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A Formação do Psicanalista - Jean Paul Valabrega

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-------------------------------------------- — —1
Jean-Paul Valabrega
A FORMACAO DO 
PSICANALISTA
A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA
lá; &
Ltcrar ia
Marfins Fonfes
Editoia Lida.
S l O P A U L O :
RUA DR. VILA NOVA, 309 
CEP 01222 - TEL.i (011) 259-8838
R I O O E J A N E I R O :
RUA OA ALFÂNDEGA, 91 - C 
CEP 20070 - TEL.i (021) 221-2823
 
 
 
 
 
 
Jean-Paul Valabrega
A FORMAÇÃO 
DO PSICANALISTA
TRADUÇÃO
Roberto Cortes de Lacerda
REVISÃO TÉCNICA 
Fábio Herrmann
Título original:
La Formation du psychanalyste 
O Copyright by Belfond, Paris, 1979
1“ ediçSo brasileira: março de 1983
Revisão: Monica Stahel Monteiro da Silva 
Preparação de original: Elvira da Rocha Pinto
CIP-Brasll. Catalogaçào-na-Publlcaçáo 
Câmara Brasileira do Livro, SP
Velabroga, Jean-Paul.
A formação do psicanalista / Jean-Paul Vala-
broga j tradução Roberto Cortes de Lacerda ; 
revisão tícnica Fábio Herrraann. — São Paulo ; 
Martino Fontes, 1983.
(Psicologia e pedagogia)
1. Paic&nálise X. Título*
CDD-150.195
Indloaa para catálogo slstamállco:
I, Paiaanáliae : Teorias : Psicologia 150.195
Produção gráfica: Nilton Thomé 
Aitistentc de produção: Carlos Tomio Kurata 
('omfHisiçâo: Ademilde L. da Silva 
Revlado tipográfica: Hercílio de Lourenzi 
Paute up: Newton Guarino Filho 
Ctf/w Vltorino C. Martins
Todos os direitos desta edição reservados à 
LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. 
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 
01325 - São Paulo SP Brasil
índice
Introdução.................................................................................................. 1
I. A psicanálise científica..................................................................... 15
ti. Os caminhos da formação psicanalítica........................ ................... 33
III. Novas observações sobre a formação psicanalítica......................... 57
IV. O fundamento teórico da análise quarta............................................. 75
V. A interpretação latente...................................................................... 91
VI. Ideologia e mitologia sob o ângulo da psicanálise.........................109
As obras completas de Freud a que remetemos o leitor são indica­
das pelas seguintes abreviações:
GW: Gesammelte Werke. Londres, Imago, 1940-1952.
SE: Standard Edition of the Complete Psychological Works of 
Sigmund Freud. Londres, The Hogarth Press, 1966-1977.
Introdução
“A situação é boa, mas não é desespe­
rada. ”
Um combatente de Budapeste, 
citado por Paul Guimard.
1
O estado atual da psicanálise sem dúvida não é o único que apresenta o 
quadro de uma situação desordenada, confusa, cacofônica, de árdua 
compreensão. A economia, a política, as ideologias, o ensino, a questão 
social e o problema das bases institucionais poderiam hoje oferecer 
outros tantos exemplos paralelos, o que apenas ressalta em cores mais 
vivas a generalidade e, portanto, a importância do fenômeno. E a pala­
vra crise, com toda a sua imprecisão, que acode por certo ao espírito 
para pintar um tal estado de alma individual ou coletivo; e cumpre lem­
brar que há meio século, em 1929-1930, reflexões desse gênero tinham 
inspirado a Freud o seu ensaio sobre O Mal-estar na Civilizaçãot1). A 
idéia e o diagnóstico não têm portanto nada de tão novo quanto às 
crenças, ignorâncias e pretensões que certos autores contemporâneos 
pretendem fazer crer. Mas, em matéria de mal-estar, o que não nos diria 
hoje Freud!
Para ficarmos no domínio da análise, evitando as extrapolações 
abusivas, não é muita a unidade teórica que ainda subsiste entre os pós- 
-freudianos. Ao contrário, estamos em presença de um volume desorde­
nado, de uma inflação de teorias, e muitas delas infelizmente têm por 
característica essencial a logomaquia e a prolixidade.
Existe aí, na disciplina teórico-clínica herdada de Freud, e original 
entre todas as outras, um estado que se deve designar pelo nome que lhe 
é próprio, mesmo que o seu reconhecimento seja muito desagradável 
para o analista: um certo vaguear.
Com efeito, a situação não é melhor, mas pior, e produz mais
(1) Cf. Freud, S. Das Unbehagen in der Kultur, 1929-30. GW XIV, p. 421. SE XXI, 
p. 57. \SEB XXI — O Mal-estar na Civilização ].
4 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
consequências graves, quando nos voltamos para a prática analítica, ou 
melhor, para as verdadeiras ou pretensas práticas analíticas — porque 
também não há qualquer unidade nessa matéria. E ainda forçoso reco­
nhecer, neste ponto, que existem práticas confessadas e outras inconfes- 
sadas (e até inconfessáveis) da análise e das “técnicas” que — é este o 
termo adequado — daí decorrem. Freqüentemente causa-nos pasmo 
saber, mais através dos pacientes do que dos colegas, o que se faz de 
todos os lados sob a proteção e a garantia da psicanálise, claramente 
espezinhada, desnaturada, estragada e falsificada.
Não estudaremos as aplicações múltiplas, por vezes chamadas “de 
inspiração analítica” graças a um escandaloso abuso de linguagem, e 
que vão desde a massagem, o relaxamento, a manipulação do corpo, até 
o grito provocado; desde as técnicas de grupo até a consulta telerradio- 
fônica, passando pelos trabalhos práticos de sexologia; digamos apenas 
o seguinte: todo ano é colocada em circulação, no “mercado do mal- 
-estar”, da oferta e da procura de cuidados, de socorro, de assistência, 
de atenção e de conselho, uma quantidade inumerável de “especialistas”, 
de “peritos” cujas práticas é impossível definir e não merecem a menor 
garantia.
Em compensação, todos esses “técnicos”, analistas ou psicotera- 
peutas propriamente ditos, ou assemelhados, são unânimes em dar como 
referência, direta ou indiretamente, em maior ou menor dose, uma. for­
mação analítica — que aliás eles, de fato, completaram ou não — e, por 
conseguinte, não há hoje tarefa mais urgente do que realizar um estudo 
um tanto rigoroso dessa formação analítica.
Foi isso que nos levou a reunir numa pequena antologia estes cinco 
ensaios, escritos a intervalos regulares, entre 1969 e 1977, já publicados 
em revistas (algumas das quais desaparecidas), e que abordam esse pro­
blema sob os mais diversos ângulos.
Como a formação do clínico se inicia pela sua análise — princípio 
que até agora parece geralmente aceito —, nenhum analista pode desin- 
teressar-se durante muito tempo ou de modo completo pela questão, 
não falemos “didática”, mas do que se transmite, da psicanálise como 
corpus teórico e técnico, através do processo da análise e à sua margem.
Quanto a um sistema propriamente dito da formação — chamado 
ou não didático, de ensino, educativo ou pedagógico —, saibamos que 
sempre existe um: seja ele obrigatório ou optativo, rígido ou liberal, 
delimitado ou flexível, escolar ou autonomizado, regulamentado ou 
voluntário, padronizado ou difuso, explícito ou tácito, patente ou 
latente poder-se-ia dizer em última análise, segundo a distinção feita por
INTRODUÇÃO 5
Freud entre as produções da psique, e na própria estrutura do “meca­
nismo da alma”.
Assim, as práticas efetivas resultam diretamente (e elas conservam 
também uma marca irreversível disso) da maneira como os clínicos que 
as apresentam como sinal de garantia — e, como se diz, de autoridade — 
se formaram. E essa formação constitui um conjunto que vai desde a 
análise inicial propriamente dita até os “controles”(*> que designamos 
agora — veremos por que — pelo nome de quarta análise, e mesmo além, 
passando pelas “reanálises” (ou fatias analíticas por analogia a fatias de 
vida) até as sociedades, organizações, instituições analíticas que assu­
mem responsabilidades na formação, respondem pela sua competência 
ou, às vezes, a cobrem com suas máscaras e ouropéis.
É, portanto, de todo esse conjunto, ao mesmo tempo constituinte 
e constituído, que se deve partir,se se pretende estabelecer as bases de 
uma teoria coerente; e não há exagero em dizer que o futuro da análise, 
seus progressos ou seu declínio dependem dessa necessidade e desse 
esforço.
Desde o primeiro Grupo das Quartas-feiras reunido em tomo de 
Freud (1902), a fundação da Sociedade Psicanalítica de Viena (1908), 
seguida pela da Associação Psicanalitica Internacional (1910), uma expe­
riência de mais de meio século mostrou que as sociedades e instituições 
analíticas eram iguais às outras instituições humanas e estavam submeti­
das às mesmas leis.
Já que tendem sempre, com o tempo, a se converter em aparelhos 
burocráticos, em golilhas, forças que exercem sobre os indivíduos coer­
ção e censura, pressão e coação, um domínio que chega às raias da per­
seguição e do terror, todos os sistemas e padrões institucionais são maus, 
mas há alguns ainda piores que os outros^2). Por isso, basta que nossa 
ambição seja evitar o pior. Foi por essa razão que, nas sociedades psica- 
nalíticas, propusemos essa excelente regra que constituiria, a nosso ver, 
o princípio do mínimo institucional.
Temos de admitir, no entanto, que a questão do poder é inevitável. 
Mas também que o único problema da exploração do homem pelo 
homem, da alienação, que não cai nas ciladas do sofisma e da aporia não 
é a própria existência do poder — de que cada um de nós, afinal, detém
(*) Em razão da importância semântica que o termo controle adquire no texto, optamos 
pela tradução literal. Não empregaremos pois a expressão usada entre nós para designar essa 
mesma prática — supervisão, para evitar implicações semânticas que se situariam além e/ou 
uquém da análise do autor. (N. do E.)
(2) Cf. a conhecida frase de W. Churchill: “A democracia é o pior dos regimes, com exce­
ção dr todo» o» outros".
6 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
uma parcela, uma aptidão, um pendor e, como mostra a experiência, 
um desejo —, o único verdadeiro problema é o do abuso de poder. E 
contra o poder abusivo que devemos lutar sempre, no corpo social, insti­
tucional, político, e também na psicanálise, porque esta é — ou deveria 
ser — um projeto para desalienar o indivíduo.
Ora, sob esse prisma, vemo-nos diante de duas tendências extremas, 
com soluções que não convêm ao nosso propósito, que, como já se disse, 
consiste em evitar o pior:
As Sociedades oficiais — filiadas à Associação Psicanalítica Interna­
cional — caracterizam-se por uma administração burocrática centralizada 
e pela aplicação de padrões de formação rígidos, hierarquizados; contam 
também com aparelhos diretores cuja lógica interna leva inevitavelmente 
ao exercício de um poder abusivo, voluntário ou inconsciente, mas em 
todo caso incompatível com os problemas sutis e difíceis que essa admi­
nistração tem de conhecer, vale dizer, problemas que mergulham sempre 
algumas de suas raízes na matéria psicanalítica. Além disso, os comitês 
põem em prática, tanto com os analistas como com os candidatos, uma 
forma de seleção inaceitável e, de resto, prejudicial ao desenvolvimento 
e ao progresso da análise. De mais a mais, de um modo geral, toda sele­
ção pretensamente baseada em critérios objetivos ou científicos é radi­
calmente má, pois resulta nâ eliminação de alguns dos espíritos mais 
originais, e até de gênios.
Einstein jamais teria sido autorizado a fazer estudos matemáticos 
se tivesse de apresentar-se diante de um instituto de orientação profis­
sional. Por uma feliz circunstância, a orientação escolar não existia em 
sua época.
No outro extremo, uma posição de laissez-faire, também chamada 
de abertura, oriunda de proclamações de independência antiinstitucio- 
nal, não permite mais que se resolvam com uma varinha mágica os pro­
blemas da formação, pois estes continuam a ser formulados mesmo com 
a eliminação de certos limites e barreiras. E o que é pior, expulso pela 
porta, reaparece sub-repticiamente pela janela. “Política do pior” — diz- 
se às vezes, com toda razão. E, de fato, são as piores instituições con- 
suetudinárias (lei de talião, intrigas, ambição pessoal, nepotismo, geron- 
tocracia, promoção dos aduladores e dos medíocres) que vêm ocupar o 
terreno, no momento das reconstruções, desde que as instituições tenham 
sido suprimidas sem serem substituídas por coisa alguma.
Por outro lado, põde-se observar — pelo menos num caso ocorrrido 
na França que uma política dc supressão, dc aniquilamento, estava 
longe de eliminar de uma só vez o poder pessoal abusivo e tirânico, o
INTRODUÇÃO 7
“culto da personalidade” — expressão que, em política, serve para quali­
ficar as ditaduras —, ou seja, a idolatria e a alienação. Longe, também, 
de acabar com o terrorismo, físico ou intelectual, conforme o caso, 
o qual muda apenas de fisionomia e de cor, tomando-se branco onde 
antes era vermelho ou negro.
Vendo as coisas mais de cima, é toda a história do movimento, 
psicanalítico, com suas conquistas, recuos e cisões, que oscilou desde as 
origens até nossos dias entre dois perigos aparentemente contrários, mas, 
não obstante, coexistentes, e que a estão sempre ameaçando em duas 
frentes. Esses dois obstáculos são a contração z a. expansão.
Todos os analistas e todos os historiadores do movimento sabem 
que à questão da formação e da transmissão sempre coube o principal 
papel deflagrador — ou até o papel exclusivo —, sabem também que essa 
questão sempre foi o pomo de discórdia, a linha de clivagem, o casus 
belliy nas crises, conflitos e cisões por que passou a psicanálise; muito 
mais ainda que qualquer outro ponto de divergência, teórico ou prático, 
ocorrido no seio do movimento freudiano e com possibilidades de afetá- 
-lo, mas às vezes também de enriquecê-lo.
Na época em que Freud vivia no isolamento científico com um 
punhado de discípulos, naturalmente o pequeno grupo de pioneiros 
dedicava-se com entusiasmo à defesa daquilo que o próprio Freud deno­
minara “a causa”, ao desenvolvimento da psicanálise, à sua organização, 
ao recrutamento de adeptos e às conquistas em todos os domínios, desde 
a psicologia e a psiquiatria até a etnologia, a pedagogia, o direito, a histó­
ria, a literatura e as artes. Dessa maneira, a partir da teoria das neuroses, 
as aplicações da psicanálise pareciam estender-se a campos ilimitados.
O que Freud não pudera ver nessa primeira fase, já que o fenômeno 
era então inatual e assim devia permanecer durante algum tempo, é que, 
ao chegar à categoria de uma organização coletiva, a psicanálise tomava- 
-se também, paralelamente, uma religião e uma igreja, com as suas divin­
dades, as suas escrituras sagradas, o seu dogma, os seus profetas, sumos 
sacerdotes, fiéis, adeptos, e depois os seus hereges, sem esquecer, é claro, 
as formas específicas da alienação (“o ópio do povo”) que tais organiza­
ções engendram inevitavelmente como superestruturas ou como sub­
produtos.
A mesma aventura aconteceu a Karl Marx, que, ao denunciar a 
alienação produzida pelos grandes sistemas ideológicos de exploração c 
opressão — o capitalismo, a burguesia dominante, a religião —, não viu 
que o marxismo, como sistema, substituía essas estruturas denunciadas 
c combatidas, c, tal como elas, tendia a transformar-se num aparelho 
olicmmtr r opressor.
A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
Porque, em essência, é sempre a mesma história que se repete: per­
cebemos muito bem um cisco (ou falha) no olho do vizinho, mas não 
notamos um calhau (ou abismo) em nosso próprio olho.
No entanto, nesse como em muitos outros setores, foi Freud quem 
primeiro abordou de maneira inteiramente nova o estudo analítico 
desses fenômenos de alienação e de fascinação que circulam e se trans­
mitem do individual para o coletivo: foi ele ainda quem primeiro esten­
deu uma ponte de um domínio a outro.
Em Massenpsychologie und Ich-Analyse (1921)(3), Freud compara 
os fenômenos de grupo e de multidão, as rèlações entre o guia, o chefe 
(Führer)e suas tropas sujeitadas e submissas, ao estado amoroso, à su­
gestão e à relação hipnótica.
Para explicar as manifestações da “alma coletiva” tais como o espí­
rito gregário, a formação e organização de grupos, massas ou multidões, 
Freud recorre ao ideal do ego e, mais particularmente, ao mecanismo de 
identificação. Pois, se esta tem efeitos positivos, progressivos e estrutu- 
rantes numa primeira etapa — a da infância e da constituição do com­
plexo de Édipo —, pode depois, notadamente por fixação, tomar-se 
regressiva, neurótica e alienante no adulto, após o “declínio do Édipo”, 
de modo que, em muitos desses casos individuais e coletivos, é sobre a 
patologia da identificação que conviria falar com precisão.
Como exemplos de multidões organizadas, Freud toma os da Igreja 
já citada — e do Exército, que ele qualifica igualmente de multidões 
“artificiais”, ainda que a oposição natural-artificial nos pareça, no caso, 
discutível e de certa forma insuficiente. Finalmente, não escapa a Freud 
que outras organizações coletivas, como os partidos políticos — chegando 
inclusive a citar o “partidp socialista” — podem assumir o lugar da Igreja 
e produzir os mesmos resultados, isto é, a alienação amorosa dos seus 
adeptos, e a intolerância e a crueldade para com os outros^4).
Em contrapartida, seria inútil buscar nessa obra teórica a menor 
referência às Sociedades Psicanalíticas, elas próprias consideradas como 
grupos ou multidões (“Que súcia!” 9 exclamará um dia Freud, irritado), 
em que pese a essas Sociedades, nesse ano de 1921 e mesmo bem antes, 
já terem dado algumas decepções.
na A História do Movimento Psicanalítico (1914), e mais tarde 
na Um Estudo Autobiográfico (1925)<5), que encontramos vestígios dos
(3) Cf. Freud, S. Massenpsychologie und Ich-Analyse, 1921. GWXIII, p. 73. SE XVIII, 
p. 65. [SEB XVIII - A Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. ]
(4) Cf. op. dt.t ctp. V
(A) Freud, S. Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung, 1914. GW X, p. 44.
SK X I V , p. 1. [ S K B X I V A História do Movimento Psicanalítico. [
H INTRODUÇÃO 9
conflitos, dissensões, lutas e rupturas que agitaram o movimento na ver­
dade quase que desde a sua criação e, especialmente, na primeira fase 
histórica da sua expansão, com as dissidências de Adler e Jung.
Mas, quer se trate de contração ou de conquista, e até de expansio- 
nismo desordenado e de inflação à imagem de tudo o que hoje nos cerca 
— desde a economia até a cultura —, o movei central de todas essas polê­
micas, rupturas e dissidências é e continua sendo o mesmo desde a 
origem: o que é que é ou continua sendo da psicanálise, tanto na teoria 
como na prática? E o que não é ou já não é? Em outras palavras: quem 
é ou continua sendo psicanalista, e quem não o é ou já não o é? Onde 
começam o abandono, a desnaturação, a falsificação e a traição?
Evidentemente, todas essas questões conduzem invariavelmente ao 
problema do exercício e àquele — primordial — da formação.
Assim pois, singularizada entre todos os outros ramos de disciplina 
que compõem a frondosa árvore do conhecimento, a psicanálise — por 
sua essência e por sua base — tem o caráter de só avançar delineando 
uma figura em arco ou em espiral, isto é, de retomar permanentemente 
às suas origens. Sempre o retomo à origem. Privilégio? Talvez. Talvez 
um privilégio que a metapsicologia analítica compartilharia então com a 
metafísica e a ontologia; mas também um risco, perigo, desconforto, 
insegurança, desequilíbrio, inquietação, que deveriam em todo o caso 
afastar para sempre de toda forma de dogmatismo. E por isso que, com 
razão, a análise é qualificada de marginal. “À parte”, de qualquer forma.
É verdade, com efeito, que a referida estrutura, que acaba de ser 
definida como curvilínea, helicóide, turbilhonar, caracteriza ao mesmo 
tempo o movimento “regressivo-progressivo” que parece regular a maio­
ria das curas analíticas observadas in vivo, e — estreitamente paralela e 
homóloga — a evolução da própria psicanálise.
Por fim, essa figura recurvada — pensamos já tê-lo demonstrado — 
pode ser também a da construção, da invenção mítica, e, mais geral- 
mente, de todos os sistemas mitológicos^6).
Ora, a psicanálise não é um mito, nem uma ficção, nem uma fan­
tasmagoria, nem um delírio, como propalam hoje, com estranha compla­
cência, autores que, arrastados ao limite do confusionismo pela inflação 
verbal, pela glossolalia, acabam por assimilar o objeto a conhecer e 
o conhecimento do objeto, o perceptum e o percipiens, o fenômeno 
e a lei.
Por outro lado, a teoria analítica reivindica necessariamente a con-
Frrucl, S. SelhstdarsteUung, 1924-A. GW XIV. p. 33. SE XX, p. 1. [SEB XX - Um Estu­
do Autohiográ/íco. |
(<i) (lí,, <lr iioNM milorU r no prrlo: Phuutasmc, Mythe, Gorf)s et Sen». Parii, Payot.
10 A FORMA ÇA O DO PSICANALISTA
sideraçâo, o exame integral desses fenômenos e produções psíquicas 
fundamentais: mito, sonho, ficção, fantasma, delírio. E é evidente que 
não poderia ser de outra forma, porquanto a psicanálise foi, é e conti­
nuará sendo, antes de tudo, a teoria do Inconsciente.
E o que Freud jamais deixava de lembrar, sempre que fazia um 
balanço histórico e buscava entrever as perspectivas futuras.
Qual será, pois, o futuro da psicanálise, mesmo sabendo que, no 
jogo da previsão, em geral nós nos enganamos? Entretanto, ainda nesse 
terreno, enxergaríamos com maior clareza se não confundíssemos o 
fenômeno trazido à luz, o objeto encontrado, por assim dizer, por um 
ladò, com as hipóteses, as interpretações explicativas apresentadas para 
elucidá-lo, nem, por outro lado, com os usos que dele se podem fazer. 
Isso define uma tríade gnosiológica: objeto, teoria do objeto, prática 
do objeto, a que cumpre acrescentar um termo suplementar — saber o 
assunto, para compor finalmente o tetragrama completo do conheci­
mento. O descobrimento da América por Cristóvão Colombo (crendo, 
aliás, tratar-se das índias) é uma coisa. O destino dos Estados Unidos é 
outra. E o mesmo ocorre com o descobrimento dessa terra incógnita 
que é o inconsciente.
Mais do que um paralogismo, seria uma inadequação básica, uma 
incompatibilidade categórica [conceptual] falar de um futuro do incons­
ciente, assim como de um presente atual ou de um passado histórico, 
porquanto o sistema Ics. (Ubw. de Freud) está fora do tempo, para 
além mesmo não só da afirmação como da navegação, não só da ima­
nência como da transcendência. Seria mais certo abordá-lo — por via 
fenomenológica ou metapsicológica — à maneira, precisamente, de uma 
abordagem tangencial, de uma assintota, um “difícil de pensar”, uma 
perplexidade.
O inconsciente figura um misterioso, um aleatório, indeterminável, 
como disse Freud a propósito das Triebe — as pulsões —, esses “seres 
míticos”. Lugar de mitos e de mistasí*), portanto, onde se encontram os 
Eternal Ones, como lhes chamou Géza Roheim.
Entidades eternas: por uma vertente, isso se presta evidentemente 
a tomar esses “serès” ou a fazê-los passar por deuses — seres eternos. 
Donde uma das correntes — partindo do inconsciente — que arrasta a 
psicanálise, ou tende a levá-la para a religião, a fim de desagregá-la. Jung 
não é um exemplo isolado disso.
Considere-se o dito espirituoso de Voltaire: “Se Deus nos criou à 
sua imagem, nós certamente o criamos à nossa”. Por outro lado, o
(+) Iniciado». (N. doT.)
INTRODUÇÃO 11
inconsciente, como a eternidade, se encarna, se converte em carne; e vê- 
-se assim que uma migalha de pensamento religioso, teológico, metafí­
sico ou mágico — como se há de ver — está em ação, intervém, circula, 
mesmo onde ela não parece ter nada que fazer, onde ela foi expulsa, 
extirpada, e onde subsiste apesar de tudo, ainda que como simples escó­
ria. Exemplos: a confiança, a crença, a superstição, o ato de fé.
Somente as criaturas e seus empreendimentos têm, pois, uma histó­ria e um porvir, e não as entidades ou as verdades eternas. O incons­
ciente, a pulsão, o desejo, o sonho, o fantasma, o mito estão entre essas 
entidades, fatos ou verdades, cuja descoberta tem certamente uma histó­
ria, mas que já existiam antes e continuam a existir depois, fora da tem­
poralidade, indetermináveis na cadeia das origens e do começo primeiro, 
origem da origem, a qual é, entre todas e por definição, a questão sem 
uma resposta que não seja, ela mesma, mítica.
Por outro lado, são as nossas teorias e práticas analíticas que têm 
uma origem, uma atualidade e um devir — este último hipotético, como 
todo futuro. E, sob esse ponto de vista, não temos nem um otimismo 
irrestrito, nem um pessismismo exagerado.
Pode acontecer que o interesse pela psicanálise atravesse um perío­
do de declínio, que a demanda se desvie dela, se tome menor que a sua 
oferta, e se dirija para a biologia e a informática, ciências que hoje estão 
em plena expansão conquistadora. Isso já vem ocorrendo há vários anos 
na América do Norte; e, como se sabe, em muitos domínios, tanto técni­
cos como culturais, a velha Europa está seguindo as pegadas do Novo 
Mundo com um atraso de dez ou quinze anos. Contudo, além desses 
recomeços e repetições, o vaivém da história reserva também surpresas e 
imprevistos.
É possível que, em sua forma (relativamente) “pura” — o ouro 
puro, segundo a metáfora freudiana - , o exercício da psicanálise desa­
pareça, seja por decreto de um poder legal, seja através da integração em 
algum sistema de assistência médico-social; aliás, tais exemplos já existem 
efetivamente em certos países. Alguns chegam a pensar que essa evolu­
ção é inevitável. No entanto, como o inconsciente não poderia nem ser 
suprimido por um governo, nem anexado a uma nomenclatura, o mais 
provável é que as flutuações da história levem a psicanálise a retomar 
periodicamente à situação marginal, ao isolamento, à quase-clandestini- 
dade das suas origens. O que não seria, forçosamente, prejudicial ao seu 
futuro, mas, antes, a faria renascer, também periodicamente, da sua 
degradação e dos seus vestígios.
Se passarmos os olhos pela história do movimento freudiano depois 
de transcorrido um século no tempo c no espaço —, parece ser exata­
12 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA
mente essa acurva do destino dessa descoberta, quase tão surpreendente 
quanto no seu primeiro dia quando nos é dado fazê-la e refazê-la sobre 
o outro e mais ainda sobre nós mesmos. Movimento cíclico, comparável 
aos fluxos e refluxos dos grandes oceanos; alternância de marés que 
sobem até transbordar, seguidas de pequenos retornos e recessos à cal­
maria, às águas dormentes, à solidão e ao silêncio.
Como corolário, deve-se sublinhar a enorme responsabilidade que 
cabe ao psicanalista, decorrente apenas da posição que ele quis assumir: 
tradutor, decifrador, intérprete do inconsciente, isto é, detentor ou, de 
maneira mais justa e modesta, intercessor de uma verdade não-aparente, 
invisível, oculta, diferente, heterogênea, distinta daquilo a que chama­
mos real ou realidade.
É por essa razão que, se estivermos com os olhos bem abertos, 
poderemos verificar a cada dia que, no exercício da sua função, tudo o 
que o analista diz, tudo o que ele manifesta, o que ele deixa transpare- 
cer; entender ou adivinhar, o menor dos seus atos e gestos, inclusive o 
que lhe escapa, o que ele não pode ver ou entender, numa palavra, todo 
esse conjunto palpável ou inapreensível na análise ou à sua margem, 
reveste uma importância superlativa, que ultrapassa o imaginável e chega 
às vezes a provocar certo pavor. A influência duradoura, definitiva do 
analista é e continua sendo mais importante ainda do que se acredita 
para as gerações de sucessores que nele vierem a confiar.
Esse analista assim “sobreinvestido”, apenas pelo jogo dos impul­
sos irresistíveis originários do inconsciente, estaria portanto em condi­
ções de saber o que deveria dizer ou fazer; poderia também refletir 
longamente antes de falar ou calar-se e — seguindo nisso um conselho 
dado por Balint — nunca se esquecer tampouco das vias e constatações 
negativas, ausentes, subentendidas, infraverbais, que se abrem para 
aquilo que se poderia chamar de análise “apofática”.
O preceito poético de Paul Valéry, curiosamente, também se adapta 
como uma luva à intervenção psicanalítica: “Entre dois vocábulos, esco­
lher o menor”.
E, para terminar, está aberto o caminho para uma técnica e, mais 
ainda, para uma ética da modéstia, da circunspeção e da dúvida.
A função metodológica da dúvida, principalmente, ao que nos pa­
rece, deve ser sublinhada e reabilitada em psicanálise.
Esse conceito da dúvida, aqui introduzido, deve evidentemente ser 
distinguido, de um lado, da inibição, e, de outro lkdo, da hesitação 
obsessiva que muito se aproxima da evasiva e remete a um conflito entre 
o desejo e a interdição.
Tampouco se trata de cepticismo, que c uma atitude, uma disposi-
INTRODUÇÃO 13
ção da alma ou do temperamento, ou ainda uma sistematização filosófica 
da dúvida.
Mais próxima da dúvida metódica de Descartes ou — segundo uma 
óptica mais moderna — de um princípio de indeterminação ou incerteza, 
a dúvida analítica poderia ser definida pelos seguintes traços e critérios:
Ela é metodológica e criticista. Em outros termos, contém uma 
intenção que visa à descoberta, à prospecção heurística; e, simultanea­
mente, exerce uma crítica às projeções subjetivas, contratransferenciais 
e ideológicas, ou seja, introduz um ponto de vista epistemológico na prá­
tica e na metapsicologia.
Em segundo lugar, é suspensiva: situada num hiato, um intervalo 
de tempo e de espaço entre a ignorância, o conhecimento, a crença e a 
certeza.
Ora, o analista raramente pode apoiar-se em convicções totais e 
definitivas.
Freud foi quem primeiro advertiu os analistas sobre os perigos do 
orgulho terapêutico. Existe, porém, um outro tipo de orgulho que apre­
senta efeitos não menos aflitivos e perniciosos: é o orgulho teórico. E 
ele que faz com que velhos e conceituados mestres se encham de vento 
e depois, de maneira mais perigosa e por contágio, enche de vaidade os 
seus discípulos, fiéis, imitadores ou plagiários. Esses parvenus desvaira­
dos afirmam saber tudo; para tudo têm resposta, de nada duvidam e não 
duvidam principalmente da sua superioridade. Todos os outros são repu­
diados de modo agressivo e esmagados com o seu desprezo.
A dúvida analítica, ao contrário, para voltarmos ao nosso ponto, 
insinua-se e insurge-se contra a empáfia terapêutica e a ostentação teó­
rica, contra a hipertrofia narcisista da pessoa e a intumescência do seu 
verbo.
Em terceiro lugar, cumpre considerar a função metodológica da 
dúvida como provendo um intervalo indispensável entre diversos dados, 
referências e operações essenciais da análise. A dúvida é, antes de tudo, 
inerente, imanente, consubstanciai ao próprio conceito dt interpretação.
E, neste ponto, devemos distinguir entre interpretação e demons­
tração; a arte de interpretar tem de ser diferençada da ciência de de­
monstrar. À certeza produzida pela demonstração opõe-se a conjectura 
proporcionada pela interpretação.
Por conseguinte, o momento da dúvida — provisório mas necessá­
rio — ocupa o seu lugar não somente entre a interpretação exata e ine­
xata, mas também entre as diversas interpretações possíveis; e é esse 
momento de oscilação dubitativa que nos permite perceber, apreender 
uma pluralidade interprctativa e pussá-la cm revista. Entre a interpreta-
14 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA
ção explícita c latente, entre a fragmentada e a global, a dos conteúdos 
ou da forma deles, a positiva ou a negativa, a da profundidade ou da 
superfície, do inconsciente ou da defesa, a dúvida suscita o problema da 
escolha da interpretação; e, reunindo os fatores da decisão, ela também 
permite resolver esse problema e reduzir,na medida do possível, a mar­
gem do intempestivo e do arbitrário.
Uma certa dúvida lucra igualmente em ser intercalada e reiterada 
entre as estruturas psicopatológicas, de modo que permita, e até favo­
reça, as suas reordenações e metamorfoses. Esse aspecto salienta os 
caracteres próprios ao diagnóstico e ao prognóstico analíticos, os quais 
devem ser mantidos flutuantes, modificáveis, abertos, ao contrário das 
normas habituais do diagnóstico psiquiátrico.
É ainda uma escansão suspensiva que se interpõe entre a transfe­
rência e a contratransferência. Ao abrir o caminho da interpretação 
eficaz, esse espaçamento essencial é, portanto, um dos constituintes de 
uma prevenção adequada contra as atuações exteriores (acting out) ou 
seus equivalentes: em especial, as soluções somáticas que, como se sabe, 
podem alcançar extremos realmente perigosos.
Finalmente, de maneira mais geral, uma pequena dose de dúvida 
criticista aparece como um dos melhores antídotos para todas as formas 
de dogmatismo, com as suas conseqüências: o conformismo, a alienação, 
o fanatismo, até culminar, mais cedo ou mais tarde, no terror.
Mesmo que só servisse para prevenir tais resultados, coercivos, 
opressores e tirânicos até o crime — e que infelizmente nada têm de 
ilusório —, a dúvida já mereceria um lugar e um papel na higiene mental 
dos indivíduos e das sociedades.
1979
1. A psicanálise científica
Sócrates. — E essa ciência que ele agora 
possui, ele a adquiriu em alguma ocasião, 
ou sempre a teve?
Platão. Mênon, 85c?
Publiciulo pela primeira vez em L’Inconscient. Paris., PUF, nº. 8, 1969
Aqueles que — como nós — aderiram à idéia da significação mítica ima­
nente a todo nascimento não se surpreenderão com as associações que 
vamos propor: associações entre a psicanálise, o ensino — e, a fortiori, 
o ensino da psicanálise — e a filosofia grega; associações sobretudo 
com o pensamento platônico e, mais particularmente, com a dialética 
socrática.
O sentido mítico inerente a toda e qualquer origem deve ser enten­
dido de duas maneiras complementares: em primeiro lugar ele é uma 
propriedade constitutiva, estrutural, consubstanciai, da própria repre­
sentação, do conceito, do eidos do ser e da sua aparição. Isso equivale a 
dizer que não há começo que não seja, que não signifique, em sua essên­
cia, um mito. Mas também o começo, assim definido como mítico, gera, 
por sua vez, e em troca, uma gênese, um gesto. Geração é, sem dúvida, 
o termo próprio; e onde, de resto, se vê despontar, saída do próprio seio 
do mito, a idéia de repetição.
Desse modo, a significação que se busca alcançar pode ser denomi­
nada, simultânea e inseparavelmente, mítica e mitopoiética.
No berço da psicanálise estiveram presentes as divindades do Olim­
po e dos Infernos, com a intermediação dos filósofos e poetas gregos. 
Os sinais dessa presença não faltam, mesmo ou sobretudo se, como é de 
regra em tais matérias, ela permanece a princípio oculta, velada, secreta, 
para só se revelar mais tarde no preciso momento e na própria frase em 
que a presença se enuncia e se denuncia, iniciando — ou melhor, reto­
mando — o relato mítico.
Com efeito, a psicanálise é duas vezes nascida do sono. O sono, ou
17
18 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
seja, seguindo a tradição mais imemorial, mais universal, esse estado de 
todos o mais propício às comunicações com os deuses e demônios.
Na primeira vez ela nasceu do sono hipnótico e, na segunda, do 
sonho, ou seja, mais uma vez do sono, pelas criaturas que vêm povoá-lo. 
Daí, sem dúvida, essa presença inscrita por Freud na famosa frase que 
serve de epígrafe à Traumdeutung:
Flectere si nequeo Superos,
Acheronta movebol1).
Deuses e demônios; inspiração divina e cenário demonológico. Os 
sonhos são mensagens dos deuses ou produtos da alma do sonhador, 
junta ou separadamente como é de lei na trama, na imbricação, na cir­
cularidade de um contínuo mítico, e coube a Aristóteles — disse Freud 
— dar a guinada entre essas duas concepçõesf2).
E seguindo essa intuição freudiana no ponto em que se cruzam o 
mito e a história, intuição a princípio remota e como que subjacente, 
mas que não cessará de aparecer e de reaparecer ao longo de toda a obra, 
é nessa encruzilhada que a denominação aristotélica de catarse virá bati­
zar a primeira descoberta: aquela que é designada como um simples 
“procedimento”, com uma simplicidade, com uma modéstia exemplares, 
porquanto Freud colocou como ponto de honra atribuir o seu mérito 
principal a Breuer, o segundo pai<3).
Por muito menos, sem dúvida, os descendentes modernos de Freud 
reivindicam a glória de terem prestado contribuições essenciais à psica­
nálise — e não só a esta; às vezes, em sua pretensão desmedida, gabam-se 
de possuir a teoria da própria Ciência, da Ciência com C maiúsculo. . .
E então na última etapa da construção, e por não tê-la reconhecido 
e analisado como mito, que o psicanalista toma a si mesmo por um deus.
Ora, se catarse é o termo de Aristóteles que se ajusta à primeira 
descoberta, o vocábulo — socrático — maiêutica é o que se aplica ao 
segundo nascimento. A psicanálise, aliás com toda a justiça, tem sido 
freqüentemente comparada, desde a sua origem, à maiêutica; não apenas 
em virtude de certa analogia, também no “procedimento”, mas princi­
palmente, segundo cremos, porque o parto como momento inicial, ao 
mesmo tempo que como termo de passagem, é um desses fenômenos
(1) Virgílio. Eneida. [“Se não puder dobrar os deuses do céu, comoverei o Aquerontc.” 
(VII, 312) (N. do T.)j
(2) Freud, S. Traumdeutung [A Interpretação de Sonhos\. 1900, cap. 1, prefácio.
(3) Freud e Breuer, 1892-1895. A catarse, frisemo-lo uma vaa maJi, eitá ligada à hipnose
e, portanto, ao sono.
A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 19
diretamente abertos ao mito que serve de base obrigatória a todo nasci­
mento humano. De modo mais preciso, e como já se disse sobre a intui­
ção freudiana, todos os momentos inaugurais, os eventos, ou melhor, 
adventos, todas as passagens (concepção, parto, consagração do nome, 
iniciação, casamento, morte) são cruzamentos do histórico e do mítico, 
razão essencial para que elas sejam, em toda a parte, objeto de um ritual. 
A esse respeito, o rito nada mais é que a inscrição da história no mito e 
do mito na história.
A maiêutica fez sua incursão na psicanálise desde o início do capí­
tulo II da Traumdeutung [A Interpretação de Sonhos], quando Freud 
afirma que o sentido do sonho vem do sonhador e não do intérprete. 
Princípio técnico fundamental que, de resto, é inseparável da teoria.
Nesse trecho, Freud cita “a maior autoridade do Mundo Antigo 
em interpretação de sonhos ”(4), Artemidoro de Dáldis, que, por sua vez, 
procurava o sentido do sonho nas evocações e associações(I), mas nas 
do intérprete. “Diferença essencial”, sublinhou ele nesse texto.
No entanto, é surpreendente que Freud nunca tenha feito — ao 
que parece — referência explícita à maiêutica. E verdade que Sócrates 
também nunca se ocupou do sonho. Sócrates sempre preferiu recorrer 
diretamente ao mito, que, como se sabe, desempenha um papel funda­
mental nos diálogos de Platão. O aparente desconhecimento do método 
socrático, por parte de Freud, causa espécie, apesar de tudo, e perma­
nece até hoje inexplicado.
Nem por isso deixamos de pensar que o “segundo nascimento” da 
psicanálise é, por assim dizer, de essência maiêutica, e que esse primeiro 
princípio, formulado para o sonho por Freud no momento mesmo em 
que se libertava da catarse hipnótica, que esse princípio válido — repita­
mo-lo — ao mesmo tempo para a técnica e para a teoria, está muito de 
acordo com a teoria (ou o mito) da reminiscência, tal como foi exposta 
por Sócrates no Mênon.
Sobretudo não vemos qualquer contingência nessa relação do 
sonho com a reminiscência. A relação é, ao contrário, plenamente neces­
sária. Se a referência à dialéticasocrática estranhamente não comparece 
na obra freudiana, é óbvio que o que falta a Sócrates é a noção de 
inconsciente; com ela, teria inventado a psicanálise. Em Sócrates, o 
lugar do inconsciente é ocupado pelo mito; e, até o advento de Freud, 
o inconsciente permaneceu encerrado, prisioneiro no mito. A partir de 
Freud, é o mito que habita o inconsciente. E a análise passa a ocupar o
(4) Traumdeutung, <»p. I, pirtádo.
20 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
lugar que cabia ao diálogo socrático. É essa talvez a explicação desse 
“enigma de silêncio” entre Freud e Platão.
Seja como for, parece-nos ter ficado demonstrado que a catarse 
e a maiêutica estão na origem da psicanálise. E isso evidentemente sem 
aludir aos grandes mitos: a luta entre Eros e Thánatos, Narciso, por fim 
e acima de tudo Edipo, o mito “nuclear”. Todo um conjunto que só se 
revelará mais tarde, mas que, pelo que tudo indica, estava presente 
desde o início. Onde portanto, senão no Panteão antigo, transmitido até 
à mitologia propriamente freudiana!5), para só se estabelecer à medida 
que se processava a descoberta do inconsciente?
Aristóteles teve por mestre Platão, e, antes de Platão, houve 
Sófocles!
Essas breves considerações levam-nos agora a focalizar o ensino sob 
a mesma perspectiva.
Pois o ensino, ou ainda, a pedagogia!6), que constitui a sua ciência 
(ou arte?), encontra-se precisamente entre esses fenômenos que parecem 
regidos pela lei do duplo nascimento, isto é, em essência, o princípio de 
repetição.
O ensino é sempre o Doceo pueros grammaticam da velha sintaxe 
latina. De mais a mais, ele tem sempre o sentido de uma tomada, de 
uma revivescência do nascimento. Possui uma significação e uma função 
iniciatórias. Se o primeiro nascimento é nascimento do corpo (e no cor­
po), já o ensino é visto como nascimento na alma ou no espírito. Co- 
-nascimento — conhecimento preferiríamos dizer, permitindo-nos um 
jogo de palavras com noscere e nascere. . .
Desde o dokéô (ou o cogito, o “penso”) até o doceo (eu ensino), 
vale dizer, desde a opinião — e mesmo a aparência — até a opinião ver­
dadeira (Sócrates) que está no caminho, “ao lado” da ciência se não a 
própria ciência, que portanto é uma savance [“sabência”], com licença 
do neologismo, o ensino é esse co-nascimento, esse segundo nascimento 
tão claramente sugerido pela operação maiêutica.
Por conseguinte, é correto dizer que todapaidonomía (educação), 
(jue toda paidopotêsis segunda (procriação) — nome que, em um ouvido 
romano, soa tão esplendidamente evocador, porquanto a criação é, no
(5) Ai está o segredo da coleção de antiguidades de Freud; e também do problema — a 
que ele próprio chamou “neurótico** — das suas viagens, “peregrinação às fontes**; e ainda, final- 
mente, de certas expressões-chave: seres míticos, nossa mitologia, aplicadas às pulsões, essas 
essências elementares da Psique na teoria freudiana.
(6) Pais, paidós: criança.
A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 21
caso, a poesia —, todo esse processo começa e talvez até mesmo termine 
com o aprendizado da fala e da linguagem.
Para que Sócrates possa efetuar o seu experimento maiêutico, ou 
seja, nada menos do que extrair ex nihilo — da reminiscência mítica — o 
conhecimento do número tradicional, a única condição é que o sujeito 
do experimento — o escravo (!) — saiba falar grego!7).
Será então que a psicanálise, que é por excelência a fala do “sujei­
to do experimento” e o sentido dessa fala, pode ser ensinada?
That is the question.
O ensino acha-se claramente “ao lado” da linguagem, enquanto a 
análise se apóia na encosta da fala. Aí está talvez toda a diferença — 
ínfima mas enorme — que existe entre os dois.
Daí já se poderia concluir que a psicanálise não pode ser objeto 
nem matéria de ensino.
Em Platão, Sócrates introduz o problema do ensino por meio de 
uma questão, como sempre de aparência anódina: “Pode a virtude ser 
ensinada?” E o que se discute no Mênon e também no Protágoras.
Essa questão, ao contrário do que parece, não é inteiramente anó­
dina, nada tem de “platônica”, mas, por outro lado, é eminentemente 
platônica!
Ela na verdade abrange o tema maior, o Ei didaktóny que circula 
ao longo de todo o pensamento socrático.
Esse ponto não escapou a um intérprete!8), infelizmente hoje quase 
esquecido dos doutos e, por conseguinte, de seus discípulos, para quem 
criaremos o neologismo candidadouto, ainda que a candura não seja, por 
via de regra, a virtude cardeal nem dos primeiros, nem dos últimos!9). 
Doutos e candidadoutos mostram-se mais preocupados, presentemente, 
com as críticas que se possam fazer, ou seja, com a doutrina que estará 
em voga na temporada. Houve quem chamasse a isso “estar na moda”. 
Mas, como se sabe desde Leopardi, “a moda é irmã da morte, pois ambas 
nascem da caduquice do homem”.
Insistindo nesta questão socrática mais importante— periaretês [de 
virtude: sobre a virtude] —, digamos que ela poderia interessar-nos por 
mais de uma razão. Não que pensássemos por um instante sequer em 
comparar psicanálise e virtude! Isso não seria de bom-tom.
(7) Mênon, 82b.
(8) Dupréel, E. La légende socratique et les sources de Platon. Bruxelas, Sand, 1922.
(9) Náo se trata, de maneira alguma, de um simples gracejo. O leitor poderá convencer- 
-ic dc que, segundo Freud, a candura — no sentido do século XVI: franqueza total, pureza — é 
uma dai virtudes fundamentais do amüista. Acrescenta ele: um dever (cf., por exemplo, Die 
Fragp der Laienanalyst, SE XX, p. 207. \A Questão da Análise Leiga |). Candidatus: o que está 
vestido dr braneo(l).
22 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
A virtude, no entanto, náo é apenas a garantia necessária — mesmo 
como simples postulação — da vida na cidade, e portanto da política, tal 
como Sócrates, de resto, não se esquece de afirmar; a virtude é também 
o indispensável penhor da própria ciência, pois não há ciência possível 
sem a postulação do valor da verdade, e, por conseguinte, do respeito a 
essa verdade, em outras palavras, sem honestidade intelectual.
Isso equivale a dizer que a ciência não pode encontrar em si própria 
o seu fundamento; ela só o pode postular, e fora de si mesma, num prin­
cípio ético.
Essa tese provocará escândalo? Seria, digamo-lo agora ou nunca, o 
escândalo da virtude, após os seus infortúnios!
Mesmo que a verdade — para darmos outra formulação à idéia — se 
reduza à mera ramificação de uma alternativa: compatível ou incompa­
tível, como parece ser o caso, mesmo então há necessidade de uma com­
preensão justa para reconhecê-lo, e, como se diz, para registrar o fato. 
Do contrário, sairemos do domínio da verdade para ingressar no terreno 
do sofisma.
Ora, o sofisma foi outra grande preocupação de Sócrates! A vir­
tude, conclui ele, não pode ser ensinada, porque não é uma ciência; e 
isso em que pese a não ser ela distinta da opinião certa. Mas a opinião 
certa deve ser distinguida da ciência, e temos aí uma das raras certezas 
que Sócrates reivindicai10). A virtude, finalmente, só pode ser uma graça 
divina.
Não existem, portanto, mestres da virtude. Somente os sofistas 
têm a pretensão de o ser, mas os sofistas são falsificadores, mercadores 
de simulacros^11).
Sócrates, com o seu problema do ensino da virtude, na verdade, 
não nos afasta demais da psicanálise. Pois, também para esta, a questão 
é saber se pode ser ensinada, se constitui uma ciência, se há quem a 
possa ensinar ou se aqueles que se proclamam seus mestres, tal como 
GórgiaSy Cálicles ou Protágoras, não passam de imitadores, sofistas e 
“caçadores interesseiros de jovens”, como, com certa violência, afirma 
o Estrangeiro no seu diálogo com Teeteto(12).
A psicanálise, apesar das aparências, tem pois muito que ver com o
(10) Mênon, 986.
(11) Sofistay 223a, 224, 235a, b, 267e, passim. Mencionemos, porém, que certos exege­
tas apresentaram interpretações mais “otimistas”em favor do ensino da virtude; por exemplo, a 
de A. Koyré, em sua Introduction à la lecture de Platon. Nova York, 1945; Paris, Gallimard, 
1962. Mas não nos parece que essas interpretações otimistas, até mesmo com alguns traços dc 
“cientismo”, sejam rigorosas em relação ao próprio texto dos Diálogos.
(12) Sofista, 233a, b.
A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 23
problema da virtude, em seu sentido socrático, e, se se fizesse necessária 
uma prova incontestável, encontrá-la-íamos na importância extrema que 
ela atribui à idéia de pureza.
Desde a expressão “ouro puro da análise”, que Freud deixou esca­
par durante uma argumentação, a pureza conheceu um rápido êxito, ao 
mesmo tempo que, cumpre admiti-lo, a psicanálise se degradava de dia 
para dia. O catarísmo analítico, poderíamos dizer, sucedeu ao catarsismo 
das origens. Mas, segundo nos diz a experiência, a pureza — em nosso 
movimento — tem por principal função ser uma alegação, uma invoca­
ção, às vezes até mesmo uma imprecação ou uma invectiva, destinadas 
a mascarar o fato de que, muito pelo contrário, evoluímos em meio aos 
mais importunos comprometimentos.
De resto, mal se percebe como poderia ser de outra forma desde o 
momento em que uma noção troca o domínio da dialética pelo do enfá­
tico e, assim engrossada, constitui-se em objeto de reivindicação, em 
mercadoria — portanto, em objeto de regateio, e até de marketing — em 
suma, em aposta.
Temos aí o que aconteceu à noção de pureza, e a algumas outras 
que não vale a pena arrolar aqui. Pois, se dela falamos dialeticamente, é 
óbvio que a pureza não poderia existir sem as escórias que compõem, 
com ela, uma íntima mistura ou, pelo menos, a encastoam. Da mesma 
forma, numa experiência analítica, só conhecemos instantes de relativa 
pureza, que emergem de uma ganga da qual não teríamos aliás razão 
para nos desviar, na medida em que ela representa uma parte constitu­
tiva de nosso objeto.
Nunca, salvo talvez no limite sem espessura da instantaneidade — o 
que, sem dificuldade, nos levaria às aporias dos eleatas —, nunca “apre­
ciamos as coisas em sua simplicidade e pureza naturais”; e mesmo o 
ouro, que serve sempre de exemplo por ser a representação mítica da 
pureza, “cumpre misturá-lo com algum outro metal para que possa ser 
por nós utilizado ”(13).
Recorrendo a um exemplo pertencente ao domínio dessa psicaná­
lise “cátara” — expressão que utilizaremos de agora em diantei14) — 
sabe-se que um dos autores atualmente mais seguidos —Jacques Lacan — 
professa que a análise pura é idêntica, precisamente, à análise didáti­
ca^). Enquanto nós, em contrapartida, somos de parecer que a inten­
ção didática — onde quer que esteja situada — confere à análise contem-
(13) Montaigne. Ensaios, II, 20.
(14) E desnecessário esclarecer que, além de náo nos opormos às investigações “citara*”, 
trino» por cias especial simpatia no tarrann da psicanálise.
(15) laicati, J. In Anrmêir* d* /TCml* fttudirntu , 1965.
24 A FORMA Çj40 DO PSICANALISTA
porânea a hipoteca, o ponto de partida e, às vezes, o desenvolvimento, 
por mais impuros que sejam.
A aproximação entre a pureza e o didatismo, operada aqui até ao 
ponto de confundidos, deve antes de tudo ser fortemente sublinhada: é 
realmente muito evocador do tema platônico da nossa meditação.
Essa aproximação poderia facilmente nos envolver numa dessas 
controvérsias sofísticas onde Sócrates vai buscar alimento para a sua 
inspiração, e onde se demonstraria sucessivamente, por exemplo:
1) que a pureza não pode estar nas coisas, mas tão-somente nas 
idéias;
2) que a idéia de impureza pode ser, por sua vez, uma idéia pura;
3) que, por conseguinte, o puro é idêntico ao impuro, como aliás 
já se demonstrou acerca do movimento e da imobilidade(16h
Depois disso, todos se separariam para ir tratar de suas ocupações, 
e dar a boa nova aos atenienses. . .
Anágkê stênai. Impõe-se uma pausa!
Nossa disciplina analítica tem uma particularidade que talvez não 
compartilhe com nenhuma outra; sabemo-lo: a formação — em nosso 
domínio — não equivale, sob nenhum aspecto, ao ensino e, ainda menos, 
evidentemente, poderia reduzir-se a ele.
O ensino da psicanálise, mesmo que fosse possível, o que — como 
vimos — é muito contestável, não poderia de forma alguma, em nenhum 
caso, bastar a si próprio, porquanto remete necessariamente a outra 
coisa que não ele mesmo: a análise didática.
Assim sendo, é indispensável distinguir entre a psicanálise exotérica 
e a psicanálise esotérica. Queira-se ou não (e por que não se haveria de 
querer?), o futuro da análise depende do destino que esteja reservado à 
análise didática.
Todavia, a análise didática propriamente — ou impropriamente — 
dita não será abordada nestas poucas palavras dedicadas ao ensino. Ela 
ficará reservada para uma ocasião futura.
A existência manifesta, ou mesmo a oposição entre análise exoté­
rica e análise esotérica, não implica que não se possa nem se deva ensi­
nar algo ao psicanalista, se é até verdade que é impossível ensinar-lhe a 
psicanálise, e que ele deve, por conseguinte, em qualquer etapa èfh que 
se verifique o acesso à “psicanálise científica”, abandonar essa esperança.
Estamos lembrados de que, em seu artigo profético sobre a Laiena- 
nalyse(i7) [A análise leiga], bem como em outras exposições de caráter
(16) Cf. o mestre,Zenão de Eléia.
(17) IHe Fr age der Laienanalyse \A Questão da Análise Leiga], seguido de um pós-escri-
l» (1926-1927) (<1W. X I V ; S E X X ) .
A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 25
geral, Freud não se cansa de enumerar toda uma série de conhecimentos 
que interessam diretamente à psicanálise (sempre firme e unitariamente 
definida como teórico-prática), seja porque esta, em seu desenvolvimen­
to, deu a essas disciplinas idéias novas fundamentais, seja porque o psica­
nalista tinha grande necessidade de nelas haurir conhecimento, sem 
descurar as fontes vivas do seu próprio campo, e mais provavelmente 
ainda por essas duas razões ao mesmo tempo.
Sem, em nenhum momento, deixar de aludir às ciências da natu­
reza, Freud enumera assim, entre as ciências mentais (hoje denominadas 
“ciências humanas”) e de uma forma completa ou parcial conforme os 
textos: a mitologia (colocada sempre em primeiro plano) e a história das 
religiões; a sociologia; a psicologia (aliás, mais freqüentemente mencio­
nada sob a especificação de psicologia da religião); a ciência da litera­
tura. Mesmo as ciências da linguagem não deixam de compareceri18). E 
Freud lastima, nesse passo, que a psicanálise tenha, até essa data, dado 
muito pouca contribuição a tais ciências lingüísticasH19)
Mas, evidentemente, isso diz muito mais respeito à instrução do 
psicanalista do que ao ensino da psicanálise. Quando muito, significa 
que certo ensino — o melhor, talvez — poderia ser concebido pelo viés 
das contribuições recíprocas que podem ser trocadas pela psicanálise e 
pelas outras ciências. E por que as artes seriam esquecidas? O próprio 
Freud não as desprezava e nelas colheu algumas de suas inspirações mais 
seguras e duráveis. Quem sustentaria a tese de que o que ele foi buscar 
em Sófocles, em Shakespeare, em Miguel Angelo ou em Da Vinci tem 
menos valor, hoje, do que o que ele tirou de Charcot, Brücke ou mesmo 
Fcchner? A psicanálise é, ao menos, tanto uma arte como uma ciência, 
e às vezes muito rnais^20). Um analista que pretenda ser um puro homem 
de ciência, sem qualquer sensibilidade para com a estética do seu em­
preendimento — coisa felizmente quase impensável mesmo num cien­
tista — seria sem dúvida incapaz de analisar.
Isso quer dizer, também e sobretudo, que, antes de se formar, um 
psicanalista deveria instruir-se numa ou em diversas outras matérias. 
Cumpre chegar à análise, em suma, por certos itinerários, de resto muito 
diversos e tão difíceis de estudar no plano de um conhecimento geral 
quanto o é a história individual de um indivíduose, para além dos seus 
determinantes biográficos, não aprendemos, não lhe restituímos a sua
(18) E isso desde 19141 (cf. História do Movimento Psicanalttico, 1914. GW, X; SE 
X/V , |>. 87).
(19) E lambem à história.
(20) (Jf. entre dez outras rrfrrêtn ias, por exemplo: Ercud. Um Estudo Autobiográfico, 
1926. SE, XX, p. 4».
26 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA
dimensão mítica. Ora, é essa justamente uma das tarefas do empreendi­
mento psicanalítico que deveríamos comparar aqui não apenas a uma 
odisséia, mas ao cruzamento de duas odisséias.
Imaginemos um psicanalista nascido, criado, educado, instruído 
“no serralho”. Não seria essa uma situação cheia de obstáculos para ele 
e só reversível à custa de muita dificuldade? Mesmo pela análise. Sobre­
tudo pela análise.
Será que o psicanalista, como tal, pode ter alguma coisa para ensi­
nar? Aparentemente, não. Uma vez que a própria psicanálise, até mesmo 
na sua prática, não pode ser transmitida — como todas as demais ciên­
cias — apenas de maneira exotérica, não existe provavelmente um mestre 
da psicanálise, assim como não há, para Platão, um mestre da virtude.
Isso nos conduzirá pela última vez a Sócrates e aos sofistas.
Pois o que diremos daqueles que, apesar de tudo, são os mestres da 
análise, ou vêm a sê-lo, ou assumem essa pretensão, ou simplesmente 
ocupam o lugar deles? Descartemos a negação falaciosa — de essência 
realmente sofista — que consistiria em dizer que não há mestre porque é 
possível demonstrar que o eidos de mestre não está fundado na razão. 
Mesmo porque não é apenas com o mestre eidético que estamos lidan­
do: também estamos às voltas com a situação que se inicia —a minima 
— quando ouvimos um analista falar em “seus alunos” para designar 
aqueles dentre os seus “didatizáveis” que — conforme a justa expressão 
sul-americana — vêm analisar-se em seu consultório assistidos por ele; 
isso tem início com o institucionalismo do “candidadouto” e termina 
com a doutrinação cultural e, mais ainda, cultual da análise.
Que dizer do mestre da dialética? Que dizer, em última análise, do 
próprio Sócrates?
Durante toda a sua vida, Sócrates sustentou uma luta gigantesca 
contra os sofistas. Ora, o sofisma, idêntico nisso ao sistema obsessivo, é 
elaborado para derrotar a morte; para ser mais forte do que ela. Ele é, se 
o quisermos atacar ou ainda desmontá-lo intemamente debatendo as 
suas contradições, literalmente inexpugnável. Nesse combate, o dialé­
tico converter-se-á por sua vez em sofista e deporá as armas; o sofista 
dará a última palavra proferindo um “E depois?” a cada vitória do dialé­
tico, o qual, por isso, ganhará todas as batalhas, com exceção da última.
E por essa razão que Sócrates foi morto. Pode o analista escapar ao 
destino de Sócrates?
Antes de chegar ao combate decisivo e — necessariamente — de aí 
permanecer, cumpre voltar a um outro caráter fundamental da sofística.
O sofista: retor, comerciante de simulacros, imitador e mágico, 
fazedor de prestígios, mestre da virtude, diz Sócrates, não passa de um
A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 27
caçador de jovens endinheirados; os mesmos que hoje, na França, se 
chamam blousons dores.
É o próprio argumento que Sócrates viu voltar-se contra ele 
mesmo, no combate final: . . . quod corrumperet juventutem, que é 
assim, uma vez mais, ensinado às crianças. E portanto, em suma, em 
tomo do argumento pedagógico que se desenrola o drama de Sócrates 
vivo e morto. O que está em jogo é a juventude, é o nosso candidadouto, 
vestido de cambraia de linho branca, de náilon branco!
Desse modo, o grande assunto do sofista — como Sócrates bem 
sabe — não é tanto o conhecimento, a ciência, ou a verdade, ou a vir­
tude, como ele pretende fazer crer; não. E, isto sim, dominar e seduzir. 
Trata-se, pois, muito simplesmente da nossa boa e velha libido. O sofista 
é um sedutor oral. A sedução é o seu único e verdadeiro desejo. E o que 
ele joga de fato é o jogo da sedução e da morte.
Pois bem, quando Sócrates joga esse jogo com o sofista, o ponto 
mais importante onde gira o carrossel da maiêutica e da sofística é que 
o próprio Sócrates é atingido, de certa forma, pela sedução.
Para sedutor, sedutor e meio! Eis Sócrates forçado a se auto-sedu- 
zir para refutar e rachar ao meio o sedutor. Sócrates condenado — pois 
ele, na verdade, já está condenado desde esse momento — a igualar e 
superar os maiores sofistas para derrotar a sofística. Nessas condições, 
Sócrates toma-se — um pouco que seja, mas não existe pouco nesse 
domínio — um sofista, por sua vez!
Como se vê, o verdadeiro perigo está aí. E que pela virtude — se é 
lícito o termo — da sedução que está no próprio âmago da intenção 
sofista, toma-se infinitamente estreita a fronteira entre Sócrates e Gór- 
gias, entre o dialético e o retor que, esse, não necessita de um saber, mas 
apenas de um saber dizer(21). Essa fronteira não tem mais que a espes­
sura de um fio de cabelo. Ora, não é tão mais fácil dividir um fio de 
cabelo em dois do que cortá-lo em quatro(*), que é a atividade sofista 
por excelência.
No diálogo com o Escravo, que se desenrola diante de Mênon, e 
constitui uma fascinante demonstração de maiêutica, um desempenho 
extraordinário, um “número” que, por isso, se transformou num clás­
sico eterno, não é menos evidente que Sócrates “exagera”, induz sutil e
(21) Górgias, 495a-c. Sofista, 233a, b.
(*) Trata-se de um jogo de palavras que não logramos traduzir. O recurso é similar ao 
w»4ido por Machado de Assis em “Antes cair das nuvens que de um terceiro andar’’. Couper un 
< h fvêu (les cheveux) en quatre é procurar sutilezas, fazer distinções sutis, ser minucioso demais. 
A expressão portuguesa que de certa forma lhe corresponde é: “Catar pulgas em dorso de ele- 
Untr”. (N. doT.)
28 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
sub-repticiamente o sujeito-escravo pela própria habilidade das pergun­
tas e, numa palavra, tira notável partido da sugestão para fazê-lo dizer o 
que ele, Sócrates, pretende provar.
Depois de opor alguma resistência a essa “tremelga do mar” (Sócra­
tes) que entorpece a sua vítima*22), é surpreendente a complacência de 
Mênon em admitir a demonstração. É que ele próprio está dominado, 
entorpecido, sugestionado, hipnotizado, como atestam os seus protestos 
cada vez mais tímidos: “Tens razão, Sócrates, embora eu não saiba 
como”*23), até submeter-se inteiramente ao mestre da dialética. . . 
Assim, não há dúvida de que uma das forças da ação maiêutica reside 
na sugestão, essa mesma sugestão cujos efeitos Freud muitas vezes escla­
receu que, mesmo na mais pura das análises, era impossível eliminar. A 
sugestão atua como sedução, com ou sem a nossa anuência; e se, no 
final das contas, Sócrates explica as razões que o levam a ser a “tremelga 
do mar”: não só porque isso demonstra a sua própria perplexidade*24), 
mas sobretudo porque assim procede no interesse do escravo, “por mo­
tivo justo”, em síntese*25), quer isso dizer principalmente que o único 
penhor da dialética nas mãos do dialético não é, em última análise, mais 
do que a própria virtude.
Estariam essas observações afastadas da relação entre mestre e dis­
cípulo, ou não introduziriam elas na essência oculta da referida relação, 
nesse ponto perigoso em que o mestre, transpondo o imperceptível 
limite entre dialética e sofisma, entre maiêutica e erística, entre ciência 
e retórica, instaura com o aluno a relação de sedução mútua? E precisa­
mente nesse cruzamento que o mestre, de sábio que era, se transmuda 
em sedutor e toma-se o representante (comercial) da sua ciência. Sabe- 
-se a que preço — a cicuta — Sócrates escapou a essa degradação, e uma 
tal atitude extrema é a única que podia convir — não há dúvida — ao 
remate do mito platônico.
Do contrário, pode-se imaginar que o mestre vencedor teria sido, 
naturalmente, o único a não ver aquilo que, para todos, se tomaria mo­
tivo de indignaçãoou de sarcasmos: que os seus discípulos amados 
e enamorados só faziam devolver-lhe a sua própria imagem. E que, se 
por não ser possível, esses discípulos tivessem pensado em converter — 
para se livrarem dela — a alienação numa teoria, só de forma introspec- 
tiva poderiam perceber, e isto é ainda duvidoso, alguns dos seus raros 
estigmas.
(22) Mênon. 79e;80d,
(28) Ibid., 86b-d.
(24) Ibid, 80c.
(25 Ibid., 84a-d.
A PSICANÁLISE CIENTIFICA 29
Aproveitando o ensejo de estarmos, por mais um momento, em 
companhia de Sócrates e de seus sofistas, e dos discípulos que ele não 
teve, o que dizer, por fim, da oposição — apurada há pouco no Górgias 
— entre o saber verdadeiro e o saber dizer, entre a verdade e a falsa ciên­
cia, mais fundamentalmente ainda, entre o saber e a verdade? Pois em 
tudo isso, como diz também Platão, ó que está em foco é sempre a ver­
dade.
Trata-se de um tema tão repisado que, mesmo neste momento, 
cumpre admiti-lo, hesitamos em abordá-lo, tão grande é o risco em seme­
lhante conjuntura de não fazermos mais do que juntar uma voz — ainda 
que discordante — ao coro que tem os favores da moda e uma audiência 
certa.
Mas, no final das contas, são as nossas meditações socráticas que 
tomam essa conclusão inevitável!
Mas, ainda aqui, escutemos o que nos diz Sócrates. Em primeiro 
lugar, é evidente que a distinção — antes que a oposição — entre saber e 
verdade se impõe, se não a toda e qualquer ciência, pelo menos a toda 
filosofia da ciência e do conhecimento, a toda epistemologia e, em 
maior grau, à psicanálise, já que ela é a maiêutica do sentido, a maiêu­
tica do outro sentido, para sermos ainda mais explícitos.
Sócrates, por seu tumo, proclama aos quatro ventos que nada sabe, 
ou, mais filosoficamente — e inaugurando assim um caminho princi­
pesco da filosofia primeira que se tomará tradicional, estendendo-se até 
Descartes e depois à fenomenologia —, diz que a única coisa de que está 
certo é da sua ignorância.
Sócrates também não desconhece a função do silêncio e da reticên­
cia. Convém insistir sempre, por exemplo, no fato de que, no Sofista, 
Sócrates, embora presente, permanece quase silencioso. Ele intervém, é 
certo, mas suas palavras são ditas por outra personagem. Será que isso 
não evoca em nós alguma lembrança?
Quanto ao próprio Sócrates, ele recebe os participantes, dá o pon­
tapé inicial. Foi ele que marcou o encontro!
Mas o que se deve ver sobretudo, no imo, é que a ignorância e o 
silêncio em tela são suspensivos. Vale dizer: teleológicos, metodológi­
cos, heurísticos. Trata-se do silêncio de quem pode falar e da ignorância 
de quem sabe, e não, de forma alguma, do silêncio do mudo ou da igno­
rância do ignaro.
Uma é a ignorância ante; a outra, a ignorância post. Trata-se da 
segunda: cm outras palavras, da ignorância sábia ou douta ignorância*26).
(26) Cf. Nicolau clr Cuia. De Poete Ignorontk, 1440. De la docte ignorance, tr»d. fran­
zia, Pariu, K. Álea», 1080.
30 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
O não-saber socrático é em suma um truque, um ardil, assim como o 
serão a dúvida metódica (metodológica) e a epokhê fenomenológica. A 
respeito dessa ignorância, pode-se dizer o que quase proverbialmente já 
se disse de Deus: um pouco de ciência nos afasta dela, muita ciência a 
ela nos conduz.
Por conseguinte, o que é de recear, na distinção entre o saber e a 
verdade, não é a distinção em si própria, visto que ela tem sua base, mas 
um certo uso que dela se pode fazer e que, aliás, já está em voga. E esse 
mau uso que convém examinar e passar pelo crivo da crítica.
Entre saber e verdade existe, em primeiro lugar, a passagem de um 
distinguo a uma oposição. Ora, não é evidentemente por não serem as 
mesmas que essas duas coisas são opostas, contrárias ou antagônicas. A 
essas doxografias grosseiras — como diz Platão —, e quer se proponha 
um único ser (Parmênides), dois (Alcméon), três (Ion), quatro (Empé- 
docles), uma infinidade ou nenhum (Górgias), Sócrates já lhes fez jus­
tiça em vários passos do Parmênides, do Teeteto ou do Sofista<27). A 
passagem ao limite, portanto, transforma nesse caso uma proposição 
verdadeira (a distinção) numa falsa (a oposição).
De sorte que acabamos por contrastar verdade e saber: deslizamos 
sub-repticiamente ddi suspensão à recusa, e é para concluir “em nome da 
verdade” que se chega ao ponto de recusar o saber. Pois bem, temos de 
dizer que tudo isso não passa de um terrível equívoco. Enquanto o não- 
-saber socrático e a ignorância douta pertencem à ordem teleológica da 
suspensão, a recusa do saber, essa, nada tem em comum com a docta 
ignorantia: é simplesmente uma inépcia.
Depois, essa mesma oposição dissimula um sofisma inconsciente, 
que se poderá indiferentemente qualificar de sofisma de justificação ou 
de álibi, pois ele merece igualmente ambas as denominações e lhes 
desempenha as funções. Eis o que ele é: “Como o sábio se diz ignorante, 
o ignorante, ao proclamar a sua ignorância, igualar-se-á portanto ao 
sábio e se tomará um seu igual”.
A esse processo, que nos parece fundamental em psicanálise eru­
dita, isto é, em psicanálise ensinada, propomos que se reserve o nome de 
identificação sofistica. Ora, é fácil entender que um elemento sofístico 
entre provavelmente em toda identificação, seja ela qual for. Entretanto, 
nos casos gerais, a análise não tardou em desmascarar o sofisma, ao 
passo que nessa relação muito particular entre mestre e aluno, e que,,de 
maneira inequívoca, impregna a relação “didática”, ele assume uma gra­
vidade especial por ser, de certa maneira, perenizado. Em outras pala­
(27) Sofista, 242d.
A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 31
vras, o mestre aí se acha cativo, enquanto o aluno é captado. Na relação 
de identificação sofística, é o anterior e o ulterior que se acham confun­
didos, o ignorado com o ignaro, alhos com bugalhos. Assim, desse mau 
uso, que se resume numa oposição falaciosa, não é de forma alguma a 
verdade ou a “teoria da Ciência” que surgem, mas, isto sim, o álibi da 
ignorância, na identificação sofística. Já não se trata da douta ignorân­
cia, mas da ignorância satisfeita, gloriosa, sistematizada.
A psicanálise, decerto, nada tem que ver, fundamentalmente, com 
a pedagogia. Numa ampla medida, ela chega a ser o seu contrário, por­
quanto substitui o conhecimento “já feito”, constituído, por um conhe­
cimento “por fazer” e constituinte a que se pode, por exemplo, chamar 
verdade. Ou mito. . . pois a verdade participa do mito, que pode, sob 
esse aspecto, ser definido como o ponto em que se cruzam o constituinte 
e o constituído.
Mas a psicanálise científica — aquela que tem uma teoria para ser 
ensinada — retoma necessariamente à lição. Ela ensina. E como, no en­
tanto, ela pretende ignorar isso, para não se contradizer em sua própria 
essência, encontra-se diante de um perigo, ainda mais que qualquer 
outra ciência, de transpor a fronteira em que a pedagogia se projeta na 
demagogia: simulacro da parte do mestre sedutor, imitação da parte do 
discípulo seduzido que, por sua vez, se transforma em sedutor.
Simulacro e imitação: estamos no mesmo grupo, nesse jogo de 
enganados em que todos têm uma “boa opinião”, a melhor possível, 
sobre o outro; essa sociedade mútua de contemplação em que o aluno 
admira o mestre e este admira a si próprio na imagem que dele lhe dá 
o seu discípulo.
Com o Estrangeiro do final do Sofista, dir-se-á, o que se aplica 
palavra por palavra à identificação sofística: “A imitação que se apoia 
na opinião daremos o nome de doxomimética; e à que se apóia na ciên­
cia chamaremos mimética sábia”(28).
Será possível tirar daí um preceito de psicanálise erudita? Ao mes- 
Ire nada se pode dizer. Pois, desde que se tomou mestre, há uma carrada 
dc anos, ele, segundo tudo indica, só faz escutar a si próprio, e, por con­
seguinte, por toda a parte “.ouve ressoar o doce nome de Amarílis”(*). 
Essenome, no entanto, é o seu.
Ao candidadouto, mas sem grande ilusão tampouco, pois esse não 
saboreia as palavras, e sim a boca que as pronuncia, poderíamos citar
(28) Sofista, 267e.
(*) Ucininwcôncia vir^ilianu: Fortnoxam resonare doces Arnaryllida . . . (Bucólicas, I, 5.) 
(N. <lo T.)
32 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA
apenas uma das injunções da velha tradição comercial: “Evitem as imita­
ções”! . . . Em todas as acepções do termo.
Depois dessas breves considerações analítico-platónicas consagra­
das ao mestre e ao seu discípulo (por haplologia, o candidouto), numa 
próxima vez tentar-se-á dizer alguma coisa sobre essa mesma persona­
gem apanhada na tarefa formadora (o candidato, mais uma vez por 
haplologia).
Mas, desde já, o comércio com Platão e a escuta socrática nos ensi­
naram — ou nos lembraram — uma coisa que poderia ser de importância 
fundamental no início da próxima etapa. Além de uma modéstia, de 
uma humildade que é sempre útil lembrar aos detentores ou dispensado- 
res do conhecimento, e mais ainda àqueles que se proclamam mestres da 
virtude, a lição socrática é que a virtude não pode ser ensinada, ao passo 
que a ciência o pode. Outros dirão até que ela deve, transportando-nos 
aliás, nesse ponto, da ordem da axiomática para a ordem da axiologia.
Todavia, a parte científica dos nossos conhecimentos, a ciência, 
não pode efetivamente encontrar sua garantia nem seu fundamento em 
si própria; mas quanto a essa garantia, a ciência a deve buscar, formular 
ou pressupor, ela a deve postular — ainda que de maneira implícita — 
nessa virtude mesma que escapa à sua jurisdição, ao seu saber, e conse- 
qüentemente, à sua transmissão.
Esse apelo necessário, em última análise, a uma transcendência da 
ética não deve causar espécie a ninguém. Como já se disse, a garantia da 
ciência só pode estar num conhecimento correto.
Por acaso não se poderia pensar, portanto, na existência — não 
digamos de uma virtude, para evitar o risco de um escândalo — de uma 
qualidade peculiar ao ensino, isto é, à transmissão da ciência e, da 
mesma forma, de uma qualidade específica à formação, ou seja, à trans­
missão da aptidão?
Em termos mais precisos: qualidades próprias, por um lado, ao 
ensino e, por outro, à formação, qualidades que seriam as principais 
condições de possibilidade de todo ensino ou de toda formação?
Essas qualidades específicas, onde deverão ser situadas? No mestre 
— no que tange ao ensino —, no analista — no que tange à formação ana­
lítica —, ou no aluno, no candidato?
Ou antes em algo — objeto, ato ou processo — que ocupa um lugar 
eqüidistante entre os dois protagonistas?
Sem dúvida, essa questão da qualidade específica é tão antiga 
como a própria reflexão. No entanto, no mundo atual e principalmente 
no mundo psicanalítico, pode ser que essa antigüidade venha a assumir 
uma feição de novidade singular.
2. Os caminhos da j 
formação psicanalítica ?
“Conheço um indivíduo que, quando lhe 
pergunto o que sabe, pede-me um livro 
para aí o mostrar; e não ousaria dizer-me 
que tem sarnas no traseiro sem antes ir 
consultar o dicionário para ver a acepção 
de Sarna e de Traseiro.”
Montaigne. Ensaios, I, 24
Publicado prlii primeira ve/, m Toftü/uc. Pari», IM »K, m> |( 19(p)
No capítulo anterior, tentamos examinar o problema do ensino da 
psicanálise.
Deliberadamente inspirado em Freud e Sócrates, esse estudo chega 
a duas idéias que, de resto, não constituem uma novidade sensacional, 
pois desde longa data os autores analistas, com certa constância ou de 
modo mais ou menos periódico, se viram conduzidos até elas:
1? A psicanálise não pode ser ensinada da mesma forma que as 
demais ciências. Talvez nem sequer seja uma ciência. Ou, quando muito, 
se, no conjunto teórico-clínico por ela constituído, algumas de suas par­
tes se prestam a um tratamento, a uma estruturação científica ou de 
aparência científica, outras há que se assemelham mais à arte, ou ainda 
â virtude, no sentido socrático do termo.
2? Existe em psicanálise uma distinção entre ensino e formação, 
distinção essa que é englobada pela distinção entre exotérico e esoté­
rico; isso se deve, sobretudo, ao papel fundamental exercido pela análise 
dita didática. Esse papel é de tal ordem que, a cada nova geração analí­
tica, pode-se dizer que o próprio destino da análise e todo o seu futuro 
lhe estão subordinados.
Em psicanálise, a referida distinção entre ensino e formação está 
longe de ser meramente retórica e acadêmica; ao contrário, mostra-se 
tão definida, que somos levados a indagar — como veremos — se, em 
certos casos muito comuns da prática formadora, ela não se torna 
incompatível. E cumpre-nos admitir que diante dessa questão, que 
decorre diretamente da transmissão, com a qual nos vemos diariamente 
confrontados, tanto os analistas “em exercício” quanto os “postulan­
tes” se encontram no mais profundo embaraço.
36 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA
Prova-o a observação que tivemos o ensejo de fazer em data ainda 
bem recente, durante um congresso que terminou em cisão, já que, em 
vez de pactuar com um sistema de formação imposto em condições que, 
a nosso ver, eram das mais duvidosas, fomos obrigados a deixar a socie­
dade de que fôramos um dos primeiros fundadores!1). Durante essa 
assembléia vimos um colega, por quem pessoalmente nutríamos muita 
estima, estruturar sua intervenção em tomo tão-somente da preocupa­
ção de evitar proferir esta “terrível palavrinha vinda do grego”; tratava- 
-se, é claro, do vocábulo didática, assim subitamente promovido à emi­
nente dignidade aterradora de objeto tabu.
Ora, se naquilo que nos concerne estamos longe de condenar uma 
preocupação com o rigor terminológico, tendo mesmo tido ocasião de 
propor numerosas modificações de termos e sobretudo de conceitos, 
não podemos deixar de afirmar que é necessário pôr alguma coisa atrás 
(ou adiante) das palavras, mas em todo o caso em relação estreita com 
elas; por exemplo, uma mudança verdadeira e autenticável — isto é, que 
possa ser justificada — da prática formadora, por trás da mudança do 
termo “didática” ou da sua supressão. Em outras palavras, por trás da 
indispensável crítica terminológica, é preciso antes de tudo que a pala­
vra deixe de exercer um papel de mero álibi ou uma função quer de 
objeto fóbico, quer de objeto fetiche.
Certamente não defendemos o termo “didática” — e ainda menos 
o termo “controle”, como se verá — na medida em que tais vocábulos 
arrastam consigo um passado teórico e prático que vai até a aberração, 
sobretudo porque esse passado confunde permanentemente ensino com 
formação, e não consegue, de modo algum, dar um conteúdo utilizável 
e utilizado a uma distinção que, no entanto, é tão necessariamente 
imposta pelo próprio exercício analítico.
Em contrapartida, nada ou quase nada se modifica nos proble­
mas suscitados pela formação quando se suprime pura e simplesmen­
te o termo “didática”, nem quando alguém se limita a propor novas 
denominações para os representantes da “população” de postulantes 
— objeto das preocupações ansiosas e ambivalentes dos psicanalistas 
em sua área, não menos que dos políticos na deles. “Estudantes”, 
alunos, candidatos, universitários, discípulos ou “bacharéis” — segundo 
um dos últimos vocábulos inventados!2). A multiplicidade de nomes 
dissimula aqui a identidade da coisa, e elide o problema ao invés de 
defini-lo.
{1) TraU-ir da Esc o ia Freudiana d* Paris.
(2) <XJ. Ut mi, ln Scilictt, Perl», Seuil, HlfiH.
OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA 37
“Assim, quando dizemos os Outros diferentes do Uno e o Uno 
diferente dos Outros, essa dupla enunciação do diferente não tem em 
absoluto o efeito de transportar o seu nome para uma natureza nova; 
ela só designa, em ambas as oportunidades, essa natureza própria a que 
o nome pertence originariam ente.^W
I. O problema criteriológico

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