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1 Centro Universitário Estácio - FIB Curso: Psicologia Semestre: 8º noturno Disciplina: Psicopatologia. Docente: Discente: DOCUMENTÁRIO ESTAMIRA • “O que conta não são os sinais e sintomas, mas, sobretudo, o fundo mental e inter-humano do qual eles procedem e no qual se realizam, e que, afinal, determinam a sua significação, o seu sentido.” (Dalgalarrondo, 2000 p. 61) SALVADOR/BA. 2018.1 2 DOCUMENTÁRIO ESTAMIRA Trabalho de AV1, referente ao DOCUMENTÁRIO ESTAMIRA - conforme questões propostas pela Professora Marcia Siebel, da Disciplina de Psicopatologia, do Curso de Psicologia, do 8º Semestre noturno, do Centro Universitário Estácio - FIB. Salvador/Ba. 2018.1 1- INTRODUÇÃO: O referido Trabalho visa responder questões propostas e que dizem respeito aos sintomas psíquicos apresentados pela personagem principal no DOCUMENTÁRIO ESTAMIRA, articulando com os conteúdos estudados na Disciplina. 3 2- QUESTÕES: 1- Comente sobre as relações de Estamira com seus familiares: Pai, mãe, pai da mãe, marido e seus filhos: Em sua história de vida podemos observar uma Estamira que vem sofrendo traumas importantes desde a mais tenra infância. A vida de Estamira sempre foi muito conturbada. Pai - Eles levaram meu pai no 43. Aí meu pai nunca mais voltou, entendeu? O pai a chamava de vários adjetivos nomezinho..., segundo ela, chamava de alguns nomes engraçados: merdinha, neném, filhinha do pai. [...] Depois eles falaram que meu pai morreu; Mãe – Estamira relata que a sua mãe também apresentava distúrbios mentais chegando a ser internada num hospital psiquiátrico. (Hospital Pedro II, Sanatório Psiquiátrico, reconhecido, até os anos 80, pelos maus tratos aos pacientes), mesmo contra a sua vontade, Estamira teve de interná-la neste Hospital. O primeiro fato trazido pela mesma, ocorreu com a morte do pai e a desestabilização emocional foi sofrida tanto por ela quanto pela mãe. Tal fato resultou no surto psicótico de sua mãe. “o que eu mais sinto falta na minha vida é a minha mãe...”, afirma. Após a morte do pai, a personagem relata que a mãe não tinha um paradeiro como ela e ficava pra cima e pra baixo com a mesma. Estramira entendia que isso era uma Judiação! Achava que a mãe dela era uma coitada, em razão da situação que levava, relata, ainda, que sua mãe era mais perturbada que ela; 4 Pai da mãe - Depois da morte do seu pai, uma outra figura masculina aparece na história, de Estamira relata que o pai da sua mãe, o avô, violenta sexualmente sua mãe, e que a violentava também na infância. “O pai da minha mãe é da família Ribeiro. Tudo polícia, tudo general, tudo não sei o que... ele é estuprador! Ele estuprou a minha mãe. E fez coisa comigo. A minha depressão é imensa.” (Estamira). Estamira conta que certa vez, aos nove anos de idade, desejava ir a uma festa e não tinha sapatos, e que o avô disse que daria os sapatos se a menina se deitasse com ele. Segundo seu relato, aos nove anos seu avô queria "deitar-se" com ela, aos 12 ele a levou para se prostituir em um bordel, “eu não gosto do pai da minha mãe porque ele me pegou com 12 anos e me trouxe para “Goiás Velho’ e lá era um bordel...e eu me prostituí...”; Marido – Estamira diz que conheceu o seu primeiro marido em Goiás Velho, afirma que teve um filho com este, porém, o marido a maltratava, "judiava" muito dela. Acabou por separar-se e casou novamente com outro homem, que mais uma vez a maltratava "judiava" dela. Afirma que o pai do seu filho Hernani, também tinha várias mulheres; Filhos – A filha mais velha, acredita que a sua mãe, Estamira, passou a ser feliz após freqüentar o lixão, afirma que lá ela é livre. Salienta que os seus problemas agravaram mais após acontecer o estupro, diz ainda, que é melhor para sua mães está no lixão do que presa em um hospício, pois pelo menos, lá ela tem convivência social. O filho Hernani, acha que a mãe é totalmente possuída por uma força maligna. Foi dele a idéia de tirar a Maria Rita, a filha mais nova, da posse da mãe e colocá-la em outra família adotiva. Chama a própria mãe de ‘louca’, tem até diagnóstico médico. O filho é evangélico e tem alguns conflitos com a mãe Estamira, que não crê em Deus. 5 Já a filha caçula diz sentir saudades da mãe, apesar de ter sido adotada por outra família, deseja dar uma vida melhor para sua verdadeira mãe e gostaria de nunca ter saído de perto da mesma. Estamira tem um bom relacionamento com a sua filha mais jovem. 2- Como Estamira sente-se com relação ao lixão? "No lixo não há só restos, mas também descuido", diz ela. A reconstrução psíquica de Estamira se dá no contexto do lixo, é disso que se nutre, que constrói sua casa, que constitui seu lugar no mundo. “A minha missão, além de ser Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira (...) Você é comum, eu não sou comum (...) Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim, sem a Estamira”. A personagem do filme vive à sombra da sociedade, marginalizada, e reflete esse lado negro do sistema capitalista. Estamira denuncia uma verdade social e aponta a necessidade do sistema olhar para seu lixo. "Isso aqui é um depósito de restos. Às vezes é só resto e às vezes vem também descuido. Resto e descuido". Ninguém pode viver sem Estamira. Não é apenas a voz de uma "louca" se auto explicando e explicando ao mundo que a fez ser como é e no qual ela vive do jeito que é possível: bruta, enraivecida, solitária, sofrida; vendo o mundo como um lugar de violência, conspirações, barbaridades, falsidades, genocídio, em que cada um tem que ser seu próprio herói, seu próprio Deus, seu próprio mito e seu próprio guia, auto construindo seu próprio sentido de vida. No lixão, Estamira tem o relacionamento de acolhimento, para ela ali é uma base de estabilidade, uma zona de conforto. Ali é o seu trabalho, ali estão os seus amigos que a considera, como se fosse a sua segunda casa, onde muitos vêem resíduos, ela consegue admirar o trabalho de 6 reciclagem que faz. Para ela o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a Sociedade, "o lixo extraordinário". 3- Para sua filha mais velha o que desencadeou a sua primeira crise? Segundo o relato da filha mais velha, os sintomas que supostamente caracterizam o quadro de esquizofrenia, como a entendemos hoje, começaram a se manifestar depois da situação em que Estamira foi estuprada pela segunda vez. A filha diz: “Ela foi trabalhar na área interna e quando ela saía na sexta-feira, ela foi estuprada uma vez no centro de Campo Grande e uma segunda vez aqui, na mesma rua que eu moro. Aí ela falou que o cara fez sexo anal com ela e ela gritando: Para com isso, pelo amor de Deus! e o cara perguntava: Que Deus? Esquece Deus. O cara fez sexo com ela de todas as formas e depois mandou ela embora". Relata a filha, ela chegou em casa, chorava e contava o caso. Nesse tempo ela não tinha alucinação nenhuma, era muito religiosa e acreditava que aquilo tudo era uma provação de Deus. Começou a alucinação assim: ela chegou na casa da minha sogra, D. Maria, e disse assim: "D. Maria, a senhora sabe que quando eu cheguei hoje para trabalhar tinham feito um trabalho de macumba pra mim? Agora você vê essas coisas; o pessoal em vez de trabalhar fica fazendo essas coisas. Aí pisou na macumba,jogou a macumba fora: Eu vou acreditar nisso nada, porque Deus me protege". A filha afirma que um mês depois começou a dizer: "Eu tenho a impressão que tem gente do FBI me vigiando, que as pessoas estão me filmando". Segundo relata a filha, que um dia ela sentou no quintal da sua sogra que tem dois coqueiros, aí ela olhou, olhou, olhou e falou: "Isso aqui é o poder, isso é que é o real". Nesse tempo ela não tinha alucinação 7 nenhuma, perturbação nenhuma, afirma a filha, diz que sua mãe "era muito religiosa e acreditava que aquilo era uma provação.” As ocorrências de estupros apontam para uma situação de estresse e de trauma muito grande em sua vida, por esta razão, essas situações compõem-se como possíveis fatores desencadeantes, trazendo à tona uma vulnerabilidade que, conforme o contexto e o próprio recurso interno de cada indivíduo apresentam variações. Este segundo estupro foi como se fosse a gota d’água para que desacreditasse em Deus e na vida que vivia antes. Somado a isso, também podemos apontar a vivência que Estamira teve nos dois casamentos, com maridos que a traíam com várias mulheres. 4- Explique a relação De Estamira com Deus. Até a ocorrência dos episódios mais traumáticos de sua vida, Estamira era temente a Deus e achava que tudo aquilo era uma provação divina, era uma pessoa temente a Deus. Porém, diante do segundo episódio, o segundo estupro, a levou desacreditar em Deus e na vida que vivia antes. Em muitos momentos são perceptíveis lapsos de lucidez em seu discurso e cotidiano, mas habitualmente ela apresenta-se agressiva, descrente em Deus e no mundo, Estamira criou um mundo próprio no intuito de conseguir um paliativo para suas angústias e tentar ter o controle daquilo que pode acontecer. Ela é "superior", "abstrata", afinal, como ela diz: "Eu, Estamira, sou a visão de cada um, ninguém pode viver sem mim". Estamira retira sua fé em Deus e passa a acreditar que o poder está em tudo. Ela se mostra revoltada com Deus e chega a dizer que o seu ouvido não é privado diante da leitura que seu filho faz do Novo Testamento. Para ela Deus é "o trocadilho", e se pergunta : "que Deus é esse que deixa uma pessoa ser estuprada, roubada e passar necessidades? " 8 Onde já se viu uma coisa dessa, a pessoa não pode nem andar na rua que mora, nem trabalhar dentro de casa e nem no trabalho, em lugar nenhum. Então me diga que Deus é esse? Que Jesus é esse? Que só fala em guerra e não sei o quê. "Não é ele que é o próprio trocadilo? Só para otário, esperto ao contrário, boba do, abestaiado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Quem anda com Deus na boca, dia e noite, largou de morrer? Quem fez o que ele e a quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou da miséria? Não adianta, ninguém nada vai mudar meu ser, eu sou Estamira, aqui, ali, lá nos inferno, no céu. Não adianta. Quanto mais essas desgraças, esses piolhos da terra suja, amaldiçoados, ex- comungada que renegou os homens como único condicional, mais ruim eu fico, mais pior eu sou. Perversa eu não sou, mas ruim eu sou, e não adianta antes de eu nascer eu já sabia disso tudo; antes de estar em carne e sangue, é claro se eu sou a beira do mundo. Eu sou a Estamira; sou a beira, estou lá, estou cá, em todo canto do mundo e todos dependem de mim". A personagem descarrega todo o seu desapego, desprazer e revolta muito grande por Deus. 5- Você consegue identificar alterações nas funções psíquicas de Estamira? Quais? A pergunta não nos deixa dúvidas, da clareza e identificação nas alterações das funções psíquicas de Estamira, portanto, sim. A forma como Estamira apresenta-se para o mundo no início do documentário: "A minha missão além de ser a Estamira é revelar a verdade, somente a verdade, seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara ou então ensinar, amostrar o que eles não sabem, os inocentes, não tem mais inocentes, não tem. Tem esperto ao contrário (...). Eu sou perfeita, meus filhos são comuns, eu sou melhor do que Jesus. " 9 Delírio de grandiosidade: Talvez, mas poderia ser também uma lúcida sabedoria das questões humanas como ao falar: "Quem revelou o homem como único condicional ensinou ele a conservar as coisas e conservar é proteger, lavar, reusar e usar mais. O quanto pode". Estaria se referindo à reciclagem do lixo, ao uso consciente dos recursos naturais e materiais. Em seu delírio, diz: “A minha missão além de ser eu, a Esta-mira, é revelar... É a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar e mentira e tacar na cara, ou então... ensinar e mostrar o que eles não sabem, os inocentes. Não existem mais inocentes, não tem. Tem só esperto ao contrário....”(Estamira) Mas Estamira também se retirou para o ego: Vocês é comum, eu não sou comum... só o formato é comum.. é cegar o cérebro, o gravador sanguíneo de vocês e o meu eles não conseguiram, porque o formato gente, sangue, homem par eles não conseguem. (...) Estamira, esta mãe, serva, a Estamira está em todo canto, em todo lado, até meu sentimento veio. Todos é a Estamira. (...) Os espaços inteiros são abstratos, Estamira também é abstrata. Estamira alucina. Encontra-se no lixão em conversa com um colega e de repente para: "ouve" uma voz como se fosse um chamado e passa a se comunicar com ela através de um telefone quebrado encontrado ali mesmo, destacando-se o fato da comunicação ocorrer numa língua estranha (glossolalia). Em outro momento do documentário, ela mesma discorre sobre as vozes que escuta: "A doutora me perguntou se eu ainda estava escutando as vozes que eu escutava e eu escuto os astros, as coisas, os pressentimentos das coisas e eu tem hora que eu fico pensando como eu sou lúcida". Apresenta sintomas somáticos (alucinações) trazendo sensações internas corporais desagradáveis: conta pedaços de suas percepções e de um momento para outro se contrai, apalpa o abdome e diz ser o 10 "controle remoto" que está lhe infringindo dor: "O controle remoto atacou desde de manhã a noite inteira perturbando os astros negativos ofensivos; tá pelejando para ver se atinge uma coisa que chamam coração, meu ou então a cabeça (...)". Sobre isto: "As sensações cenestésicas ficam alteradas e são vivenciadas como dores, transformações corporais, anomalias de percepções internas, toda uma série de modificações da experiência do corpo", segundo (STERIAN, 2001, pág. 23) Também apresenta momentos de agressividade. Em determinado momento do documentário, seus filhos, Carolina e Hernani estão falando de religião. Ela relata que "quando estava no Goiás, vieram dois policiais militares para bater em mim, porque queria que eu aceitasse Jesus no peito e na raça" e a filha interrompe dizendo que ela não gosta de Jesus. Estamira se torna agressiva e grita: "Quem disse que eu não gosto de Jesus? Eu já tive do de Jesus. (...) Só não é isso que vocês pensam". A Lucidez e a “Inlucidez” Estamira faz diversas críticas em relação ao trabalho, à educação e a medicalização. Diversas cenas causam grande choque ao telespectador, pois o faz refletir e pensar sobre questões da ordem social e subjetiva. Se a personagem é capaz de ter lucidez em seu discurso, isso demonstra que tais percepções não são da ordem cognitiva; deste modo, o caso contraria a tese psiquiátrica de que o doente mental nada pode produzir de útil para a sociedade. 6- Comente o documentário articulando com os conteúdos estudados. Esse Documentário, dirigido por MarceloPrado, inicialmente, foi idealizado pelo diretor como algo que usava documentar as condições do Aterro Sanitário do Jardim Gramacho, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Quando o diretor chegou ao local, recebeu informações de que 11 o mesmo deveria falar com uma pessoa chamada Estamira, a princípio houve uma estranheza da sua parte, mas quando ele a conheceu, percebeu que de fato tratava-se de alguém fundamental não só para trazer um documentário do aterro, porém, muito mais que isso. Psicopatologia Do ponto de vista subjetivo, Estamira identificou-se fortemente com o lixo. Além disso, sua história de vida foi marcada por uma função materna de simbiose, sem espaço para que a castração fosse comprida pela função paterna. Posteriormente, eventos e situações-limite, como a ocorrência de dois estupros, seguiram-se de experiência alucinatórias, relatadas por uma das filhas de Estamira no documentário. É possível notar um ego fragilizado também em questões que envolvem melancolia, como diz a personagem: “a minha depressão é imensa”. Ao voltar o olhar para o discurso de Estamira, percebe-se que através dos delírios e falas perturbadas que ela consegue expressar tudo o que não consegue dizer linearmente. Ela expressa seu sofrimento, sua decepção com um Deus em que tanto acredita, seus traumas relacionados ao abuso sexual, sua relação com o seu corpo, com sua família, com o aterro, com a opressão social, com a fome e com a vida. É através deste discurso que ela afirma e reafirma seu lugar no mundo, sua existência. A experiência do sofrimento psíquico é construída socialmente e traz em si a conformação dos valores e normas de uma determinada sociedade e época da história. Em outras palavras, aquilo que parece ser algo extremamente individual, ou seja, a vivência de um conjunto de mal- estares no âmbito subjetivo, e também a vivência de cada um como mulher ou como homem, expressa regularidades que são moldadas por uma dada configuração social. Os transtornos mentais e o consequente sofrimento psíquico - traduzido na dificuldade em operar planos, em definir o sentido da vida e no sentimento de impotência e vazio – 12 prejudicam o gozo das capacidades mentais plenas, incapacitando homens e mulheres a interagir na sociedade e, em casos extremos, levam esses indivíduos à perda de sua condição de cidadãos. Na realidade, o documentário nos mostra que, mesmo com todos os sintomas, ela revela momentos de lucidez e também devemos voltar nosso olhar para o ser em si, muito mais que seu quadro patológico. Ao mesmo tempo, traz à tona a maneira como encaramos o conceito de normalidade e insanidade, demonstrando que ignoramos o paradigma na qual a ciência assume diante de tais indivíduos que são vistos como “desajustados” e inaptos para a convivência social. Enfim, somos todos partes habitantes de um macro sistema, de um universo que é real e abstrato, de um todo filosófico que tem vida e morte, sonho e realidade. Temos um pouco de “Estamira” em todos nós, integrais.
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