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DODDS, E.R. Os Gregos e o Irracional

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OS GREGOS 
E O IRRACIONAL
§
escuta
Oi $re$oi e o irracional foi pu­
blicado pela Califórnia University 
Press, em 19 5 0 e, a partir daí, se 
tornou um texto helenista clássi­
co de grande im portância não só 
para os e s tud iosos da Grécia 
Antiga, m as tam bém para todo 
aquele que se in te re ssa pelos 
m is té r ios da alma (patine) do 
humano.
Os gregos eram realm ente 
tão cegos assim para a importân­
cia de fatores não racionais na 
experiência e no comportamento 
hum anos, como adm item nor­
malmente tanto seus defensores 
quan to seu s críticos? Eis a 
questão a p a r t ir da qual este 
livro foi desenvolvido. Aquilo a 
que se propõe é lançar luz sobre
o problema, através de um reexa- 
me de certos aspectos relevantes 
da experiência religiosa grega 
apresentando os fatos em termos 
inteligíveis ao não especialista.
No primeiro capítulo discute 
a in te rp re tação hom érica dos 
elementos irracionais presentes 
no com portam en to humano, 
entendidos como “in tervenção 
psíquica” — um a interferência na 
vida humana por meio de agentes 
não hum anos que in troduzem 
algo no homem e, deste modo, 
influenciam seu pensam ento e 
conduta. No segundo, t r a ta de 
a lg u m as das novas formas 
a ssu m id a s por e ssa s m esm as 
idéias homéricas ao longo da era 
arcaica, utilizando as expressões 
“cultura da vergonha" e “cultura 
da culpa" como ró tu los para 
descrever as duas a titudes em
OS GREGOS 
E O I R R A C I O N A L
~ |E.R. D o d d s
T r a d u ç ã o d e 
P a u l o D o m e n e c h O n e t o
d >
escuta
© by Editora Es tula para edição em língua portuguesa
Titulo original: The Greeks and lhe Irrational '
University o f California Press 
Ia edição: junho de 2002
E d it o k íís 
Manoel Tosta Berlinde 
Maria Cristina Rios Magalhães
Capa
Daniel Trench e Renato Almeida Prado, a partir de Torse d'hom m e, 440 a.C. 
(do acervo do Museu do Louvre}
Produção Editor ¡al 
Araide Sanches
Catalogação na Fonte do Dcpto. Nacional do Livro
D642g Dodds, E.R.
Os gregos e o irracional / E.R. Dodds: tradução de Paulo 
Dom enech Oneío - São Paulo : Escuta, 2002.
336 p. ; 14x21 cm.
ISBN 85-7137-199-7
1. Psicanálise. 2. Gregos. 1. O neto, Paulo Domenech
C D D -150.195
Editora Escuta Llda.
Rua Dr. Homem de M ello, 351 
05007-001 São Paulo, SP 
Telefax: ( 11 ) 3865-8950 / 3 6 7 5 -1190 / 3672-8345 
e-mail: escula@ uol.com .hr
S u m á r io
Prefácio ...........................................................................................................5
I A apologia de A gam enón...................................................................9
II Da cultura da vergonha à cultura da c u lp a .................................. 35
III As bênçãos da lo ucu ra ..................................................................... 7 ¡
IV Padrão de sonhos e padrão de c u l tu ra ..................................... 107
V Os xamãs gregos c a origem do puritan ism o.......................... 139
VI Racionalismo e reação na Idade C láss ica ................................ 181
VII Platão, a alma irracional e a “herança conglomerada” ........ 209
VIII O medo da l iberdade.................................................................... 237
Apêndice I: M enadism o........................................................................271
Apêndice II: Teurgia.................. ........................................................ 285
índice remissivo.....................................................................................^ 3 1 5
P r e f á c i o
/T ^ lc livro e baseado em uma série de conferências que tive
X—j a honra de proferir em Berkeley, no oulono de 1949. Elas 
se encontram aqui reproduzidas substancialmente como foram com­
postas, embora de uma forma ligeiramente mais satisfatória do que 
aquela na qual foram apresentadas. Meu público original incluía mui­
tos a n t ro p ó lo g o s c d iv e r so s e s tu d io s o s que não p o s su ía m 
conhecimento especializado a respeito da antiga Grccia, e minha es­
perança é de que, no formato atual, tais lições possam interessar a 
um grupo semelhante de leitores. Para tanto, todas as citações gre­
gas fo ram v i r tu a lm e n te t r a d u z id a s , e p rocu re i o p e ra r um a 
translileração dos mais importantes termos gregos sem equivalente 
na língua inglesa. Abstive-me ainda, tanto quanto possível, de sobre­
carregar o texto com argumentos controversos sobre detalhes, o que 
poderia significar pouco para leitores não familiarizados com os pon­
tos de controvérsia. Também procurei não complicar o tema principal 
com uma investigação em torno de questões paralelas, o que parece 
ser uma tentação para o pesquisador profissional. Uma seleção des­
ses assuntos pode ser encontrada nas notas de pé de página, nas quais 
indico, de maneira breve, os fundamentos das idéias que tento pro­
por - sempre que possível através de uma referência a fontes antigas 
ou discussões modernas e, quando necessário, por meio de argumen­
tação detalhada.
Ao leitor sem formação clássica, cabe-me advertir para que não 
trate o livro como uma história da religião grega, ou mesmo como 
uma história de suas idéias e sentimentos religiosos. Caso contrário 
ele estará cometendo um grave equívoco. A obra é um estudo das 
sucessivas interpretações que as mentes gregas deram a um tipo par-
6 Os GRHCiOS E O IRRACIONAL
ticular de experiencia humana - urna experiencia pela qua! o racio­
nalismo do século XIX se interessou pouco, mas cujo significado 
cultural c em nossos dias amplamente reconhecido. Os fatos aqui tra­
zidos à luz ilustram um importante, e de certo modo desconhecido, 
aspecto do mundo mental da Grécia antiga. Mas um aspecto não deve 
ser confundido com o todo.
Aos meus colegas de profissão eu talvez deva alguma satisfa­
ção pelo uso que fiz, cm vários momentos, de teorias e trabalhos dc 
psicologia e antropologia. Em um mundo de especialistas, sei que 
tais empréstimos vindos de outras disciplinas são geralmente recebi­
dos com apreensão e desagrado. Sei que os entendidos no assunto 
me lembrarão, em primeiro lugar, que “os gregos não eram selva­
gens” ; e em segundo que neste, até certo ponto, novo campo de 
estudos, as verdades aceitas hoje podem se tomar erros a serem des­
cartados amanhã. Ambas as afirmações são corretas. Porem, em 
resposta à primeira delas, basta talvez citar a opinião de Lévy-Bruhl 
de que “em todo espírito humano, qua lquer que seja seu desenvol­
vimento intelectual, subsiste um fundo inextirpável de mentalidade 
primitiva". Ou ainda, no caso de antropólogos sem formação clássi­
ca serem considerados suspeitos, resta a opinião do professor Nilsson 
de que o termo “mentalidade primitiva e uma fiel descrição do com­
portamento da maior parte da população de hoje em dia, exceto em 
atividades técnicas e conscientemente intelectuais.” Por que então 
deveríamos atribuir uma espécie de imunidade aos gregos amigos com 
relação a tais modos “primitivos” de pensamento?
Quanto ao segundo ponto, cabe dizer que muitas das teorias às 
quais me refiro são assumidamente provisórias e incertas. Mas se es­
tamos tentando atingir alguma compreensão das mentes gregas - sem 
nos contentarmos em descrever seu comportamento aparente ou em 
traçar uma lista dc suas “crenças” - devemos utilizar toda a luz dis­
ponível. E uma luz incerta é melhor do que nenhuma. O animismo 
de Tylor, o “mágico-vegetativo” de Mannhardl, os “espíritos anuais” 
de Frazer, os “mana” de Codrington, todos serviram em seus dias para 
iluminar pontos obscuros de Leoria. É certo que eles também estimu­
laram muitas considerações apressadas. Mas podemos confiar no 
tempo e nos críticos para lidar com tais considerações - a luz per­
manece. E se vejo aqui uma boa razãopara ser cuidadoso ao aplicar 
aos gregos generalizações baseadas em fatos não gregos, nada vejo
PRBFÁCII) 7
que me leve a isolar o estudo da Grecia do resto. Beni menos passí­
vel de justificação é o fato de que alguns estudiosos clássicos 
continuam a trabalhar com conceitos antropológicos obsoletos, ig­
norando as direções novas que estes estudos têm tomado nos últimos 
trinta anos - como, por exemplo, a aliança recente e promissora que 
se estabeleceu entre antropologia e psicologia social. Se a verdade 
está além de nosso alcance, devemos ainda preferir os erros de ama­
nhã aos erros de ontem. Porque o erro nas ciências é apenas um outro 
nome para a aproximação da verdade.
Resta, enfim, expressar minha gratidão àqueles que ajudaram 
na confecção deste livro: em primeiro lugar à University o f Califor­
nia por ter me levado a escrevê-lo; a Ludwig Edelstein, W. C. Guthrie, 
I. M. Linforth e A. D. Nock que leram partes ou a íntegra do texto 
datilografado, dando-me valiosas sugestões; e finalmente a Harold 
A. Small, W. H. Alexander e outros na University o f California Press 
que se deram tanto trabalho na preparação do texto para impressão. 
Devo também agradecer ao professor Nock e ao C ouncil o f the 
Roman Society pela permissão de reimprimir, sob a forma dc apên­
d ices , dois a r t igos p u b l ic a d o s r e s p e c t iv a m e n te na H a rva rd 
Theological Review e no Journal o f Roman Studies, alcm do Council 
o f the Hellenic Society pela permissão de reproduzir algumas pági­
nas de um artigo publicado no Journal o f Hellenic Studies.
E. R. Dodds 
Oxford, Agosto de 1950
A a p o l o g i a d e A g a m e n ó n
I
Os reflii.vox do sentim ento, a s m ais o bs c ti m s e encobe rnis vainadas 
do c a rá te r - e is o s únicos lugares do inundo etn que po d em o s 
ca p ta r o fa ro rea! no seu p ro cesso de constitu ição.
W illiam James
T e s ta v a eu, há alguns anos. no Museu Britânico, observando 
J J jf as esculturas do Partenon, quando um jovem se aproximou 
dc mim C disse com ar preocupado: “Sei que é algo horrível de cun- 
Iessai; mas cslas coisas gregas não me comovcm nem um pouco.” 
Retruquei que aquilo era mesmo mui 10 interessante - e se afinal de 
contas ele poderia explicar as razões de sua indiferença. Ele refletiu 
por um ou dois minutos e respondeu: “Bem. não sei se o senhor me 
entende, mas tudo é tão extremamente racional...”
Creio que o entendia. O que o jovem rapaz estava dizendo era 
apenas algo que já havia sido dito antes, de modo mais articulado, 
por Roger F ry 'c outros. Para uma geração cuja sensibilidade havia 
sido treinada nas artes africana e asteca, c através dc obras de ho­
mens como Modigliani e Henry Moore, a arte dos gregos - c a 
cultura grega em geral - é mesmo propícia a se mostrar destituída" 
dc certa consciência do mistério, e de uma capacidade para pene­
trarem níveis mais profundos e inconscientes da experiência Humana.
O fragmento de conversação acima acabou se fixando cm mi­
nha mente c me pôs a refletir. Os gregos eram realmente tão cegos 
assim para a importância_,dc latores~11 ao racionais na ç xpcrLcji^iiTc 
110 comportamento humanos, como admitem normalmciUcUinto seus 
defensores quanto seus críticos? Eis a questão a partir da qual eslc"
1 0 O s OREOOS H ü IRRACIONAL
livro foi desenvolvido. Respondê-la por completo envolvería, evi­
dentemente, um levantamento de todo o empreendimento cultural da 
antiga Grecia. Mas aquilo a que me proponho é bem mais modesto: 
tentarei simplesmente lançar luz sobre o problema, através de um 
reexame de certos aspectos relevantes da experiencia religiosa gre­
ga. Espero que o resultado possa ser de algum interesse, não apenas 
para os estudiosos da Grécia, como também para antropólogos e psi­
cólogos sociais, mas, na verdade, para qualquer pessoa preocupada 
cm eomprcciidcr as evoluções do comportamento humano. Tentarei 
portanto, na medida do possível, apresentar os fatos em termos in­
teligíveis ao não especialista.
Começarei por uma consideração a respeito de um aspecto par­
ticular da re ligião dc Homero. Para os estudiosos clássicos, os 
poemas homéricos parecerão um mau lugar para procurar algum tipo 
de experiência religiosa. “A verdade é”, diz por exemplo o profes­
sor Mazon, em um livro recente, “que nunca houve um poema menos 
religioso do que a ¡liada."2 isto pode ser visto como um exagero; 
mas reflete uma opinião que parece amplamente aceita. O professor 
Murray pensa, por sua vez, que a chamada religião homérica “não é 
absolutamente uma religião"; já que de seu ponto de vista “a verda­
deira adoração religiosa grega antes do século IV a.C. quase nunca 
esteve ligada àquelas luminosas formas o lím picas .” 3 Do mesmo 
modo, o professor doutor Bowra salienta que “este completo siste­
ma antropomórfico obviamente não possui nenhuma relação com 
religião ou moralidade. Semelhantes deuses são uma encantadora e 
alegre invenção de poetas . '’11
Tudo isso está claro - sc a expressão “verdadeira religião” sig­
nificar esse tipo dc coisa que os europeus e americanos esclarecidos 
de hoje reconhecem como sendo religião. Mas se nós restringirmos 
o significado da palavra de tal maneira, não corremos o risco de su­
bestimar, ou mesm o de negligenciar totalmente, certos tipos de 
experiência que nós não mais interpretamos em sentido religioso mas 
que, não 'obstante, podem.1er estado carregadas de pesada significa­
ção rcHgiosa cm seu tempo? Meu propósito com esle capítulo não é 
entrar cm querela com os distintos estudiosos citados por mim, mas 
-chamar a atenção para um tipo determinado de experiência na obra 
de Homero - a qual é prima facie religiosa - examinando, em se­
guida. a psicologia por detrás dela.
A a p o l o g i a u t ; A g a m e n ó n
Tomemos, como ponto dc partida, a experiencia da tentarão di­
vina ou louca paixão {ate) que levou Agamenón a compensar a si 
mesmo pela perda dc sua concubina, através do roubo da concubi­
na dc Aquiles. “Não fui eu’\ declarava ele mais adiante, “a causa 
de um tal ato, mas sim Zeus e o quinhão que me cabe, e a Erínia que 
caminha na escuridão: foram eles que em assembléia colocaram uma 
selvagem ate em meu entendimento, naquele dia em que eu arbitra­
riamente tomei dc Aquiles a sua cativa. Ora, o que eu poderia fazer? 
A divindade terá sempre seus artifícios .” 5
Por influência de leitores modernos impacientes, essas palavras 
de Agamenón foram às vezes desconsideradas, tomadas como uma 
mera desculpa esfarrapada ou como uma fuga de responsabilidade. 
Mas não, no meu modo de ver, para aqueles que lêem a passagem 
com cuidado. As palavras em questão não são certamente uma fuga 
de responsabilidade no sentido jurídico, pois ao final de sua fala 
Agamenón oferece compensação exatamente nessas bases: “Mas uma 
vez que fui cegado pela ate e que Zeus levou para longe meu dis­
cernimento, estou disposto a fazer minha paz e conceder abundante 
com pensação.” '' Tivesse ele agido por vontade própria, não seria 
nada fácil admitir o erro; nías tal como a situação se apresenta, ele 
pagará por seus atos. Juridicamente sua posição seria a mesma em 
ambos os casos, pois a justiça grega dos primordios não se interes­
sava em nada pelas intenções - era o ato que importava. Tampouco
o herói está fabricando dc maneira desonesta um álibi moral, posto 
que a própria vítima de sua ação adota a mesma visão que ele: “Zeus 
pai, verdadeiramente grandes foram as atai que Vós impusestes aos 
homens. Se não fosse assim, o filho de Atrcu nunca teria persistido 
em despertar o tiutmos [sopro vital, alma] cm meu peito, nem obs­
tinadamente teria ele tomado a jovem contra a minha vontade .” 7
O leitor poderá pensar que Aquiles está aqui aceitando polida­
mente uma ficção a fim de com isso salvar a imagem do alto rei. 
Mas não sc trata disso. Pois já 110livro I, quando Aquiles explica a 
situação a Tétis, ele faia do comportamento de Agamenón como de 
sua a te f e no livro VI ele exclama: “Deixe o filho de Atreu seguir 
rumo à sua surte sem me perturbar, pois Zeus conselheiro o tirou de 
seu discerní men to !’ ’9 Trata-se da visão de Aquiles tanto quanto a de 
Agamenón; c nas palavras célebres que inlroduzem a história da Ira
- "O plano de Zeus realizado” 1" - temos a forte impressão de que 
essa e também a visão do poeta.
h O S CJRF.GOS B O IRRACIONAL
Si; h incidente relatado fosse o único interpretado de modo tão 
Peculiar pdos personagens dc Homero, nós poderíamos hesitar quan­
ti aos motivos do poeta - poderíamos, por exemplo, supor que ele 
tsejasse impedir que a simpatia dos ouvintes do poema por Aga­
menón desaparecesse inteiramente, ou que ele estivesse tentando 
| ransmitir alguma significação profunda diante da já indigna quere- 
entre os dois líderes, como se ela fosse um passo para a realização 
plano divino. Mas tais explicações não se aplicam a outras pas- 
S;tgcns era que “os deuses”, “algum deus”, ou o próprio Zeus são 
^PresenLados como tendo momentaneamente “tomado”, “destruído” 
enfeitiçado a capacidade dc discernimento do ser humano, 
xualqueruma dessas situações poderia, na verdade, ser aplicada ao 
‘'•Iso dc Helena, que acaba uma de suas falas mais comoventes c sin­
g l a s coma afirmação de que Zeus pôs sobre ela e Alexandras uma 
Predestinação má, “de tal maneira que daqui em diante podemos ser 
^ in a de canção para os homens do futuro.” " Quando, porém, so- 
'^os informados de que Zeus “enfeitiçou a mente dos aqueus” dc 
loi maque eles lutaram mal, nenhuma consideração a propósito 
pessoas está cm questão, menos ainda na afirmação geral de que 
deuses podem tornar o mais sensível dos homens cm insensível 
^ trazer o homem dc mente fraca de volta ao bom senso .” 13 E o que 
y ZCT' por exemplo, de Glauco, cujo discernimento foi retirado por 
cus de tal maneira que ele fez o que os gregos quase nunca tazem 
aceitou uma pechincha ruim, arrematando uma armadura dc ouro 
Por bronze?IJOu ainda, o que dizer de Automedon, cuja loucura dc 
c ntai representar os papéis de cocheiro e de lançador levaram um 
^ n ig o a perguntar “qual dos deuses havia introduzido cm seu peito 
s^ eu coração) plano tão pouco proveitoso c lhe tomado o excelente 
Cl'i tendi incuto? ” 14 Está claro que esses dois casos não têm nenhuma 
c ^nexãocom qualquer propósito divino mais profundo; mas eles nem 
^ q u e r podem ser encarados como uma tentativa de reter a simpatia 
Qs ouvintes do poema já que neles não há nenhuma implicação 
,T>oral.
A esta altura entretanto, e natural que o leitor possa se pergun- 
J r se nós estamos lidando com algo mais do que uma simples./áfofj 
^ pculer, O poeta p re tende mesmo algo mais do que mostrar que
1 lauco é um tolo em Ia /c r tal negocio? O amigo de Automedon quer 
esmo lhe dizer algo niais do que: “mas que diabos te levaram a
1 íâir assim?” Talvez não. É lato que as fórmulas hexamétricas - que
A a p o l o g i a d e A g a m e n ó n
foram artigos de primeira necessidade dos antigos poetas ciiin‘)’.i 
ram-se facilmente a um tipo de degeneração semiológica que ac.iha 
por criar uma certa façon de parler. E podemos observar que nem o 
episódio de Glauco nem a 1'úlil aristeia [heroísmo, valentia) de Au- 
to m ed o n são partes in teg ran tes do cen tro da tram a, m esm o 
considerando uma litada “expandida”, ou seja, tais episódios podem 
muito bem ser adições de última hora.ls Nossa meta, entretanto, é 
compreender a experiência origina! que jaz na raiz dessas fórmulas 
estereotipadas - pois mesmo uma simples façon de parler deve ter 
uma origem. Para tanto, pode ser útil aproximarmos um pouco mais 
o olhar da natureza da ate e de seus poderes, conforme atribuídos 
por Agamenón; e desse modo estender a visao a outros tipos de alii- 
mação que os poetas épicos fazem sobre o comportamento humano.
Há um cerlo número de passagens de Homero em que a ação 
sem sabedoria e justificação é atribuída à ate , ou descrita pelo ver­
bo cognato aasasthai. sem referência explícita a qualquer interven­
ção divina. Mas cm Homero 1'1 a ate não é um agente pessoal - as 
duas passagens que a designam em termos pessoais são claramente 
peças de alegoria. Nem sequer, dc qualquer modo que seja. a pala­
vra pode significar, no texto da Iliada, um dcsasLrc objetivo . 17 como 
é hábito nas tragédias. Sempre, ou quase sempre. a ten c um estado 
mental - bloqueio temporário ou conlusão em nosso eslado normal 
de consciência. Trata-se, de fato, de uma situaçao dc insanidade par­
cial e temporária; e, como toda insanidade, ela c atribuída nao a cau­
sas lisiológicas ou psicológicas, mas a uma inlcivenção exlctna e 
“demoníaca” . Já na Odisséia,'- é bem verdade, o excessivo consu­
mo dc vinho é apontado como causa da ate. Fica todavia implícita a 
idcia de que ela não pode ser gerada “naturalmente", mas que, ao 
contrário, há algo de sobrenatural ou dc demoníaco no vinho. Ex­
cetuando neste caso, os agentes geradores da ate , que quando sur­
gem especificados, sempre se assemelham a seres sobrenaturais .30 
Podemos assim, classificar todas as instâncias não alcoólicas da ate 
em Homero sob um mesmo título, que proponho chamar “interven­
ção psíquica”,
Sc procedermos a uma revisão dessas instâncias, observaremos 
que a ate não pode. cm hipótese alguma, ser reduzida obrigatoria­
mente a um sinônimo de perversidade, nem é mesmo o resultado de 
um ato perverso. A asserção de Lidell e Scou de que a ate é “envia-
14 O s GREGOS E O IRRACIONAL
da sobretudo como uma punição por atos irrefletidos c culpados” é 
um lanío quanto inverídica no caso dc Homero, Assim, por exem­
plo, a ate que surpreende Pátroclo depois de atingido por Apoio31 
(aqui identificada a uma espécie de confusão e embriaguez) pode­
ria ser reivindicada como uma dessas instâncias, pois af'irma-se de 
fato que o personagem tinha conseguido aniquilar os troianos imep 
aiCTCCV.22 Mas pouco antes, na mesma cena, o ato intempestivo é atri­
buído à von tade de Zeus c ca rac te r izad o pelo verbo a a a 0 T | 
[debilitar].3-1 Em outro momento, a ate de alguém como Agástrofo ,2’1 
que se distancia para longe demais dc sua carroça e acaba sendo as­
sassinado, não é uma “punição” por atos irrefletidos, pois é a própria 
irreflexão que é ate. Ou então ela é o resultado da ate, mas sem en­
volver nenhuma culpa no sentido moral - trata-se apenas de um 
inexplicável erro, como a negociação feita por Glauco. Da mesma 
forma, Ulisses não foi culpado ou desastrado ao adormecer em mo­
mento inoportuno, dando aos seus companheiros a chance de abater 
os bois sagrados. Tudo não passou daquilo que denominamos aci­
dente. Mas para Homero, e para o pensamento dos primordios em 
geral,35 não existe acidente - Ulisses sabe que seu cochilo foi envia­
do pelos deuses etç airjV, “para enganá-lo”.126 Tais passagens dão a 
entender que a ale não possuía originalmente nenhuma conexão com 
a idéia de culpa. No sentido dc punição, a noção parece ser ou um 
desenvolvimento tardio (jônio) ou uma importação dc fora da cultu­
ra grega. Em Homero, o único lugar onde isto aparece de maneira 
explícita é em uma passagem da litada17em que sc sugere que a idéia 
pode ser continental, derivada, juntamente com a história de Meléa- 
gro, de um épico composto na região da mãe do poeta.
Mais algumas palavras sobre o que age pela ate. Agamenón 
menciona não apenas um, mas três de seus responsáveis: Zeus, a 
tnoira (destino) e a Erfnia que caminha na escuridão (ou de acordo 
com uma outra leitura, possivelmente anterior: “a Erínia que bebe 
sangue” ). Destes tres. Zeus é o agente mitológico que o poeta con­
cebe no caso como o primeiro motor - “O plano de Zeus realizado”. 
É talvez bastante significativo o fato de que. a nãoser que atribua­
mos a ate de Pátroclo a Apolo, Zeus seja a única das figuras 
olímpicas ã qual se credita a ate ao longo da Ufada - ela é alegóri­
camente descrita como sua irmã mais velha,2'* E no que concerne à 
M oira, creio que ela é mencionada porque as pessoas, diante dc al-
A APOLOGIA DL AGAMENON 15
gum desastre inexplicável, o tomavam como parte dc uni "lote” ou 
de um “quinhão” que llics cabia, sem buscar um significado milis 
profundo do que o de não poder compreender o que ocorria. Porém, 
uma vez que o fato aconteceu, ele evidentemente “tinha que ser". 
Muitas pessoas ainda falam dessa maneira, sobretudo em se tratan­
do da morte, para a qual a palavra grega moderna ^ttpa se tornou 
sinônimo, como o ^topoç no grego clássico. Quanto a mim, estou 
certo de que e errado escrever Moira com “M” maiúsculo, como se 
significasse alguma deusa que ditaria o destino a Zeus, ou um “Des­
tino Cósmico” como no termo helenístico H eimannene. Enquanto 
deusas, as Moircti aparecem sempre no plural, tanto cm culto quan­
to na literatura, e com uma duvidosa exceção-' elas não comparecem 
na Ufada. O máximo que podemos dizer é que tratando a “porção” 
que lhe cabe como um agente - por considerá-la como responsável 
pelo que acontece - Agamenón está dando o primeiro passo na di­
reção de sua personificação.1" E ainda aqui, ao responsabilizar a sua 
moira pelo que ocorre, Agamenón não se mostra mais sistematica­
mente determinista do que os gregos modernos que utilizam uma 
linguagem semelhante. Perguntar se as pessoas são deterministas ou 
defendem a liberdade dentro da obra de Homero 6, aliás, um fantás­
tico anacronismo - a questão jamais lhe ocorreria, e se lhe fosse 
apresentada seria muito difícil fazê-lo entender do que se trata .-11 O 
que se reconhece é a distinção entre ações normais e ações executa­
das cm estado de ate. Com relação às ações deste último tipo, 
pode-se indiferentemente vinculá-las à moira ou à vontade de um 
deus. de acordo com o modo pelo qual as olhamos - de um ponto 
de vista subjetivo ou objetivo. Da mesma forma, Pátroclo atribui sua 
morte diretamente a um agente próximo, Euforbo; c indiretamente 
a um agente mitológico, Apolo (mas de um ponto de vista subjetivo 
a uma moira malévola), Como dizem os psicólogos, trata-se de ai go 
“sobredeterminado” .12
Partindo dessa mesma analogia, a Erínia deve ser o agente ime­
diato no caso de Agamenón, Que ela deva figurar em tal contexto 
pode muito bem surpreender aqueles que vêem as Erínias essencial­
mente como um espírito de vingança, e mais ainda aqueles que 
crêem, como R ohde .Vl que elas eram originalmente o próprio morto 
cm ato de vingança. Mas tal passagem não pode ser tomada isola­
damente. Lemos então, na Odisséia.** que existe uma “ate pesada que
I fi Os GRI-GOS H O IRRACIONAL
a implacável deusa Erínia pôs no entendimento dc Mel ampo.” Em 
parte alguma trala-sc dc vingança ou punição. A explicação se en­
contra, Lalvc/,, no fato dc a Erínia ser o agente pessoal que assegura 
a realização da moira. Eis por que elas interrompem bruscamente a 
fala dos cavalos de Aquiles, pois, “segundo a moira". cavalos não 
falam .-15 Eis também a razão pela qual elas seriam, dc acordo com 
Heráclito ,-16 capazes até mesmo de punir o soi, caso ele “transgre­
disse as normas” por um exagero na execução de sua tarefa. Creio 
que provavelmente a função moral das Erínias como ministras da 
vingança derive dc sua tarefa inicial, que consistia em reforçar um 
destino (moira) - o que era em princípio moralmente neutro, ou me­
lhor ainda, que continha tanto a noção de “dever moral” quanto a 
de “dever ligado à probabilidade” , sem estabelecer entre eles nenhu­
ma distinção clara (como é, aliás, típico do pensamento antigo).
Assim, em Homero encontramos as Erínias reforçando reivin­
dicações familiares ou sociais, como se elas fossem partes de uma 
moira pessoal37 - um dos pais,3lt o irmão mais velho .-15 ou mesmo um 
mendigo4'1 podem invocar “sua” Erínia a fim de proteger o que lhe é 
devido. Elas também são convocadas para prestar juramento - o j u ­
ramento em si sendo capaz dc designar um destino (m oira). A 
conexão entre Erínia c moira é também atestada por .Esquilo ,4 em ­
bora aí as moirai já tenham se tornado quase pessoais. As Erínias 
são ainda, para o mesmo Esquilo, dispensadoras de ate*-- apesar 
de tanto umas quanto a outra terem já sido “ moralizadas” . E como 
se o complexo moira-\innld-afe tivesse profundas raízes e fosse ainda 
anterior à vinculação da ate a uma intervenção de Zeus .43 Dentro de 
toda esta conexão, também vale a pena lembrar que Erínia e ais a 
(sinônimo de moira) remetem à talvez mais antiga forma de discur­
so helénico de que temos conhecimento - o dialeto arcado-cipriota .44
Deixemos por um momento de lado, tanto a ate quanto os ter­
mos a ela associados, e consideremos brevemente outro tipo de 
“intervenção psíquica”, não menos freqüente na obra de Homero; a 
saber, a que consiste na comunicação dc poder de deus ao homem. 
Na litada o caso típico ocorre na transmissão de um menos [ardor, 
paixão]45durante a batalha, como quando Atena põe uma tripla por­
ção deste elem ento no coração de seu protegido Diomcdcs, ou 
quando Apolo o introduz no thunw s dc Glauco lendo ,46 Não se tra­
ta dc força física; nem m esm o dc um órgão (um a faculdade)
A a p o l o g i a o r A g a m e n ó n 17
permanente de nossa vida mental com et o i fuimos on o nous | inU'li- 
gêneia , en tend im en to , consciência], E muito antes uni estado 
mental ,47 como a ate. Quando uni homem experimenta menos cm 
seu peito, ou sente "'inflar pungentemente as narinas” ,411 eie eslá côns- 
cio dc um misterioso acesso de energia; a vida nele se torna forte, c 
ele pleno de confiança e impetuosidade. A conexão do m enos com 
a esfera do querer (volição) aparccc claramente em palavras corre­
latas como ( je v o iv a v (“estar ans io so” ) e S-OCTjtEvec, (“desejar 
doentiamente algo”). E bastante significativo que, freqüentemente, 
embora nem sempre, o envio de m enos surja em resposta a uma pre­
ce. Mas trata-se, enfim, de algo muito mais espontâneo e instintivo 
do que o que chamamos dc “resolução” . Animais podem recebê-lo.4‘J 
e o termo é empregado, por analogia, para descrever a devastadora 
energia do íbgo.M No homem, ela é a energia vital, a “vivacidade”, 
que nem sempre vem ao nosso chamado, mas que oscila misteriosa­
mente, e caprichosamente (como costumamos dizer) em todos nós. 
Mas para Homero, não sc trata dc um capricho, e sim, do ato de um 
deus que “au men ta e diminui conforme sua vontade a a relê dc um 
homem (sua potência de luta)” .5i Na realidade, às vezes o menos pode 
ser despertado por exortação verbal; outras vezes seu desencadear 
só pode ser explicado pela afirmação de que um deus “soprou den­
tro do herói”, ou dc que “introduziu algo em seu peito”. Ou ainda, 
como lemos em uma passagem, que ele foi transmitido por um bas­
tão mágico.5’
Creio, enfim, que não devemos descartar essas afirmações es­
tranhas como simples “invenção poética” ou “maquinação divina”. 
Não há dúvida de que certas instâncias particulares são freqüente­
mente criadas pelo poeta por uma questão de conveniência cm face 
da trama elaborada. Certamente também, a intervenção psíquica en­
contra-se, às vezes, ligada a uma intervenção física ou a uma cena 
do Olimpo. Mas podemos estar certos de que a idéia que está subja­
cente a tudo isso não c u m a pura invenção poética, e que ela é mesmo 
anterior à concepção de deuses antropomórficos, tomando parte nas 
batalhas de modo físico c visível, A possessão temporária dc um ele­
vado menos é , como no caso da ate, um estado anormal que exige 
portanto uma explicação também para alem do normal. Os homens 
de Homero podem então reconhecer o momento em que tudo sc ini­
cia, mareado por uma certa sensação peculiar nos membros. “Meus18 O s GREGOS E O IRRACIONAL
pés abaixo e minhas mãos acima sentem um ímpeto (iioufiaxocn.)”
- afirma um dos recebedores desse poder. Isto porque, como diz o 
poeta, os deuses o tomaram ágil (e^acppa).53 Esta sensação, que aqui 
é compartilhada por um segundo personagem, confirma a origem di­
vina do m e n o s . Trata-se de uma experiência fora do normal. E os 
homens em condições divinas de menos mujto elevado se compor­
iam até ceito ponto de maneira anormal. Eles podem realizar os feitos 
mais dificcis com facilidade (pea) ,5í o que é um marca tradicional 
do poder divino .56 Eles podem até mesmo, como Diomedes, lutar 
impunemente contra os deuses57- uma ação que para homens cm 
estado normal é extremamente perigosa.5s Na verdade, eles estão, 
naquele exato instante, sendo um pouco mais, ou talvez um pouco 
menos, humanos. Assim, os homens que receberam o menos são vá­
rias vezes comparados a leões vorazes,5ÿ mas a mais impressionante 
descrição dc um tal estado encontra-se no livro XV da litada, quan­
do Heitor fica furioso ( ¡ua ive ra i) e espuma pela boca, os olhos 
brilhando/’1’ Daí para a idéia dc uma possessão real (Scu^iovav) é 
apenas um passo, mas trata-se de um passo que Homero não chega 
a dar. Ele realmente diz que, depois que Heitor vestiu a armadura 
dc Aquiles, “Ares penetrou nele e seus membros foram enchidos de 
força e dc coragem ’ ’ ;61 mas Ares aqui não é provavelmente mais do 
que um sinônimo para espírito marcial, e a comunicação de poder é 
produzida finalmente pela vontade de Zeus, auxiliada talvez pelo fato 
dc a armadura ser em si mesma divina. É claro que os deuses, para 
fins de disfarce, assumem formas e aparências de seres humanos in­
dividuais, mas a questão aí é outra. Os deuses podem aparecer, por 
vezes, sob formas humanas e os homens podem compartilhar, por 
vezes, o atributo divino do poder, mas nem por isso há em Homero 
qualquer confusão quanto à clara linha que separa a humanidade da 
divindade.
Na O disséia, onde as questões dc luta são menos importantes, 
a c o m u n ic a ç ã o dc p o d e r a ssum e ou tras fo rm as . O poeta da 
“Telemáquia” imila a I liada fazendo Aten a pôr um menos sobre Te- 
lêmaco/ 2 mas o m enos aqui é a coragem m oral que habilitará o 
menino a enfrentar a arrogância de outros pretendentes. Trata-se de 
uma adaptação literária. Mais amiga e autêntica é a repelida afirma­
ção de que os menestréis retiram seu poder criativo de Deus. “Sou 
autodidata" diz Fêmios, “foi um deus que implantou em minha mente
A a p o l o g i a d r A g a m e n ó n 19
todo tipo de canção” .63 Os dois períodos nessa declaração não são 
vistos como contraditórios - a meu ver ele apenas quer dizer que 
não memorizou as canções de outros menestréis, mas que é um poe­
ta c r ia t iv o que se b a se ia nas f ra se s h e x a m é tr ic a s jo r r a n d o 
espontaneamente de alguma fonte desconhecida e incontrolável, con­
forme sua necessidade. Ele canta “a partir dos deuses”, como sempre 
fizeram os melhores menestréis.64 Mas devo ainda retornar a este 
ponto na parte finai de meu capítulo IÏI (“As bênçãos da loucura”).
Porém, o traço mais característico da Odisséia é o modo pelo 
qual seus personagens vinculam toda espécie de fato mental (ou fí­
sico) à intervenção de um daemon ,65 de um deus (ou de deuses)66 
anônimo e indeterminado. Tais seres, concebidos de maneira vaga, 
podem inspirar coragem diante de uma crise67 ou arrancar o homem 
de sua capacidade de discerni men to ,6S como os deuses na I liada. Mas 
a eles também c creditado um amplo espectro daquilo que podemos 
denominar livremente “advertências” (avisos). Quando um persona­
gem tem uma idéia especialmente brilhanteí,,Jou tola ;70 quando ele 
se torna capaz de repentinamente reconhecer a identidade de uma 
pessoa ,71 ou percebe, num lampejo, o significado de uma profecia ;72 
quando recorda o que seria fácil de esquecer ,73 ou esquece o que de­
veria lembrar74- 6 certo que ele ou alguém verá nisso literalmente 
uma intervenção psíquica promovida por um desses seres anônimos 
e sobrenaturais .75 Não resta dúvida de que eles nem sempre espe­
ram ser tomados ao pé da letra - Ulisses, por exemplo, não parece 
falar sério ao imputar às maquinações de um daemon o fato de ter 
saído sem seu manto numa noite fria. Mas não estamos lidando aqui 
com uma simples “convenção épica” . Afinal de contas, são os per­
sonagens do poeta76e não o próprio poeta que falam deste modo. 
Seu uso do termo é outro - ele trabalha, como no caso da Ufada, 
com deuses antropomórficos claramente esboçados, como Atena e 
Poseidon, e não com daemons anônimos. Se ele faz seus persona­
gens adotarem outro linguajar é, supostamente, porque as pessoas 
falavam daquela maneira. Em suma, Homero está sendo “realista” .
Na verdade, é assim que devemos esperar que falem as pessoas 
que acreditam (ou cujos ancestrais acreditavam) em constantes avi­
sos do além. O reconhecimento, a intuição, a memória, a idéia 
perversa ou brilhante, possuem isso em comum: eles chegam repen­
tinamente “à cabeça de um homem” . Freqüentemente ele não tem
2 0 Os GRRGOS li O IRRACIONAL
consciência de nenhuma observação ou raciocínio que o tenha leva­
do a tais conclusões. Mas se é esse o caso, como ele pôde designá-las 
como “suas”? Há um instante atrás elas não estavam na sua mente 
c agora estão. Alguma coisa as colocou ali. e este algo é diferente 
de si próprio. Ele nada sabe além disso, e portanto, fala do que ocorre 
de maneira reservada, como da ação dc “deuses” ou da ação de “al­
gum deus” , ou ainda, mais freqüentemente, (sobretudo quando 
acontece de seu efeito ser ruim) como da ação de um daem on.11 E. 
por analogia, ele utiliza a mesma explicação para as idéias c ações 
dc outras pessoas, sempre que as acha difíceis de entender ou fora 
de contexto. Um bom exemplo disso se encontra no discurso de An­
tinous na Odisséia II quando, após elogiar a excepcional inteligência 
e retidão de caráter de Pénélope, ele prossegue dizendo que a idéia 
de não casar oulra vez é absolutamente imprópria e conclui que “os 
deuses a estão introduzindo cm seu peito” .711 Dc modo similar, quan­
do Telêmaco extravasa ousadamente, pela primeira vez contra os 
pretendentes, o mesmo Antinous infere, não sem ironia, que “os deu­
ses o estão ensinando a falar grandiosamente” .71' No caso, sua mestra 
seria Atcna, como sabem811 tanto o poeta quanto o leitor. Mas Anli- 
nous desconhece o fato, c por isso fala em “deuses”.
Semelhante distinção entre o que sabem os personagens c o 
poeta também pode ser observada na litada. Assim, quando a corda 
do arco de Teucro se rompe, ele grita, com um estremecimento de 
medo, que um daemon está se opondo a ele, mas foi na realidade 
Zeus que o causou, como o poeta afirma um pouco antes .111 Tem se 
sugerido que, nessas passagens, o ponto de vista do poeta sc baseia 
na idéia de uma maquinação divina, como é Lípico do período micê- 
nico, enquanto seus personagens ignoram tal linguagem e utilizam 
algo mais vago. a exemplo dos contemporâneos jônios do poeta, que 
já estavam (ao que tudo indica) perdendo sua fé nos velhos deuses 
anlropomórficos.*- A meu ver. como mostraremos em breve, isto é 
quase o reverso exalo da verdadeira relação que se estabelece. E fica 
claro que a falta dc precisão na linguagem de Teucro nada tem a 
ver com ceticismo. Ela e o simples resultado da sua própria igno­
rância. Ao empregar o lenno daemon, ele procura “expressar o lato 
dc que um poder mais elevado fez algo acontecer” 83 - e isto é tudo 
o que ele sabe. Como observou Ehnmark .84 uma linguagem tão vaga 
para designar o sobrenatural foi usada do mesmo modo por gregos
A a p o l o g í a [j e A g a m e n ó n 21
cie todos os períodos, não em virtude de ceticismo, mas simplesmente 
porque ele eram incapazes dc identif icar o deus específico que esta­
va envolvido no acontecimento.Tal linguagem é utilizada do mesmo 
modo por povos primitivos, pela mesma razão ou senão pela falta 
da idéia de deuses personificados .*5 Que a utilização pelos gregos é 
bas tan te an tiga fica c laro pela idade do ad je tivo em questão 
(daemonios). A palavra deve ter significado, na sua origem, “agir 
sob os auspícios de um daem on”, mas já na litada o sentido primi­
tivo se enfraqueceu a tal ponto que Zeus já pode aplicá-lo à deusa 
Hera .116 Tal expressão verbal bizarra ainda permaneceria válida por 
um longo período dc tempo.
Acabamos de examinar os tipos mais comuns de intervenção 
psíquica na obra de Homero. Podemos resumir nossos resultados di­
zendo que todas as atitudes normais do comportamento humano, 
cujas causas não são percebidas dc modo imediato117- nem pela prcí- 
-p n a consciência do sujeito em questão e nem tampouco por outras 
pessoas - , são imputadas a uma ação sobrenatural, exatamente como 
no caso, por exemplo, cias mudanças climáticas ou dos movimentos 
de um arco. EsLa descoberta não surpreenderá o antropólogo não ini­
ciado no classicismo - ele imediatamente apresentará inúmeros 
exemplos paralelos, retirados da cultura dc Bornéu ou cia África Cen­
tral, Mas o que certamente causa estranheza é encontrar tais crenças 
c tal sentido de dependência constante c diária face ao sobrenatural, 
tão firmemente enraizadas em poemas supostamente “irreligiosos”, 
como a litada e a Odisséia. E podemos ainda nos perguntar por que 
um povo tão civilizado, esclarecido e racional como os jôniosnão 
eliminou dc seus épicos nacionais esses vínculos com a cultura de 
Bornéu e o passado primitivo, do mesmo modo como eles elimina­
ram o medo da morte, o medo de ser conspurcado c outros temores 
primitivos que, originalmente, faziam parte de sua saga. O que du­
vido c que a literatura antiga dc algum outro povo da Europa - 
mesmo no caso de meus próprios conterrâneos e supersticiosos ir­
landeses - postule a existência de uma interferência sobrenatural 
sobre o comportamento humano com tanta freqüência e alcance.^
Creio que foi Nilsson o primeiro estudioso a tentar encontrar 
seriamente uma explicação para tudo isso em termos psicológicos. 
Em um trabalho publicado cm 1924,m que se tornou um clássico nos 
nossos dias, ele defendeu que os heróis homéricos são particular­
22 Os OREOOS E O IRRACIO N AL
mente sujeitos a rápidas c violentas mudanças de humor — eles so­
frem, enfim, de instabilidade mental. E o autor prossegue observando 
que. mesmo hoje. uma pessoa com semelhante temperamento está 
apta, ao sofrer uma alteração de humor, a olhar para aquilo que fez 
com horror c exclamar “eu não pretendia fazê-lo!” - um pequeno 
passo para dizer “não fui realmente eu que o fiz” . Como afirma Nils­
son. “seu comportamento tomou-se estranho para si mesmo. Ele não 
consegue entendê-lo. Para ele é alguma coisa que não faz parte de 
seu ego.” Esta observação é absolutamente verdadeira, e não resta 
dúvida quanto à sua relevância para a análise de alguns dos fenô­
menos que vimos considerando ate aqui. Creio que Nilsson também 
está certo ao defender a idéia de que experiências desse tipo desem­
penharam - ju m a m e n te com outros elementos, como a proteção das 
deusas da tradição minóica - um papel na formação do mecanismo 
de intervenção fís ica ao qual Homero fará alusão tão constantemen­
te e de maneira tão supérflua. Digo “de maneira supérflua” porque
o mecanismo divino parece muitas vezes não servir para nada mais 
a não ser duplicar a idéia de uma causação natural e psicológica.,JI' 
Mas não devemos talvez dizer que é a maquinação divina que apre­
senta a intervenção psíquica sob uma forma pictórica concreta? Isso 
não seria então supérfluo, pois somente desse modo a imagem po­
deria se tornar vivida para os ouvintes do poema.
Os poetas homéricos não possuíam os refinamentos dc lingua­
gem que teriam sido necessários para transpor adequadamente a idéia 
de um milagre puramente psicológico. O que seria então mais natu­
ral do que suplementar, e em seguida substituir, uma fórmula gasta 
como (ievoç £p.pa^E 0"ü|i(tí [a paixão introduzida na alma vital], fa­
zendo o deus aparecer como presença física e depois exortando seu 
protegido com uma palavra?'-" Quão mais vivida é a famosa cena da 
Uíada I em que Atena puxa Aquiles pelos cabelos e o adverte para 
não atacar Agamenón, se comparada a uma simples advertência in­
terior? Mas a deusa só é visível aos olhos de Aquiles - ninguém 
mais a viu’\ ^ O que é, enfim, uma clara indicação de que ela é uma 
projeção _ou .a expressão pictórica de um áadvertência interior113 - ad-' 
v enenc ia que Aquiles pode ter descrito de modo impreciso por 
EVE7tV£iK7E <t>p£ai 5at|acov [um poder divino soprado em seu dis­
curso]. E sugiro ainda que a advertência interna, assim como o 
inexplicável e repentino sentimento de potência e perda da capaci-
A APOLOGIA DE A G A M EN O N 23
dade de julgar é o germe a partir do qual pôde se desenvolver a idéia 
de uma maquinação divina.
Um resultado da transposição dos acontecimentos do interior 
do sujeito para o mundo externo é que a imprecisão é eliminada - o 
daemon indeterminado tem que se tornar um dado concrelo, como 
um deus específico qualquer. Na Ilíada I, o daemon se transforma 
em Atena, a deusa do bom conselho. Mas trata-se ali de urna sim­
ples questão de escolha por parte do poeta. Através de uma multidão 
de escolhas como essa, os poetas foram elaborando as personalida­
des dos deuses, “distinguindo”, como diz Heródoto ,94 “suas funções 
e habilidades específicas, e fixando suas aparências físicas” . É cla­
ro que os poetas não inventaram os deuses (e Heródoto não afirma 
nada parecido) - Atena, por exemplo, tinha sido, como temos razão 
de crer, uma deusa do lar de origem minóica. Mas os poetas lhe ou­
torgaram uma personalidade - e desse modo, como diz Nilsson, 
tornaram impossível para a Grécia penetrar em um tipo de religião 
mágica que prevaleceria em seus vizinhos orientais.
Algumas pessoas podem, no entanto, querer desafiar a asser­
ção de Nilsson sobre a qual repousa todo esse raciocínio. Afinal, as 
pessoas são mesmo especialmente instáveis na obra de Homero, se 
comparadas com os personagens de outros épicos? O argumento 
apresentado por Nilsson é, na verdade, bastante sutil. Heróis épicos 
chegam às vias de fato diante do menor sinal de provocação, mas 
isso também ocorre com heróis nórdicos e irlandeses. Em certa oca­
sião Heitor é tomado de fúria, mas isso é muito mais freqüente no 
caso dos heróis nórdicos. Os homens homéricos choram de modo 
mais desinibido do que suecos e ingleses; mas isso também é algo 
comum entre os povos mediterrâneos nos dias de hoje. Podemos con­
cordar que Agamenón e Aquiles são personagens apaixonados, ho­
mens de ânimo exaltado (a história requer que eles sejam assim). 
Mas Ulisses e Ajax não representam, de seus vários modos, tipos 
característicos de firme persistência, assim como Penélope apresen­
ta uma constância feminina? Entretanto, esses personagens estáveis 
não são mais isentos do que outros de uma intervenção psíquica. Da 
minha parte, e de uma maneira global, eu hesitaria em enfatizar tal 
aspecto. Ao contrário de Nilsson, eu prefiro relacionar a crença do 
homem homérico em uma intervenção psíquica a dois outros pon­
tos que pertencem, sem dúvida, a essa mesma cultura descrita por 
Homero.
24 Os GREGOS KO IRRACIONAL
() primeiro ponió é uma peculiaridade negativa: o homem ho­
mérico não possui um conceito unificado para aquilo que chamamos 
“alma” ou “personalidade” (fato cujas implicações foram muito bem 
ressaltadas por Bruno SnelT5). Todos sabem que Homero credita uma 
psique ao homem apenas após a sua morte, ou, então, quando ele 
está desmaiando, morrendo, ou ameaçado de morte - só há registro 
de relação da psique com o homem vivo quando ela j á está paradeixá-lo, Homero não possui sequer outra palavra para designar uma 
personalidade viva. O thumos pode ter sido, em algum momento, 
um primitivo “sopro” ou “alma vital” , mas em Homero ele não é 
nem uma alma (como em Platão) nem uma parte da alma. Ele pode 
ser definido, grosso modo, e em termos genéricos como um órgão 
de sentimento. Porém cie goza de uma independência que a palavra 
“órgão” não sugere, influenciado que somos pelos conceitos poste­
riores de “organismo" c “unidade orgânica” . O Unimos dc um homem 
lhe diz, por exemplo, se ele deve comer, heber ou assassinar um ini­
migo, Ele o aconselha durante a ação, põe palavras em sua boca - 
9\)^ç avwyei ou keAetoi Se |U£ Bu^oç [ordenado ou exorlado por 
outro tltumos\. O homem pode conversar com ele, com seu “cora­
ção" ou “barriga", quase de homem para homem. As vezes ele 
repreende tais entidades à parte (KpaôtT|v T)v i r a n t [ídBü) |sacudir 
os mitos com violência)%); normalmente ele aceita seus conselhos, 
mas pode também rejeitá-los para agir por conta própria, como Zeus 
age, em uma ocasião, sem o consentimento de seu iluimos"!’1 No 
último caso , nós diríam os, com o Platão, que o homem estava 
KpEiTTtuv g a m o u (ele havia controlado a si mesmo). Mas para o 
homem homérico, o thumos não tende a ser sentido como uma par­
te do nosso “eu” - ele aparece, de hábito, como uma voz interna e 
independente. Um homem pode até mesmo ouvir duas dessas vo­
zes, como quando Ulisses “planeja em seu th u m o s” matar os Ciclopes 
sem mais delongas, mas c retido por uma segunda vozi;s (£T£poç 
Ôu|woç [outro th u m o s ]) . Este costumc dc (diríamos) “objetivar as for­
ças puis ion ais” , tratando-as como um “não-cu” , deve ter aberto 
amplo caminho para a idéia religiosa de intervenção psíquica, que, 
segundo se diz, atua não sobre o homem mas sobre scu t lu im os'” ou 
sobre o espaço físico que ele ocupa, na altura do peito (coração) ou 
do ventre . 11"1 Vemos tal conexão surgir muito claramente na obser­
vação dc Diomedes de que Aquiles lutará “quando o ihumos cm scu
A a p o l o g í a DL A g a m e n ó n 25
peito o indicar e quando um deus o despertar” 1" 1 (novamente a ques­
tão da sobredeterminação).
Uma segunda peculiariciadc que parece estar intimamente re­
lacionada à primeira, deve ter funcionado na mesma direção. Traia-se 
do costume dc explicar o caráter ou o comportamento em termos dc 
conheci men lo . 1112 O exemplo mais familiar é o muito disseminado 
uso do verbo oi§oc [represento, imagino] - “eu sei”, com um objeio 
neutro no plural, a fim de expressar não apenas a possessão de utna 
habilidade técnica (oiSev 7toA£|ar|ia ep y a [conhecer o trabalho ini­
m igo]) mas tam bém o que den o m in a r íam o s cará ter moral ou 
sentimentos pessoais - Aquiles “sabe de coisas selvagens, como um 
leão”, Polifcmos “sabe de coisas sem lei”, Nestor e Agamenón “sa­
bem coisas amigáveis um com relação ao outro ” . 110 Isto não é 
simplesmente um “idioma” homérico - semelhante transposição de 
sentimento cm lermos intelectuais está implicada quando nos dizem, 
por exemplo, que Aquiles lem “um impiedoso entendimento ( v o o y ” 
ou que os troianos “recordaram a fuga e esqueceram a resistência” .104 
Esta abordagem intelectualisla para explicar o comportamento im­
primiu uma marca duradoura nas mentes gregas - os chamados 
paradoxos socráticos de que “virtude é conheci men Lo”, e de que “nin­
guém age erradamente de maneira proposital”, não eram novidades, 
mas uma formulação generalizada e explícita daquilo que por mui­
to tempo havia sido um arraigado hábito de pensamento . 11)5 Tal hábito 
deve 1er encorajado a crença em uma intervenção psíquica. Se o ca­
ráter é uma questão de conhecimento, o que não é conhecimento não 
faz parte do caráter, mas vem do exterior até 0 homem. Assim, quan­
do ele age de modo contrário às suas disposições conscientes (tudo 
aquilo que nos é dito que ele “sabe”), a ação não é propriamente 
sua, mas lhe foi ditada dc fora. Em outras palavras, impulsos não 
sistemáticos c não racionais, assim como os atos resultantes, tendem 
a ser excluídos do “eu” e imputados a uma origem externa.
Tudo isso é evidentemente mais comum quando os atos em 
questão são tais, que chegam a causar profunda vergonha em seu 
autor. Sabemos bem como, cm nossa sociedade, pesados sentimen­
tos de culpa são superados por uma fantasiosa “projeção” sobre os 
outros. E podemos supor que a noção dc ate desempenhou um pa­
pei similar para os homens homéricos, tornando-os capazes, com toda 
boa fé, de projetar sobre um poder externo seus insustentáveis sen-
26 O s GREGOS E O IRRACIONAL
timemos de vergonha. Falo aqui em “vergonha” e não em “culpa", 
já que certos antropólogos norte-americanos nos ensinaram recen­
temente a distinguir entre “culturas de vergonha” e “culturas de cul­
pa”, 106 e porque a sociedade descrita por Homero entra dc modo bas­
tante claro no primeiro grupo. O sumo bem do homem homérico não 
é a fruição de urna consciencia tranqüila,. ma~s~sim a fruição úc üme 
(estima pública): “por que devo lutar”, pergunta Aquiles, “se o bom 
lutador não recebe mais Ttjrn do que o mau lutador? ” " 17 Além dis­
so, a mais potente força morai que o hom eni homérico conhecc não 
e o medo dc um deus , 11,8 mas o respeito à opinião pública, aidos. 
“a tôe jica T p o a ç ” [sinto vergonha dos Troianosj, diz Heitor duran­
te a crise que se abate sobre seu destino, encaminhando-se de olhos 
abertos para a morte.™ O. tipo dc situação para a qual a noção de 
ate é uma resposta nasce, portanto, não apenas da impulsividade do 
homem homérico, mas também da tensão entre im pulsos indivi­
duais e pressão de adaptação social, característica de uma cultura 
baseada na vergonha . 1111 Em uma sociedade como essa, qualquer coisa 
que exponha o homem ao desprezo ou ao ridículo perante seus com­
panheiros, ou que o leve a “estragar sua imagem”, é experimentado 
como algo insustentável. 111 Isso talvez explique corno não apenas em 
casos de fracasso moral, como quando Agamenón perde o autocon­
trole, mas tambem no episódio da mã negociação de Glauco, ou ainda 
quando Automedon desconsidera os preceitos táticos adequados, haja 
uma “projeção” dos eventos sobre um agente divino. Por o utro lado, 
foi o crescente sentido de culpabilidade, característico de um perío­
do posterior, que acabou^por transformar a ate em punição, as Erí­
nias em ministro da vingança e Zeus em uma encarnação da justiça 
divina.
Tratarei dessa evolução no próximo capítulo. Até aqui o que 
tentei foi mostrar, pela análise de um tipo especial de experiência 
religiosa, que por detrás do termo “religião homérica” há algo mais 
do que uma parafernália artificial de deuses e deusas mais ou me­
nos sérios e cômicos; e que não estaremos sendo justos com eles se 
os descartarmos como um mero interlúdio de agradável e luminosa 
bufonaria entre a supostamente profunda religião terrestre dos egeus 
(sobre a qual sabemos pouco) e as profundidades órficas dos pri­
mordios (sobre as quais sabemos ainda menos).
A a p o l o g i a d e A g a m e n ó n 2 7
N o t a s d o c a p í t u l o 1
]. Roger Fry, Last Lectures, 182 sg.
2. Mazon, Introduction à t ’Iliade, 294,
3. Murray, Rise o f the C reek Epic1, 265.
4. Bowra, Tradition and Design in the Iliad, 222 (itálicos dc minha autoria). 
Da mesma forma, W ilhelm Sclimid crê que a concepção que Homero sc 
faz dos d e u ses “ não pod e ser cham ada de r e l ig io s a .” (Gr, 
Literaturgeschichte, 1,1. 112 sg.).
5. Homero, litada , 19.86 sg.
6. Ibid., 137sg. Cf. 9.119 sg.
7. Ibid., 19.270 sg.
8. Ibid., 1.412.
9. ibid., 9.376.
10. Ibid., 1.5.
11. Ibid., 6 ,357. E tambem 3.164, onde Príamo diz que não é Helena, mas sim 
os deuses que merecem ser culpados ( « m o l - aitioi) pela guerra. Na O dis­
séia 4.261, também de Homero, a personagem fala explicitamente de sua 
air|.12. Ibid., 12.254 sg.; O disséia, 23.11 sg.
13. Ibid., 6.234 sg.
14. Ibid., 17.469 sg.
15. Cl. W ilamowitz, Die ¡lias und Homer, 304 sg., 145.
16. Para esta análise da axn , cf. W. Havers, “Zur Sem asiologie von griech. cm}, 
Ztschr. F. vgl. Sprachforschimg, 43 ( 1910), 225 sg.
17. A transição para esse novo significado encontra-se na O disséia, 10.68, 
12.372 e 21.302. Ouira possibilidade é que sc trate de um significado pós- 
hom érico. Li deli e Scoit ainda citam a ¡liada 2 4 .480 , mas penso que 
erradamente: ver Leaf e Amei s-Hentze ad. loc.
18. O plural parece ter sido utilizado duas vezes para ações que indicam esta­
do mental na litada , 9.115 e (se o ponto de vista adotado na n. 20 for 
correto), na / liada 10.391), em uma extensão sim ples e natural dc seu sig ­
nificado original,
19. litada , 11.61 e 21.297 sg.
20. No caso da exceção mencionada (exem plo do vinho; lliada, 10.391), o sig­
nificado pode ainda ser, não que a falta dc sabedoria de Heitor ao aconselhar 
Dólon na lliada tenha origem na cnr|, mas que sua própria condição seja 
de alguém “divinamente inspirado”. Neste caso, cctcci será ainda utilizado 
no sentido de “estados mentais” (9.115), ao passo que a interpretação mais 
comum postula não apenas a existência de uma psicologia única para os 
personagens da obra, com o também um mesmo uso do termo, para desig-
28 Os Ciltl-ÜOS IL O IRRACIONAL
nar os "alus producidos por louca paixão". Na Odisséia, 10.68 os compa­
nheiros de U lisses são nom eados agentes induzidos por tiJtvoç c por 
axeTÂioç
21. 1 líenla, 16.805.
22. ibid., 780.
23. ibid., 684-691,
24. Ibid., 11.340.
25. C f. L é v y -B r u h l, P r im it iv e M e n ta lity , 43 sg .; P r im it iv e s a n d th e 
Supernatural, 57 sg. (citados da edição em língua inglesa),
26. O disséia , 12.371 sg. Cf. 10.68.
27. ¡Hada, 9 .512. i n aG3T| v a fi s it sa ô m iv a p^aijiBeic, cí.reolcni -
28. ibid., 19.91. Em 18.311 é Alena quem, na função de “deusa conselheira”, 
bloqueia nos troianos sua capacidade de discernimento, dc tal modo que 
e les acabam por aprovar a má decisão de Heitor, Mas essa ação ainda não 
recebe o nom e de 0£TT|. Em contrapartida, na O disséia, 4.261 Helena atri­
bui a sua extri à deusa Afrodite.
29. Ibid., 24.49 onde o plural pode sc referir apenas a “quinhões” dc indiví­
duos distintos (W ilam owitz, Giauhe, ¡,360). Na O disséia, 7 .197 porem, as 
“poderosas fiadoras do destino" já aparecem algo personalizadas, de modo 
sem elhante às Nornas encontradas no mito teutónico (Chadwick. Growth 
o f Literature, 1.646).
30. Cf. Nilsson, H istory o f Greek Religion, 169. A visão de que tal |iOipa, equi­
vale a um ordenamento povincial do mundo, e dc que a noção de algo que 
cabe individualmente a cada um, com o um destino, vem depois c não an­
tes na ordem de evolução (Cornford, From Religion to Philosophy, 15 sg.) 
parece-me dificilm ente aceitável, e certamente sem fundamento na obra de 
Homero, onde a p o ip a é empregada de modo bastante concreto, por exem ­
plo, para designar uma '‘porção de carne” (O disséia , 20.260). Também não 
estou convencido da idéia de que as jiOipcti têm sua origem em sím bolos 
dc certas funções econôm icas e sociais de um comunismo primitivo, ou que 
surgiram das deusas-mãe do período neolítico (Thomson, The Prehistoric 
Aegean, 339).
31. Snell. Phi loi. 85 ( 1929-1930), 141 sg. e de modo mais elaborado Chr, Voigt, 
Üeberlegung mut lintscheidung... bei H orner, tem procurado salientar que 
Homero não possui nenhuma palavra para designar decisão ou ato dc es­
colha, Mas a conclusão dc que nele o homem ainda não tem consciência 
da liberdade individual ou de algo com o decisão pessoal me parece equi­
vocada (Voigt, op. cit., 103), O que eu diria c que o homem homérico não 
possui o conceito de arbítrio - “vontade” (que curiosamente se desenvol­
veu tarde na Grécia) - c que, portanto, não pode haver tampouco o conceito 
de “livre-arbítrio”. O que não impede o poeta de distinguir, na prática, as 
ações originadas no ego daquelas às quais e le atribui intervenção psíquica
A a p o l o g i a n i- A g a m e n ó n 29
- Agamenón pode até mesmo di/.er £yf¡5 S'chik ccm oç a p i aX X a Zeuç. E 
parece um pouco artificial querer negar os trechos da ¡Hada 11.403 sg, ou 
da O disséia 5 ,355 sg. cm que são descritas decisões tomadas após razoá­
vel consideração das possibilidades.
32. lliada , 16,849 sg. Cf. 18.119, 19,410, 21.82 sg., 22.297-303. A propósito 
da “sobredeter mi nação”, cap. H.
33. Rh. Mus, 50 (1895), 6 sg. (= Kl. Sc hr ¡fien, 11.229), Cf, N ilsson, Gesch. d. 
gr. Re!. 1.91 sg.; e contra esta opinião, W ilamowitz na introdução de sua 
tradução do lùimènides, e Rose, Handbook o f Greek M ythology, 84.
34. litada , 15.233 sg.
35. Ibid., 19.418. Cf. 2B ad. loe., e tugkotio i yap e ic iv xffiv rca p a <)>uciv.
36. D iels, frag. 94.
37. Em todos os casos, exceto em um (O disséia , 11.279 seg,), trata-se de pes­
soas vivas- o que parece ir pesadamente contra a teoría (criada no apogeu 
do animismo) de que spiVDEÇ são mortos vingativos. Em primeiro lugar, 
Homero nunca pune os crimes; e em segundo, tanto os deuses quanto os 
homens têm suas próprias epivuEç. As E p ivyeo de Hera, por exem plo {ilia ­
da, 21.412), tem as mesmas funções das dc Penelope (O disséia , 2.135) - 
proteger o status da mãe pela punição do filho indigno. Podemos dizer que 
as Erínias são a raiva materna projetada em manifestações pessoais. O 0E(OV 
eptvuç t|ue nas Tehanas (Kinkel, frag. 2) ouviu a maldição de Edipo (ain­
da vivo) incorpora a raiva dos deuses sob a forma pessoal - assim a Erínia 
e a maldição são igualadas em Esquilo, Deste ponto de vista, Sófocles não 
eslava inovando, mas apenas seguindo a tradição, ao fazer Tirésias amea­
çar Creonte com A iS ou r a t Otíúvrie ep tvu gç na A m igon a, 1075. Sua 
lunção é punir a violação da ¡loipo. por Creonte, pela qual Polinice per­
tence ao Hades c Am igona ao avü) te o t (1068-1073), Para (.totpa, como 
status de acordo com o pretensão de Poseidon de ser lo o p o p o ç Kai o^Tf 
TiËTtpCûpsvoç raiari com Zeus, lliada , 15.209. A partir desse texto, encon­
trei uma íntima conexão dc Eptvuç com p o tp a também enfatizado por 
George Thomson (The Prehistoric A egean, 345) e por Eduard Fraenkcl em 
Agamenón, 1535 sg.)
38. lliada, 9 .454, 571; 21.412; O disséia, 2.135.
39. litada, 15.204.
40. Odisséia, 17,475.
4L Ésquilo, P.V. 516, M oipou Tpipop(|ioi pvrçpoveç x E p ivueç e Humênides 
333 sg. e 961, M oipcti ptrcpiK0tciYvr|TC«. Euripides, cm uma peça perdi­
da, faz uma E rín ia dec larar que se u s ou tros nom es são; t t jx ê . 
V£JJ£piç, Uüiptt, (xva-’/Kil (frag. 1022). Cf. também Esquilo, Sept. 975-977.
42. Ésquilo, Euniênides. 372 sg., etc.
43. Sobre o problema da relação entre deuses e p u ip a (insolúvel em termos 
lógicos), ver especialmente E. Leilzke, M oira und. Got th a t ini alten griech.
30 O S GREGOS E O IRRACIONAL
E pos , que analisa todo o material a respeito; E. Ehnmark, The ¡dea o f God 
in Homer, 74 sg.; N ilsson, Gesch. d. gr. Re I. 1.338 sg.; W. C. Greene, Mo t­
ra, 22 sg.
44. O Epivuç (Erynus) de Deméter e o verbo E piviiav em Arcadia, Paus. 8.25.4 
sg. ociott) em arcáde, 1G V.2.265, 269; em cipriota, GD I 1.73.
45. Cf. E. Elinmark, The ¡dea o f G o d in Homer, 6 sg. E sobre o significado da 
palavra fiEVOÇ J. Bõhme, D ie Seete h. das Ich im Homerischen Epos, 11 
sg., 84 sg,
46. IHada, 5 .125 sg., 136; 16.529.
47. Que os reis foram vistos a urn tempo com o possuidores de um (levoc, espe­
cial que lhes era comunicado para sua tarefa, parece im plícito no uso da 
expressão lep o v p evoç (cf. lEpri iç), embora sua aplicação em Homero (para 
Alcinous, Od. 7.167 etc., para Antinous, Od. 18.34) seja governada mera­
mente por uma questão de conveniência métrica. Cf. Pfister, P.-W., s.v.“ Kultus”, 2125 sg.; Snell, Die Enideckung des G eistes, 35 sg.
48. O disséia, 24.318.
49. Cavalos, ¡liada, 23.468; (íooç p e v o ç O disséia, 3.450. Em II. 17,456, os 
cavalos de Aquiles recebem uma comunicação de ^ e v o ç
50. lliada, 6 .182 e 17.565. Assim também, por exem plo, médicos com o Hipó­
crates falam em sua época do ¡jevoç do vinho e da fom e para significar o 
poder imánente mostrado por seus efeitos no organismo humano.
51. Ibid., 20.242. E do mesmo modo, o “espírito do Senhor” que torna Sansão 
capaz de feitos sobre-humanos (“Juizes”, 14: 6, 15: 14, A Bíblia Sagrada).
52. Ibid., 13.59 sg. A transmissão física de poder divino é, no entanto, rara em 
Homero, assim com o na crença grega em gera), em contraste com a impor­
tância dada pelo cristianism o e por certas culturas prim itivas ao gesto 
sacerdotal de comunicação.
53. ¡liada, 13.61, 75. yvicc 5 £0T[K£V e^ o ^ p a á a fórmula recorrente para des­
crever a transmissão dcjJEVOÇ (5.122,23.772); cf. também 17.211 sg.
54. Cf. a nota de Leaf 13.73. Na O disséia , 1.323, Telêmaco reconhece uma co­
municação de poder, mas não sabemos exatamente com o isso ocorre.
55. !Itada , 12.449. O disséia, 13.387-391.
56. llia d a , 3.381: p e ía jiotX, coûte 0eoç. Ésquilo. Sup. 100: rcav ca iovov 
Sainovicm ), etc.
57. llia d a , 5 .330 sg. 850 sg.
58. Ibid., 6 .128 sg.
59. Ibid., 5.136; 10.485; e 15.592,
60. Ibid., 15.605 sg.
61. Ibid., 17,210.
62. Odisséia, 1,89, 320 sg.; Cf. 3.75 sg,; 6,139 sg.
63. O disséia, 22,347 sg. Cf. D em odoco, 8.44, 498 e Píndaro, Nem. 3.9. onde 
o poeta implora à musa a concessão “de um fluxo abundante de poemas,
A APOLOGIA DF. AGAM ENON 31
proveniente de m etis próprios pensamentos’’. Como coloca Mac Kay; “A 
musa é a fonte da originalidade do poeta, e não exatamente sua imagem 
convencional” (The Wrath o f Homer, 50). Chadwick, Growth o f Literature 
[II. 182 cita, de Radloff, um enríese paralelo primitivo, o mencstrel Kirghiz 
que declarou: “Eu posso cantar uma canção qualquer, pois Deus implan­
tou este dom musical em meu coração. Ele coloca as palavras cm minha 
boca sem que eu precise solicitá-las. Eu não aprendi nenhuma de minhas 
canções. Todas brotam de meu íntimo”.
64. O disséia, 17.518 sg. Hesíodo, Teogonia, 94 sg. (= H. Hymn 25.2 sg.). Cf. 
cap. 111.
65. No uso do termo SaincüV e seu correlato para 9 ë o ç (que não discutire­
mos aquí), ver Nilsson cm Arch. f. Reí. 22 (1924) 363 sg., e Gesch. d. gr. 
Reí. 1.201 sg.; W ilamowitz, Glaube , 1.362 sg.; E. Leitzke, op. ctt., 42 sg. 
Segundo Nilsson o 5ai|i(i)V era originariamente não apenas indetermina­
do, mas também im pessoal, urna mera “manifestação de poder” (o renda). 
Mas quanto a isso, estou inclinado a compartilhar as dúvidas de Rose, H ar­
vard Theoi. Rev. 28 (1935) 243 sg. Tal evidencia, como temos sugerido, 
enquanto (.tovpO', desenvolveu de uma “parcela” impessoal para um destino 
pessoal, õaijitúv evoluiu em direção oposta, de um pessoal “Apportioner” 
(cl. S a ia), S a tjiov i]) para uma impessoal “sorte”. Há um ponto cm que os 
dois desenvolv im en tos se cruzam eas palavras são virtualmente sinônimas.
66. Ocasionalmente, também, a uma intervenção de Zeus (O disséia, 14.273), 
que cm tais frases é, talvez, não tanto um deus individual quanto represen­
tante de um desejo divino generalizado (N ilsson, Greek Piety, 59).
67. O disséia, 9.381.
68. Ibid., 14.168. Cf. 23.11.
69. Ibid., 19.10. Cf. 138 sg.; 9.339.
70. Ibid., 2 .124 sg.; 4 .274 sg.; 12.295.
71. Ibid., 19.485. Cf. 23.11 onde um erro de identificação é explicado.
72. ibid., 15.172.
73. Ibid., 12.38,
74. Ibid., 14.488.
75. Se a intervenção é nociva, ela é normalmente chamada Satpíüv e não 0EOç.
76. Essa distinção foi primeiro observada por O. Jorgensen, H erm es 39 ( 1904) 
357 sg, Para as exceções à regra de Jorgensen, ver Calhoun, AFP 6 1 (1 9 4 0 ) 
270 sg.
77. C f o Sat^ w v que traz visitas desagradáveis e indesejadas (O disséia 10.64, 
24.149, 4 .274 sg., 17.446) denominado koíkoç nas duas primeiras passa­
gens citadas. Em 5 .396 ele aparece com o um causador de d oenças, 
OTUYtûpoç ocüjicúv. Ao menos essas passagens são exceções à generaliza­
ção de Ehnmark (Anthropomorphism and M iracle, 64) de que os Saifitaveç 
são deuses olím picos não identificados.
32 Os GR KG OS E O ll< RACIONAL
78. Ibid.. 2 .122 sg.
79. Ibid., 1.384 sg.
SO. Ibid., 1.320 sg.
81. Iliada, 15.461 sg,
82. E. Héden, Hotnerische Gotterstudien.
83. N ilsson, Arch. F. Rei. 22.379.
84. Ehnmark, The Idea o f Goil in Homer, cap. V. Cl'. lambém Linforth, “Named 
and unnamed Gods in Herodotus", University o f California Publications 
in C lassical P hilology ¡X.7 ( 1928).
85. C í,, por exem plo, as passagens citadas por L evy-Bm ill. Prim itives and the 
Supernatural, 22 sg.
86. llia d a , 4 .31. Cf. Paul Caucr, Kun.il d erÜ bersetzw tg, 27.
87. Um bom exem plo, porque particularmente irivial, do significado aLribufdo 
ao inexplicável e o fato de que espinar é lomado com o um sinal de profe­
cia por mui los povos, incluindo os gregos homéricos (Odisséia, 17.541) e 
os da Grécia clássica (Xenoíonte, Anah. 3 .3 .9) e nos tempos romanos (Plu- 
lareo, gen. Soer. 581 s . ). Cf. Halliday, Greek Divination, 174 sg.; e Tylor, 
Prim itive Culture, 1.97 sg,
88. Alguma coisa análoga à arr| talvez possa ser encontrada no estado mental 
que os Celtas cbaniam fe v (ladaòo) ou fa iry-struck (encantado) que cliega 
até as pessoas repentinamente c as fazem agird e modo muiio diferente do 
que de liábilo (Kirk, Robert. The Secret Com onwealth).
89. "Gotlcr und Psychologic bei Homer” , Arch. F. Rei. 22.303 sg. A s conclu­
sões foram resumidas no seu livro H istory o f Greek Religion, 122 sg,
90. Como rcssalla Snel! (Die Entdeckung des Ge isles), o caráter “supérfluo’' 
de ümtas intervenções divinas mostra que elas não foram inventadas ape­
nas com o intuito de tirar o poeta de uma dificuldade (afinal, o curso dos 
acontecim entos seria o mesmo sem eles), mas que pertencem a alguma an­
tiga crença. Caucr achava, por sua vez (G ru n d fia g en 1 .401), que a 
“naturalidade” de muitos miíagres homéricos era um refinamento incons­
ciente datando de uma era em que os poetas já haviam com eçado a não 
mais acreditar em milagres, Mas o milagre desnecessário é, na verdade, ti­
picamente primitivo (C f E.E. Evans-Prilchard, Witchcraft, O racles and 
M agic am ong the Azande, 77, 508). Sobre a crítica a Caucr, Ehnmark, 
Anthropom orphism and M iracle, cap. IV.
91. diada , 16.712 sg. No livro 13,43 sg. as intervenções física (60) e psíquica 
encontram-se lado a lado. Não há dúvida de que as epifanías dos deuses 
durante a batalha tinham também alguma base na crença popular; a mesma 
crença que criou os anjos dc Mons, embora, como observa Nilsson, em tem­
pos tardios são os heróis, e não os deuses, que aparecem deste modo.
92. ibid., 1.198.
93. Mais freqüentemente a advertência é feita por um deus “disfarçado" de al-
I l
gum p e rs o n n e l^ “ ^ ï d c “m i t o m l Z l “ g» " t u a U ™ n-
“ S I Í - . Í . * ™ - » » 8“ " lW propr' 1’
S T T ! ' , T S ; “ t fÍ Í « . c o t a r ™ . que o M ftW Pnm .l-vo, scgu.n- 
9 4 . H erodoio . 2.53. W m íom íií. > ^ ^ ( )o )c s|[UcU/,a
do seu im p u lso e s té t ic o , pode ^ ^ e ao
imediatamente a essencia da i. ç njnce|adas que podem não apenas
mesmo tempo. ad, c o n ar ,Q substancialmente” . Uma
m * * , ' * * £ Z Z Ï Î T i — — — ‘ * « - —ves que a coisas nao vao ale , ~ vanante i .1 é elevada
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C S m S S * « t — « « - “ s " " ay
¡rincl Nal 11 iv (Chicago, 1943), íi s^- urimciravo/„ mas ace i la
, I- -■ o -w i tl, Atiui o “cao C ulcntüicado a pnm uid w 
9K. O dissetu, 9 .299 su. Aqm o c B a , V07CS se m e lh an te a esta , com
, a d v e r t e n c ia segunda. Urna em uma tliriosa pas-
similar alteração de idenüdat l , parcLc ' ‘ y ^ persona-
s a g . m d a / , W « . 1 1* > M » 0 . <Cf. ^ ^ n m u ;L en tre 
g ens de DosloicvsUL em ¿ s e s u d o eg o c 
e u e n ã o - e u de m o d o in i c í e s e c. - r iCi0 nal e n q u a n to o ou lro
t iv esse junto dc alguém; um é um ser sens , ei ^ „ l re_
é que estamos ansiosos por fazer
r s s K ï u a ^ , r - ; ^ “ —
™ ,u f c * . I— r . S v T e ™ év> OT'lóea-
K ' ;' “ 5 - " 6 ; ; S 8 m V72A . I I * * » » P a X l o » , . Por t o 
o i v a v i iK e : í J í K í w i . LV!; ¿ ; h 2 , K ( C r _ Aes;l;h. P e rs .
o e u , 0 Ç é o órgão da as tragédias de
,0; KaKOHavTii; ... ^ t o ç 224 < c E u, fpides 1073:
Esquilo miScúv 5 0 m o q fcV ^ 6v ev8o6ev
W a v T tç 6 W e Tm*. hag. 176. u n ™ h' ’
jiovrcueT at). T O iotneeaai u e v o ç - - tito.
100. Ibid., 16.805: ca n (t-pevc^EtÂt- x l2 5 . ev yap i i
A a p o l o g i a d u A g a m e n ó n
34 O s GREGOS E O IRRACIONAL
101. ¡liada, 9 .702. Cf. O disséia, 8.44: "um deus” deu a D e mod oc us o dom de 
cantar quando seu 0V|iüÇ o impede.
102. Cf. Marg, op. cil. 69 sg.,' W. Nestlé, Vont M ythos ziim Logos, 33 sg.
103. i liada, 24.41. Odisséia, 9 .189 e 3.277.
104. ¡liada, 16.35, 356 sg.
105. A mesma consideração foi teíla por W, Nestle NFbb 1922, 137 sg., que 
acha os paradoxos socráticos echt griechisch c observa que eles já estão 
im plícitos na psicologia ingênua de Homero. Mas devem os lomar cuida­
do ao enxergar este “intclectualismo" habitual com o uma atitude adotada 
conscientemente pelos poria-vozes de um povo ‘‘intelectual . Tralu-se, na 
verdade, sim plesm ente dc um resultado inevitável da ausência do concei­
to de vontade l d ‘. L. Gernet, Pensée jurid ique et m orale, 3 12).
106. Uma explicação sim ples desses termos será encontrada na obra de Ruth 
Benedict, The Chrysanthemum and the Sword, 222 sg. Nós próprios so­
mos herdeiros dc uma poderosa e antiga (apesar de declinante nos dias 
de hoje) cultura de culpa, fato que pode explicar, lalvez, porque tantos 
estudiosos têm dificuldade em reconhecer a religião homérica como sen­
do efetivamente uma “religião”.
107. lliada, 9.315 sg. Sobre a importância de em Homero, ver Jaeger, 
W. Paidela, 1.7 sg.
108. Cf. cap, 11.
109. iliada, 22.105. Cf. 6.442; 15.561 sg., 17.91 sg.; O disséia, 16.75, 21.323 
Sg.; W ilam owitz, Glatibe, 1.353 Sg.; W.J. Verdenius, Mnem. 12 (1944) 47 
sg. A sanção dc atStflç é ve^teotç, desaprovação pública: ¡liada, 6.351, 
13.121 sg.; e O d issé ia , 2 .136 sg. A aplicação dos term os icodov c 
nttoxpov parece também ser típica de uma cultura da vergonha. Estes ter­
mos denotam não que o ato seja em si benel ico ou nocivo para o agente, 
cerlo ou errado aos olhos da divindade, mas que parcce “belo ou feio 
aos olhos da opinião pública.
110. Ao formar raí/.es a idéia de intervenção psíquica encoraja oh vi amen te, um 
comportamento impulsivo. Exatamente como pensam alguns antropólo­
gos modernos que, ao contrário de diferem , como Frazer, que os homens 
primitivos crêem em magia por raciocinar erradamente, preterem dizer que 
eles raciocinam erradamente porque são socialmente condicionados a acre­
ditar em magia. Assim , em vez de repetir o que diz N ilsson dizendo que 
o homem homérico crê em intervenção psíquica por ser im pulsivo, dire­
m os la lvez que e le dá vazão a seus im pulsos por se i socia lm ente 
condicionado a crerem uma intervenção psíquica.
111. Sobre a importância do medo do ridículo com o motivo social, ver Paul 
Radin, Prim itive Man as Philosopher, 50.
D a c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a culpa
II
É horrenda co isa ca ir nas m ãos do D eas vivo.
Hebreus 10: 31
*m meu primeiro capítulo, discuti a interpretação homéri-
humano, entendidos como “intervenção psíquica” - uma interferên­
cia na vida humana através de agentes não humanos que introduzem 
algo no homem e, deste modo, influenciam seu pensamento e con­
duta. Neste capitulo, tratarei de algumas das novas formas assumidas 
por essas mesmas idéias homéricas ao iongo da era arcaica. Mas se
0 que tenho a di/,er pretende ser inteligível também ao não especia­
lista, devo começar colocando sobre um mesmo plano, ao menos a 
lílulo dc esboço, algumas das dilcrcnças que separam a atitude reli­
giosa deste período arcaico daquelas pressupostas na obra de Homero. 
Ao final do meu primeiro capítulo, utilizei as expressões “cultura da 
vergonha” e “cultura da culpa” como rótulos para descrever as duas 
¡liiludes em questão. Estou ciente de que tais termos nccessilam a ex­
plicação de que eles são provavelmente novos para a maior parte dos 
estudiosos do elassicismo, e dc que sc presiam facilmente a equívo­
cos. lispero, porém, que aquilo que pretendo com eles se torne claro 
.i medida em que avançamos. Devo esclarecer, desde logo, dois pon- 
lo s , Primeiramente, que os utilizo apenas a título de descrição, sem 
ciu aiiipar junto com eles nenhuma teoria sobre mudanças culturais.
1 ni segundo lugar, que reconheço a relatividade da dislinção, pois 
li ni ilos modos dc comportamentos característicos das “culturas da
ca dos elementos irracionais presentes no comportamento
36 O S GRLXÏOS K O IRRACIONAL
vergonha” , na realidade persistiram através dos períodos arcaico e 
clássico. Há uma transição, mas cía é gradual c incompleta.
Quando voltamos nossos olhares de Homero para a literatura 
fragmentária da Grécia arcaica, e para aqueles escritores do período 
clássico que ainda preservam uma perspectiva arcaica1- como Pín- 
daro, Sófocles, e, em grande parte, Heródoto - , uma das^ primei ras 
_coisas que chamam nossa atenção é a percepção aguda da insegu­
rança e do desam paro hum anos (a|ar|XOCVia3 ); percepção que 
encontra seu correlato religioso no sentimento de uma hostilidade di­
vina - não que a divindade seja encarada como algo malévolo, mas 
no sentido de que seu poder e sabedoria superiores sempre impedem 
o homem de se superar e de se elevar acima dc sua esfera própria. É 
esse sentimento que Heródoto exprime ao dizer que a divindade está 
sempre <t>0ovepov t e m t Tapa%cü5£ç/ “Ciumenta c pronta a inter­
ferir” , poderíamos traduzir, mas a tradução não é boa - afinal de 
contas, como tal poder dominante poderia sentir ciúmes de algo tão 
pobre quanto o homem? Seria melhor dizer que a idéia que está em 
jogo é a dc que os deuses ressentem cm nós algum sucesso ou felici­
dade capa/, de cicvar nossa mortalidade acima do seu status normal, 
usurpando, dessa maneira, algo que seria prerrogativa das divindades.
É claro que tais idéias não eram inteiramente novas. Na ¡liada 
XXIV. por exemplo, Aquiles, finalmente sensibilizado pelo espetá­
culo de seu inimigo Príamo derrotado, pronuncia a moral trágica dc 
todo o poema: “Pois assim os deuses fiaram o destino da pobre hu­
manidade: a vida do homem deve ser triste, e eles próprios isentos 
de cuidado.” E o personagem prossegue com a famosa imagem dos 
dois potes, dos quais Zeus retira presentes bons c maus. A alguns 
homens ele concede uma mescla dos dois; para outros, o mal em es­
tado puro, de tal modo que eles vagam atormentados sobre a face da 
terra, “descuidados de deuses c de homens” .4 Quanto ao bem em es­
tado puro, ele parece ser uma porção reservada aos deuses.
Os potes nada têm a ver com a idéia de justiça. Do contrário, a 
moral seria falsa, pois na ¡liada o heroísmo não traz felicidade. A 
única e suficiente recompensa para o heroísmo é a fama. No entan­
to. os príncipes de Homero atravessam o mundo com ousadia; eles 
temem os deuses, mas apenas como temem seus líderes. Eles sequer 
se sentem oprimidos pelo futuro.

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