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Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições no processo de organização social: um diálogo entre Foucault, Balandier e Bourdieu.

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Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições no processo de organização social: um diálogo entre Foucault, Balandier e Bourdieu.
 
Adjair Alves [1]
 
 
Resumo
 
Compreender as relações de poder na contemporaneidade constitui para as ciências sociais uma exigência, num mundo em que as relações são multifacetadas, se dando nos mais diferentes níveis da organização social. O que pretendemos fazer no presente texto é discutir como estas realidades se organizam e se relacionam seguindo a trajetória teórica de três nomes significativos das ciências sociais: Foucault, Balandier e Bourdieu. Analisar como estas realidades se apresenta na construção teórica destes autores possibilitará uma aproximação, diga-se, não muito fácil de se estabelecer, com o entendimento da forma como as relações de poder na contemporaneidade são efetivadas. Evidentemente que, levando em consideração a complexidade da questão, o que pretendemos aqui é apenas um ensaio, digamos; inconcluso, visto que não temos a última palavra sobre a questão.
 
Palavras-chave: poder, arqueologia, genealogia, habitus, dinâmica social.
 
 
Introdução
 
Os conceitos de cultura, organização e estrutura são caros, as Ciências Sociais, pela importância que os mesmo possuem como possibilidade de interpretação e/ou compreensão das sociedades humanas, objeto de estudo destas ciências. É da forma como entendemos a relação entre estas instâncias, que podemos compreender ou formular as teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições no processo de organização social. Na tradição das Ciências Sociais, o poder tem sido analisado, não apenas como uma instância macro, mas também nos micro processos. E, é aí que se tem erigido explicações razoáveis, para se entender como essa instância social te alcançado patamares de sua reprodução social. Foucault, Balandier e Bourdieu oferecem três possibilidades de interpretação do poder que poderão ser útil ao seu entendimento.
 
1.     Michel Foucault, e o papel da arqueologia como instância desmistificadora dos saberes e instituições.
 
              Três obras são significativas para se compreender o trajeto metodológico e os objetivos da arqueologia dos saberes construída por Michel Foucault. São elas: História da loucura, Nascimento da clinica e, As palavras e as coisas.
Alguns instrumentos demarcam a unidade de pensamento, tais como: o conceito de saber, o estabelecimento das descontinuidades, os critérios para datação de períodos e suas regras de transformação, o projeto de inter-relações conceituais, a articulação dos saberes com a estrutura social, a crítica da idéia de progresso em história das ciências. Para nós a forma como Foucault compreende a “articulação entre saberes e a estrutura social” é uma peça chave, porque ela assinala para sua compreensão do poder.
A “arqueologia” busca estabelecer a constituição dos saberes privilegiando as inter-relações discursivas e suas articulações com as instituições. Objetivava responder como os saberes apareciam e se transformavam. Essa análise dos saberes tem como finalidade situá-los como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, chamada de genealogia.
Numa perspectiva genealógica – o termo é nietzschiano – o homem aparece como sujeito e objeto do conhecimento, mas este se constitui como tal à medida que vai se articulando como instância de poder. Não é assim qualquer conhecimento que se articula. O propósito da arqueologia dos saberes é construir as estruturas deste saber, de como ele vai se constituindo como tal. Assim em Foucault, não há propriamente uma “teoria geral do poder”. Ou seja, suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características universais (MACHADO. Apud, FOUCAULT, 1979: x). O poder não é uma coisa, mas uma prática social constituída historicamente. É uma prática múltipla, dispersa e descontínua, não subordinada a um conceito universal.
O que é uma teoria na perspectiva foucaultiana? Primeiramente, toda teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu estado inacabado, sua parcialidade, formulando conceitos que clarificam os dados. Não é objetivo da arqueologia, nem da genealogia fundar conceitos, teorias ou sistemas, mas realizar análises fragmentárias e transformáveis. Para Foucault, o Estado não é sinônimo de Poder, embora ele se situe, enquanto instituição, como o centro do poder. O poder é uma instância que se articula nas micro-relações locais, ele está circunscrito a uma pequena área. “O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas, mas indispensáveis inclusive à sua sustentação e atuação eficaz” (id. p. x).
O poder intervem materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos, o seu corpo, se caracterizando como um micro-poder. A micro-física significa um deslocamento do espaço de análise, quanto do nível em que esta se efetua (p. xii). “Realidade distintas, mecanismos heterogêneos, esses dois tipos específicos de poder se articulam e obedecem a um sistema de subordinação que não pode ser traçado sem que se leve em consideração a situação concreta e o tipo singular de intervenção” (p. xii). Mas os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados pelo Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem são reduzidos a uma manifestação do Estado. Eles se exercem em pontos diferentes da rede social, integrados ou não ao Estado. Os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Eles funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa.
O Poder, a rigor, não existe, o que há são práticas ou relações de poder. Como onde há poder, há resistências, o que existe são pontos móveis de resistência, espalhados na estrutura social e não propriamente lugar de resistência. O Poder não é constituído como instância apenas repressiva, negativa, mas também e principalmente como ação produtiva, transformadora. Assim as Ciências são vistas como frutos de uma relação de poder. Todo saber é político. É aí que se sustenta a idéia de que saber é poder.
 
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa somente como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 1979: 8).
 
              O Poder está relacionado à produção de saberes e por extensão, à verdade. Mas esta, não é o conjunto das coisas verdadeiras a ser descobertas ou aceitas, mas o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuem ao verdadeiro, efeitos específicos de poder (p. 13).
Foucault não assinala uma defesa da verdade, mas um “combate” em torno do estatuto da verdade e do seu papel político e econômico. A verdade possui um “regime”, um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. Assim ela está vinculada a sistema de poder. Trata-se então de desvincular o Poder, da Verdade, das formas de hegemonias (sociais, econômicas e culturais), no interior das quais ela funciona, e não de tornar as pessoas conscientes. A questão não é a consciência, a ideologia, a alienação, mas a própria verdade.
Daí a necessidade de se construir a genealogia da verdade. A genealogia é histórica, marca a singularidade dos acontecimentos, espreita-os lá onde menos se esperava e naquilo que é tido como não possuindo história. Ela exige a minúcia do saber, paciência, um grande número de materiais acumulados. Ela deve construir seus “monumentos ciclópicos”.
Para Foucault, o saber do intelectual constitui um sistema de poder. “A idéia de que elessão agentes da ‘consciência’ e do ‘discurso’, que ‘barra’, ‘proíbe’ e invalida o discurso e o saber das massas.” Aí está a necessidade de se fazer o que Deleuze chama de ‘revezamento’, que é ouvir o que os pesquisandos têm a dizer sobre eles. No estudo dos asilos psiquiátricos Foucault sentiu necessidade de ouvir os reclusos falarem de si próprios.
É isto que Deleuze chamou de revezamento (p.70). Para Foucault, a teoria não é mais a expressão de uma prática. O papel do teórico é lutar contra a tirania das representações impostas pelo sistema de poder, o regime de verdade (p. 71). Segundo Deleuze (In. FOUCAULT, 1979: 71) “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... é preciso que sirva, é preciso que funcione.” A teoria é um instrumento de combate.
 
 
2.     Pierre Bourdieu, o conceito de “habitus” e a reprodução das estruturas sociais.
 
              Um conceito valioso para se entender a teoria bourdieusiana do poder é o conceito de “hábitus”. Para Bourdieu, as práticas sociais, assim como as representações, são geradas por um sistema de disposições duráveis construídas em acordo com o meio social dos sujeitos e são predispostas a funcionar como suas estruturas estruturantes (BOURDIEU, 1983: 60 - 81).
Segundo Bourdieu, a estrutura das práticas sociais não é um processo que se faz mecanicamente, de fora para dentro, de acordo com as condições objetivas presentes em determinado espaço ou situação social. Não seria, por outro lado, um processo conduzido de forma autônoma, consciente e deliberado pelos sujeitos individuais.
 
É preciso abandonar todas as teorias que tornam explicita ou implicitamente a prática como uma reação mecânica, diretamente determinada pelas condições antecedente redutível ao funcionamento mecânico de esquemas preestabelecidos, ‘modelos’, ‘normas’ ou ‘papéis’, que deveríamos, aliás, supor que são em número infinito, como o são as configurações fortuitas dos estímulos capazes de desencadeá-los.[2]
 
 As práticas sociais apresentam propriedades típicas de posição social de quem às produz, porque a própria subjetividade dos indivíduos, sua forma de perceber e apreciar o mundo, suas preferências, seus gostos, suas aspirações, estariam previamente estruturadas em relações ao momento da ação. Mas esta subjetividade é estruturada internamente pelas experiências vivenciadas pelos sujeitos em função de sua posição nas estruturas sociais. Estas constituem uma espécie de “matriz de percepções e apreciações”, habitus, cuja função é orientar as ações dos sujeitos nas situações a serem vivenciadas. O hábitus é formado por um sistema de disposições gerais que precisariam ser adaptadas pelo sujeito a cada conjuntura específica de ação. Esta dimensão flexível do hábitus, realçado por Bourdieu, impede que este venha ter uma espécie de recaída no objetivismo, ou no determinismo objetivista. Sendo assim, fruto da incorporação da estrutura e posição, sociais de origem, no interior do próprio sujeito, esta estrutura, uma vez incorporada e posta em ação, tornando-se estruturadora das novas ações e representações dos sujeitos, em situações que diferem, em alguma medida, das situações nas quais o hábitus foi formado.
O conceito de hábitus desempenha o papel de elo articulador entre três dimensões fundamentais de análise: a estruturas das posições objetivas, a subjetividade dos indivíduos e as situações concretas de ação. E ainda, a posição que cada sujeito ocupa na estrutura das relações objetivas propicia um conjunto de vivências típicas que se consolidaria na forma de hábitus adequada a sua posição social. o sujeito agirá na sociedade em função deste hábitus, como um membro típico de um grupo social ocupando a posição que lhe compete na estrutura social, colaborando para reproduzir as propriedades do seu grupo social de origem e as estruturas na qual foi formado.
É deste modo que a estrutura de poder e a dominação econômica e, sobretudo, simbólica é reproduzida sem que o indivíduo tenha consciência. As marcas de sua posição social, os símbolos que a distinguem e que a situam nas hierarquias das posições sociais, as estratégias de ação e de reprodução que lhes são típicas, as crenças, os gostos, as preferências que a caracterizam, em resumo, as propriedades correspondentes a uma posição social específica são incorporadas pelos sujeitos tornando-se parte da sua própria natureza.
 
... só podemos, portanto, explicar essas práticas se colocarmos em relação a estrutura objetiva que define as condições sociais de produção do hábitus (que engendrou essa prática) com as condições do exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura que, salvo transformação radical, representa um estado particular dessa estrutura. Se o hábitus pode funcionar enquanto operador que efetua praticamente a ação de colocar em relação esses dois sistemas de relação na e pela produção da prática, é porque ele é história feita natureza, isto é, negada enquanto tal porque realizada numa segunda natureza.
 
              A subjetividade dos indivíduos, na perspectiva bourdieusiana, é algo socialmente estruturada, isto é, se configura em consonância com sua posição na estrutura social. por sua vez, o objetivismo é também superado visto que as estruturas sociais não produzem comportamento mecanicamente, dado que o sujeito incorpora um conjunto de disposições que o orientaria a agir nas mais diversas situações sociais.
 
‘... Em cada um de nós, em proporções variáveis, há o homem de ontem; é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominante em nós, posto que o presente não é senão pouca coisa comparado a esse longo passado no curso do qual nos formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós; ele forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas. Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos delas um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram ainda tempo de se organizar no inconsciente.’ [3]
 
A análise da realidade social em Bourdieu está relacionada ao papel atribuído por ele à dimensão simbólica ou cultural na produção ou reprodução da vida social. neste ponto é preciso verificar como no pensamento bourdieusiano, três sócio-filosofias, são “conciliadas”.
A primeira, está associada a Durkheim e a noção de sistemas simbólicos como estruturas estruturantes, como elementos que organizam o conhecimento ou percepção que os indivíduos têm da realidade. A segunda, se refere ao estruturalismo defendido por Lèvi-Strauss, para o qual os sistemas simbólicos são estruturas estruturadas, isto é, realidades organizadas em função de uma estrutura subjacente que o cientista social deve identificar. E a terceira, tradição, representada pelo marxismo, que compreende os sistemas simbólicos, como instrumentos de dominação ideológica, cuja função é a legitimação do poder da classe dominante socialmente.
A síntese bourdieusiana busca articular estas três tradições sustentando a idéia de que os sistemas simbólicos são estruturas estruturantes, porque são primeiramente estruturadas. Ou seja, a organização lógica, interna, das produções simbólicas, as capacita a organizar a percepção dos indivíduos, propiciando a comunicação entre eles. E é por esta razão que elas (as produções simbólicas) estruturam as ações dos atores sociais na direção da reprodução das estruturas de poder e dominação social, isto é, as diferenciações e hierarquias presentes na sociedade. Mas esta característica das produções simbólicas, não reduz seu papel a um mero instrumento de manipulação e dominação política (ideologia). A síntese bourdieusiana salienta as funções de “comunicação e de conhecimento” dessas produções. Os sistemas simbólicos são sistemas de percepção, pensamento e comunicação, e não uma ilusão idealista “totalidades auto-suficientes e autogeradas, passiveis de uma análise pura e puramente interna.” (BOURDIEU, 1999:13).Para Bourdieu, as produções simbólicas caracterizam-se por sua relação com os “interesses de classes ou das frações de classe que elas exprimem”, mas também, aos “interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção.” (Idem).
Bourdieu, portanto, situa-se entre as perspectivas conspiratórias, que concebem as produções simbólicas como artefatos intencionalmente criados com vistas à dominação ideológica, e as perspectivas idealistas, que negam ou desconhecem o papel das construções simbólicas na manutenção e legitimação das estruturas de dominação. A perspectiva bourdieusiana sinaliza para a compreensão de que as produções simbólicas participam da reprodução das estruturas de dominação social, porém, fazem-no de uma forma indireta e à primeira vista, irreconhecível.
Os sistemas simbólicos, segundo Bourdieu, podem ser “produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do grupo ou, ao contrário, produzido por um corpo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de produção e circulação relativamente autônomo”. (id. p.12.)
A noção de campo, diz respeito aos espaços de posições sociais nos quais são produzidos, consumidos e classificados, determinados bens sociais. (BOURDIEU, 1983: 89). Na medida em que a divisão social do trabalho vai se complexificando, certos domínios de atividade se tornam relativamente autônomos. No interior desses setores ou campos da realidade social, os indivíduos envolvidos passam, então, a lutar pelo controle da produção e, sobretudo, pelo direito de legitimamente classificarem e hierarquizarem os bens produzidos.
Cada campo de produção simbólica, segundo Bourdieu, constitui palco de disputa, entre dominantes e pretendentes, relativas aos critérios de classificação e hierarquização dos bens simbólicos produzidos e, indiretamente, das pessoas e instituições que a produzem. Esta luta estende-se aos critérios de classificação cultural. Assim se considera, os padrões superiores e/ou inferiores da cultura, distingue-se entre alta e baixa cultura, entre religiosidade e superstições, conhecimento científico e crenças populares, entre língua culta e fala popular.
Os indivíduos e instituições que representam as formas dominantes da cultura buscam manter sua posição privilegiada, apresentando seus bens culturais como superiores aos demais. É o que Bourdieu chama de “violência simbólica”. Aos dominados sobra a alternativa de reconhecer o status da dominação ou reagir. Esta posição é, no entanto, um ponto crítico no pensamento bourdieusiano, que se mostra cético em virtude de que as crenças, valores e tradições de cultura popular não constituem um sistema simbólico autônomo coerente, capaz de contrapor a cultura dominante, de forma efetiva.
O arbitrário cultural prevaleceria em virtude de que os indivíduos não perceberiam que os bens culturais tidos como superiores ocupam esta posição por terem sido impostos historicamente pelos grupos dominantes. Esta percepção, “natural” da dominação ocorre entre dominados e dominantes, em função da forma como se estrutura a dominação.
O capital cultural constitui-se do poder que o indivíduo adquire ao tomar posse da produção e apreciação ou consumo de bens culturais socialmente dominante. Assim se diz que o individuo que dominar um padrão de formação escolar dominante, adquire um capital cultural dominante.
A hierarquia entre bens simbólicos seria, segundo Bourdieu, uma base importante para a hierarquização dos indivíduos e grupos sociais. assim os indivíduos capazes de produzir, reconhecer, apreciar e consumir bens culturais tidos como superiores teriam maiores facilidades para alcançar ou se manter nas posições mais altas da estrutura social. as hierarquias acabam por reforçar a estrutura de dominação social na medida em que restringe a mobilidade social dos indivíduos.
A legitimação das estruturas de dominação social atribuído aos sistemas simbólicos tem papel fundamental no processo de reprodução, que se dá de forma eufemizada e dissimulada, das hierarquias e diferenças entre as classes e frações de classe. Para Bourdieu, os indivíduos tenderiam à naturalização do padrão hierárquico da cultura por reconhecê-la como superior, não percebendo a relação de dominação de classe. É um processo de transfiguração das hierarquias sociais em hierarquias simbólicas que permite a legitimação ou justificação das diferenças e hierarquias sociais.
Há uma correspondência, segundo Bourdieu, entre formas culturais e classes sociais que não são percebidas pelos agentes sociais, que tenderiam a ver como hierarquias culturais, o que são, de fato, relações de dominações. (Na fala de Black-out sobre a “ostentação da periferia” está presente tanto a percepção desta relação de dominação cultural estabelecida através do sistema simbólico, como a dissimulação do jovem que reproduz a estrutura por não perceber esta relação de dominação. Assim o jovem da periferia quer ter, possuir o mesmo status, e vai buscar no crime esta possibilidade.)
 
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação ou, em outros termos, seus pensamentos e suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. Porém, por mais exata que seja a correspondência entre as realidades, ou os processos de mundo natural, e os princípios de visão e de divisão que lhes são aplicados, há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo... A indeterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretações antagônicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica. (BOURDIEU. 2005:22)
 
Os atores sociais ao se verem inferiorizados pela dominação simbólica, sustentada pela estrutura social que a perpetua, estruturam reações à violência do sistema e seus agentes, isto é, àqueles que dão sustentação à dominação. Estas reações são, muitas vezes reproduções das ações do sistema canalizadas em práticas delituosas contra o próprio sistema e seus agentes. Práticas que nem sempre são racionalizadas, isto é, elas não dependem do controle da consciência para serem superadas.
O capital simbólico advindo desta relação de poder, concentra-se em favor das forças de dominação, que o reproduz, de modo a perpetuá-lo em seu poder. As relações de exploração e exclusão por que passam são ratificadas e ampliadas de tal modo, pelo sistema mítico-ritual, a ponto de torná-lo o princípio de divisão de todo o universo não sendo mais, para citar BOURDIEU, (2005:55), que a dessimetria fundamental, a do sujeito e do objeto, do agente e do instrumento, instaurada na relação que estes jovens têm com o sistema, a sociedade em geral, no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado da violência, que está na base de toda ordem social.
Segundo BOURDIEU (2003:17, 8), a experiência apreende o mundo social e suas arbitrárias divisões como naturais, evidentes, e adquire, assim todo reconhecimento de legitimação. É por não perceber os mecanismos profundos, tais como os que fundamentam a concordância entre as estruturas cognitivas e as estruturas sociais, e como tal, a experiência dóxica do mundo social, que os efeitos simbólicos de legitimação são imputados a fatores que decorrem da ordem da representação mais ou menos consciente e intencional “ideologia”, “discurso”, etc.
Libertar-se desse julgo de dominação, não é apenas uma questão de consciência, uma vez que este depende, em muito, das estruturas objetivas da realidade. Portanto, reproduzir a estrutura torna-se quase um imperativo a estes jovens (BOURDIEU, 2003: 52, 3). A consciência não é um dado meramente descrito pó um ‘viés’ intelectualista e escolástico, que nos leva a imaginar que a libertação ou transformação se dê por um “efeito automático” de uma tomada de consciência. Épreciso considerar as estruturas do campo. “As disposições ‘hábitus’ são inseparáveis das estruturas que as produzem e as reproduzem e, em particular, de toda a estrutura das atividades técnico-rituais, que encontra seu fundamento último na estrutura de bens simbólicos” (id. 55).
O capital simbólico ao (re)produzir os agentes (re)produz as categorias que organizam o mundo social. (re)produz o jogo e seus lances, (re)produz as condições de acesso à reprodução social. “As disposições (hábitus) são inseparáveis das estruturas que as produzem e as reproduzem, tanto nos dominadores como nos dominados, e em particular de toda a estrutura das atividades técnico-rituais, que encontra seu fundamento último na estrutura do mercado de bens simbólicos.” (p.55).
Tanto dominados como dominadores contribuem para reproduzir a estrutura de dominação. Ambos são “prisioneiros, sem se aperceberem, vítimas da representação dominante.” (p. 63) “A estrutura impõe suas pressões aos dois termos da relação de dominação, portanto aos próprios dominantes, que podem disto se beneficiar, por serem, como diz Marx ‘dominados por sua dominação’.” (p. 85). A dominação não é, no entanto, algo que exige no mínimo que se justifique ou se defenda, ou algo de que é preciso se defender ou se justificar. (P. 106).
 
 
Georges Balandier e a naturalização das relações de poder.
 
              Em seu livro, “Antro-pológicas”, BALANDIER (1976: 12) estabelecendo uma crítica quanto à forma como as Ciências Sociais construíram seus objetos de estudos, ou o conhecimento sobre eles. Afirma que, estas ciências, oscilam entre; “limitar o empreendimento científico à esfera das técnicas sociais, à atividade dos ‘engenheiros sociais’ que operam sob comando a fim de remediar os malogros e os desarranjos da sociedade.” E, à prática de um ‘esoterismo’, afastando-se da “ordem das realidades, substituindo-a por uma construção lógica, um edifício complexo de categorias, princípios, noções e conceitos ao qual só se pode ter acesso pela iniciação.”
Atender solicitações de poderes e ‘contrapoderes’, que se acomodam mal aos seus resultados quando não reforçam, necessariamente, sua posição e suas opções. “essa solicitação, nas sociedades em que as Ciências Humanas estão estabelecidas, pode traduzir-se em termos de ‘mercado’ o que, inevitavelmente, implica em competição, imposição de rótulos de Escolas e nalguma concessão aos consumidores do saber e, portanto, às ‘modas’.”
Este pesquisador vai afirmar que, voluntária ou involuntariamente, os cientistas sociais tornam-se produtores de sentidos, fabricam as visões do mundo atual. Assim acabam por propor uma “imagem transformada do homem e da sociedade”, não designando mais o homem no singular, porém, no plural, para dar conta de sua diversidade. Este tipo de ciência, além de fixar, alarga as fronteiras entre natureza e cultura.  “Torna-se cada vez mais difícil negligenciar o que concerne à natureza do homem e ao fato de sua presença na natureza e, portanto, satisfazer-se com uma Sociologia e Antropologia d’alguma forma a-naturadas. A atualidade coage a essa revisão.” É então a isto que se propõe este pesquisador; estabelecer a redução das fronteiras entre Natureza e Cultura, que segundo ele está presente nas Ciências Sociais.
Para Balandier, as sociedades ‘expressam-se’ não apenas “através de suas produções simbólicas e ideais (sua cultura) e de suas produções materiais (sua tecno-economia), mas, também através da maneira pela qual condicionam a reprodução dos homens.” Esta seria uma primeira ruptura a ser feita. A segunda seria desfazer a oposição posta entre sociedades consideradas fora da história e as outras (as nossas). “Não existe sociedade que não se revele problemática em algum grau. “É por seus problemas, pela ameaça que torna improvável sua simples reprodução, que as sociedades mostram sua ‘verdadeira realidade’.” A Sociologia e a Antropologia têm cedido a um sócio-centrismo. Assim os conhecimentos produzidos pela Antropologia podem então tornar a Sociologia mais ‘operatória’ no estudo de nossa própria sociedade. Balandier vai procurar mostrar isto em dois capítulos da obra citada.
Dois aspectos são considerados fundamentais na obra de Balandier: a questão da ‘unidade’ da sociedade e a da ‘continuidade’ ou da reprodução das formas sociais e culturais. Este pesquisador vai considerar em sua obra três rupturas principais que delimitam as sociedades, designadas como ‘classes’, e que coexistem no seio de toda formação social: as fronteiras traçadas segundo os sexos, a idade e o sistema dominante de desigualdade. “Dessa maneira, consideram-se também, o jogo dos poderes desiguais e o sistema de poder que se impõe como instrumento da coesão global.”
Há, deste modo uma evocação à necessidade de estabelecer um maior embricamento entre cultura e natureza, que é defendido por Balandier. “Não se pode mais encontrar satisfação numa Sociologia e numa Antropologia de certo modo a-naturais.” Segundo ele, este embricamento “obriga a que se leve em conta a natureza do homem e a presença do homem na natureza. A fronteira erigida entre natureza e cultura está, atualmente, arruinada.” (Id. p 82).
O que nos parece a estas considerações propostas por Balandier, é que ele quer fundamentar uma teoria natural da dinâmica social. A se guiar pelos argumentos que se sucedem no transcorrer do texto citado, podemos perceber como este pesquisador se encaminha na idéia de que os antagonismos sociais de classes, as estruturas de poder possuem sua base, em última instância, numa estrutura natural. Balandier parece evocar uma imagem universal de Homem explicitando uma dualidade sexual possuída de rivalidades, que se apresenta naturalizadas, e nesta estrutura parece está fundamentado os antagonismos que justificam, segundo ele, as relações entre estrutura, poder e cultura. Aí, a dominação social, encontra seu fundamento, sendo ele, primeiramente, sexual, geracional mas, também de classe.
Segundo Balandier (Id. p. 21), as narrativas mitológicas atribuem lugar privilegiado à relação homens/mulheres. Esta, por sua vez, se apresenta em três momentos: nas narrativas da criação, como relação primordial (ligação de engendramento); nos modelos simbólicos sexualizados como explicação da ordem do mundo, a constituição da pessoa e da civilização; e no reconhecimento do caráter problemático de toda formação social.
Em todos os relatos míticos apresentados em seu texto, ressalta-se a bipolarização sexual, sempre conflituosa e antagônica. Esse dualismo é apresentado como constituindo um modo de explicação da realidade, um modelo que rege toda forma de convívio, uma relação sempre marcada por ambivalência: “ordem” e “desordem”.
O dado geral e básico, segundo Balandier, é que o sistema simbólico, ao afirmar este antagonismo sexualizado ratifica as relações sociais como relações de incertezas, uma vez que a relação homem/mulher é reproduzida na relação exogâmica, visto que na rede de trocas matrimoniais a mulher é dada a membro de um grupo rival. Aí encontra-se a origem do sistema social, nas relações que a sexualidade estabelece como portadora de tenções e oposições, segundo aquele pesquisador. Ao expor os modelos que exprimem as possíveis ligações dos sexos, as narrativas míticas, segundo Balandier, revelam também, as possibilidades que orientam as interpretações e as realizações da unidade social.
Os modelos são: (1) fusão, representada pela figura do andrógino; (2) de complementaridade por origem comum, representado no casal de gêmeos de sexos opostos; e (3) de aliança das diferenças, representado pelo casal mítico unindo ‘homem e mulher’. O primeiro anula a diferença, o segundo afiram a unidade inicial, e o terceiro designa a unidade como criação e ordem vulnerável. Este último é efetivamente o que rege a sociedade deixando a nostalgia dos modelos anteriores, menos problemáticos, utópicos ou ideais. Este é o modelo pelo qual Balandier busca justificar as relações de poder, cultura e estrutura.
 
 
Conclusão.
 
Como pode ser visto,não é uma tarefa fácil estabelecer um diálogo entre estes três teóricos, sobretudo pelo antagonismo evidente em suas análises. Tomando o Balandier como ponto de partida, poderíamos dizer que sua tentativa de “romper” com as fronteiras, que segundo ele, foram fixadas pelas pesquisas sociais, entre cultura e natureza, é uma perspectiva que nos parece, a primeira vista, fatalista; uma vez que não oferece alternativas à superação dos antagonismos das relações de poder presentes na estrutura social.
Parecendo assim, uma visão equivocada na medida em que sob o invólucro da crítica, procura desconstruir aquelas posições que busca nas construções simbólicas e na cultura a chave para o entendimento das sociedades. Afirma Balandier, que estas realidades não diz tudo de uma sociedade, ao mesmo tempo, reivindica o “mito”, uma construção simbólica, como fundamento para a visão “naturalista” que pretende fundar, não deixando claro o seu reconhecimento dos mitos como uma construção simbólica, possuidora de base histórica e que, até certo ponto pode-se afirmar, sem correr o risco de “forçar a barra”, com um fundamento concreto, na medida em que os mitos procuram explicar um fato social concreto. Não diria que os mitos sejam ideologias, talvez abstrações com base concreta. Uma construção simbólica, portanto cultural, não destituído de uma “historicidade”, esta subjetivada. Os antagonismos sexualizados presentes nos relatos mitológicos, não seriam, deste modo, naturais. Mas culturais, portanto histórico e social.
Em sua elaboração teórica, Balandier, ao tratar da estratificação social, apresenta uma contestação às teorias que tentam uma concepção unitarista e universalista das classes. A teoria do conflito, por exemplo, cujo pano de fundo é a revolução industrial, mas foi apreendida como uma teoria unitária da estratificação.
 
Toda interpretação unitária, no estado atual do saber sociológico, corre o risco de conferir ampla validade a uma elaboração de aplicação restrita. Foi o que aconteceu desde o momento em que se admitiu o uso universal da noção de classe, quando essa noção procede essencialmente de uma interrogação da sociedade industrial e de suas recentes transformações. Nesse terreno, a atitude relativista – portanto, pluralista – permanece a única capaz de ser cientificamente fundamentada (Balandier, Op. Cit. p. 131).
 
Neste ponto, nossos autores não parecem estar tão distantes, embora diferenciem-se em alguns pontos. Bourdieu, por exemplo, ao defender a necessidade e legitimidade de se introduzir no léxico da sociologia as noções de espaço social e de campo de poder, vai dizer que isto se justifica pela necessidade de se romper com a tendência de se pensar o mundo social de maneira substancialista. “A noção de espaço contém, em si, o princípio de uma apreensão relacional do mundo social. ela afirma, de fato, que toda a ‘realidade’ que designa reside na exterioridade mútua dos elementos que a compões.” (BOURDIEU. 1996: 48).
A substancialização das categorias sociológicas, como as ‘classes sociais’ supõem uma postura teórica onde se descarta a relativização do saber construído. Para Bourdieu, não é papel das ciências sociais, por exemplo, criar classes sociais.
 
O problema da classificação, que toda a ciência enfrenta, só se coloca de modo tão dramático para as ciências do mundo social porque se trata de um problema político que, na prática, surge na lógica da luta política todas as vezes que se quer construir grupos reais, por meio da mobilização, cujo paradigma é a ambição marxista de construir pó proletariado como força histórica.” (Id. p. 49).
 
Segundo Bourdieu, a existência das classes sociais pode ser negada sem, contudo, se negar o elemento essencial do discurso que é “a diferenciação social”, que pode gerar antagonismos individuais e, às vezes, enfrentamentos coletivos entre os agentes situados em posições diferentes no espaço social.
As Ciências Sociais ao construir “espaços sociais” devem, em cada caso, “construir e descobrir o princípio de diferenciação que permite reengendrar teoricamente o espaço social empiricamente observado.” Bourdieu chama a atenção para o fato de que o “princípio da diferenciação” não possui características genéricas ou universais. “Nada permite supor que esse princípio de diferenciação seja o mesmo em todas as épocas e em todos os lugares.” Segundo Bourdieu, com exceção das sociedades menos diferenciadas, todas as sociedades se apresentam como espaços sociais, isto é, “estrutura de diferenças”, que não podemos compreender verdadeiramente a não ser construindo o princípio gerador que funda essas diferenças na objetividade. Princípio que é o da “estrutura da distribuição das formas de poder ou dos tipos de capitais eficientes no universo sociais considerado – e que variam, portanto, de acordo com os lugares e os momentos.”
Para Bourdieu, essa estrutura não é imutável e ainda,
 
a topologia que descreve um estado de posições sociais permite fundar uma análise dinâmica de conservação e da transformação da estrutura da distribuição das propriedades ativas e, assim, do espaço social global como um campo, isto é, ao mesmo tempo, como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, construindo assim para a conservação ou a transformação de sua estrutura. (Id. p. 50).
 
A noção de “campo de poder” é criada por Bourdieu para dar conta de efeitos estruturais, isto é, certas propriedades práticas, assim como representações, como a dupla ambivalência em relação ao “povo” e ao “burguês” encontrado, segundo este autor, entre escritores e artistas com posições diferentes no campo.
O “campo de poder” é o espaço de relações de forças entre diferentes tipos de capitais para poderem dominar o campo correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capitais é posto em questão. O campo de poder, por sua vez, não pode ser confundido, como afirma Bourdieu, com campo político.
Segundo ele, a dominação não é o efeito direto e simples da ação exercida por um conjunto de agentes “a classe dominante” investida de poderes de coerção, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de ações que se engendram na rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes, dominados assim pela estrutura do campo através do qual se exerce a dominação, sofre de parte de todos os outros.
Sem, contudo rotularmos, Foucault, parece-nos querer fugir a tradição estruturalista buscando na arqueologia e na genealogia dos conceitos a desmistificação dos saberes e das instituições como referências dos saberes, que no dizer de Deleuze, constitui o muro que todo saber provindo das massas necessitam romper. Para Foucault (1990: 71), os intelectuais descobriram que as massas não necessitam deles para saber;
 
elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade.
 
A cultura assim como o poder, parece dês(referenciados) e fragmentados. Eles acontecem ou são gerados nas micro-relações. O poder não é uma instância localizada nos domínios do Estado. Não está centrado aí. Estas realidades, o saber e o poder, se afirmam como acordo tácito nas relações sociais.
Sobre o papel da teoria, Foucault afirma ser ela “um instrumento de combate”. Uma espécie de discurso, ou contra-discurso, expresso contra o poder, por aqueles que são chamados delinqüentes, não sendo uma teoria da delinqüência. O discurso nesta abordagem se constitui um espaço de inversão de valores, contra toda teoria. É a possibilidade de saída aos oprimidos pela racionalidade técnica.
 
Referências Bibliográficas.
BALANDIER, Georges.(1976) Antropo-lógicas. Tradução de Oswaldo Elias Xidieh. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo.
BOURDIEU, Pierre. (1994) Esboço de uma teoria da prática. In. ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática. (coleção: Grandes Cientistas Sociais).
________________ . (1996) Razões práticas: sobre a teoria da ação. 3. ed. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas; São Paulo: Papirus.
________________. (1999) A economia das trocas simbólicas. 5. ed. Introdução e organização e seleção de Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva. (coleção Estudos).
________________ . (2003) A dominação masculina. 3. ed. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
FOUCAULT, Michel.(1989) História da loucura. 2. ed. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva. (coleção Estudos).
__________________. (1992) As palavras e as coisas. 6.ed. Tradução de Selma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes. (coleção Ensino Superior).
________________. (1979) Microfísica do Poder. 9. ed. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal.
 
[1] Filósofo e Antropólogo –  Professor Doutor, título obtido no PPGA/UFPE. Professor de Filosofia e Antropologia da Universidade de Pernambuco – FACETEG (Faculdade de Ciências, Educação e Tecnologia de Garanhuns).
[2] Id. p.64.
[3] DURKHEIM, E. L’évolution pédagogique en France. Apud. BOURDIEU. Pierre. Op. Cit. p. 66.
 Resenha do livro: Genealogia da Moral. Nietzsche, Fredrich. Col. Grandes Obras do Pensamento Universal – n°20. Ed. Escala. SP – SP.-- 
Em quais condições o homem inventou os juízos de valor expressos nas palavras bem e mal e que valor possuem tais juízos? Estimularam ou barraram o desenvolvimento até hoje? São signos de indigência, de empobrecimento, de degeneração da vida? Estas são as perguntas que norteiam todo livro deste pensador, considerado como um dos mestres das suspeitas, acompanhado por Freud e Marx. 
Todos os conceitos são construídos socialmente num processo histórico. Sendo desta forma, Nietzsche procura em quais lugares históricos do pensamento da humanidade a moral e ética nasceram. Analisa a criação de conceitos fundamentais para a eticidade atual dentro do contexto em que foram criados.
A noção de conceitos criados humanamente é já, em si mesma, uma crítica à filosofia platônico-socrática, a qual ensina que os conceitos e idéias não podem pertencer ao mundo sensível, posto que os sentidos são enganosos, e por isso ficam “flutuando” no mundo das idéias...
Nietzsche não está preocupado em descobrir se foi alguma divindade que ordenou ou não quais preceitos morais deverá seguir a humanidade, pois já chegou à conclusão de que os preceitos morais dizem respeito aos homens e mulheres apenas, logo não são transcendentes, porém, imanentes à natureza.
O livro se divide em tratados, a saber:
1. A origem de “bem e mal” e “bom e mau”;
2. Falta, má consciência e fenômenos;
3. O que significam ideais ascéticos?
Não há como negar que Nietzsche seja polêmico, dada a forma como ele escreve seus textos, que sempre estão acompanhados de uma boa “pitada” de crítica apimentada. Entretanto, não se pode desprezar o pensamento de uma pessoa só por contrariar o pensamento de uma maioria, pois nem sempre a maioria fala a verdade. Em verdade, temos grandes exemplos de grandes maiorias cometendo graves equívocos.
Escreve em forma de aforismos, que segundo o próprio Nietzsche, requer uma arte de interpretar, isto é, aforismos são pedras a serem lapidadas com calma. Para compreender bem seus aforismos é preciso ser quase vaca, é preciso ruminar.
No primeiro tratado, o filósofo separa moral em duas espécies: a moral de escravos e a moral de senhores.
Ele entende por nobre aquele em quem há uma afirmação positiva de si-mesmo, aqueles que eram os dominadores, os poderosos, os senhores; nobre é aquele que age positivamente na construção de seu si-mesmo por meio de si-mesmo. Difere-se do ressentido na medida em que para sentir-se feliz e bom precisa partir de si mesmo para tal, não de outrem.
O ressentido, por sua vez, é aquele que para construir sua felicidade, precisa comparar-se a um outro que lhe é diferente, um não-mesmo (um que não seja si-mesmo); este outro a quem se compara lhe é superior. Desta comparação nasce a inversão de valor “bom” e “mau”: “Bom sou eu, que sou inferior ao nobre (aquele que age) e mau é o nobre que, por ser superior a mim, me inferioriza”. Note-se que o ressentido sofre nesta comparação que ele mesmo faz, sente-se retraído, ofende-se. Ao comparar-se culpa o nobre (que lhe é superior) como causador de sua inferioridade. O ressentido, portanto, é aquele que sofre uma ação, e apenas por meio desta ação sofrida é que age, isto é, reage.
Essa moral ressentida é a moral de escravos que cria valores negativos em relação ao outro e ao próprio sujeito ressentido.
O sim que o nobre diz, diz a si-mesmo; o não que o fraco (ressentido) diz, não diz a si-mesmo, mas a um que não é si-mesmo, a um não-mesmo, negativiza o superior e o diferente de si. É exatamente sob este aspecto que surge o niilismo, que nada mais é do que todo este processo do ressentimento em negar, em dizer não à vida, à vontade de potência que é inerente à vida e à natureza.
No segundo tratado, o autor descreve a origem da má consciência, que é exposta como os instintos reprimidos que não se exteriorizaram e então se voltam para dentro, contra o homem mesmo que possui esses instintos; e da noção de dívida, proveniente das relações entre credor e devedor, é que surge a idéia de culpa.
No último tratado, sobre o ideal ascético, o filósofo batalha contra os negadores compulsivos, ou seja, aqueles que negam a vida, a natureza, os princípios básicos de vida.
Para resumir de forma simples, porém, contundente o que significam os ideais ascéticos para este homem, que eu considero, um dos mais ousados filósofos, podemos usar uma frase do próprio livro:
“O ideal ascético tem sua origem no instinto de proteção e de salvação própria a uma vida em degenerescência.” 
Há muito o que se aprofundar nesta pequena frase e podemos seguir os mesmos caminhos de Nietzsche para entende-la.
O ideal ascético professa, direta ou indiretamente (mais indiretamente do que diretamente – os leitores de Nietzsche entenderão bem se eu falar em becos, valados e lugares escuros), que a vida não é um fim em si mesmo, porém apenas um meio para se chegar a uma outra vida que estaria no além. Explicando de outra forma, a vida é enxergada como uma ponte, um teste, uma passagem... A vida ascética é vida post-mortem.
Nas palavras de Friedrich:
“Um modo monstruoso de apreciar a vida não é um caso excepcional na história humana; constitui um dos estados, de fato, dos mais gerais e mais duradouros”. 
Este ideal, portanto, foi visto pela sociedade como o único ideal possível de ser vivido. Não houve nenhum outro ideal que lhe servisse de oposição (pelo menos os que tentaram não conseguiram).
Nietzsche também critica os cientistas modernos como aqueles que possuem em seu interior a força propulsora do ideal ascético, pois acreditam ainda na existência da verdade, são seus defensores.
A gênese do ideal ascético se encontra justamente no ponto em que o homem sentiu necessidade de dar sentido para o sofrimento, como vemos:
“O homem, o animal mais corajoso e mais acostumado ao sofrimento não diz não ao sofrimento em si; ele quer, ele até o procura, supondo que lhe seja indicado, um sentido de que seja portador, um para além do sofrimento. É o vazio de sentido do sofrimento, não o sofrimento, que constituía a maldição que pesava sobre a humanidade até hoje – e o ideal ascético lhe oferecia um sentido!” 
Traduzamos isso: Contra a falta de sentido, contra a falta de certeza, contra a natureza da mudança, presente na vida, nasce o asceticismo, dando um sentido ao “por quê” do sofrimento, retirando do homem o perigo do niilismo. Entretanto, as conseqüências são bem piores do que se imaginava, criou-seum homem ressentido em relação à vida... Poderia parecer melo-dramático, mas podemos usar até a palavra mágoa neste contexto. Esta mágoa, porém, é reativa, pois se trata de estar magoado profundamente com a vida, de tal maneira que a ação do homem agora converge para nega-la, e, tendo reagido assim, construir todo um ideal pós-morte, onde exista uma outra vida, mais digna, mais aceitável e sem... Sofrimento!
Concluindo a resenha, sinto necessidade de acender uma lamparina nesta escuridão e trazer para mim os olhares de todos os que criticam Nietzsche (os que leram comentários sobre ele e não suas obras mesmo). Por meio do perspectivismo proposto pelo autor, devemos levar em consideração todos os pontos de vista... Entretanto, quais seriam os pontos de vista mais aceitáveis? Respondo: Aqueles que não denigrem, nem pretendem destruir a beleza da natureza e da vida no aqui e no agora! 
Foucault e a violência
Eduardo Sugizaki*
Violência não é um conceito próprio da filosofia de Foucault. Não é a violência que estrutura o trabalho histórico, por exemplo, sobre o suplício e a prisão, sobre o tratamento dos loucos ou sobre a medicina social. De alguma forma, entretanto, as histórias de Foucault ensinam algo fundamental sobre a violência. A tensão entre essas duas perspectivas mobiliza a reflexão que se segue. Afinal, por qual razão as histórias de Foucault, sem se deixar conduzir por um tema como o da violência, acabam por jogar-lhe luz? 
1. A violência não é um ponto de partida das análises do poder
Entre os não freqüentes aparecimentos da palavra ‘violência’, algo importante sobre o tema aparece no artigo O sujeito e o poder, escrito na década de 1980, os últimos anos da produção do filósofo francês. Esse texto localiza a questão da violência em relação à análise do poder, torna explícito que tipo de poder está em questão na análise genealógica e esclarece que não se trata de pensar o poder como capacidade ou aptidão inscrita no corpo e também não se trata de entender o poder como algo que pudesse ser concentrado, acumulado ou distribuído. Nada de um poder substantivo. O poder é pensado como relação (Foucault, 1995, p. 240-2). 
Essa tentativa de pensar o poder não como substância, mas como relação, vincula a idéia de que os sujeitos das relações de poder também não podem ser pensados de forma substantiva. Isso significa que eles, além de não serem repositórios de poder, não são o fundamento do poder. As afirmações de Foucault (1995, p. 243) a seguir devem ser compreendidas dentro dessa perspectiva de uma análise não-metafísica dos sujeitos em relação. 
[...] o poder não é da ordem do consentimento; ele não é, em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de cada um delegado a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser o efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a manifestação de um consenso. 
Percebe-se que há uma questão de ordem ontológica. Foucault quer analisar um poder que não é de natureza mecânica. Ou melhor, ele não quer fazer uma análise mecanicista do poder. Não se trata de pensar a natureza do poder como uma aptidão para manejar o gládio que se declina aos pés do soberano, nem como uma transferência desse poder que se renuncia. Não se trata também de levar adiante esse tipo de análise transferencial, pela qual o soberano, uma vez detentor de todo o poder a que se renunciou em seu favor, distribui aquilo de que ele é a plenitude, conformando as instituições de direito do Estado. Essa é uma análise mecânica do poder porque ela se prende aos elementos substantivos (o súdito, a espada, o soberano, as instituições da soberania) e à compreensão do próprio poder como uma coisa acumulável e transferível (Foucault, 2000, p. 202-14). A análise de Foucault está centrada na relação. Relação não é substância, mas também não se trata de analisar a relação entre entidades substantivas. Nada precede a relação de poder, não há sujeito prévio como não há poder anterior à relação¹. 
Dito isso, uma questão apresenta-se: se o poder não é uma substância e não se funda no consentimento, ele não seria pura violência? Eis os termos pelos quais o próprio Foucault (1995, p. 243) coloca o problema: “é necessário buscar o caráter próprio às relações de poder do lado de uma violência que seria sua forma primitiva, o segredo permanente e o último recurso – aquilo que aparece em última instância como sua verdade, quando coagido a tirar a máscara e a se mostrar qual é?” A resposta que ele dá é negativa. Mas ela não deveria ser positiva? Afinal, não é da natureza da violência ser relacional, a mais extrema relação de poder? Para Foucault (1995, p. 243), não, pela razão a seguir. 
Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la.
Essa compreensão torna clara a razão pela qual a violência não pode ser um ponto de partida nas análises de Foucault. Ele entende a violência como uma ação mecânica e não como uma relação de poder, já que há apenas um pólo ativo e o outro resta passivo. Seguindo esse entendimento, fazer da violência a forma fundante do poder iria remeter a análise, mais uma vez, a uma compreensão substantiva dele, já que a vítima da violência, como pólo passivo, é reduzida a um corpo mecânico e a ação do pólo ativo é também uma ação mecânica. 
É verdade que nós utilizamos freqüentemente a adjetivação de algo como violento de uma forma bem menos específica e técnica. Falamos, por exemplo, na violência de um olhar punitivo. Falamos em formas sutis e disfarçadas de violência, nas quais não há ação mecânica, mas psicológica. Porém, o uso que Foucault faz da palavra violência é apropriado. Ele não faz da violência um conceito próprio de sua filosofia, mas preserva um uso técnico e preciso do vocábulo, um uso dicionarizado. Em Émile Littré, por exemplo, violence vem sempre vinculada ao uso constringente da força. Nessa mesma direção, o Dizionario di politica oferece a seguinte definição do verbete ‘Violência’. 
Por Violência entende-se a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo). Para que haja Violência é preciso que a intervenção física seja voluntária: o motorista implicado num acidente de trânsito não exerce a Violência contra as pessoas que ficaram feridas, enquanto exerce Violência quem atropela intencionalmente uma pessoa odiada. Além disso, a intervenção física, na qual a Violência consiste, tem por finalidade destruir, ofender e coagir. É Violência a intervenção do torturador que mutila sua vítima; não é Violência a operação do cirurgião que busca salvar a vida de seu paciente. Exerce Violência quem tortura, fere ou mata; quem, não obstante a resistência, imobiliza ou manipula o corpo de outro; quem impede materialmente outro de cumprir determinada ação (Stoppino, 1992, p. 1291).
Também em Stoppino, como se vê, a violência implica um pólo passivo, a vítima. Ora, a análise do poder proposta por Foucault dirige-se às relações entre pólos ativos. Esses pólos, como já vimos, não devem ser pensados como potências prévias ou como repositórios de poder, na anterioridade da relação. Para satisfazer esses pré-requisitos de ordem ontológica, Foucault (1995, p. 243) propõe a análise de uma relação de poder que, como modo de ação, não age direta e imediatamente sobre corpos, mas age sobre a ação. Isso não significa que a relação de poder entre pólos ativos não deixe marcas nos corpos, mas que a análise não está focada sobre a coação direta e mecânica de um corpo sobre outro. 
Também não se trata de negar que o funcionamento do poder implique o uso da violência e a aquisição dos consentimentos. Um e outro sãoinstrumentos ou efeitos das relações de poder, mas, para Foucault, apenas no limite o funcionamento do poder coage ou impede absolutamente. Nesse limite extremo, há uma ação sobre um corpo e não mais ação sobre ação. Mas esse limite extremo é já externo à relação de poder e recebe o nome de violência (Foucault, 1995, p. 243). 
Por pensar uma análise das relações de poder focada nas ações sobre ações, Foucault escreveu histórias das conduções das condutas. Porém, condutas só podem ser conduzidas se há um certo campo de possibilidades, em que diversas condutas, diversas reações, diversos modos de comportamentos possam ocorrer e apenas no limite e como saturação é que a coerção pura e simples da violência aparece e encerra o jogo da relação de poder (Foucault, 1995, p. 244). 
O lugar da violência ficou, com o que foi dito, cercado por uma delimitação técnica bem precisa. Não se deve, entretanto, precipitar a conclusão de que essa exterioridade da violência no modo de analisar as relações de poder seja um convite à simples desclassificação filosófica de um tema. 
2. A violência no pensamento exterior
É bem conhecida aquela memorável página de Vigiar e punir que recobra com uma sutileza ímpar o cerimonial moderno da execução da pena capital. Num tempo que é o nosso, no qual governar é fazer viver (Foucault, 1993, p. 131; 2000, p. 287), “um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores” (Foucault, 1987, p. 16). Todos esses técnicos estão aí como que a velar a essência da soberania, o poder de fazer morrer (Foucault, 2000, p. 286-7), mas o destaque sobre o papel do médico é instigante, considerando a relação privilegiada com a vida que esse saber adquiriu em nossa modernidade. 
[...] um médico hoje deve cuidar dos condenados à morte até ao último instante – justapondo-se destarte como chefe do bem-estar, como agente do não-sofrimento, aos funcionários que, por sua vez, estão encarregados de eliminar a vida. Ao se aproximar o momento da execução, aplicam-se aos pacientes injeções de tranqüilizantes... (Foucault, 1987, p. 16-7).
Nesse trecho, como em quase toda a obra desse filósofo, a palavra violência não comparece e não dirige a análise. Mas no trecho citado, como nas histórias da medicina do mesmo autor, especialmente da medicina social e da psiquiatria, a ação coercitiva do poder exerce-se como governo da vida. Mas esse governo da vida, entretanto, ainda também é o velho poder soberano de dispor da vida, ou seja, de matar. Sem se deixar guiar pelo tema da violência, as análises de Foucault atingem os procedimentos de purificação biológica e médica da raça (veja-se a última parte de A vontade de saber) e à medicina do trabalho, que circunscreve o espaço dos corpos na cidade, o espaço dos pobres para proteger da doença o espaço dos ricos (veja-se a conferência O nascimento da medicina social). 
Precisamos de uma chave para compreender esse modo paradoxal com que a filosofia de Foucault tangencia a violência e permanece exterior a ela, em uma forma de exterioridade do pensamento no qual não há nenhuma conquista laboriosa de uma unidade, mas uma erosão do exterior – para dizer dessa filosofia algo semelhante ao que La pensé du dehors atribui aos poderes da linguagam, na modernidade (Foucault, 2001, p. 225). Essa chave de leitura nos foi dada pelo próprio Foucault em uma famosa e tensa entrevista televisionada com N. Chomsky. Questionado sobre o caráter democrático de nossas sociedades contemporâneas, Foucault (1994a, p. 496) responde: 
Parece-me que, em uma sociedade como a nossa, a verdadeira tarefa política é a de criticar o jogo das instituições aparentemente neutras e independentes; a de criticá-las e a de atacá-las de tal maneira que a violência política que se exercia obscuramente nelas seja desmascarada e que se possa lutar contra elas. 
Dessa forma, a violência é o que a obra faz aparecer, mas não por um apontamento do que é óbvio. Trata-se de desmascarar o que se exerce obscuramente, por exemplo, na pedagogia da correção presidiária, nas terapias psiquiátricas e em outras formas de disciplina dos corpos recobertas pela boa consciência humanitária. O pensamento, nesse caso, opera mais o desmascaramento do que a invenção de conceitos. Daí que não se trata de inventar um novo conceito de violência, nem guindar esse conceito à condição de filosófico. 
Ora, como a tarefa de desmascaramento da violência pode ser levada a termo se a análise está centrada nas relações de poder, ou seja, na história das conduções das condutas ou das ações sobre ações, onde a coação permanece exterior? Como desmascarar a violência se ela não se confunde com as relações de poder de que o filósofo, de fato, se ocupa? O procedimento adotado pela pesquisa de Foucault foi procurar encontrar, nas relações de poder, a lógica e a racionalidade que programa e orienta a conduta humana, perpassa e atravessa as instituições e relações políticas e estruturam o funcionamento do poder, inclusive quando ele coage e impede absolutamente, em seu limite extremo. Isso é o que se aprende nesta outra entrevista de Foucault (1994b, p. 803): 
Há uma racionalidade mesmo nas formas as mais violentas. O mais perigoso, na violência, é sua racionalidade. Seguramente, a violência é, nela mesma, terrível. Mas a violência encontra sua ancoragem a mais profunda e tira sua permanência da forma de racionalidade que nós utilizamos. Pretendeu-se que, se nós vivemos em um mundo de razão, nós podemos nos desembaraçar da violência. Isso é totalmente falso. Entre a violência e a racionalidade não há incompatibilidade. Meu problema não é de fazer o processo da razão, mas de determinar a natureza dessa racionalidade que é tão compatível com a violência. 
Para determinar a natureza da nossa racionalidade, Foucault optou por fazer sua história. Deve-se perseguir o fio dessa racionalidade também lá onde as relações de poder são supressas e dão lugar à violência, já que a racionalidade desta não é incompatível com a lógica daquelas. Ao fazê-lo, acaba-se por se desmascarar a violência obscura, que permanecia protegida da suspeita pela própria racionalidade que a governa, pois a razão, nossa modernidade a crê incompatível com a violência. 
3. O tratamento psiquiátrico de Dupré, a título de exemplo
Para exemplificar esse modo de operar das análises de Foucault, podemos tomar, entre inúmeras possibilidades, o tratamento do paciente psiquiátrico Dupré, que foi explorado por Foucault, no curso de 1973-1974, no Collège de France. A documentação desse tratamento foi escolhida por ele para caracterizar a história da psiquiatria européia entre 1840 e 1870, em função da qualidade documental. O médico de Dupré, François Leuret, legou um amplo e detalhado relato de seus métodos e estilo terapêutico. Trata-se de um discurso explícito quanto aos traços do tratamento moral, que domina a psiquiatria essencialmente asilar desse período. 
A violência desponta no relato do caso Dupré, sobretudo, em duas manobras da terapêutica de Leuret. A primeira é o uso de calomel, com seu efeito diarréico, para quebrar a empáfia de Dupré perante o médico. A segunda, mais constante e extensiva a todo tratamento, é a ducha fria em banhos compulsórios e goela abaixo. 
Ora, esses e outros expedientes violentos não são o foco da análise de Foucault. Se eles fossem apagados ou se, por alguma razão, a base documental (o texto de Leuret) não os tivesse preservado, a história escrita por Foucault continuaria, essencialmente, inteira. Isso porque o que importa em todas as manobras realizadas por Leuret é que elas respondem por uma lógica e por uma racionalidade ancoradas no entendimento da loucura como erro. O erro que esconde o segredo de toda loucura é que o louco crê-se rei (Foucault, 2003, p. 29). 
Toda a lógica asilar e toda a racionalidade terapêutica serão, então, ordenadas a fazer o louco confessar que não é soberano sobre osoutros e sobre os dados sensíveis da realidade, que ele teima em falsear. Vergar essa pretensão régia é a lógica da terapia. É pelo sucesso desse empreendimento que se erige o sistema asilar: aparta-se o paciente daqueles que aceitam realizar seus caprichos; faz-se do louco o último degrau da hierarquia asilar, cujo soberano é o médico; submete-se o interno à necessidade permanente do trabalho como único meio de preservar a própria vida sempre cativa do limiar da fome. Transformado em homem carente, o louco é posto numa condição desequilibrada de poder diante do aparato psiquiátrico, na contra-mão de suas pretensões régias. Quanto a Dupré, ele acredita ser Napoleão. 
Os confrontos entre Leuret e Dupré, também aqueles em que os expedientes violentos são utilizados, visam sempre fazer com que esse louco desenvolva uma conduta normal, ou seja, aquela que reconhece a soberania do médico e a soberania do mundo sobre Dupré. Isso significa que o interno deve reconhecer a necessidade do trabalho para obter dinheiro, a necessidade de dizer a verdade para adequar-se ao universo intercomunicativo das pessoas; a necessidade dos outros para se obter os meios de sobrevivência. Se o tratamento de Dupré faz recurso também a formas violentas, essas respondem pela mesma lógica que governa o tratamento como um todo. Trata-se de desenvolver em Dupré a conduta do bom súdito e demovê-lo de sua pretensa soberania. Não importa se, mesmo ao confessar a soberania do médico e de suas verdades, Dupré continue a acreditar, de si para si mesmo, que, verdadeiramente, ele é Napoleão e seu médico, uma mulherzinha disfarçada. 
Percebe-se claramente como Foucault percorre o fio de uma racionalidade que atravessa todos os procedimentos de condução da conduta e que perpassa também as manobras coativas. Sem tomar a violência como eixo, a racionalidade dela acaba sendo desmascarada pela análise das relações de poder explicitadas num texto do saber psiquiátrico. 
4. Para concluir
Num texto dedicado à apresentação da filosofia de Canguilhem, Foucault propõe uma larga visão da filosofia francesa do século XX. Essa visão é útil para situarmos no mesmo pano de fundo o que aqui foi apresentado da filosofia do próprio Foucault. Ele divide a história recente da filosofia francesa em duas tradições derivadas de duas leituras das Meditações cartesianas de Husserl. Na primeira linhagem, representada por Sartre e Merleau-Ponty, Foucault vê uma filosofia da experiência, do sentido e do sujeito. 
Na segunda linhagem, uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito teria sido representada por Cavaillès, Bachelard, Koyré e Canguilhem. Especificamente sobre a obra de Canguilhem, Foucault diz que ela é propositalmente austera, bem delimitada, cuidadosamente voltada a um domínio particular na história das ciências e, por isso, ela não se prestou a grandes espetáculos. Não só Canguilhem, mas toda a segunda linhagem teria sido mais teórica, mais regrada sobre tarefas especulativas. Uma linhagem distante também das interrogações políticas imediatas. No entanto, fazendo referência à história dos eventos ligados à última linhagem, Foucault (1994c, p. 765) lembra que foi ela que, 
durante a guerra, tomou o partido e de modo muito direto do combate, como se a questão do fundamento da racionalidade não pudesse ser dissociada da interrogação sobre as condições atuais de sua existência. Foi ela [a segunda linhagem] também que jogou, no curso dos anos sessenta, um papel decisivo em uma crise que não era simplesmente aquela da Universidade, mas aquela do estatuto e do papel do saber. 
Qual seria a razão desse paradoxo entre o que é mais restritamente teórico e a tomada de partido pelo combate? A resposta de Foucault é que a segunda linhagem, em sua pergunta pelo fundamento da racionalidade, permaneceu profundamente ligada ao presente e, dessa forma, ligada a algo anterior a Husserl. Essa interrogação essencial pela racionalidade do presente teria sido inaugurada por Kant, em seu pequeno artigo Was ist Aufklärung?, escrito para um periódico alemão, em dezembro de 1784 (Foucault, 1994c, p. 765-6). 
O presente trabalho procurou mostrar que é pela interrogação sobre a racionalidade que atravessa as relações de poder que Foucault espera chegar à racionalidade daquilo que considera exterior às relações de poder e se instala como pura coação. Com isso, justifica-se a sugestão de que a filosofia de Foucault possa ser alojada naquilo que ele classificou como a segunda linhagem da filosofia francesa contemporânea. No lugar de interrogações políticas imediatas sobre, por exemplo, a violência do nosso presente, Foucault segue o caminho mais longo e especulativo, aquele da interrogação histórica pelo fundamento da racionalidade. Esse é o fio que conduz o trabalho filosófico de Foucault e guia o desmascaramento da racionalidade da violência escamoteada, aceita sem a barreira do intolerável. Esse mesmo fio é o que liga o trabalho do filósofo francês à atualidade da nossa existência, ao mesmo tempo em que a uma tradição filosófica, que já é centenária. 
Entretanto, não nos enganemos, esse caminho filosófico pode levar, sempre que o momento o exigir, à tomada de partido pelo combate, pois ele nos faz ouvir “nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de poder [...] o ronco surdo da batalha” (Foucault, 1987, p. 269). (julho/2008)
Eduardo Sugizaki é doutorando em História pela Unversidade Federal de Goiás e mestre em Filosofia pela mesma instituição. Participou desta pesquisa, como orientando de Iniciação Científica, Mário Fabrício Fleury Rosa, Licenciando em História pela Universidade Católica de Goiás. 
Notas
(1)Essa perspectiva de leitura da compreensão de poder em Foucault deve ser remetida a Chaves, 1988. Para esse autor, a compreensão de poder em Foucault deve ser remetida ao perspectivismo das forças, em Nietzsche. A propósito disso, a obra clássica é a de Deleuze (1962). Ver também o modo como Onate (2000) destaca o conceito de relação, central para um entendimento não-metafísico da filosofia do poder de Nietzsche. 
Agradecimento
Agradeço à professora Carmelita Brito de Freitas Felício as discussões que tivemos sobre esse tema. Devo a ela algumas sugestões que foram incorporadas ao presente texto.
Referências bibliográficas
CHAVES, Ernani. Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. 
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962. 
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. 5ª. ed. Tradução Ligia M. Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987. 
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1993. 
FOUCAULT, Michel. De la nature humaine: justice contre pouvoir. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994a, p. 471-512. (Vol. II). 
FOUCAULT, Michel. Foucault étudie la raison d’État. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994b, p. 801-5. (Vol. III). 
FOUCAULT, Michel. La vie: l’expérience et la science. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994c, p. 763-76 (Vol. IV). 
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L. e RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249. 
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Col. Ditos & escritos, III). 
FOUCAULT, Michel. Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France. 1973-1974. Paris: Gallimard, Seuil, 2003. 
ONATE, Alberto Marcos. O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafísica. São Paulo: Discurso Editorial, 2000. 
STOPPINO, Mario. Violência (verbete). In: BOBBIO, Norberto e outros. Dicionário de política. TraduçãoCarmen C. Varriallle e outros. Brasília: Edunb, 1992, p. 1291-98. (Vol. 2).
MICHEL FOUCAULT E A “MICROFÍSICA DO PODER”
 
 
          A seguir, o resumo do conteúdo de uma de suas obras: “Microfísica do Poder”.
 
1.      O poder
 
           O poder deve ser analisado como algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em rede. Os indivíduos, em suas malhas, exercem o poder e sofrem sua ação. Cada um de nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder.
           Os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo Estado; não são necessariamente criados pelo Estado. (Poderes periféricos e moleculares: poder exercido por indivíduos, grupos, empresas, cientistas, comunicadores, etc...). Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado.
           É preciso dar conta deste nível molecular de exercício do poder sem partir do centro para a periferia, do macro para o micro.
 
1.1. Relações de poder
 
         Os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos (tecnologia do corpo, olhar, disciplina) que nada ou ninguém escapa.
         O poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. 
          O poder não é substancialmente identificado com um indivíduo que o possuiria; ele torna-se uma maquinaria de que ninguém é titular. Logicamente nesta máquina ninguém ocupa o mesmo lugar; alguns lugares são preponderantes e permitem produzir efeitos de supremacia. De modo que eles, podem assegurar uma dominação de classe, na medida em que dissociam o poder do domínio individual.
 
1.2 O poder exercido como disputa e luta
          Onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social.
          A guerra é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa. Nessa disputa ou se ganha ou se perde.
 
1.3 Concepções negativas e positiva do poder
 
         Concepção negativa do poder: vinculado ao Estado como aparelho repressivo que castiga para dominar.
         Concepção positiva do poder: direciona a vontade para a satisfação de desejos e prazeres. O capitalismo não se manteria se fosse exclusivamente baseada na repressão. 
 
1.4 Objeto do poder: o corpo
 
         O poder atinge a realidade concreta dos indivíduos: o corpo.
         Os procedimentos técnicos do poder sobre o corpo são: controle detalhado e minucioso de gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos. 
         É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, ele reprime, ele recalca, ele censura, etc. O poder, em sua positividade, tem como alvo o corpo humano não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. 
         O corpo só se torna força de trabalho quando trabalhado pelo sistema político de dominação característico do poder disciplinar.
 
2.      A disciplina
 
         A disciplina visa gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. 
         Objetivo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente.
 
2.1    As quatro fases da disciplina
 
a)      Organização do espaço: é uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. Isola em um espaço fechado, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo específico que dele se exige.
b)      Controle do tempo: estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia.
c)      Vigilância: é um de seus principais instrumentos de controle; o olhar que observa para controlar.
d)      Registro contínuo de conhecimento: anota e transfere informações, - à partir de observações sobre os indivíduos em suas atitudes, ações, falas, etc, - para os pontos mais altos da hierarquia do poder. Nenhum detalhe, acontecimento ou elemento disciplinar escapa a esse saber.
 
3.      O olho do poder
 
          A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide (hierarquia) de olhares.
          É assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção do general-chefe até o ínfimo soldado, como também os sistemas de inspeção, revista, paradas, desfiles, etc., que permitem que cada indivíduo seja observando permanentemente.
 
4.      A construção da verdade pelo poder
 
4.1 O poder é produtor de individualização
 
          O poder disciplinar não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica. O indivíduo não é outro do poder, realidade exterior, que é por ele anulado; é um de seus mais importantes efeitos.
          A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso (fala), com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que apareça o homem individualizado como produção do poder e objeto de saber das ciências humanas.
          O poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber. Não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder.
 
           4.2 Exemplos concretos
 
a)      Século XVIII → nasce a prisão – isolamento celular – total ou parcial.
b)      Hospício → produz o louco como doente mental, personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares de poder.
c)      Século XIX → organização de paróquias → institucionaliza o exame de consciência e da direção espiritual e a reorganização do sacramento da confissão, desde o século XVI, aparecem como importantes dispositivos de individualização.
 
            4.3 A verdade sobre o indivíduo produzido pelo poder
 
            A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. Para individualizar a pessoa, utiliza-se do exame, que é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los para utilizá-los ao máximo.
          Tudo o que se refere à própria pessoa é a hierarquia do poder que constrói a verdade sobre o indivíduo, o qual não tem participação na construção da verdade sobre si mesmo. Jamais é consultado, interrogado para dizer sobre si mesmo.
           Às portas fechadas, entre quatro paredes, aqueles que detêm o poder definem quem é o indivíduo através de julgamentos, classificações, medições a fim de individualizá-lo e assim direcionar sua convicção mental a realizar ações, assumir atitudes e padrões mentais de pensamentos para que

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