
Cuidado religioso e cuidado psicológico uma questão de fronteiras
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Paiva, V. & Granato, T. M. M. (2014). Cuidado religioso e cuidado psicológico: uma questão de fronteiras. Memorandum, 27, 73-99. Recuperado em __ de _________, ____, de seer.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6372 Memorandum 27, out/2014 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 seer.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6372 73 Cuidado religioso e cuidado psicológico: uma questão de fronteiras The religious care and the psychological care: a matter of borders Vanildo de Paiva Tânia Mara Marques Granato Pontifícia Universidade Católica de Campinas Brasil Resumo Partindo do pressuposto de que as religiões se propõem ocupar um lugar significativo de suporte às vulnerabilidades humanas, investigamos o imaginário de um grupo de pessoas que buscam auxílio na Igreja Católica, mas ainda não se vincularam a ela; de um grupo já vinculado às práticas religiosas, e de um grupo de cuidadores religiosos, em termos das motivações que imaginam orientar essa busca. Apresentamos aos participantes uma Narrativa Interativa sobre o cuidado religioso, pré-elaborada pelo pesquisador, a fim de que cada participante a completasse associativamente. As narrativas resultantes foram tomadas como expressão daquele coletivo e interpretadas à luz da psicanálise winnicottiana, objetivando levantar campos de sentidos afetivo- emocionais subjacentes. Os resultados apontam para motivações pessoais variadas, além de uma profunda imbricação das dimensões religiosa e psicológica, relação esta que desafia o preparo dos cuidadores, e coloca a questão da fronteira interdisciplinar, o que nos propomos discutir neste trabalho. Palavras-chave: cuidado religioso; pós-modernidade; imaginário; narrativa interativa; psicanálise Abstract Assuming that religions are proposed to play a significant role supporting the human vulnerabilities, we investigated the imaginary of three groups: a group of people seeking aid in the Catholic Church, but who haven‟t been able to link themselves to it yet; a group that has already linked itself to religious practices; and a group of religious caregivers; In this investigation, we searched for information in terms of what each group imagines to be the reasons underlying that demand for help. We presented the participants an Interactive Narrative, preconceived by the researcher, regarding religious care, which was supposed to be completed associatively by each one of the participants. The resulting narratives were taken as an expression of each group and interpreted in the light of winnicottian psychoanalysis, in order to find fields of affective-emotional senses. The results suggest varied motivations and a profound connection between the psychological and the religious dimensions which defies the religious caregivers‟ capacities and poses the question of interdisciplinary borders. Key words: religious care; post modernity; imaginary; interactive narrative; psychoanalysis Paiva, V. & Granato, T. M. M. (2014). Cuidado religioso e cuidado psicológico: uma questão de fronteiras. Memorandum, 27, 73-99. Recuperado em __ de _________, ____, de seer.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6372 Memorandum 27, out/2014 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 seer.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6372 74 Introdução Vivemos um momento histórico controvertido. Ao lado de imensos avanços, como o desenvolvimento tecnológico, o maior acesso das pessoas aos bens de subsistência, a ampliação dos meios de comunicação com a internet, as conquistas sociais de grupos minoritários e o crescente processo de libertação das ditaduras políticas e econômicas em várias partes do mundo, assiste-se, paradoxalmente, ao crescimento do individualismo e às conseqüentes dificuldades nos relacionamentos interpessoais, à proliferação de incertezas quanto ao futuro, ao sentimento de insegurança relacionado à rapidez com que tudo muda, à perda das referências até pouco tempo tidas como absolutas ou sustentáveis, ao aumento da depressão e de outros sofrimentos emocionais, à ameaça de desintegração planetária, ao consumismo que fomenta a competição e à busca de status e poder como condição para “ser alguém”. Testemunhamos hoje o colapso das grandes propostas trazidas pela modernidade, bem como a dolorosa consciência da relatividade, caducidade e finitude iminente da vida. Se a proposta moderna se contrapunha à “era das trevas” – assim era chamada a Idade Média – e trazia consigo a presunção de resolver os sérios problemas da humanidade pelo uso da razão, prometendo o “paraíso terrestre” do bem estar, da prosperidade, da saúde, da paz mundial, do progresso e da felicidade, o século XXI deixa entrevera frustração dessas promessas e o cansaço de lutas infindas por resultados tão contraditórios. A realidade contemporânea é plural e, para uma boa parcela das pessoas, assustadora. As inúmeras possibilidades e caminhos, e principalmente a atribuição da escolha direcionada ao próprio sujeito, resultam nos sentimentos de desamparo e caos. No dizer de Crespi (1999), o momento atual é marcado pelo aumento de complexidade decorrente da acentuada diferenciação dos âmbitos de significado e pelo pluralismo das fontes de produção dos valores e dos modelos culturais. Neste contexto, tanto os indivíduos quanto os grupos sociais têm dificuldade para achar referências de sentido suficientemente unitárias e coerentes (p. 09). Reduzir tal complexidade é uma das principais razões – talvez a mais importante – que explica a emergência da busca espiritual e religiosa atual, o reaparecimento da “sedução do Sagrado e do Divino, des-reprimido e incontrolável” (Bingemer, 1998, p. 79), ainda que não se assista, concomitantemente, ao fortalecimento das instituições. Em muitos casos, a palavra do representante religioso ou de alguém por ele autorizado passa a ser fonte de orientação, e funciona como “bússola” a apontar alguma direção. Satisfeita essa demanda, pode acontecer, e não raras vezes isso se verifica, que a instituição religiosa tenha sua importância relativizada, restando a vivência da pessoa e as marcas do atendimento oferecido no âmbito da religião. Já não são as igrejas ou religiões institucionais que criam necessariamente o Paiva, V. & Granato, T. M. M. (2014). Cuidado religioso e cuidado psicológico: uma questão de fronteiras. Memorandum, 27, 73-99. Recuperado em __ de _________, ____, de seer.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6372 Memorandum 27, out/2014 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 seer.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6372 75 espaço da experiência religiosa. Antes, pelo contrário, elas perdem força e deixam o sagrado solto, entregue às vivências pessoais, individuais em processo crescente de privatização e individualização (Libânio, 1998). A necessidade de encontrar um sentido para a vida é elemento constitutivo do ser humano, racional e criativo. Organizar a existência, ter certa clareza quanto aos rumos a ser trilhados, ver alguma lógica nos fatos, são desdobramentos da nossa capacidade de pensar e refletir sobre a vida. Não satisfaz simplesmente viver. É necessário interpretar. E o caos se instaura quando não se encontra um porquê. “Nas situações decisivas da vida: na confiança humana, na amizade, no amor, na doença, no falimento diante da morte, coloca-se sempre o problema do sentido, da totalidade de sentido da vida” (Costa, 2010, p. 10). A religião se propõe preencher um espaço de respostas às questões fundamentais da vida humana, oferecendo chaves interpretativas. Atribuir ao Sagrado o destino