Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
u4 Objetivo do estudo - Buscar uma compreensão mais verdadeira e significante da palavra política, a partir de uma abordagem filosófica, resgatando um significado mais autêntico em relação a ela e principalmente à sua vivência na sociedade e na cultura FILOSOFIA E POLÍTICA INTRODUÇÃO: A palavra política, que é uma palavra-chave de nossos estudos, que sofreu diversas influências culturais, produzindo diversos significados. Muitos devem desconhecer o significado filosófico de política e falam dela simplesmente a partir de sua vivência, para não dizer do total desconhecimento de suas questões fundamentais. Geralmente, o termo política é visto por muitos como algo desagradável. Ao se falar sobre política, imediatamente se juntam ao termo ideias de roubalheira, trapaça, aproveitamento, engano ou atividade humana inferior, por exemplo. Sem falar na possibilidade de expressar ideias de fundamento acadêmico e que nos fazem tremer diante da possibilidade de uma demonstração que nos convence de que fazer política é algo que humanamente não tem sentido e, portanto, deveria ser desprezado. A história da humanidade, infelizmente, sempre apresentou o embate do ser humano contra o próprio ser humano, a partir da busca pelo poder. Surge, então, o desafio de buscar uma compreensão mais verdadeira e significante da palavra política, a partir de uma abordagem filosófica, resgatando um significado mais autêntico em relação a ela e principalmente à sua vivência na sociedade e na cultura. Nesse sentido, pode-se também pensar, de modo mais preciso que a política é a arte de governar, de gerir os destinos da cidade – hoje, a sociedade. Através do tempo, essa arte de governar expressou-se a partir de várias formas de atitudes e modelos de fazer política e organizar a sociedade. 2 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM 4 http://portoalegre.nova-acropole.org.br/sites/default/files/imagecache/550px_ largura/agenda/portoalegre/academia_platao.jpg É muito difícil falar em política de modo geral. O conceito de política sempre se especificou numa forma histórica de Estado e governo; em outras palavras, o entendimento do que é política sempre nos remete ao problema histórico (Aranha; Martins, 1986, p. 206). A história, além desse significado de base que política apresenta, mostra que a questão política sempre foi marcada pela busca do poder. Aqui se abre a questão filosófica: Sendo a política a conquista, a manutenção e a expansão do poder nos vários momentos históricos. Daí pode-se se perguntar, então, qual o critério de verdade que poderia validar esta ação, qual o objeto dessa ação? Como poderíamos entender a origem, a natureza e o significado do poder? (Aranha; Martins, 1986, p. 207). Como buscar um significado mais profundo dessa realidade humana que é a política e que fatalmente nos levará a um posicionamento crítico sobre essa questão? Embora o aspecto histórico esteja sempre muito próximo, não podemos nos esquecer de que a nossa abordagem, ainda que perpasse pela história, tem sempre a preocupação filosófica de buscar o entendimento do que é política numa visão de totalidade. Então, vamos em frente! 3 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM O signifi cado do termo política A etimologia da palavra política e de muitos termos relacionados a ela nos remete ao signifi cado de conteúdos greco-latinos de onde a nossa cultura, ocidental-europeia-cristã, se originou, tendo o cuidado para não fechar a ideia de que fazer política foi uma exclusividade greco-latina na Antiguidade. O termo política vem do grego: ta politika, que tem origem na palavra grega polis, que signifi ca cidade, onde vivem os cidadãos, politikos, que eram pessoas livres e consideradas iguais perante e lei e, portanto, podendo participar, por suas opiniões, da construção da administração da cidade, isto é, exercer a ta politika, o que hoje diríamos podendo fazer política. No latim, que era a língua falada pelos romanos, o termo polis tornou-se civitas, cidade, e a forma de ação para sua administração denominou-se república, do latim, o cuidado das coisas (res = coisa) que são consideradas de todos (publica) e evidentemente não só de alguns. De certa maneira, as palavras polis e política correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político moderno, chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (lei, erário público, serviços públicos) e sua administração pelos membros da cidade (Chauí, 1997, p. 371). Saiba mAIS T1 Platão e o projeto do bom funcionamento da cidade e elementos do pensamento político de Aristóteles Platão, como já conferimos nas unidades anteriores, foi um fi lósofo grego. Foi contemporâneo e discípulo de Sócrates e viveu o apogeu da cultura grega durante o século V a.C., época do surgimento da democracia como nova forma de governo da sociedade grega. Infl uenciado por seu mestre, Platão escreveu considerável parte de suas obras em forma de diálogo. RELEMBRANDO A dialética platônica é o método de se alcançar as Ideias por meio de um esclarecimento conceitual e exercício de iniciação fi losófi ca. A dialética é o método que consiste em distinguir as diferenças e contradições para descobrir a essência (Ideias) das coisas. O ensino somente pode ser inscrito numa alma que tenha consciência de sua ignorância, e é por esse motivo que Platão antes nos ensina a duvidar das coisas sensíveis que conhecer as Ideias. Como todo pensador, toda visão das possíveis dimensões da realidade remetia à visão de fundo que tinha dessa mesma realidade como um todo. Sua visão sobre política não poderia estar fora dessa circunstância – e recorde-se que a questão fi losófi ca de Platão está estritamente ligada a sua noção de Ideia e de Suprassensível (ou inteligível). O seu pensamento político deve, no seu desenvolvimento, acentuar o conteúdo de fundo do seu pensamento como um todo. A primeira defi nição de política de Platão é, assim, a seguinte: “A política é a arte de conduzir os rebanhos; os rebanhos se dividem em primeiro lugar em animais com chifres e animais sem chifres, depois os bípedes e os quadrúpedes... A política é a arte de conduzir os bípedes sem chifres e sem penas”. Nessa forma de aparente brincadeira, Platão começa a elucidar que a política é a arte de conduzir a sociedade. Em segundo lugar, acrescenta que essa condução, que é o governar, poderia ser realizada pela violência, de onde vem a tirania, ou pela persuasão sem violência, o que seria a política mesma. Eu então teria a seguinte defi nição, de modo mais preciso: a política é arte de governar os homens com o seu consenso (Prélot, 1979, p. 52). 4 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM as crianças deveriam ser criadas pelo Estado. Platão até insinua a eliminação da família como célula da sociedade Neste ponto, já dá para perceber como a questão do conhecimento é colocada por Platão no grau último de realização, que é a Filosofia, que pode levar as pessoas a discutir as coisas e delas tomar consciência em termos de verdade, como um suporte fundamental da realização da dimensão política humana. Por isso Platão, como todo bom filósofo, busca o significado da filosofia no confronto da busca da verdade, na sua natureza, no que ela é. Daí sua afirmação de que a política não é ciência militar, não é a jurisprudência (ciência do direito), não é a pura eloquência (arte de falar bem), não é a liturgia de cultos divinos. Todas essas atividades, segundo Platão, são atividades práticas, consideradas inferiores e que, de certa forma, necessitam de uma consciência política que as conduzam. A política é a forma de conhecimento desenvolvido que ajuda os seres humanos a tecer as estratégias que vão organizar a sua ação (Prélot, 1979, p. 53). Na verdade, a política exerceessa ação sobre as demais ações por ser considerada superior, uma vez que é orientada pela ideia do sumo Bem (já comentada nas unidades anteriores), que numa realidade superior poderia iluminar todas as demais ações humanas. Aqui, dá para perceber o forte caráter idealista da visão política de Platão, a forte valorização do conhecimento, em última instância, filosófico: para Platão, aqueles que deveriam governar seriam os filósofos, justamente devido à privilegiada posição nos graus de conhecimento (Chauí, 1997, p. 382)1. Nesse ponto, a política de Platão se torna sofocracia (shofos = sábio; cracia = poder), isto é, os que mais conhecem, os sábios é que deveriam estar no poder (Prélot, 1979, p. 55). Não deixa de ser interessante como Platão identifica esse processo na vida social. Para o pensador, de modo utópico, no diálogo apresentado na obra intitulada A República, as pessoas são tidas como diferentes e, portanto, deveriam ocupar diferentes lugares na sociedade; a educação deveria seguir esta proposta: Até os 20 anos, as crianças deveriam ser criadas pelo Estado. Platão até insinua a eliminação da família como célula da sociedade – o que não vem ao caso discutir agora. A partir dos 20 anos começa um processo de peneiração: as pessoas com “alma de bronze”, grosseiras, imersas no mundo do empirismo, deverão se dedicar ao trabalho na agricultura, artesanato e comércio: são a base da subsistência da cidade. Dez anos depois, tendo continuado os estudos, as pessoas com “alma de prata”, as pessoas com coragem e capacidade de empregar estratégias de uso da força, os militares, passarão a cuidar da defesa da cidade. Os que sobraram a essas eliminações serão conduzidos aos conhecimentos filosóficos, à busca da sabedoria, à compreensão mais verdadeira da realidade. A partir dos cinquenta anos, poderão pertencer ao grupo seleto dos magistrados e caberá a eles exercer o poder político na polis. A justiça conhecida em sua verdade será então o critério que orientará sua ação política de governar. Assim, Platão descreve e aceita formas diversas do exercício do poder, embora todas estejam submissas a esse princípio do exercício da sabedoria, da compreensão ideal da Justiça: 1 Para entender melhor essa questão, deve-se retomar aos estudos anteriores sobre Platão, especialmente a Alegoria da caverna. Segundo nosso filósofo, aquele que se desprende das amarras no interior da caverna e sai é justamente o homem que se transformará no Filósofo. Quando opta em retornar à caverna, assim que compreende (contempla) a verdade e o bem, é justamente uma missão política que ele tem em vistas, já que aquele esclarecido pela verdade tem a obrigação de ir aos seus iguais e tentar transmiti-la aos mesmos. 5 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM Doutrina platônica da Reminiscência Pela reminiscência ultrapassa-se o mundo sensível, das aparências (imagens), uma vez que ela é uma maneira de reconhecer a existência das Ideias. Pela Teoria da reminiscência, Platão afirma que o homem pode conhecer por meio da “lembrança”, não como uma simples memória de algo que tivemos uma experiência, mas especialmente como um modo de reconhecimento das coisas por meio das Ideias. Conhecer é recordar. saiba mais 1 - Monarquia 2 - Aristocracia 3 - Democracia Para Platão, o poder pode ser exercido pela monarquia, que, além da sabedoria, pode se degenerar em tirania e, portanto, não ser aceita. Para Platão, também pode exercer o poder a aristocracia, que seria o poder nas mãos do melhores – não no sentido da posse da riqueza material e sim na posse do conhecimento, que pode se degenerar na forma de governo conhecida na história como oligarquia, o governo dos ricos, formas acontecidas inclusive na história do Brasil, a forma censitária, isto é, governam aqueles que têm posse privilegiada dos bens; portanto, os que não têm essa condição são explorados. Esse tipo de governo não deve ser aceito. Para Platão, o poder pode ser exercido na forma de democracia, em que todos poderiam participar dele (demo = povo; cracia = poder), e que também poderia degenerar em anarquia (governo de nenhum ou ausência de governo), quando o povo, longe da posse da sabedoria, desenvolve a demagogia como forma de ascensão ao poder; essa forma também não deve ser aceita (Prélot, 1979, p. 59-61). Nesta sucinta visão do pensamento político de Platão e de sua proposta de organização política da sociedade, pode-se perceber o caráter fortemente idealista do seu pensamento. Na política de Platão, “A civitas hominis (cidade dos homens) dos sofi stas é substituída pela cidade ideal à qual todos os homens aspiram como seu supremo objetivo” (Sciacca, 1967, p. 81). A proposta de realização humana através da política é projetada em Platão numa linha imaginária de projeção idealista e dualista, ao contrário dos sofi stas, que culturalmente aguardavam a realização dessa perfeição a partir da própria ação humana mesma, embora sem a consciência e o desenvolvimento histórico que hoje temos por tantos outros pensadores, como Hegel, sem a certeza de uma verdade universal ou um conceito universal de justiça que a priori pudesse conduzir todo o processo de construção da polis. Contemporâneo e discípulo de Platão, valorizando também a presença da questão política no seu pensamento, Aristóteles escreveu uma obra intitulada Política, em que afi rma que “o homem é um animal essencialmente político e sociável” (Mondin, 1980, p. 116). Embora tenha discordado do seu mestre em sua visão de mundo, Platão via o mundo de forma idealista, de base de inspiração na matemática e numa crença religiosa presente na cultura grega, a religião órfi ca. Já Aristóteles se propõe a criar uma visão do mundo de base puramente racionalista, partindo para a busca da verdade através das coisas mesmas, no uso rigoroso da razão. Aristóteles foi o primeiro pensador que examinou a razão humana e mostrou sua estrutura lógica, com a qual a razão contribui para organizar o pensamento que produz. Discordando fi losofi camente do seu mestre, Aristóteles, consequentemente, discorda de sua visão política. Aristóteles discorda do autoritarismo que a visão platônica de política evidência: a utopia de Platão, supondo que, pela sofocracia, aqueles que possuem mais saber – em última instância o saber fi losófi co idealista – conseguirão estabelecer a forma de governo mais perfeita, embora não absolutamente, na reminiscência do ideal perfeito de existir humano, que está além da realidade imediata na qual o ser humano vive. 6 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM Para saber mais sobre Aristóteles e sua obra intitulada Política, consulte o site: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/politica/ aristoteles_politica.htm saiba mais O preço a pagar pela tua não participação na política é seres governado por quem é inferior Embora no fi nal acabe insinuando que a melhor cidade seria aquela governada pelos melhores cidadãos – dentro da forte tradição fi losófi ca da cultura grega, esses acabariam sendo os fi lósofos, praticamente exclusivos na única forma de conhecimento desenvolvida até então. Aqui podemos entender que Aristóteles valorizava as pessoas inteligentes e sensíveis pelo equilíbrio que ele atribuía ao exercício da virtude, e que na política levava a uma melhor realização as formas de governo que Platão anunciara e que ele aceitava, independentemente de sua estrutura, conduzidas pela ideia central da busca do bem comum. Mas, além das várias formas de poder, Aristóteles prefere a politeia, uma espécie de república que possui elementos aristocráticos, pois não acredita que todos os homens tenham capacidade de governar – ilusão da democracia extrema – e por isso exclui da política os trabalhadores, artesãos e comerciantes (Aranha;Martins, 1986, p. 225). Em outras palavras, para Aristóteles, aqueles que governam têm que ter preparo e saber. A aristocracia acaba prevalecendo também no pensamento aristotélico. platão (c.428-347 A.C) 7 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM O pensamento político moderno Como foi afi rmada anteriormente, a forma de governo que predominou no pensamento grego foi a aristocracia (governo dos melhores), redundando quase sempre, para não dizer sempre, na oligarquia (governo da elite social, dos ricos proprietários de terras). Sua realização como constituição do Estado se estabeleceu na constituição do Estado monárquico, que se fi rmará durante a fase histórica de domínio de Roma no Ocidente, evoluindo para a forma de império e atravessando todo o contexto histórico da Idade Média. Nessa época, o modelo monárquico, aristocrático e oligárquico permanecerá, embora com tempero da questão religiosa pela forte presença do cristianismo e da Igreja como instituição religiosa predominante na sociedade de então. Mesmo não tendo desembocado em uma forma de Estado teocrático, o poder na Idade Média se sustentou a partir de um teocentrismo em que a nobreza governava de forma aristocrática e oligárquica e a monarquia estava muito ligada à Igreja, na liderança praticamente divina da fi gura do papa. Filosofi camente, a Idade Média não apresenta grande contribuição na conceituação de política ou na visão social do exercício do poder. Santo Agostinho (século IV d.C.), na sua civitas dei e civitas unomini (Cidade de Deus, Cidade dos homens), diz que os homens, de forma idealista, devem administrar a sociedade tendo por modelo da inspiração divina; remetendo o pensamento político à visão platônica, estudada anteriormente. São Tomás de Aquino (século XIII d.C.) desenvolve toda a sua visão de mundo e de homem, e nela a visão política, a partir do pensamento aristotélico. Durante a Idade Média, a visão do poder político está assentada na visão da origem divina do poder, em que a infl uência da cultura judaica através da Bíblia se faz presente (Chauí, 1997, p. 387). No período medieval, permanece a ideia da origem natural do Estado, a partir da condição humana como criação divina, origem natural já defendida por Aristóteles (Mondin, 1980, p. 117), diríamos que misturada com a origem divina, na referência bíblica e na visão de mundo platônica. A determinação de uma verdade que teleologicamente projeta um fi m que deve ser perseguido em busca da perfeição e que orienta todo processo da busca da realização humana (e nela a política), como em Aristóteles, é defendida na posse da justiça como virtude fundamental que deve ser possuída pelo governante. Antecedendo à evolução do conceito de política, denotando as novas formas de ação política dos tempos modernos, Nicolau Maquiavel (1469-157), em pleno Renascimento, mostrando, em sua obra O príncipe, que a questão política, livre das determinações fi losófi cas e religiosas, gerida pelos princípios da ética e da moral, deve ser tratada em perspectivas distintas daquela da política, uma vez que, na verdade, o que interessa para o governante é a sua manutenção no poder; caso necessário ele irá infringir princípios éticos e/ou religiosos sem o menor escrúpulo. Na cultura ocidental, pela primeira vez a política é investigada, por Maquiavel, em sua concreta realidade – por isso fala-se em realismo político nesse pensador, entendendo por isso a necessidade de se entender a política tal com ela efetivamente é, sem idealismo e/ ou sonhos, isto é, de entender a política como ela poderia ser. Efetivamente, a política é um campo onde os jogadores (os políticos) atuam buscando prevalecer sobre os demais, agindo, para isso, de meios que não são éticos, em muitos os casos. T2 Teleologia é um termo criado na modernidade para designar a ciência que estuda a fi nalidade das coisas, constituindo, assim, seu sentido. Um exemplo disso: na fi losofi a de Tomás de Aquino, a fi nalidade de sua investigação é, dentre outras coisas, comprovar a existência de Deus, sendo este o fi m último, o objetivo ou escopo de suas pesquisas. saiba mais 8 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM “Pela primeira vez, por Maquiavel, a política é estabelecida sem preconceitos na sua lógica interna, fora, pois, de qualquer preocupação de ordem moral e teológica” (Mondin, 1980, p. 122). Após Maquiavel, os pensadores se dividem. Alguns se negam a seguir esse novo conceito de política, como Campanella e Vico, que tentam manter a política sob a dependência da moral, e outros, como Spinoza e Hobbes, que procuram ver, de acordo com a tendência da análise da política nos tempos modernos, a política na nova tendência maquiaveliana, buscando reforçar a total autonomia da política em relação à moral e à religião (Mondin, 1980, p. 122). A partir desse momento, a prática política vai justificar-se por si mesma, a partir de sua especialização; atualmente se pensa até em ciência política, de sua otimização como dimensão humana a ser desenvolvida, claro que com o uso da inteligência humana, com o uso da razão, essa mesma razão que será “a grande estrela” de todo o pensamento moderno até seu esplendor no iluminismo, gerador da base ideológica da Revolução Francesa (1789) e a criação do Estado moderno, no contexto do interesse burguês pela destituição do poder, da nova nobreza do absolutismo. Nesse ponto, se torna mais acessível a compreensão da ideia de política a partir da expressão “contrato social”. A política não é mais entendida como surgida de modo espontâneo, a partir do que é a natureza do próprio homem, mas sim que surge a partir de um consentimento entre os homens, que fazem um acordo entre si, convencionando uma forma de relação e organização de convivência social, tendo em vista interesses comuns a todos. Hobbes, Locke e Rousseau são os grandes pensadores dessa nova realidade política. Naturalmente, essa novidade não é somente de cunho filosófico. O contexto histórico do mundo moderno contribuiu fortemente para que os ideais políticos se transformassem dentro das novas condições de produção da riqueza. O feudalismo agora dá lugar ao mercantilismo, e a nova classe que começa a se impor em função da posse do poder é a burguesia, em lugar da nobreza, que, em primeiro lugar, fora substituída por uma nova nobreza atrelada ao nascimento das monarquias nacionais, evoluindo para o absolutismo, e que, mais tarde, seria destituída do poder pelos ideais políticos da Revolução Francesa e o nascimento do Estado Novo. Assim como Rousseau e Locke, Thomas Hobbes (1588-1679) parte, na construção de sua visão política, da concepção da análise da origem do Estado, isto é, do surgimento da organização e constituição do poder. Nas visões filosóficas anteriores, concebia-se a origem do Estado a partir do que é a própria natureza do homem ou a partir de uma gênese divina. Para Hobbes, não é da natureza humana que os Estados surgem. Por sinal, diríamos com ele que a natureza humana é problemática e perigosa. O ser humano não é sociável naturalmente. Nos primórdios de sua existência e na condição humana de ser até hoje, os homens são compelidos espontaneamente aos caos. Cada um busca subjetivamente a satisfação de suas necessidades e é capaz até de destruir o outro em função disso. O egoísmo – e não a necessidade altruísta da vida em comum – constitui o fundamento da natureza humana (Prélot, 1979, p. 277). A noção de natureza humana ou estado de natureza é uma hipótese que, em Hobbes, corresponde a um estado no qual os seres humanos viveriam sem nenhum tipo de regra, antes de se organizarem em sociedade. É importante se atentar ao termo, já que este aparecerá em mais autores da modernidade, contudo com um sentido bem distinto, em alguns casos, deste apresentado por Hobbes. Thomas Hobbes Maquiavel9 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM Daí a famosa expressão de Hobbes sobre o ser humano: homo homini lupus (O homem é o lobo do homem) e a não menos famosa bellum omnium contra omnes (as disputas geram guerra de todos contra todos) (Aranha; Martins, 1986, p. 241). Como explica a fi losofi a, Hobbes chega a isso por uma constatação do que é a existência do homem em grupo (aqui não cabe o termo sociedade), o que até hoje parece ser muito evidente. Essa situação de luta constante gera medo e insegurança, e o mesmo homem que de modo egoísta é capaz de destruir o outro para satisfazer a sua necessidade agora é capaz de se unir aos demais e fazer “um contrato”, delegando a algum o poder soberano sobre todos em função da segurança e da satisfação de necessidades de cada um. Hobbes, para representar essa nova realidade de visão política, usa a fi gura bíblica do Leviatã, o mostro marinho que defende os peixes menores dos maiores e domina a todos. A fi gura do Leviatã leva à refl exão e à consciência do que é o Estado moderno no contexto histórico do Absolutismo. Na nova visão política, a concepção do poder muda. Não é mais a lei natural que o justifi ca e legitima. O poder agora passa a ser legitimado na lei, fruto do contrato social. A constituição do poder pelo homem, pela sociedade, “sai do estado de natureza, passando do status naturalis [estado natural] ao status civilis [estado civil]” (Prélot, 1979, 277). O poder também sai da esfera sagrada e se instala na esfera profana. homo homini lupus bellum omnium contra omnes O homem é o lobo do homem as disputas geram guerra de todos contra todos Daí a famosa expressão de Hobbes sobre o ser humano: homo homini lupus (O homem é Daí a famosa expressão de Hobbes sobre o ser humano: homo homini lupus (O homem é o lobo do homem) e a não menos famosa bellum omnium contra omnes (as disputas geram o lobo do homem) e a não menos famosa bellum omnium contra omnes (as disputas geram guerra de todos contra todos) (Aranha; Martins, 1986, p. 241).guerra de todos contra todos) (Aranha; Martins, 1986, p. 241). Segundo Hobbes, entende-se por Lei natural “(...) uma lei de natureza é um preceito ou regra geral, estabelecida pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-los ou omitir aquilo que se pense poder contribuir melhor para preservá-la”. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 134 (Coleção Os Pensadores). 10 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM Em grande divergências com o pensamento de Hobbes, John Locke (1632-1704) contribui para fi rmar a nova visão política na cultura moderna e para acentuar seu caráter liberal, que triunfará na história pelo predomínio da burguesia na conquista do poder no mundo ocidental. John Locke Para entender melhor os preceitos do Liberalismo econômico, leia sobre o tema no site: http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_ deak/CD/4verb/liberal/ saiba mais Como Hobbes, Locke também parte da concepção de que a origem do Estado não está na natureza do homem, mas sim no contrato social que é realizado pelos homens para poderem viver melhor socialmente. A natureza humana, para Locke, não é aquela egoísta e agressiva proclamada por Hobbes. As pessoas, a partir de sua natureza humana, são livres e independentes. Como as pessoas têm livre arbítrio, isto é, são juízes em causa própria, podem incorrer em atitudes de parcialidade de paixão e se agredirem pela disputa de propriedade. Isso leva os homens a delegar a alguém o poder para que possam conviver socialmente e ter segurança na posse daquilo que é seu. Para Locke, diferente de Hobbes, no estado de natureza, o homem possui direitos e deveres que lhes são dados pela lei natural. Essa lei garante a liberdade e a igualdade entre os homens. E é vontade de Deus que o homem possua ao mesmo tempo livre-arbítrio e razão; no estado de natureza, funda-se a moral de todas as ações humanas e todas as relações sociais. Os limites do estado de natureza seriam: O surgimento da desordem – cria-se a instituição do governo. • Falta um juiz para julgar os confl itos; • Falta um poder para julgar as decisões. Por isso os homens conjuntam-se em sociedade. Diferentemente de Hobbes, os homens não perdem a liberdade ao delegar esse poder e podem continuar cobrando daquele que governa a permanência do bem comum. Caso isso não seja respeitado, o governo pode ser destituído. 11 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM O princípio de liberdade (consequentemente, igualdade) governa o estado de natureza, em que prevalece a liberdade de cada um e a conservação da humanidade. A união da liberdade individual e do respeito ao bem comum explica a origem da propriedade, e garante o equilíbrio da sociedade. O Estado de Locke não é o Leviatã de Hobbes, não se impõe de forma absolutista. Por isso se atribui a Locke a origem do Estado liberal. Nessa linha, Locke faz a diferença entre sociedade política e sociedade civil, entre os direitos públicos e privados regidos por leis diferentes (Aranha; Martins, 1986, p. 248). O poder político não é mais privilégio de nascimento em determinada classe social, como era a nobreza, nem os Estados devem intervir socialmente na questão da iniciativa econômica. Devem, sim, estar presentes para garantir o direito de iniciativa de todos. Reforçando a tese do liberalismo econômico, de grande interesse da burguesia, Locke amplia a ideia de propriedade privada, que está além da posse econômica de bens, e a reforça: Propriedade “é tudo o que pertence a cada indivíduo, ou seja, sua vida, sua liberdade e seus bens” (Aranha; Martins, 1986, p. 249). Os indivíduos devem respeitar o bem comum. Locke afi rma que o fundamento da propriedade é a propriedade de si mesmo, isto é, de sua própria pessoa e do trabalho que essa pessoa realiza. No estado de natureza, o trabalho diferencia a propriedade privada da propriedade comum. O homem, por seu trabalho, aplica seu esforço sobre a natureza ou a uma parte retirada desta; ele a transforma e lhe junta seu trabalho. E como o trabalho é propriedade inegável do homem, aquilo a que ele juntou seu trabalho torna-se igualmente sua propriedade. A propriedade depende das obrigações morais do homem. aprofundando Na junção da questão da propriedade entre liberdade e bens, Locke acaba reforçando o direito ao poder para aqueles que têm a privilegiada posse dos bens, a burguesia, em detrimento daqueles que querem ser livres e não têm a posse dos bens. Por exemplo, os trabalhadores têm a posse da força de trabalho, mas não têm a posse dos bens que produzem. A classe operária está submetida à classe civil e dela não faz parte (Aranha; Martins, 1986, p. 249). Está na base da produção, mas não participa do poder na sociedade. Jean Jacques Rousseau (1712-1778), como Hobbes e Locke, atribui a origem do Estado não à natureza do homem, mas sim ao pacto social que este faz para tornar possível e melhor sua existência na sociedade. A concepção de natureza humana em Rousseau difere completamente da de Hobbes e, de modo menos radical, da de Locke. Para Rousseau, a natureza humana é boa. É a tese do bom selvagem. A vida de felicidade e liberdade primitiva existia quando “os indivíduos viviam isolados pelas fl orestas, sobrevivendo com o que a natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelos gestos, o grito e o canto, numa linguagem generosa e benevolente” (Chauí, 1997, p. 399). Isso acaba quando alguém cerca um terreno e diz: “é meu”. O Estado de propriedade é que gera o Estado de natureza hobbesiano. O que é Estado de natureza em Hobbesagora passa a ser o Estado de sociedade em Rousseau. Assim como aconteceu com Hobbes, Rousseau também admite que os homens precisam fazer um contrato social para conviver da melhor maneira possível e se resguardar, enquanto indivíduo, do Estado de sociedade. “Para Rousseau, a sociedade civil é fruto de uma evolução azarada do homem” (Prélot, 1979, p. 339). É muito expressiva a frase de Rousseau a respeito dessa afi rmação: 12 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM “A natureza do homem é boa, a sociedade é que a corrompe”. Jean Jacques Rousseau O contrato social, em Rousseau, por fim, funda a soberania. As pessoas delegam a um soberano o poder sobre suas liberdades para que ele, no exercício da lei, possa controlar a convivência social em função do bem comum. Mas o delegar poder não constitui a eliminação da liberdade popular. Pelo pacto, o homem abdica da sua liberdade, mas sendo ele próprio parte integrante e ativa do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si mesmo e, portanto, é livre: a obediência à lei que estatuiu a si mesma é liberdade (Aranha; Martins, 1986, p. 257). A partir disso, vamos prosseguir com nossos estudos com os desdobramentos da filosofia iluminista na figura de Hegel e os pensadores que propuseram transformações sociais. Então, vamos continuar nossos estudos! A Filosofia política de Hegel e algumas propostas de transformação social: os projetos utópicos No tópico anterior, vimos que o poder só será legítimo se tiver o consenso de todos e, se não realizar o interesse desse corpo político, que agora é corpo civil, constituído pela lei, poderá ser destituído a qualquer momento. Ainda no contexto de Idade Moderna, mas se abrindo para um novo contexto de Idade Contemporânea, os pensamentos de Hegel e de Marx terão grande peso na formação do pensamento político no Ocidente. George W. F. Hegel (1770-1831) desenvolveu seu pensamento político a partir do contexto de visão do mundo que apresentou. Para ele, a realidade é processo histórico em desenvolvimento, e dentro desse processo está o grande desejo do homem e dos povos na busca pelo poder que se traduz na construção de uma civilização que surge, cresce, domina o mundo e decaí; um processo que nasce e morre. Os grupos sociais e os indivíduos envolvidos nessa tarefa estão a serviço do espírito do mundo, a ideologia que a todos mobiliza e provoca a agir. É a realização momentânea de um princípio absoluto, mais fundamental, que vê na ação humana sua realização parcial, buscando sua superação na construção de outra ação. T3 13 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM O desenvolvimento do conceito de Espírito, em Hegel: Em um sentido geral, espírito é uma atividade da consciência que se manifesta no tempo e se expressa em três momentos distintos, não possuindo nenhuma relação com fenômeno religioso: saiba mais Espírito subjetivo: é o espírito individual, ainda encerrado na sua subjetividade (como ser de emoção, desejo, imaginação, etc.). Espírito Objetivo: opõe-se ao espírito subjetivo; como tal, é o espírito exterior à consciência individual como expressão da vontade coletiva por meio da moral, do direito, da política. O espírito objetivo realiza-se naquilo que se chama mundo da cultura. Espírito Absoluto: ao superar o espírito objetivo, realiza a síntese fi nal em que o espírito, terminando o seu trabalho, compreende-o como realização sua. A mais alta manifestação do espírito absoluto é a fi losofi a, saber de todos os saberes, quando o espírito atinge a absoluta autoconsciência. É a famosa dialética hegeliana: tese, antítese e síntese. O espírito absoluto é afi rmado na ação num primeiro momento, depois negado, e depois busca superar a negação gerada na nova proposta. Podemos talvez pensar em relação a isso como a força motriz das ideologias nos processos revolucionários na história (Sciacca, 1968). Hegel desenvolve um novo conceito de História, que seria dialético: o presente é gerado por um longo e dramático processo; a história não é simplesmente acumulação e justaposição de fatos acontecidos no tempo. Resulta de um processo cujo motor interno é a contradição dialética, que conduz ao autoconhecimento do espírito do tempo. Segundo a dialética hegeliana, todas as coisas e ideias surgem e morrem. Mas essa força destruidora é também a força motriz do processo histórico. A ideia central é a de que a morte é criadora, geradora. Todo ser contém em si mesmo o germe da sua ruína e, portanto, de sua superação. O termo fenomenologia remete à noção de fenômeno como aquilo que nos aparece, que se manifesta, na medida em que é um objeto distinto de si, porque nele descobre-se a contradição, que por sua vez, será superada em um terceiro movimento. Hegel usa o exemplo da fl or. A dialética fenomenológica de Hegel assim opera: Hegel 1) O botão: é a afi rmação (ou tese); 2) A fl or: é a contradição, é a negação da fl or (ou antítese); 3) O fruto: é uma categoria superior, a superação da contradição entre botão e fl or (ou síntese). 14 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM “A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras e preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças, como as de classes, e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado.” CHAUÍ, M. O que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980. saiba mais É dentro dessa visão da realidade que Hegel pensa o Estado. “O Estado é uma das mais altas sínteses do espírito objetivo (absoluto). O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses contraditórios entre os indivíduos” (Aranha; Martins, 1986, p. 264). Para Hegel, o Estado não pode servir a nenhum interesse particular. É fruto da luta de todos, da superação das contradições. Assim, o Estado passa a ser o fundamento da sociedade civil e da família, não é mais o fruto de um contrato social. O povo não funda o Estado a partir de um sufrágio, mas o Estado é que funda o povo que deve se submeter a ele. A soberania pertence ao Estado e não ao povo. Nessa visão, ao mesmo tempo em que o Estado se torna autônomo do interesse de grupos de poder, pode-se correr o risco de ter um Estado autoritário, anulando a participação do indivíduo no processo político. É o poder da ideologia encarnada no processo político da construção dos povos na história. Dentro de um contexto de cultura racionalista-idealista que desemboca na construção de uma visão da realidade, e nela a política, num racionalismo absoluto, não é de se estranhar a presença de pensadores que acreditem transformar a sociedade em busca da sua realização política, a partir da construção de visões de pensamento tidas como utópicas (do grego u = não e topos = lugar: aquilo que não tem lugar para acontecer, aquilo que é impossível de acontecer, uma quimera, um desejo sem fundamento real para ser realizado). “Essas teorias políticas são classifi cadas por Marx e Engelscomo socialismo utópico, na medida em que a elas irão contrapor um socialismo científi co” (Aranha, Martins, 1986, p. 266-267), buscando a superação das desigualdades sociais, independentemente de fazer uma análise econômica profunda da sociedade, denunciando as contradições do liberalismo econômico, principalmente, na questão da concentração de renda por alguns e na exclusão dos demais. Os socialistas utópicos que se destacam são os franceses Saint-Simon, Fourier, Proudhom, Louis Blanc, Banqui e o inglês Owen. Esses teóricos em geral imaginam uma sociedade perfeita, em que não existe a propriedade privada e, consequentemente, a exploração do homem pelo homem. Embora cada um possa até descrever um modelo diferente, sua fi nalidade é a mesma: uma sociedade feliz, em que todas as pessoas têm acesso aos bens de que precisam para sobreviver com dignidade: trabalho, educação, saúde, lazer... E nada disso é restringido pela disputa pelo poder. Aí, sim, utopicamente, poder seria serviço. As cidades são comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam. Por existirem como cidades perfeitas, que não estão em parte alguma, mas que serão criadas pela vontade dos despossuídos, são concebidas como cidades utópicas, e as teorias que as criaram são chamadas de utopias” (Chauí, 1997, p. 408). 15 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM Vale ressaltar que, embora as propostas utópicas não tenham levado realmente à construção de ações políticas de transformações sociais, sua importância cultural permanece no sentido de alertar e, quem sabe, conscientizar e incentivar os indivíduos, enquanto cidadãos, a buscar uma ação efetiva para a transformação da sociedade. Nesse contexto, poder-se-ia destacar o anarquismo, que, embora seja visto de forma utópica, como proposta de ação política, foi até transformado em efetiva ação política, reprimida pelo poder constituído devido a seu ponto de partida não tanto utópico de crítica ao poder constituído na sociedade. Entre os socialistas anarquistas, destacamos o russo Bakunin, inspirado nas ideias políticas de Proudhom e Rousseau. anarquismo O marxismo e a crítica ao capitalismo. Muitas vezes, também considerado utópico em relação ao fi m a que se propunha: o desmonte de uma sociedade de classe (capitalismo) para a construção de uma sociedade sem classe (comunismo), o marxismo, em sua construção de análise científi ca da sociedade capitalista, mostra sua estrutura fortemente concentradora de renda, que foge muitas vezes da questão fi losófi ca em si. Inclusive não se encontra na obra de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) uma previsão objetiva de quando a sociedade sem classe seria alcançada e muito menos anteriormente, de quando o capitalismo entraria em colapso e desapareceria. Em termos fi losófi cos, sem o esquecimento da análise socioeconômica, o marxismo, com forte infl uência do racionalismo e do idealismo modernos, e aí destacando-se o pensamento de Hegel, é entendido como materialismo dialético histórico. T4 16 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM so ci ed ad e Segundo Marx, a cada modo de produção, a consciência dos seres humanos se transforma. Descobre-se, assim, que essas transformações constituem a maneira como, em cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, Marx afirmou que, ao contrário do que se pensa, não são as ideias humanas que movem a história, mas são as condições históricas que produzem as ideias. Conforme o pensador: “O conjunto das relações de produção (que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais) constitui estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. “Contribuição à economia política” A sociedade se constitui a partir das condições materiais de produção e da divisão social do trabalho que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações nas condições e divisões afirmadas acima, e, ainda, quando se tem a consciência humana determinada a pensar as ideias que pensa por causa das condições instituídas pela sociedade que se chama Materialismo Histórico. Materialismo - porque somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a ser e a pensar. Histórico - porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo. Para Marx e Engels, de modo sucinto, o termo materialismo não é entendido no sentido do materialismo que prega a concepção da eternidade da matéria e a redução da consciência humana à matéria. Aqui, materialismo é entendido como a possibilidade da formação da consciência a partir da realidade imediata (material) que o ser humano vive, tanto no sentido de conduzi-lo, como no de libertá-lo das construções ideológicas produzidas e usadas nos embates políticos na sociedade. O marxismo é materialismo porque somos socialmente o que são as relações materiais, no contexto da realidade econômica: as relações de produção nos determinaram. Esse Karl Marx 17 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM materialismo é “histórico porque a sociedade e a política (aqui, o Estado) não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo” (Chauí, 1997, p. 414). Isto é, não é o poder de um determinado líder ou herói que conduz a formação das relações sociais enquanto políticas, mas sim ao contrário, as relações de produção, na busca da posse da riqueza é que fazem essas lideranças a serviço do poder econômico. Em termos marxistas, a infraestrutura material da sociedade, em que os homens produzem os bens necessários à sua vida, gera uma superestrutura correspondente à estrutura jurídico- política necessária para que o poder econômico prevaleça e se perpetue sobre a sociedade (Prélot, 1979, p. 519). Sobre esse ponto, costuma-se afirmar a superação de Marx em relação ao idealismo hegeliano, que atribuía essa força motriz e transformadora da sociedade em algo fora dela, o Espírito Absoluto (a razão absoluta), e que Marx vê dentro da própria sociedade. Aqui, se torna quase tangível a compreensão do adjetivo dialético aplicado ao marxismo histórico, porque a sociedade se transforma e evolui e, para Marx, vai caminhar para a sociedade sem classes, a partir necessariamente da luta de classes, dentro do contexto das relações de produção, na luta constante entre os donos dos meios de produção (os donos das máquinas) e o proletariado, dono da força de produção que é a força de trabalho. A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes Karl Marx Trabalho é aquilo que possibilita o controle da natureza por meio da ação humana. Mais que uma ruptura, o trabalho exprime uma continuidade com a natureza. É, portanto, produtor de valor de uso (trabalho útil), transformando o trabalho humano em valor-mercadoria. O trabalho é “uma expressão da atividade humana dentro da alienação”. Contudo, é também concebido como essencial para o desenvolvimento da individualidade. “A alienação é a prática do desapossamento, [...] na medida em que está imbuído de preconceitos religiosos, o homem só consegue objetivar seu ser fazendo dele um ser estranho” – “A questão judaica”. Alienação é uma consciência invertida. Alienação é, em sentido estrito,“o objeto que o trabalho produz, seu produto, ergue-se diante dele como um ser estranho, como uma potência independente do produtor [...]; essa realização do trabalho aparece como a perda para o operário de sua realidade, a objetivação como perda do objeto, a apropriação como alienação, [a prática do] desapossamento” – Manuscritos de 44. 18 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM O conceito de dialética no idealismo hegeliano – a tese (afirmação), a antítese (a negação da afirmação) e a síntese (a negação da negação, gerando uma nova tese) – se torna real na sociedade pelas relações de produção que geram a luta de classes. Gostaríamos de destacar que a ideia de Estado na análise de contexto marxista acima desenvolvida é muito forte. O Estado, nascendo a partir da determinação das relações sociais de produção, se torna poderoso em relação ao indivíduo, seja aquele que governa, sejam aqueles que são governados. Pois bem, do ponto vista econômico, o Estado tem o controle absoluto dos meios de produção. Daí, o Estado passa a ter o controle absoluto da determinação política da sociedade, surgindo sempre como um poder forte e centralizador de toda capacidade de geração de riqueza e tudo o mais que se pode gerar na sociedade em termos de cultura. Dessa maneira, fica bastante evidente a compreensão da expressão ditadura do proletariado, no sentido de que aquele que ocupa o poder não o faz a partir de méritos exclusivamente subjetivos, mas, sim, como encarnação de uma vontade comum que não deveria alienar ninguém no trabalho da produção da riqueza. São os trabalhadores, nos seus representantes (aqueles que por determinado tempo assumem o poder para reorganizar o Estado) pela destruição do Estado burguês em função da construção de uma sociedade igualitária. Esse é o significado da expressão. Vamos para nosso último tópico! a ditadura do proletariado constitui-se na transicao para atingir uma sociedade sem classes 19 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM T5 A questão política na contemporaneidade: liberdade, democracia e os novos aprisionamentos dos corpos e das subjetividades O posicionamento da Filosofi a diante da questão social e, especifi camente, diante da questão política, fecha a modernidade com grande infl uência na construção do que é a política, do que é o poder e o que é o Estado. Embora o seu caráter fortemente liberal-burguês tenha sido questionado pelas propostas socialistas, das quais o marxismo é a mais ampla e contundente, a sua racionalidade, isto é, a forma como o uso da razão humana se instaurou nesse processo, com grande infl uência positivista, pelo desenvolvimento da ciência e das novas manifestações da racionalidade científi ca, começa a ser contestada. Construindo novas formas de ver o mundo e o homem no centro desse movimento cultural contínuo, prevalecendo categorias e/ ou concepções puramente iluministas advindas da tradição do racionalismo moderno de base cartesiana, as ações político- culturais se transformam em possíveis situações de destruição da própria humanidade. Certamente com inspiração de correntes filosóficas que começam a tecer uma dura crítica a esse racionalismo moderno, como, por exemplo, o anticulturalismo de Nietzsche e posteriormente existencialismo de Sartre, todos certamente tocados pelos refl exos do anti-humanismo que a nova época incorporava, a partir das chamadas contradições do progresso científi co: O homem que é capaz de produzir coisas maravilhosas com o uso da razão em função de realizar a satisfação de suas necessidades imediatas de existência, não consegue, com essa faculdade (a razão), conviver socialmente, perdendo-se em relações de exploração do homem por aquilo que ele mesmo produz, sejam os bens de consumo, sejam as construções da política nos jogos do poder. A história infelizmente confi rma essa cruel realidade: o imperialismo, as duas guerras mundiais, as revoluções dos totalitarismos políticos por toda a Europa, o uso da tecnologia para a disputa da corrida armamentista, bem como as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. A Filosofi a contemporânea está situada nesse pano de fundo cultural, e como a própria exposição acima supõe, inicia suas análises justamente a partir da desconfi ança desse iluminismo enquanto movimento fi losófi co gerador de bases ideológicas que procedem desde a Revolução Francesa na constituição e exercício do poder na sociedade. Vários pensadores da Filosofi a contemporânea se interessam por temas que acreditavam estar na base de todas essas heranças culturais: a questão da razão, a crítica do iluminismo, as novas concepções de entendimento e instauração do poder político, o uso da inteligência humana no controle da sociedade e das individualidades, a produção cultural em função da produção econômica, o controle do poder, etc. Para você entender melhor em que constitui o Positivismo, corrente fi losófi ca criada por Auguste Comte, leia o texto indicado: http://www.estudopratico.com.br/positivismo- conceito-e-resumo-de-suas-caracteristicas/ saiba mais 20 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM Max Horkheimer (1895-1973) Horkheimer: a crítica da razão instrumental e política Max Horkheimer, em sua obra Dialética do esclarecimento, produzida juntamente com Theodor Adorno (1903-1969), procura mostrar por que a humanidade, ao invés de entrar em um estado verdadeiramente humano, pelas novas conquistas da ciência moderna, aprofundou- se em um novo gênero de barbárie (Horkheimer; Adorno, 1966, p. 6). Mostra também como a racionalidade iluminista se torna certa lógica do domínio e barbárie, como por meio da invenção da bomba atômica, com a manipulação e reificação (coisificação-instrumentalização) do homem pela sociedade industrial burguesa avançada (Horkheimer; Adorno, 1966, p. 73). No contexto do pensamento desses dois autores, o termo iluminismo não é entendido somente como o movimento filosófico do século XVIII, mas no sentido amplo do seu pensamento, como fruto do esforço do homem, na história, para garantir sua autoconservação diante do medo mítico de perder, além de sua sobrevivência, o próprio eu, a subjetividade. Isso está na base da sociedade ocidental, e o iluminismo passa a ser entendido como o movimento real da sociedade burguesa (Horkheimer; Adorno, 1966, p. 6). O iluminismo é um bem enquanto liberta o mundo da magia através da ciência. Assim como os mitos são separados da realidade como forças que as dominam, o iluminismo, através da razão científica, separa o homem (sujeito do conhecimento) da realidade (natureza) para dominá-la. Assim como o mito queria realizar o domínio pela magia, o iluminismo o quer fazer agora pela razão científica. Mas a natureza se vinga do iluminismo, como antes fez com a magia. O iluminismo então termina por reificar o pensamento, e a expulsão do pensamento pela lógica ratifica a coisificação (instrumentalização) do próprio homem na fábrica e no escritório, no sistema econômico geral, em que uma minoria comanda o processo de autoconservação, que ideologicamente não é mais do indivíduo, mas do todo, do sistema (Horkheimer; Adorno, O iluminismo é um bem enquanto liberta o mundo da magia através da ciência. 21 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM 1966, p. 39-40). Esse posicionamento de Horkheimer tem fundamento de análise cultural: do Renascimento até hoje (mais durante o iluminismo), a razão objetiva (que busca o conhecimento essencial das coisas) foi suplantada e largamente reduzida pela razão subjetiva (instrumental). Isto por exigência de uma racionalidade que queria livrar a razão da escravidão da religião e da metafísica, mas a vitória burguesa trouxe outro tipo de escravidão, numa cultura antropocêntrica e, portanto, leiga; escravidão intelectual e social. “A crise atualda razão consiste fundamentalmente no fato de que, a um certo ponto, o pensamento tornou-se incapaz de conceber tal objetividade (sistemas filosóficos metafísicos) e começou a negá-la afirmando que se trata de uma ilusão” (Horkheimer, 1962, p. 15). “Os iluministas atacaram a religião em nome da razão; mas definitivamente mataram não a Igreja, mas sim a metafísica e o conceito objetivo da razão, da qual as suas ideias mesmas traziam força” (Horkheimer, 1962, p. 28). Segue daí a emergência da razão subjetiva, que se preocupa só com a relação entre meios e fins, não interessando que os escopos sejam racionais em si. Vê só se esses escopos respondem aos interesses de autoconservação do sujeito. Com isso, a razão se formalizou e por isso a verdade absoluta passa a não mais existir, e o pensamento pode servir para qualquer escopo, bom ou mau (Horkheimer, 1962, p. 17). As funções que eram desenvolvidas pela razão objetiva (razão metafísica) agora são desenvolvidas pelos mecanismos de reificação (coisificação) do homem dentro do aparelho econômico. Adorno e a indústria cultural Assim, o homem é usurpado dos seus mais profundos valores e a sociedade apresenta a contradição que se mostra no indivíduo que possui todos os meios materiais para ser feliz, mas é profundamente infeliz (Morra, 1973, p. 18-22). A sociedade que o homem cria se torna inimiga do próprio homem e faz os homens inimigos entre si. No contexto histórico-filosófico cultural, situa-se o pensamento de Theodor Wiesengrund Adorno, que comungou com Horkheimer as análises e posicionamentos filosóficos aqui explanados. No contexto da crítica da racionalidade científica, a reificação do homem passa pela instrumentalização da razão. Adorno estende sua análise para a sociedade justamente naquilo que se refere às relações de produção, que para o marxismo conduzia o homem socialmente, como também para as relações de domínio ou poder com as quais uma minoria social privilegiada, herdeira da condição de poder da burguesia, se impõe aos demais. Adorno cunhou a expressão “indústria cultural” para mostrar como aqueles que têm mais poder na sociedade conseguem isso através do uso de uma técnica que é extrínseca ao sentido do que é produzido, que é reforçada pela produção em série e diferencia-se da verdadeira técnica do artista, com o exercício do qual o artista manipula a matéria de sua obra, ao mesmo tempo que envolve a expressão essencial de sua verdade (Adorno, 1983). Com isso, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio que é arquitetado por aqueles que detêm o poder na sociedade. Os meios de comunicação, a mídia e a informática, que não eram tão desenvolvidos no tempo vivido por Adorno, se tornam meios de domínio social. “Enquanto negócio, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais” (Adorno, 1983, XII). Indústria cultural ou cultura de massa ? Adorno teve o cuidado de diferenciar a expressão “indústria cultural” da expressão “cultura de massa”, pois indústria cultural não significa a classificação da arte como nascendo espontaneamente das massas, popular, mas, sim, o uso da tecnologia a serviço da dominação, Theodor Wiesengrund Adorno – 1903-1969 Michel Foucault – 1926-1984 22 Filosofia e Política Filosofia | UNISUAM O po de r es tá em to da pa rt e pois ela, “ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas em larga medida determina o próprio consumo” (Adorno, 1983, XII-XIII). Foucault: política e poder Além do mais, a indústria cultural, aliando-se à ideologia capitalista dominante, reforça-a e “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente” (Adorno, 1983, XIII). Nesse sentido, Adorno mostra como as pessoas são socialmente manipuladas através veiculação da propaganda e do marketing, que encontram condições socioeconômicas propícias para a sustentação de seu domínio. É a mecanização do ser humano, que é manipulado não somente dentro das relações de produção, de trabalho, mas até nos seus particulares momentos de busca de lazer e realização existencial, passando por sua sexualidade. Praticamente o ser humano passa a obedecer a comandos que lhe são impostos como condição de sobrevivência. Alargando essa visão para a questão sociopolítica, pode-se perceber, na contemporaneidade, o uso maciço dos meios de comunicação não só no sentido do consumismo como também como meio de, através da ideologia dominante do contexto da globalização, conduzir a massa, as pessoas em geral, nos interesses do poder constituído, que hoje não é mais entendido na personalização de uma forma da natureza, de um princípio religioso ou na liderança isolada de um grande homem, mas como um conjunto de forças sistêmicas que conduz a todos. Evoluindo da visão crítica da sociedade da Escola de Frankfurt, Michel Foucault desenvolveu uma visão de política na sociedade a partir de uma nova concepção do que é o poder. Como Horkheimer e Adorno, Foucault aderiu a crítica ao iluminismo, principalmente pelo fato de poder identifi car na sociedade uma estreita relação entre saber e poder, saber que refl ete, no contexto cultural do Ocidente, a grande força da razão na linha da dominação. Mas Foucault não permanece na concepção do Estado iluminista concretizado no poder do absolutismo após a Revolução Francesa e presente na concepção marxista, como uma máquina centralizada de exercício do poder. Para Foucault, o poder não existe como algo monolítico, centralizado inclusive na fi gura de um governante. O que existe são práticas ou relações de poder que se disseminam por todo o corpo social, ou seja, o poder é uma relação de forças esparsas pelo corpo social e ao mesmo tempo, talvez pudéssemos dizer, a sustentação dos resultados de poder aí gerados. “O poder está em toda parte, não porque engloba tudo e sim porque provém de todos os lugares (...). O poder não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa determinada sociedade” (Foucault, 1993, p. 89). Já que o Estado não é a determinação do poder, de onde ele surge e se impõe? SABER poder 23 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM No contexto do pensamento de Foucault, talvez pudéssemos entender que a origem do poder e sua imposição são anteriores e se situam por trás do que aparentemente é o seu exercício: o Estado. O poder é gerado a partir de relações nas regiões do que Foucault denominou microespaços. Em regiões específi cas da convivência social – família, igrejas, escolas, hospitais, presídios, empresas – o poder se articula em relação que reproduzem o que seria o poder constituído do todo social. Essas relações de poder atingem o indivíduo no seu corpo, isto é, na sua materialidade existencial, determinando suas manifestações comportamentais em geral, que atingem seu gestual, seu modo de se vestir, falar, de conceber e lidar com as coisas e outras pessoas, de modo que as ações humanas individualizadas passam a ser disciplinadas, reproduzindo o poder, pois na ação de todos se sustentará o Estado, cuja determinação jurídica que existe, é real e evolui historicamente, se consolidando em benefício de alguns. A partir da análise da sua obra Microfísica do poder (1981), talvez pudéssemos caracterizar o que é o poder justamente por aquilo que normalmente não concebemos dele, a partir da compreensão iluminista e num sentido mais amplo do desenvolvimento da história do Ocidente, lembrando inclusive que esta visão foucaultiana do poder também foi desenvolvida a partir de uma análise arqueológica dessa mesma história. Assim, o poder não é concebido como umasubstância, como algo existente realmente por trás da dominação e que lhe dá sentido e força, como as ideias aristotélicas de fundamento da existência das coisas. O poder também não é entendido como algo localizado, isto é, centralizado numa estrutura de força que historicamente é concebida por nós na defi nição de Estado com aqueles governantes que nele exercem de forma centralizada o poder. Diferentemente do que entendiam os marxistas, Foucault mostra que o poder também não deve ser entendido simplesmente como uma determinação econômica amparada por uma superestrutura social, pois inclusive ela necessita politicamente do convencimento de todos para a aceitação de sua ação econômica na determinação de produção e consumo. O poder não pode ser concebido dentro de uma simples categoria de modalidade, isto é, o poder não se impõe por forças sociais de organização política e de poder, como historicamente conhecemos com os nomes de monarquia, república, império dentre outras, e sim através de forças ideológicas que surgem nessa rede do que Foucault denominou micropoderes. Ainda mais: o poder não tem uma constituição puramente legal, em um primeiro momento: ao contrário, o poder é estratégia, não é a determinação da lei, e sim a geração de condições e relações que poderão vir a constituir as leis. O poder não pode ser concebido dentro de uma simples categoria de modalidade, isto é, o O poder não pode ser concebido dentro de uma simples categoria de modalidade, isto é, o poder não se impõe por forças sociais de organização política e de poder, como historicamente poder não se impõe por forças sociais de organização política e de poder, como historicamente conhecemos com os nomes de monarquia, república, império dentre outras, e sim através conhecemos com os nomes de monarquia, república, império dentre outras, e sim através de forças ideológicas que surgem nessa rede do que Foucault denominou micropoderes. de forças ideológicas que surgem nessa rede do que Foucault denominou micropoderes. poder 24 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM A partir da análise da obra Microfísica do poder (1981), de Michel Foucault, pode-se caracterizar o que é o poder justamente por aquilo que normalmente não concebemos dele, a partir da compreensão iluminista e num sentido mais amplo do desenvolvimento da história do Ocidente, lembrando inclusive que esta visão foucaultiana do poder também foi desenvolvida a partir de uma análise arqueológica dessa mesma história. Para saber mais sobre poder leia o livro Microfísica do Poder, de Michel Foucault. saiba mais Finalmente, o poder não é pura repressão, o domínio de alguns ou de algumas instituições sobre os demais; o poder é disciplinar, isto é, ele produz um envolvimento que surge das próprias relações humanas, que são relações de poder, e socialmente se veicula e impõe através de vivências culturais, costumes, que hoje no mundo tão globalizado que Foucault não conheceu são unifi cadas pela indústria cultural, usando aqui um termo de Horkheimer e Adorno. Evidentemente, além das microrrelações anteriormente apresentadas, a mídia exerce grande influência, pela propaganda, pelo marketing e pela vulgarização da arte levando praticamente a todas as pessoas, e hoje, no nível da globalização, não somente o incentivo e mais radicalmente a imposição de modos de ser onde alguns valores, aqueles valores que interessam ao poder, são apresentados de modo universal, ditando comportamentos e criando e guiando desejos que constantemente reforçam o próprio poder, impondo uma infi el condição política de organização da sociedade que reforça cada vez mais a presença do liberalismo no mundo de hoje. Assim encerramos esta disciplina, tão importante para a compreensão do mundo em que vivemos. Esperamos que você tenha se aventurado por este mundo da fi losofi a. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1986. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à fi losofi a. São Paulo: Moderna, 1986. CHAUÍ, Marilena. Convite à fi losofi a. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. HORKHEIMER, Max. Eclissi della Ragione. Trad. Elena Vaccari Spagnol. Cremona: Sugar, 1962. HORKHEIMER, Max; ADORNO, W. Theodor. Dialettica dell’illuminismo. Trad. Lionello Vinci. Torino: Einandi, 1966. MONDIN, Battista. Introdução à fi losofi a: problemas, sistemas, autores e obras. Trad. J. Renard. São Paulo: Paulinas, 1980. MONDIN, Battista. O homem, quem é ele?: elementos de antropologia fi losófi ca. 2. ed. Trad. R. Leal Ferreira e M. A. Ferrari. São Paulo: Paulinas, 1980. MORRA, Gianfranco. Horkheimer dal rifi uto all’invocazione. In: La Scuola e l’uomo. Gennaio, Roma: Mensile della U.C.I.I.M., 1973, p. 18-22. PRELÓT, Marcel. Storia del pensiero político. Torino: Oscar Studio Monadori, 1979. SCIACCA, Michele Federico. História da fi losofi a – III: do século XIX aos nossos dias. Trad. Luis Washington Vita. São Paulo: Mestre Jou, 1968.Título original: La fi losofi a nel suo sviluppo storico. 25 Filosofi a e Política Filosofi a | UNISUAM
Compartilhar