizi Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 15 PReFÁCIO A ética das virtudes, ao longo da evolução histórica e filosófica da humanidade, recebeu diversas e importantes contribuições, como a do pastor alemão Fritz Jahr, que, em 1927, construiu um pensamento com características imperativas: “respeite todos os seres vivos como um fim em si mesmo e trate-os como tal, se possível”. O neologismo “bioética” foi utilizado, pela primeira vez, em 1970, pelo bioquímico norte-americano Van Rensselaer Potter. Decorridos 46 anos, a bioética se apresenta, na atualidade, como a fronteira de um novo pensamento científico. Esse maior status epistemológico vem de sua transversalidade por temas específicos e limites entre os extremos, como nascer/não nascer (aborto), morrer/não morrer (eutanásia), saúde/doença (ética biomédica) e bem-estar/mal-estar (ética biopsicológica). Nos tempos contemporâneos, a bioética se insere em diferentes perspectivas de análise, nos campos de dilemas provocados pelas mudanças ocorridas nas relações sociais de um novo mundo, de extrema racionalidade, técnico e científico, e pelo avanço do conhecimento − como a clonagem (ética genética), os confrontos entre jovens e idosos (ética de gerações) e as agressões ao meio ambiente (ecoética). A bioética passou a tratar das relações humanas, da prevenção e solução de conflitos, da atenção à saúde e à vida, com ênfase na dignidade do ser humano e em sua autonomia, em um contexto de convivência das liberdades. No âmbito da medicina, a bioética clínica – uma das áreas de aplicação desse método científico – proporciona, hoje, a oportunidade de reflexão e avaliação do melhor percurso profissional, na busca do resgate de um caráter humanista e Bioética Clínica16 humanitário e do crédito e respeito entre o médico e o paciente, submersos em um caldo de insumos materialistas. Bernard Lown, um dos mais destacados cardiologistas do século XX, com base em sua experiência de ensino e assistência profissional, observou que o conceito do médico como conhecedor do homem passou ao do médico, como conhecedor de uma técnica operativa sobre um órgão ou uma patologia. De fato, a prática médica se tornou uma atividade em que o volume dos conhecimentos e a pluralidade das técnicas impuseram, com maior vigor, a exigência da especialização. Sem dúvida, a ânsia pelo saber radical pôs em risco uma acurada visão de conjunto do organismo humano e o sentido do próprio saber. Professor emérito de Harvard, em seu livro A arte perdida de curar, Lown chama a atenção para o foco desproporcional das escolas médicas no tecnicismo em detrimento da arte de ser médico. Para ele, a verdadeira “sabedoria médica” é adquirida pela capacidade de compreender um problema clínico a partir da integralidade do indivíduo. Na procura desse elo perdido, no mister de cuidar do ser humano, de um ser em constante renovação nas relações consigo mesmo e com o meio que o cerca, de um ser em permanente vir a ser, o Conselho Federal de Medicina (CFM), com as suas normas e, particularmente, com o Código de Ética Médica, tenta estimular uma prática orientada por princípios fundamentais, que preservem a medicina como profissão a serviço da saúde do indivíduo, da coletividade, e exercida sem discriminação de nenhuma natureza. O compartilhamento de esforços do CFM com a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) nas realizações, em setembro de 2015, do XI Congresso Brasileiro de Bioética, do III Congresso Brasileiro de Bioética Clínica e da III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética é relevante ao futuro que precisa ser planejado e construído para ser justo. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 17 Eventos dessa envergadura, cuja síntese de palestras e debates preenche essas páginas que chegam ao leitor, são oportunidades ímpares para o fortalecimento dos compromissos hipocráticos, em um paradigma benigno-humanitário. Temas como justiça sanitária, mistanásia, desigualdades sociais, doenças raras e negligenciadas, entre outros trabalhos produzidos por alguns dos mais renomados bioeticistas nacionais e internacionais, foram apresentados com maturidade, sapiência e humildade, indispensáveis às melhores reflexões. Por fim, nesta edição de Bioética Clínica, há de ser feita uma homenagem ao cirurgião e professor William Saad Hossne, falecido em 13 de maio de 2016. Conhecido como “pai da bioética” no Brasil, Hossne fundou a SBB e ajudou a criar a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), coordenada por ele entre 1996 e 2007, um marco histórico na proteção dos direitos dos sujeitos de pesquisa. Culto, eloquente, comprometido com a profissão, com o ser humano e, sobretudo, com a ética, Hosnne certamente figura no mesmo panteão ocupado por Potter, Jahr e alguns poucos outros que defenderam, sem concessões, o respeito à autonomia, à justiça, à beneficência, à não maleficência e à equidade, princípios de base nos quais a bioética fixa residência como patrimônio universal e público da humanidade. Carlos Vital Tavares Corrêa Lima Presidente do Conselho Federal de Medicina PARTE I QUESTÕES DE FUNDAMENTAÇÃO Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 21 O conflito público-privado na assistência à saúde Regina Parizi1 No século XX, os debates sobre saúde – especificamente, assistência à saúde – assumiram diferentes enfoques mediante a conjuntura econômica e política mundial, principalmente nos países mais desenvolvidos. Assim, no período pós-guerra predominou um discurso solidário, de reconstrução dos países e elaboração de políticas que amparassem os cidadãos vulnerados pelos conflitos. No campo da saúde, a proposta foi criar sistemas universalistas, financiados com tributos estatais ou por intermédio do sistema de seguridade social, através da contribuição do trabalhador. Entretanto, a partir da década de 1980, com o movimento neoliberal e de globalização da economia cresceram os conflitos na área da saúde, sobretudo diante do aumento de gastos (devido à grande incorporação de biotecnologia) e de demanda por serviços, em consequência do envelhecimento populacional. Dessa forma, enquanto para o setor público a saúde representava um ônus orçamentário cada vez maior, para o setor privado ela passou a ser uma das áreas de negócios mais lucrativos. Aprofunda-se, pois, o principal conflito ético que vem integrando esse debate: considerar a saúde um direito humano fundamental. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco, de 2005, aponta a necessidade de o Estado regular essa área; enquanto os teóricos neoliberais defendem que ela não é uma obrigação estatal (mas que o Estado é responsável pelos mais pobres) e que o cidadão deve ser provedor de sua própria saúde. 1. Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. Bioética Clínica22 Marco regulatório No Brasil, o direito à saúde foi consubstanciado pelos artigos 196 e 200 da Constituição Federal, e regulamentado pela Lei nº 8.080, de 1990, que criou o Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, esse mesmo arcabouço jurídico deixou livre à iniciativa privada a assistência à saúde, permitindo inclusive a dedução da contribuição fiscal com a assistência privada, conforme a Lei nº 7.713, de 1988. Esse cenário, embora não exclusivo da realidade brasileira, é produtor de conflitos que repercutem em diferentes setores da saúde, como na definição de fontes de financiamento, modelos assistenciais, distribuição da rede de serviços e profissionais, entre outros. É importante ressaltar que, com a crise econômica dos países mais desenvolvidos iniciada na década passada (a qual se espraiou para os países mais pobres), a área da saúde é a que tem sofrido mudanças mais fortes no marco regulatório. As reformas na legislação têm ocorrido especialmente no incremento de restrições no acesso à assistência à saúde nos sistemas universalistas – de maneira direta para o imigrante e indireta na instituição de taxas de copagamentos no momento do atendimento –, conforme se verifica, por exemplo, nas reformas introduzidas na legislação da Espanha (PERPIÑAN, 2013) e de outros países. Esses debates, portanto, estão centrados nas dificuldades financeiro-orçamentárias dos países, cujas despesas crescentes acompanham o envelhecimento populacional e o aumento de custos com a agregação de tecnologias na saúde; enquanto a discussão dentro do campo ético é de que a saúde, assim como a educação, é um direito de cidadania, devendo para tanto ser universal, sem qualquer discriminação de raça, credo ou condição socioeconômica. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 23 Modelo assistencial Os conflitos dessa área têm forte repercussão no campo do consumo de serviços, uma vez que o setor privado é baseado em doenças/procedimentos (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1992), sofrendo forte influência da oferta de novas tecnologias e produtos de saúde disponibilizados no mercado. Considerando esse contexto, Lucien Sfez (1995) publicou “Saúde Perfeita”, pesquisa desenvolvida com segmentos da classe média alta da França, dos Estados Unidos e do Japão em que foi observado alto grau de confiança desse extrato da população em relação à tecnologia para resolver seus problemas de saúde. Por outro lado, na década de 1990, cresceu dentro do setor público – especialmente nos países com sistemas universalistas – o debate sobre um modelo assistencial voltado para toda a família, priorizando ações de promoção da saúde, com estímulos à adoção de hábitos saudáveis, envelhecimento ativo, entre outros. Um modelo, portanto, voltado para a promoção da saúde em contraposição ao modelo assistencial preconizado pelo mercado, que estimula o consumo excessivo de medidas de prevenção às doenças, sobretudo na realização de exames e utilização de medicamentos. Outro debate importante, também implementado a partir desse período, é referente à estruturação dos serviços, que necessita de amplo acesso e cobertura assistencial. Desse modo, programas como os de saúde da família (MENDES, 2015) e regionalização da rede diagnóstica e hospitalar são propostas elaboradas para garantir a entrada no sistema de saúde, e referência para organizar o acesso a ações e tecnologias mais complexas. Vários estudos2 mostram que essa incorporação de tecnologia – tanto no setor público como no privado, com os planos de 2. Como Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações judiciais movidas por clientes de planos de saúde, relacionadas à negação de coberturas assistenciais no estado de São Paulo, de Mário Scheffer, e Demandas jurídicas por coberturas assistenciais: estudo de caso: CASSI, de José Antonio Diniz de Oliveira. Bioética Clínica24 saúde –, nos últimos anos, vem sofrendo influência crescente de um fenômeno denominado “judicialização da saúde”, que ocorre em diversos países. Nesse fenômeno, o setor judiciário intervém no sistema público de saúde ou de planos privados, determinando o acesso a exames e/ou medicamentos para um paciente ou, de forma mais ampla, para a sociedade no programa de assistência em questão. As críticas sobre o modelo assistencial baseado em interesses do mercado vêm aumentando (MENDES, 2015), pois ele desequilibra os fatores de demanda e oferta na saúde, dificulta o acesso e cria vieses na assistência. Assim, preconizam a criação de redes de atenção à saúde, nas quais as ações e os serviços são regulados pelos programas de atenção primária, que priorizam as medidas de promoção à saúde e não somente as de prevenção de doenças. A equidade tem sido o princípio norteador no debate e na formulação desses programas, conforme discutido pela Bioética da Intervenção (GARRAFA; PORTO, 2003) e da Proteção (SCHRAMM, 2008). São as características dos agravos de saúde e as necessidades das pessoas que devem definir as prioridades de acesso aos serviços e não o poder aquisitivo, como é determinante nos modelos de mercado. Questões administrativo-operacionais Grande parte dos conflitos que surgem nessa área é em decorrência do modelo assistencial e da disputa entre o setor público e o privado. Um exemplo disso é a migração dos profissionais da saúde para programas, setores e/ou países que oferecem melhor remuneração. Esse fator tem uma influência tão grande atualmente que acabou se transformando em um dos problemas estruturais mais debatidos mundialmente: a formação de recursos humanos na saúde. Assim, vários países e o Brasil, hoje, estão às voltas com os conflitos e com a discussão de como equacionar a relação Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 25 quantitativa e qualitativa do perfil dos profissionais versus necessidade da população. O Brasil, em particular, apresenta uma distribuição bastante heterogênea da rede de serviços e dos profissionais de saúde. Carvalho (2013) já mostrava que havia uma grande concentração dessa rede na região sudeste do país, que ultrapassava mais de 50% dos médicos, serviços e operadoras de planos de saúde, que movimentavam a assistência e o mercado privado de saúde no país. Essa questão ganha maior relevância quando avaliamos que, embora o Brasil conte com um sistema universalista de saúde como o SUS, ele não dispõe de uma rede de profissionais e serviços que garanta a assistência no setor público, o que determina a compra de serviços no mercado e, também, os conflitos entre os modelos público e privado de assistência à saúde. Recentemente, a crise do Programa Mais Médicos – que foi elaborado diante do deficit desses profissionais no Programa de Saúde da Família (PSF) – ganhou proporções nacionais. É importante lembrar que o PSF foi concebido como contraproposta ao modelo assistencial baseado na lógica de mercado, com o objetivo de atuar na promoção da saúde e prevenção de doenças dos diferentes integrantes da família, nas diferentes etapas da vida e regiões do país. O PSF sempre apresentou deficit de médicos, e, por isso, em 2013, o governo federal passou a admitir médicos de outros países para preencher as lacunas dos editais de contratação. Isso resultou em uma grande revolta dos médicos brasileiros, pois o governo dispensou a necessidade de equivalência do diploma estrangeiro, ferindo, assim, uma regra de reciprocidade que é praticamente universal na área da educação. O grande conflito estabelecido é que uma parcela da população – sobretudo moradores de periferias, estados menos abastados e Bioética Clínica26 municípios de pequeno porte – apoia a medida, pois precisa de médicos; enquanto a outra discorda, defendendo o sistema de equivalência de diplomas, que visa à segurança da sociedade em relação à qualidade dos cursos de medicina realizados no exterior. Do ponto de vista ético e político é necessário buscar uma solução. Para tanto, é fundamental que o governo e os profissionais de saúde, principalmente os médicos, elaborem propostas que atendam às necessidades da população em relação ao acesso à atenção, mantendo, por outro lado, as regras de segurança relativas à formação médica. Questões econômico-financeiras Tanto a globalização como a crise econômica, que foi sendo espraiada para diferentes países após 2008, impulsionaram o aumento da desigualdade com o incremento do desemprego e da concentração de renda, ampliando, assim, o contingente de pessoas vulneradas. Diante da crise, vários países (sobretudo os europeus e com sistemas universalistas de saúde, como Espanha, Portugal, Grécia) fizeram cortes orçamentários, como medida de contenção de despesa, sendo a área da saúde uma das mais afetadas. A justificativa é a mesma: o crescimento acentuado de custos em decorrência da grande incorporação de biotecnologias, do aumento da demanda em função do envelhecimento populacional e dos fortes movimentos migratórios naquela região. Por outro lado, mesmo os países em desenvolvimento, como o Brasil (que ainda apresenta um grande contingente populacional na margem da pobreza e da exclusão social), não aumentaram significativamente o investimento no setor público de saúde, como é possível observar na tabela a seguir, que apresenta as despesas da área em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 27 Percentual das despesas públicas e privadas na saúde em relação ao PIB, nos anos 2000 e 2010 despesas Países % PIB despesas Públicas % PIB despesas Privadas % PIB despesas Totais2 2000 20101 2000 20101 2000 20101 Alemanha 8,2 8,91 2,1 2,7 10,3 11,6 África do Sul 3,4 3,4 5,0 5,1 8,4 8,5 Brasil 2,9 4,1 4,3 4,9 7,2 9,0 Canadá 6,2 8,1 2,6 3,4 8,8 11,5 China 1,8 2,3 2,9 2,3 4,7 4,6 Espanha 5,2 7,0 2,0 2,5 7,2 9,5 Estados Unidos 5,9 8,3 7,8 9,1 13,7 17,4 Fed. Russa 3,2 3,5 2,2 1,9 5,4 5,4 França 8,0 9,2 2,1 2,6 10,1 11,8 Índia 1,1 1,4 3,3 2,8 4,4 4,2 Itália 5,8 7,4 2,2 2,1 8,0 9,5 México 2,4 3,1 2,7 3,3 5,1 6,4 Nova Zelândia 5,9 8,3 1,7 2,0 7,6 10,3 Reino Unido 5,6 8,2 1,5 1,6 7,1 9,8 1 Dados de 2009. 2 Totalização dos dados pela autora. Fonte: ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (2012). Algumas informações da tabela merecem ser ressaltadas, como o crescimento generalizado da despesa com saúde, na década analisada, em países de diferentes continentes. As despesas, para a maioria dos países, cresceram tanto no setor público quanto no privado, mas os que adotaram sistemas públicos universalistas, como Canadá e Reino Unido, conseguiram conter mais os gastos em relação ao PIB do que aqueles que adotaram sistemas predominantemente privados, como os Estados Unidos. Observa-se, também, que os países em desenvolvimento, como Brasil, China, Índia e México, apresentam, em sua maioria, um maior percentual de despesa privada de saúde em relação ao PIB, Bioética Clínica28 mesmo quando contam com sistemas universalistas de saúde, como é o caso brasileiro. Essa questão aumenta o grau de sofrimento e vulnerabilidade econômica das famílias, pois estudos de 2010 do IBGE mostram que as despesas com a saúde foram um dos itens de maior peso no orçamento familiar, chegando naquela época a 5,9% das despesas nas famílias de renda média e 7,3% nas de renda baixa. O impacto dos gastos com a assistência à saúde para as famílias tem sido tão relevante que a Organização Mundial da Saúde (2012) divulgou um relatório mostrando que, somente no ano anterior, mais de 150 milhões de pessoas estavam pagando sua assistência do próprio bolso. Dessas, 100 milhões de pessoas foram à falência e empurrados para a linha da pobreza. A saúde, portanto, que deveria ser um setor de distribuição de renda e de inclusão social, passou a ser um fator produtor de iniquidades ao gerar e ampliar diferenças injustas. Diante disso, a OMS apontou, nesse mesmo documento, que a pauta prioritária seria a discussão sobre financiamento e cobertura universal na assistência à saúde. Apesar de haver maior consenso na discussão sobre financiamento – que também apresenta um intenso debate sobre a necessidade de aperfeiçoar a gestão para coibir desvios, desperdícios e ineficiências –, é na questão da cobertura universal que se estabelece o maior conflito e debate ético. Os críticos sobre o posicionamento da OMS apontam que, embora a necessidade de universalização da cobertura assistencial seja também um consenso, há uma divergência importante sobre se essa expansão se daria mediante financiamento público ou privado, uma vez que em alguns países essa ampliação da assistência tem se dado pelo crescimento dos planos e seguros privados de saúde, inclusive com subsídios estatais. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 29 Assim como está evidenciado na tabela anterior, essa tem sido a realidade no Brasil, uma vez que há maior participação do financiamento privado, o qual cresceu bastante na década passada, chegando a uma cobertura de 50 milhões de brasileiros, em setembro de 2009 (BRASIL, 2009). No entanto, com a crise econômica, assim como nos países europeus, esses números começaram a diminuir, dado que a maioria dos planos privados de saúde são coletivos empresariais, ou seja, dependem do nível de emprego no país. Os conflitos sob a perspectiva bioética A bioética é uma disciplina que preconiza a ética aplicada à análise dos fenômenos e das condições de vida de todos os seres, inclusive do ambiente que habitamos, tendo como horizonte a responsabilidade para com as gerações atuais e futuras. Seus estudos tratam de valores éticos e morais que devem ser agregados ao desenvolvimento econômico dos povos, em conjunto com as dimensões humanas e sociais, as quais são imprescindíveis na área da saúde. Essa disciplina é uma ferramenta cuja aplicação se dá tanto na discussão e elaboração de políticas quanto na orientação de instituições que prestam serviços e de pessoas nos cuidados e decisões, sobretudo no campo sanitário. A bioética tem como base a transparência das informações, o reconhecimento dos interesses diversos, o respeito às divergências, a mediação de conflitos, a formulação e reformulação de acordos, considerando que muitas verdades são transitórias em função das desigualdades, da diversidade e da complexidade da vida contemporânea. Na assistência à saúde, há uma variedade de fatores que interferem nos resultados. Todos eles são igualmente importantes e se retroalimentam, como as questões éticas que vão balizar Bioética Clínica30 políticas – que por sua vez vão estabelecer direitos na legislação, baseados nos conhecimentos técnico-científicos da área. Assim, ao se avaliar políticas e setores dessa área assistencial, é preciso levar em consideração se há uma conjugação coerente entre os elementos acima mencionados e se os resultados encontrados são culturalmente aceitáveis. No Brasil, a saúde foi considerada, do ponto de vista ético, como um direito fundamental de todo cidadão, que deveria ser construído em um sistema lastreado no princípio ético da equidade, tendo como horizonte a universalidade e a integralidade da atenção, de maneira que fizesse frente às diferentes condições de saúde da população em decorrência das desiguais condições de vida da sociedade brasileira. Grande parte dos países no mundo, hoje, adotam a equidade e a solidariedade como princípios norteadores das suas políticas de saúde, explicitados na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, da Unesco. No Brasil e com as ideias expandidas para a América Latina, Garrafa e Porto (2003), desde a década dos anos de 1990, vêm apontando a equidade como princípio fundamental nas discussões das políticas sociais e na mediação de conflitos que ocorrem na assistência à saúde. Os autores preconizam, em decorrência do cenário da globalização, a utilização de uma corrente crítica denominada “Bioética de Intervenção” (BI), que tem a equidade como eixo central das políticas na redução das desigualdades produzidas pelos sistemas econômicos. Nessa linha de pensamento, para a BI, os investimentos e as ações do Estado devem priorizar as populações mais necessitadas, dentro de um lógica utilitarista, consequencialista e solidária que, a partir de decisões e ações concretas, busquem a obtenção dos melhores resultados possíveis, para o maior número de pessoas, pelo maior espaço de tempo e que resultem nas melhores consequências coletivas. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 31 Atualmente, a crise econômica dos países mais desenvolvidos, gerada pela globalização do ideário neoliberal com repercussões nas políticas de bem-estar social, sobretudo nos países europeus, tem colocado o princípio da equidade no centro do debate, auxiliando na formulação de políticas sustentáveis que procurem combinar o desenvolvimento econômico, social e humano com a preservação das condições de vida no planeta. Ao avaliar a participação do setor privado na saúde, por outro lado, poderíamos considerar que do ponto de vista econômico, do financiamento da assistência, seria uma medida equitativa a participação do empresariado brasileiro (uma vez que mais de 70% dos planos são coletivos empresariais) e de determinadas faixas socioeconômicas da população na contribuição de maiores percentuais para assistência à saúde. Nessa linha de reflexão, o setor público, no caso o SUS, poderia aplicar maiores recursos na atenção à população mais necessitada. Alguns estudiosos, como Carvalho (2010), no entanto, refutam essa sugestão ao apontar o benefício da renúncia fiscal permitida pelo Estado brasileiro na assistência privada de saúde, que resultaria em um menor pagamento de impostos por parte das pessoas e do empresariado que utilizam a assistência privada de saúde. O Estado, nesse caso, perceberia um menor recolhimento de impostos, diminuindo o poder de investimentos no setor público, ou seja, para os mais necessitados. A aplicação do princípio da equidade na contribuição tributária é fundamental, pois além de promover maior justiça fiscal e social na distribuição de recursos, no caso da saúde brasileira ela pode permitir a constituição de patrimônio público na construção da rede de serviços. Essa possibilidade não ocorre no financiamento direto, indireto e/ou na compra de serviços privados, além de aumentar a dificuldade do Estado na regulação do mercado, sobretudo porque este não é o maior financiador e nem o maior prestador direto de serviços de saúde no Brasil. Bioética Clínica32 Além disso, determinadas regras assistenciais do setor privado, quando compatibilizadas com questões de equilíbrio financeiro e margem de lucro, podem gerar desigualdades, conflitos e distinções na atenção à saúde, como na questão do envelhecimento ou na interferência da autonomia do profissional, situações nem sempre compatíveis com os valores éticos e morais da sociedade. Na bioética o entendimento é de que essas parcelas mais vulneráveis da coletividade não estão relacionadas somente com as de menor poder aquisitivo, mas também com pessoas expostas a condições de maior fragilidade, como crianças, gestantes, idosos, pessoas com deficiências, entre outros. Tais condições, portanto, não podem ser objeto de negociação em relação a fatores que possam aumentar a condição de fragilidade, pois a saúde (definida como um direito do cidadão e dever do Estado) tem sua assistência financiada pela população, seja mediante contribuição de impostos ao poder público ou pagamento ao setor privado, tanto para diminuir os riscos de agravos à saúde como para contribuir com a dignidade da vida humana. A bioética, portanto, tem se mostrado uma ferramenta de análise essencial nos debates dos sistemas de saúde, pois ao tratar de questões pontuais tem a capacidade de estender a análise para temas mais gerais, mantendo coerência com princípios éticos e, ao mesmo tempo, permitindo a discussão do contraditório, que, conforme Habermas (1987), nada mais é que a outra face da mesma razão. O mundo como se apresenta, entretanto, com tantas diferenças e desigualdades entre os povos e as pessoas, demanda aplicação de princípios que possibilitem a abrangência dessa diversidade, sendo a equidade um dos poucos que se revestem dessa capacidade. Pois, como tão bem ressalta Ribeiro (2006, p. 8): Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 33 Quando definimos se queremos uma sociedade de ampla liberdade individual e de escassa solidariedade, ou uma que tenha muita solidariedade, mas limite a liberdade de empreender, esta é uma grande escolha – uma escolha política. É a escolha, digamos, entre o egoísmo esclarecido e a solidariedade. Os debates sobre a universalização do acesso à saúde, não só no Brasil como no mundo, vêm refletindo essa tensão, tanto com o aumento, em um primeiro momento, do financiamento privado na saúde em decorrência da expansão do projeto neoliberal e da globalização econômica, como da sua crise com retração do financiamento nas últimas décadas. Assim, bioeticistas, profissionais de saúde e organismos multilaterais, como a Unesco e a OMS, têm se debruçado sobre esses conflitos e a questão da cobertura universal na saúde, que permanece como um dos grandes desafios para a humanidade neste novo século. O Brasil pode e deve aprofundar os debates em relação ao modelo de atenção, da melhor regulação público-privada entre o SUS e o setor privado de assistência, não se limitando a intervenções pontuais e fragmentadas, diante do agravamento dos problemas. Uma melhor governança desses setores, no entanto, exige posicionamento ético, diretriz e metas, que no Brasil devem concorrer para o acesso universal da população à saúde. Referências BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Caderno de informação da saúde suplementar: beneficiários, operadoras e planos de saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: <http:// www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/ Caderno_informacao_saude_suplementar/2009_mes12_caderno_ informacao.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2016. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Casa Civil, 1988a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 20 abr. 2016. Bioética Clínica34 ______. Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988. Altera a legislação do Imposto de Renda e dá outras providências. Brasília, DF: Casa Civil, 1988b. 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Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 37 Bioética clínica, biopolítica e exclusão social Márcio Fabri dos Anjos1 Em bioética clínica, tratar de exclusão social é como lidar com más notícias em saúde. Trata-se de um assunto desagradável até para ser abordado apenas na teoria. Isso se deve em parte porque é sempre penoso entrar em contato com as carências, a dor e o sofrimento das pessoas, e também porque tais situações perturbam o sossego ao se tornarem uma interrogação subjacente a nossas posturas pessoais diante dos fatos. Dessa forma, não é rara uma reação de rejeição quase a priori ao tema. De fato, criamos instintivamente defesas – assim como anticorpos do sistema imunológico – e certa resistência a essa realidade, as quais nos impedem de tratar sobre a exclusão social. Essa característica foi identificada por Popper (2009) até mesmo em especialistas e em suas teorias científicas. Além disso, a desinformação sobre essa realidade social pode agravar esse quadro. Entretanto, é necessário lembrarmos o quanto a desigualdade excludente que nos rodeia também nos afeta (POCHMANN, 2015). De fato, a expressão “corpo social” não é uma simples metáfora, mas uma consistente analogia que inclui as relações de saúde que temos em comum, como veremos adiante. Dentro dos vários aspectos que o tema abrange, este estudo visa a mostrar alguns fundamentos que ajudam a ilustrar uma aproximação da bioética às questões da exclusão social, tendo como referência as áreas clínicas da saúde. Nossa contribuição é de esclarecimentos conceituais, dentro de um contexto de outros estudos que expõem outros temas e aspectos. 1. Doutor em Teologia, docente do Programa de Doutorado em Bioética do Centro Univer- sitário São Camilo (SP), coordenador do grupo de pesquisa sobre Fundamentos de Bioética nas Atividades Profissionais, membro da Câmara Interdisciplinar de Bioética do Cremesp, secretário da Sociedade Brasileira de Bioética (2015-2017), licenciado em Filosofia. Bioética Clínica38 esclarecendo conceitos Para maior compreensão do tema, selecionamos aqui alguns termos recorrentes em nosso assunto, em busca não apenas de uma melhor precisão conceitual, mas também para introduzir vários problemas que estão subjacentes às conceituações. exclusão social: Na linguagem acadêmica, a expressão “exclusão social” tem usos variados – podendo ser um termo genérico, uma noção sugestiva (mesmo que imprecisa), um conceito bem definido ou uma categoria de análise – e é, de certa forma, considerada recente, uma vez que faz parte de diversas análises contemporâneas de processos sociais. Essa expressão ganhou força na década de 1980, com a percepção do que se chamou de “nova pobreza”, difícil de ser enfrentada por estar sendo provocada pela adoção de sistemas de vida social difusos, desfavoráveis à inserção das pessoas e grupos sociais nas novas formas de vida (LAFORE, 2008, p. 414). No Brasil, Martins (1997) a chamou de “nova desigualdade”. Mesmo que seja necessária uma discussão sobre as possíveis definições conceituais do termo, não se deve perder de vista nem obscurecer a dura realidade que lhe dá origem, ou seja, as disparidades das condições sociais – que abrigam sofrimento, dor, insalubridade e morte para grande número de indivíduos e grupos sociais. exclusão social inclusiva: A exclusão social denota uma violência (em geral mais implícita do que explícita) através de atitudes e gestos responsáveis pela não participação de indivíduos ou grupos de sujeitos humanos nas atuais formas de vida em sociedade. Isso acontece de diferentes modos – seja por meio de discriminação, interposição de obstáculos ou eliminação de condições favoráveis à participação – e se mostra por suas consequências, como pobreza, fome, insalubridade e demais condições desfavoráveis de vida, tanto mais paradoxais quanto se apresentam abundantes os recursos. É fácil perceber que a Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 39 exclusão tem formas variadas, com espaços filtrados de inclusão − o que não significa ser dolorosa e nefasta. Como veremos melhor, a exclusão social resulta de jogos de poder que atuam segundo suas conveniências e interesses, em que uma exclusão social radical e absoluta, mesmo que aspirada por poderosos, é praticamente inexistente. As exclusões sociais se dão de forma segmentada, inclusive por interesse dos próprios sistemas que excluem ou incluem as pessoas em diferentes áreas, sob o critério do poder de domínio que exercem. Uma amostra disso está na condição dos pobres para os quais se reserva uma faixa de mercado, em que o poder se serve das parcas potencialidades de consumo dos chamados “menos favorecidos” – um eufemismo que está cercado pela hipocrisia do poder oculto, particularmente responsável por tal desfavorecimento. Esses apartheids se multiplicam em diferentes áreas, dando lugar a “inclusões excludentes” também nas relações de cuidados de saúde. desigualdade: Com frequência, o termo “desigualdade” recebe uma especificação da área em que esta se dá, como desigualdade econômica, étnica, de gênero e semelhantes áreas da convivência. Lexicamente “desigualdade” expressa uma condição de vida, enquanto “exclusão” alude a uma ação. Entretanto, o fato de se tomar com frequência uma pela outra parece se justificar pela estreita interação entre ambas: a desigualdade resulta de diferentes formas de exclusão, que a tornam crescente, persistente e resistente aos esforços de reversão. Por esse motivo, através da expressão “exclusão social” se busca chamar a atenção para o próprio processo com que se tecem as desigualdades. A desigualdade social é, às vezes, outro nome dado à exclusão e à inclusão subordinadas. Nessa dinâmica de ação, “exclusão social” é uma expressão cuja razão de seu uso na bioética tem um caráter transitivo, isto é, visa chamar a atenção para um processo em curso que aspira à outra realidade. Desse modo, não é um jogo de provocação muitas vezes entendido como feito apenas para irritar e perturbar, mas, na verdade, pretende ser um caminho pelo qual se busca Bioética Clínica40 compreender a exclusão exatamente para se sair dela (CLAVEL, 2000). Pensar sobre a exclusão social na bioética supõe um movimento de saída para a inclusão social, que, por sua vez, implica o desafio de compreender as diferenças através das quais nos constituímos na vida. diferença e igualdade: O conceito de “diferença” é de extrema importância quando se trata de pensar a ética da exclusão social, especialmente porque, às vezes, ocorrem equívocos ao se propor a igualdade como superação das desigualdades provocadas pela exclusão. As diferenças são pertinentes a nossa condição de ser. Mais do que isso, fazem parte essencial do megaprocesso de construção, sustentação e evolução da vida em todos os sentidos, pelo qual temos a possibilidade de nascer, crescer, nos sustentar, transformar e progredir exatamente pelas diferenças com as quais interagimos. A isso se deu modernamente o nome de “biodiversidade”, que, ao descrever a enorme variedade das formas de vida, mostra ao mesmo tempo a indispensável rede de relações com que se tece também a vida humana. Fritz Jahr (1924) formulara esses conceitos em termos de bioética, que foram aprofundados filosoficamente por Jonas (2004) e estudados, mais tarde, por vários autores como Naves e Sá (2013), que, em nossos dias, ressaltam o grande ambiente da vida entrelaçado pelas diferentes formas de vida biológica, e especificamente pelas diferenças nas experiências humanas do pensar e adotar formas de viver. Resulta que seria um equívoco superar as desigualdades visando eliminar as diferenças, pois isso representa uma tremenda violência sobre os seres, bem como põe a grande questão do critério ou poder que decide sobre o padrão da igualdade que se impõe. O colonialismo (FEITOSA, 2015) é uma das críticas contundentes que põe ao descoberto a imposição de padrões de uma cultura sobre outra cultura, em suas formas de relações e produção de vida e sua moralidade; em que a pretensa igualdade implica desmerecer os valores do outro com consequente exclusão. Muitas vezes a saída desse processo de dominação é formulada Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 41 em termos de se postular igualdade, aliás, uma das bandeiras da Revolução Francesa. Contrapondo-se à desigualdade, o postulado da igualdade é sem dúvida uma vigorosa reivindicação ética, mas seu sentido fundamental, para não ser contraditório, deve subentender a igualdade de direitos de os diferentes sujeitos individuais e coletivos serem respeitados em suas diferenças. Em outros termos, postula-se igual qualidade de direitos em diferentes materialidades ou condições da vida das pessoas. Essa questão, como se verá adiante, tem uma particular incidência na área clínica. Inequidade: Este termo nem sempre é reconhecido pelos dicionários e os aplicativos de correção automática, mas não são esses instrumentos que determinam a validade conceitual de um termo, pois eles correm exatamente atrás dos termos e códigos de linguagem para prestar o serviço de registrar seus significados. “Equidade” é o termo de referência ao qual se contrapõem dois outros: iniquidade e inequidade. Essa diferença de termos, ainda recente em nossa linguagem, presta um serviço à exatidão do discurso bioético para distinguir o envolvimento ético das pessoas nas desigualdades sociais. De fato, em sua conceituação básica, a equidade é o exercício virtuoso da justiça. Em contraposição, iniquidade significa a responsável adoção da injustiça, por procedimentos ou atitudes. Entretanto, a variação nas concepções de justiça se abre em grande debate de propostas e gera, consequentemente, uma interrogação sobre a retidão do seu exercício. Dessa forma, teóricos como John Rawls se veem diante da necessidade de explicitar a “justiça como equidade” (RAWLS, 2003). A bioética moderna, sensível à pluralidade dos discursos, cuidando de evitar um apressado juízo moral sobre as pessoas, serve-se do termo “inequidade” para expressar falta de equidade enquanto condição ou circunstâncias desfavoráveis a esta. A inequidade, portanto, se refere criticamente aos contextos, deixando para um segundo momento a avaliação ética das responsabilidades. Na literatura de bioética em inglês é recorrente o uso atual dos termos “iniquity” e “inequity”, com a variação conceitual de que falamos. Bioética Clínica42 Corpo social como desafio em bioética clínica A exclusão social, pelos termos de sua expressão, não se entende senão por referência às relações sociais. Uma primeira compreensão de clínica, centrada no cuidado hospitalar à saúde de indivíduos, pode subentender que a exclusão social não lhe diz respeito, isto é, que na estrita relação com o indivíduo, a clínica não se envolve com o sistema de relações sociais. A evolução das percepções sobre esse assunto leva a reflexão hoje a propor o conceito de clínica ampliada. Por ele se reconhece a necessidade de entender o ser humano “também na sua inserção social, política e cultural, na dinâmica de suas relações na família e comunidade, no acesso a serviços de saúde, trabalho, educação, entre outros aspectos que constroem seu processo de saúde/doença” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2012, p. 11). Superando uma visão de saúde e doença reduzida aos aspectos biológicos individuais, descobre-se a rede de relações sociais, implicada em condições de salubridade, alimentação, moradia, educação, trabalho, entre outras, da qual depende a saúde/doença individual. Isto implica dizer que serviços e tratamentos médicos prestados aos indivíduos estão estreitamente relacionados a fatores sociais interferentes na constituição de sua saúde/doença, sendo as situações individuais uma “representação da [sua] inserção humana na sociedade” (Ibid., p. 14). A expressão “corpo social” é aqui provocativa, por considerar o alcance da exclusão social em bioética clínica. Sua analogia com o corpo biológico dos indivíduos, e as interações da saúde/doença individual com os processos sociais sugerem um ilustrativo exame da saúde/doença do próprio tecido social. A interação entre corpo e sociedade tem sido atualmente estudada em seus diferentes aspectos, como o ilustra a interessante obra de Turner (2008, 2014), mostrando especialmente espaços de interferência social na representação dos corpos e suas consequências para as formas de inserção, condicionamento ou exclusão das pessoas nas relações. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 43 Entretanto, o passo das interferências da sociedade nos corpos dos indivíduos, para se chegar à concepção da sociedade como corpo é constituído, na visão de Foucault, exatamente pela relação de poder que a sociedade exerce sobre a determinação dos corpos individuais. Esse filósofo descarta a ideia de que um corpo social seja constituído pelo conjunto das vontades, para afirmar que “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos” (FOUCAULT, 1986, p. 146). Esse corpo social que emerge pelo poder exercido não é anônimo, mas é constituído por sujeitos concretos de ação política atuando “através de um conjunto extremamente complexo de relações, que funciona de forma extremamente sutil nos seus movimentos” (RODRIGUES, 2003, p. 119). Isso permite dizer que o corpo social mostra o exercício de seu poder autoconstitutivo, nos corpos das pessoas. O rosto de pessoas excluídas mostra, no sofrimento de suas privações, a truculência do corpo social sobre si mesmo. Como também é na face de alegria das pessoas que se pode começar a ler o poder benéfico do corpo social em ação. De fato, Foucault se contrapõe a uma redução do poder a sua ação destrutiva, notando que “se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos” em diferentes níveis, como no campo do saber. E prossegue: “é a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico” (FOUCAULT, op. cit., p. 149). Comentando as concepções foucaultianas de poder, Machado (1986) ressalta que o poder não existe em si fora de práticas e relações, mas se constitui a partir delas. E conclui que “esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder” (Ibid., p. XIV). Admitindo tal ponderação, há dois aspectos que merecem ser notados. O primeiro consiste na realidade de um exercício de poder ativamente destrutivo no desdobrar de suas relações. Foucault Bioética Clínica44 (op. cit., p. 145) é contundente em ressaltar o exercício do poder autodisciplinador do corpo social em vista de uma modelagem seletiva com procedimentos cirurgicamente excludentes: É este corpo que será preciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do corpo do monarca, serão aplicadas receitas terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos, a exclusão dos delinquentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos “degenerados”. O segundo aspecto que merece atenção está na própria lógica da afirmação de que a fragilidade do poder do corpo social se mostra em seus aspectos negativos; somada à afirmação de que o poder não existe em si, mas se constitui nas relações, pode-se concluir que o rosto dos excluídos tem a capacidade de mostrar a fragilidade do poder. O poder histórico dos excluídos de transformar as relações sociais é um tema amplamente argumentado por Dussel (1995, 2000), comentado no interessante estudo de Pinto e Raposo (2014) e refletido por muitos autores em aproximações filosóficas comunitárias e de libertação. Entretanto, mesmo sem entrar nessa discussão, parece lógico reconhecer ao menos o poder atuante do sofrimento das pessoas excluídas em revelar as fragilidades do corpo social. Esse clamor que vem do sofrimento persiste como interpelação constante sobre os processos sociais das organizações do poder. Ele revela a impotência e fragilidade de sistemas sociais que se acham ideais, e bate igualmente às portas de indivíduos e grupos capazes de o escutarem. Bioética clínica, exclusão e biopolítica As necessidades dos cuidados em saúde estão implicadas nos jogos sociais do poder de tal modo que tem crescido a consciência de que uma adequada organização desses cuidados exige uma ação política na sociedade global. Vimos acima como as concepções propostas em termos de clínica ampliada se referem Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 45 à ampla rede de interações da saúde/doença com as diferentes áreas da convivência. O aprofundamento analítico desse fato tem procurado entender os bastidores dessas interações, os sistemas e organizações que delas resultam, e através de critérios éticos, as alternativas a serem propostas. A “biopolítica” é um termo contemporâneo que, de modo geral, compreende as formas de exercício do poder sobre a vida em sociedade como sistemas de interferência e controle a serem devidamente considerados em vista do bem comum. Abre-se em diferentes concepções de política, com consequentes variações em sua conceituação (BAZZICALUPO, 2012). Aqui nos limitamos apenas a lembrar alguns autores e obras que trazem importantes contribuições aos fundamentos da bioética clínica diante da exclusão social. Destaca-se, nesse sentido, a crítica aos sistemas da saúde/doença, que subtrai a área médica dos sujeitos para servir ao interesse dos seus controladores. Uma importante crítica sobre tais distorções é feita por Ivan Illich em A expropriação da saúde: nêmesis da Medicina, de 1975. Em 1979, foi publicada a primeira edição de Microfísica do poder, de Foucault, em que há explícitas considerações sobre a área clínica, abrangendo o nascimento da medicina social e do hospital, entre outros. Na mesma época, o autor desenvolve um curso no Collège de France sobre o nascimento da biopolítica, postumamente transcrito e transformado em livro (FOUCAULT, 2004). Ele distingue na biopolítica uma forma de poder disciplinar que exerce controle sobre os corpos, que pode ser absoluto como o poder soberano de impor a pena de morte; e contrapõe a passagem às formas contemporâneas de biopoder, pelo qual se governam as dimensões globais da vida das populações, controlam as formas de fazer viver ou de deixar morrer (Id., 1999). Mais recentes, merecem atenção as contribuições de Hardt e Negri, principalmente na obra Império, em que argumentam sobre a articulação de um domínio não mais territorializado, mas Bioética Clínica46 tornado virtual e expandido com incrível eficiência, de tal modo que a sociedade se caracteriza por uma intensificação e uma síntese dos aparelhos de normalização e disciplinaridade que animam internamente nossas práticas diárias e comuns, mas, em contraste com a disciplina, esse controle estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e flutuantes. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42-43) A trilogia de Agamben em Homo sacer (2004) também dedica, nessa direção, o precioso volume O poder soberano e a vida nua. O autor, em intensa interação com pensadores contemporâneos, desenvolve a distinção entre o simples viver (vida nua), e as qualificadas e complexas formas do viver em grupo e sociedade (biopolítica). Valério (2013, p. 188) sintetiza que, para Agamben, a partir da modernidade […] o espaço da vida nua, situado originalmente à margem do ordenamento, vem a coincidir com o espaço político e, assim, exclusão e inclusão, zoé e bíos, direito e fato, phýsis e nómos entram em uma zona amorfa e tornam-se indistinguíveis. Este espaço […] é o espaço biopolítico por excelência, pois, ao embaralhar as duplas categoriais fundamentais da política ocidental, o poder soberano tem diante de si uma vida nua sem qualquer mediação, ou seja, uma vida totalmente desqualificada, mas no entanto e justamente por isso, excessivamente politizada à mercê, portanto, de um poder que, no limite, é um poder de morte. Esposito (2004, 2008, 2012) contribui para o tema situando a biopolítica na contraposição dos conceitos de “comunidade” e de “imunidade”, na qual, sob certo sentido, a imunidade é o contrário de comunidade por ser isenção de obrigações de cuidado e de solidariedade nas necessidades comunitárias; mas, em outro sentido, assim como os corpos individuais necessitam de imunidade, também para os corpos sociais a imunidade tem dimensões benéficas. Essa é uma das interessantes vertentes com que Esposito coloca os desafios da biopolítica, inclusive diante da questão de métodos totalitários para defender um corpo social. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 47 Na América Latina, em perspectivas da bioética, muitos conceitos básicos da biopolítica vêm sendo pensados há várias décadas, mesmo que não seja sob esse título. Sem menosprezar a sensibilidade de teóricos de outras regiões a injustiças, a trajetória latino-americana, porém, tem se caracterizado por um procedimento inverso, colocando à frente a experiência das inequidades e exclusões sociais, solicitando de modo contundente teorias e práticas capazes de revertê-las. São ilustrativas, nesse sentido, as formulações teórico-práticas que, a partir da década de 1960, emergiram e se desenvolveram – como a teoria da dependência (SANTOS, 2000), a teologia da libertação (GUTIERREZ, 1972), a teoria sobre a colonialidade do poder (QUIJANO, 1967), as propostas de Paulo Freire (1992) na Pedagogia do oprimido, a Bioética da Intervenção (GARRAFA; PORTO, 2003) e a Bioética da Proteção (PONTES; SCHRAMM, 2004; KOTTOW, 2004). Um momento também notável pela qualidade e projeção mundial do pensamento latino-americano a esse respeito se deu com a realização, em 2002 em Brasília, do V Congresso Internacional de Bioética sobre o tema “Bioética: poder e injustiça” (GARRAFA; PESSINI, 2003). Com a entrada do termo na linguagem acadêmica, as abordagens com referência explícita à biopolítica, em perspectivas de bioética, são hoje frequentes. De modo sistemático se realizam encontros acadêmicos organizados por universidades, como o V Colóquio Latino-americano de Biopolítica – realizado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 2015 –, voltado especificamente para a Educação. Sem perder o foco deste estudo, vemos que a exclusão social está reconhecida como uma realidade sistêmica de grande proporção, cuja reversão exige atuações correspondentemente em âmbito de sistemas, sob o risco de se reduzir a ações assistenciais e paliativas. Essa percepção biopolítica tem sido uma expressiva marca da bioética na América Latina de modo geral e no Brasil em particular. Expressa-se com abundância em críticas e propostas referentes a políticas públicas, entre as quais, as políticas de saúde Bioética Clínica48 e, especificamente, clínicas têm um lugar privilegiado. É ilustrativa, nesse sentido, uma análise desenvolvida por Cunha (2014) sobre as propostas – lideradas pela Organização Mundial da Saúde e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) – referentes ao lugar da saúde global na Agenda de Desenvolvimento Pós-2015. Cunha (Ibid.) identificou apropriadamente incoerências éticas nessas propostas de política internacional, que, à primeira vista, parecem bem consistentes. Seu estudo, derivado de tese doutoral assim como outros, indica que os cursos stricto sensu de bioética no Brasil vêm incentivando o aprofundamento dessa perspectiva crítica, com a inserção de nova geração de bioeticistas. das teorias às práticas Ao final dessa abreviada visita a fundamentos teóricos da bioética clínica perante a exclusão social, vale considerar os desafios de quem se encontra em meio às práticas diárias das atividades profissionais, gestão de instituições, pesquisa e serviços dos mais diversos cuidados clínicos. As teorias nem sempre se ajustam às práticas, às vezes por serem inadequadas aos contextos, ou mesmo insuficientes. Contudo, muitas vezes parecem distantes porque apontam para espaços a se conquistar, caminhos a percorrer. A reflexão sobre exclusão social e aspectos da biopolítica pode parecer um devaneio para quem se dá conta dos condicionamentos e pressões que cercam seus empreendimentos e atividades diárias. E é compreensível que um sentimento de impotência leve com frequência a uma acomodação dentro dos sistemas, ou mesmo a estratégias de sobrevivência diante de poderes maiores. Mas, de um modo ou de outro, todo ser humano participa das relações sociais através de seus sistemas e organizações, sob a condição de não se fazer imune a suas dinâmicas. Um ponto de desequilíbrio possível nessa condição é assumir a dimensão de poder que se tem (mesmo que seja limitada) e passar a interagir nas relações. Isso até se verifica com facilidade Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 49 nas competições frequentes entre indivíduos e entre grupos pela disputa de espaços e vantagens, mas mais se parece a uma simples reprodução do poder maior, como o biopoder que domina e orquestra as vontades individuais e grupais. Por isso, o desequilíbrio decisivo se dá nas escolhas que levam a escapar do poder como dominação, um poder no fundo frágil e medroso, como se apontou. Nesse contexto, o reconhecimento das exclusões sociais expõe as fragilidades do poder que domina. E a busca de superação das exclusões significa a opção por realizar o biopoder como realmente capaz de servir ao bem de todos. A bioética na área clínica procura ser uma instância de atenção e crítica às questões éticas que permeiam as organizações e as atividades cotidianas. As exclusões sociais repercutem diretamente nessa área exatamente pela relevância dos benefícios que nela se propiciam, e que se tornam objeto de controle de muitos a serviço de interesses particulares. As leituras críticas, por mais árduas e incômodas que sejam, visam a uma construção conjunta, reconhecida e associativa das pessoas que lutam por convivências sociais cada vez mais includentes e participativas. Referências AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004. BAZZICALUPO, L. Biopolitica: una mappa concettuale. 2. ed. Roma: Carrocci, 2012. CLAVEL, G. 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ZIONI, F. Exclusão social: noção ou conceito? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 3, set./dez. 2006. Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 55 Justiça sanitária como tema de reflexão para a bioética clínica Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli1 José Roque Junges2 A inclusão da justiça sanitária na discussão da Bioética Clínica significa ampliar os referenciais éticos desta, fazendo-os ultrapassar os princípios da autonomia, beneficência e não maleficência, o que, de certa maneira, propicia a inclusão de outros enfoques nas reflexões, não as restringindo ao principialismo. As exigências éticas do cuidado clínico têm o direito à saúde como horizonte ético, que precisa balizar as reflexões e processos de tomada de decisão em conflitos morais. Isso significa partir de uma visão ampliada de saúde e clínica, que engloba os determinantes sociais, o contexto sociocultural e a (inter)subjetividade na compreensão e acompanhamento dos processos de saúde e doença. Por isso, preconiza-se que o ponto de partida e chegada da clínica seja a Atenção Primária à Saúde (APS), que se caracteriza pela visão ampliada de saúde e cuidado e é a porta de entrada preferencial do usuário para o acompanhamento clínico na Rede de Atenção à Saúde (RAS). Assim, a bioética clínica precisa se desfocar dos problemas morais típicos da realidade hospitalar a fim de englobar as questões éticas implicadas no cuidado longitudinal, característico da clínica ampliada. A inclusão da justiça e da responsabilidade sanitárias na reflexão da bioética clínica pretende responder à preocupação de não restringir as questões éticas ao nível individual do cuidado, mas incluir as dimensões coletivas, pois não se pode cuidar de alguém individualmente 1. Docente associada da Universidade de São Paulo (USP), professora visitante do Programa de Doutoramento em Enfermagem da Universidade Católica Portugue- sa (UCP) e coordenadora da Dupla Titulação para o Doutorado em Enfermagem (EEUSP/UCP). 2. Professor de Bioética nos cursos de graduação da área de saúde e professor/ pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Unisinos, líder do grupo de pesquisa CNPq “Bioética e Saúde Coletiva”. Bioética Clínica56 se não existir, ao mesmo tempo, interesse pelo contexto social dessa pessoa, incluindo as possibilidades ofertadas pela RAS de se efetivar o direito à saúde (FORTES, 2003; FORTES; ZOBOLI, 2003). Confrontar a bioética clínica com a justiça sanitária significa redirecionar as reflexões sobre justiça, ainda que tomada como princípio, para a perspectiva do coletivo e das políticas públicas, afastando-se do “hospitalocentrismo” e da especialização que marcam o sistema de saúde e a formação dos profissionais. A clínica precisa ser eticamente questionada a partir dos princípios e diretrizes do SUS: universalidade, integralidade e equidade. Estes são referenciais éticos que propiciam discutir o lugar do coletivo e o papel da responsabilidade sanitária na bioética clínica. Ao refletirmos sobre esta área, precisamos ter como ponto de partida não o hospital, mas a APS, que toma a atenção à saúde como uma produção corresponsável entre o trabalho coletivo da equipe e o usuário. Desse modo, as reflexões acerca da bioética clínica não envolvem somente problemas éticos da relação médico-paciente, ou melhor, esta relação abre-se em chave de cidadania e justiça sanitária. Nessa chave, quando se encontram o profissional de saúde e o usuário, entende-se que estão presentes no encontro de cuidado dois cidadãos: o que usufrui um bem público por direito (usuário) e o que tem a responsabilidade de distribuir e promover o acesso a esse bem. Ou seja, compreende-se que é, também, nesse encontro intersubjetivo, que se dá o trabalho vivo em ato3 da atenção à saúde, e que se efetivam, ganham vida e corpo na clínica os princípios e diretrizes norteadores da política pública de saúde. Os encontros de cuidado, assim, são vistos como espaço corresponsável de produção de saúde que inclui, no mínimo, duas pessoas (um usuário e um profissional) iguais em dignidade humana e cidadania – por isso, são merecedoras do mesmo respeito. O profissional de saúde e o usuário são pessoas com biografias e trajetórias de vida distintas e, no processo saúde-doença em tela no encontro de cuidado, estão em posições 3. Na saúde, o “trabalho vivo em ato” é o trabalho humano no exato momento em que é executado e que determina a produção do cuidado. A produção na saúde realiza-se, sobretudo, por meio desse trabalho (MERHY; FRANCO, 2009). Conselho Federal de Medicina / Sociedade Brasileira de Bioética 57 e momentos diferentes. Assim, cria-se a necessidade ética de um diálogo entre ambos, com base na igual dignidade que têm para que seja possível o bem cuidar, o cuidado justo (ZOBOLI, 2009). Atendendo ao que está determinado na Constituição Federal, as políticas públicas de saúde precisam ser responsivas e democráticas, pois respeitar o direito à saúde, como definido constitucionalmente, supõe mudanças de ordem social e econômica, que determinam condições precárias e insalubres de vida e trabalho e de ordem jurídica e política para que se deixe de perpetuar as desigualdades na distribuição de bens e serviços (ARAUJO, 2015; OLIVEIRA, 2015). Então, os recursos precisam se alinhar às reais e atuais necessidades de saúde da população, a fim de garantir a efetividade do direito à saúde, que perpassa a qualidade das ações e serviços. Dessa forma, será “considerado inefetivo o direito, se a ação ou o serviço não for realizado com qualidade” (OLIVEIRA, 2015, p. 81). Apesar de o sistema de saúde brasileiro ser universal, persiste a exclusão, iniquidades e o “despertencimento dos mais vulneráveis, acarretando trágicas perdas para a cidadania” (Ibid., p. 83). Portanto, para a efetividade do direito à saúde, é obrigatória a procura de soluções e o fortalecimento de iniciativas para combater a injustiça e a exclusão sanitárias
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