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-------------------------------------------- — —1 Jean-Paul Valabrega A FORMACAO DO PSICANALISTA A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA lá; & Ltcrar ia Marfins Fonfes Editoia Lida. S l O P A U L O : RUA DR. VILA NOVA, 309 CEP 01222 - TEL.i (011) 259-8838 R I O O E J A N E I R O : RUA OA ALFÂNDEGA, 91 - C CEP 20070 - TEL.i (021) 221-2823 Jean-Paul Valabrega A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA TRADUÇÃO Roberto Cortes de Lacerda REVISÃO TÉCNICA Fábio Herrmann Título original: La Formation du psychanalyste O Copyright by Belfond, Paris, 1979 1“ ediçSo brasileira: março de 1983 Revisão: Monica Stahel Monteiro da Silva Preparação de original: Elvira da Rocha Pinto CIP-Brasll. Catalogaçào-na-Publlcaçáo Câmara Brasileira do Livro, SP Velabroga, Jean-Paul. A formação do psicanalista / Jean-Paul Vala- broga j tradução Roberto Cortes de Lacerda ; revisão tícnica Fábio Herrraann. — São Paulo ; Martino Fontes, 1983. (Psicologia e pedagogia) 1. Paic&nálise X. Título* CDD-150.195 Indloaa para catálogo slstamállco: I, Paiaanáliae : Teorias : Psicologia 150.195 Produção gráfica: Nilton Thomé Aitistentc de produção: Carlos Tomio Kurata ('omfHisiçâo: Ademilde L. da Silva Revlado tipográfica: Hercílio de Lourenzi Paute up: Newton Guarino Filho Ctf/w Vltorino C. Martins Todos os direitos desta edição reservados à LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325 - São Paulo SP Brasil índice Introdução.................................................................................................. 1 I. A psicanálise científica..................................................................... 15 ti. Os caminhos da formação psicanalítica........................ ................... 33 III. Novas observações sobre a formação psicanalítica......................... 57 IV. O fundamento teórico da análise quarta............................................. 75 V. A interpretação latente...................................................................... 91 VI. Ideologia e mitologia sob o ângulo da psicanálise.........................109 As obras completas de Freud a que remetemos o leitor são indica das pelas seguintes abreviações: GW: Gesammelte Werke. Londres, Imago, 1940-1952. SE: Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. Londres, The Hogarth Press, 1966-1977. Introdução “A situação é boa, mas não é desespe rada. ” Um combatente de Budapeste, citado por Paul Guimard. 1 O estado atual da psicanálise sem dúvida não é o único que apresenta o quadro de uma situação desordenada, confusa, cacofônica, de árdua compreensão. A economia, a política, as ideologias, o ensino, a questão social e o problema das bases institucionais poderiam hoje oferecer outros tantos exemplos paralelos, o que apenas ressalta em cores mais vivas a generalidade e, portanto, a importância do fenômeno. E a pala vra crise, com toda a sua imprecisão, que acode por certo ao espírito para pintar um tal estado de alma individual ou coletivo; e cumpre lem brar que há meio século, em 1929-1930, reflexões desse gênero tinham inspirado a Freud o seu ensaio sobre O Mal-estar na Civilizaçãot1). A idéia e o diagnóstico não têm portanto nada de tão novo quanto às crenças, ignorâncias e pretensões que certos autores contemporâneos pretendem fazer crer. Mas, em matéria de mal-estar, o que não nos diria hoje Freud! Para ficarmos no domínio da análise, evitando as extrapolações abusivas, não é muita a unidade teórica que ainda subsiste entre os pós- -freudianos. Ao contrário, estamos em presença de um volume desorde nado, de uma inflação de teorias, e muitas delas infelizmente têm por característica essencial a logomaquia e a prolixidade. Existe aí, na disciplina teórico-clínica herdada de Freud, e original entre todas as outras, um estado que se deve designar pelo nome que lhe é próprio, mesmo que o seu reconhecimento seja muito desagradável para o analista: um certo vaguear. Com efeito, a situação não é melhor, mas pior, e produz mais (1) Cf. Freud, S. Das Unbehagen in der Kultur, 1929-30. GW XIV, p. 421. SE XXI, p. 57. \SEB XXI — O Mal-estar na Civilização ]. 4 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA consequências graves, quando nos voltamos para a prática analítica, ou melhor, para as verdadeiras ou pretensas práticas analíticas — porque também não há qualquer unidade nessa matéria. E ainda forçoso reco nhecer, neste ponto, que existem práticas confessadas e outras inconfes- sadas (e até inconfessáveis) da análise e das “técnicas” que — é este o termo adequado — daí decorrem. Freqüentemente causa-nos pasmo saber, mais através dos pacientes do que dos colegas, o que se faz de todos os lados sob a proteção e a garantia da psicanálise, claramente espezinhada, desnaturada, estragada e falsificada. Não estudaremos as aplicações múltiplas, por vezes chamadas “de inspiração analítica” graças a um escandaloso abuso de linguagem, e que vão desde a massagem, o relaxamento, a manipulação do corpo, até o grito provocado; desde as técnicas de grupo até a consulta telerradio- fônica, passando pelos trabalhos práticos de sexologia; digamos apenas o seguinte: todo ano é colocada em circulação, no “mercado do mal- -estar”, da oferta e da procura de cuidados, de socorro, de assistência, de atenção e de conselho, uma quantidade inumerável de “especialistas”, de “peritos” cujas práticas é impossível definir e não merecem a menor garantia. Em compensação, todos esses “técnicos”, analistas ou psicotera- peutas propriamente ditos, ou assemelhados, são unânimes em dar como referência, direta ou indiretamente, em maior ou menor dose, uma. for mação analítica — que aliás eles, de fato, completaram ou não — e, por conseguinte, não há hoje tarefa mais urgente do que realizar um estudo um tanto rigoroso dessa formação analítica. Foi isso que nos levou a reunir numa pequena antologia estes cinco ensaios, escritos a intervalos regulares, entre 1969 e 1977, já publicados em revistas (algumas das quais desaparecidas), e que abordam esse pro blema sob os mais diversos ângulos. Como a formação do clínico se inicia pela sua análise — princípio que até agora parece geralmente aceito —, nenhum analista pode desin- teressar-se durante muito tempo ou de modo completo pela questão, não falemos “didática”, mas do que se transmite, da psicanálise como corpus teórico e técnico, através do processo da análise e à sua margem. Quanto a um sistema propriamente dito da formação — chamado ou não didático, de ensino, educativo ou pedagógico —, saibamos que sempre existe um: seja ele obrigatório ou optativo, rígido ou liberal, delimitado ou flexível, escolar ou autonomizado, regulamentado ou voluntário, padronizado ou difuso, explícito ou tácito, patente ou latente poder-se-ia dizer em última análise, segundo a distinção feita por INTRODUÇÃO 5 Freud entre as produções da psique, e na própria estrutura do “meca nismo da alma”. Assim, as práticas efetivas resultam diretamente (e elas conservam também uma marca irreversível disso) da maneira como os clínicos que as apresentam como sinal de garantia — e, como se diz, de autoridade — se formaram. E essa formação constitui um conjunto que vai desde a análise inicial propriamente dita até os “controles”(*> que designamos agora — veremos por que — pelo nome de quarta análise, e mesmo além, passando pelas “reanálises” (ou fatias analíticas por analogia a fatias de vida) até as sociedades, organizações, instituições analíticas que assu mem responsabilidades na formação, respondem pela sua competência ou, às vezes, a cobrem com suas máscaras e ouropéis. É, portanto, de todo esse conjunto, ao mesmo tempo constituinte e constituído, que se deve partir,se se pretende estabelecer as bases de uma teoria coerente; e não há exagero em dizer que o futuro da análise, seus progressos ou seu declínio dependem dessa necessidade e desse esforço. Desde o primeiro Grupo das Quartas-feiras reunido em tomo de Freud (1902), a fundação da Sociedade Psicanalítica de Viena (1908), seguida pela da Associação Psicanalitica Internacional (1910), uma expe riência de mais de meio século mostrou que as sociedades e instituições analíticas eram iguais às outras instituições humanas e estavam submeti das às mesmas leis. Já que tendem sempre, com o tempo, a se converter em aparelhos burocráticos, em golilhas, forças que exercem sobre os indivíduos coer ção e censura, pressão e coação, um domínio que chega às raias da per seguição e do terror, todos os sistemas e padrões institucionais são maus, mas há alguns ainda piores que os outros^2). Por isso, basta que nossa ambição seja evitar o pior. Foi por essa razão que, nas sociedades psica- nalíticas, propusemos essa excelente regra que constituiria, a nosso ver, o princípio do mínimo institucional. Temos de admitir, no entanto, que a questão do poder é inevitável. Mas também que o único problema da exploração do homem pelo homem, da alienação, que não cai nas ciladas do sofisma e da aporia não é a própria existência do poder — de que cada um de nós, afinal, detém (*) Em razão da importância semântica que o termo controle adquire no texto, optamos pela tradução literal. Não empregaremos pois a expressão usada entre nós para designar essa mesma prática — supervisão, para evitar implicações semânticas que se situariam além e/ou uquém da análise do autor. (N. do E.) (2) Cf. a conhecida frase de W. Churchill: “A democracia é o pior dos regimes, com exce ção dr todo» o» outros". 6 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA uma parcela, uma aptidão, um pendor e, como mostra a experiência, um desejo —, o único verdadeiro problema é o do abuso de poder. E contra o poder abusivo que devemos lutar sempre, no corpo social, insti tucional, político, e também na psicanálise, porque esta é — ou deveria ser — um projeto para desalienar o indivíduo. Ora, sob esse prisma, vemo-nos diante de duas tendências extremas, com soluções que não convêm ao nosso propósito, que, como já se disse, consiste em evitar o pior: As Sociedades oficiais — filiadas à Associação Psicanalítica Interna cional — caracterizam-se por uma administração burocrática centralizada e pela aplicação de padrões de formação rígidos, hierarquizados; contam também com aparelhos diretores cuja lógica interna leva inevitavelmente ao exercício de um poder abusivo, voluntário ou inconsciente, mas em todo caso incompatível com os problemas sutis e difíceis que essa admi nistração tem de conhecer, vale dizer, problemas que mergulham sempre algumas de suas raízes na matéria psicanalítica. Além disso, os comitês põem em prática, tanto com os analistas como com os candidatos, uma forma de seleção inaceitável e, de resto, prejudicial ao desenvolvimento e ao progresso da análise. De mais a mais, de um modo geral, toda sele ção pretensamente baseada em critérios objetivos ou científicos é radi calmente má, pois resulta nâ eliminação de alguns dos espíritos mais originais, e até de gênios. Einstein jamais teria sido autorizado a fazer estudos matemáticos se tivesse de apresentar-se diante de um instituto de orientação profis sional. Por uma feliz circunstância, a orientação escolar não existia em sua época. No outro extremo, uma posição de laissez-faire, também chamada de abertura, oriunda de proclamações de independência antiinstitucio- nal, não permite mais que se resolvam com uma varinha mágica os pro blemas da formação, pois estes continuam a ser formulados mesmo com a eliminação de certos limites e barreiras. E o que é pior, expulso pela porta, reaparece sub-repticiamente pela janela. “Política do pior” — diz- se às vezes, com toda razão. E, de fato, são as piores instituições con- suetudinárias (lei de talião, intrigas, ambição pessoal, nepotismo, geron- tocracia, promoção dos aduladores e dos medíocres) que vêm ocupar o terreno, no momento das reconstruções, desde que as instituições tenham sido suprimidas sem serem substituídas por coisa alguma. Por outro lado, põde-se observar — pelo menos num caso ocorrrido na França que uma política dc supressão, dc aniquilamento, estava longe de eliminar de uma só vez o poder pessoal abusivo e tirânico, o INTRODUÇÃO 7 “culto da personalidade” — expressão que, em política, serve para quali ficar as ditaduras —, ou seja, a idolatria e a alienação. Longe, também, de acabar com o terrorismo, físico ou intelectual, conforme o caso, o qual muda apenas de fisionomia e de cor, tomando-se branco onde antes era vermelho ou negro. Vendo as coisas mais de cima, é toda a história do movimento, psicanalítico, com suas conquistas, recuos e cisões, que oscilou desde as origens até nossos dias entre dois perigos aparentemente contrários, mas, não obstante, coexistentes, e que a estão sempre ameaçando em duas frentes. Esses dois obstáculos são a contração z a. expansão. Todos os analistas e todos os historiadores do movimento sabem que à questão da formação e da transmissão sempre coube o principal papel deflagrador — ou até o papel exclusivo —, sabem também que essa questão sempre foi o pomo de discórdia, a linha de clivagem, o casus belliy nas crises, conflitos e cisões por que passou a psicanálise; muito mais ainda que qualquer outro ponto de divergência, teórico ou prático, ocorrido no seio do movimento freudiano e com possibilidades de afetá- -lo, mas às vezes também de enriquecê-lo. Na época em que Freud vivia no isolamento científico com um punhado de discípulos, naturalmente o pequeno grupo de pioneiros dedicava-se com entusiasmo à defesa daquilo que o próprio Freud deno minara “a causa”, ao desenvolvimento da psicanálise, à sua organização, ao recrutamento de adeptos e às conquistas em todos os domínios, desde a psicologia e a psiquiatria até a etnologia, a pedagogia, o direito, a histó ria, a literatura e as artes. Dessa maneira, a partir da teoria das neuroses, as aplicações da psicanálise pareciam estender-se a campos ilimitados. O que Freud não pudera ver nessa primeira fase, já que o fenômeno era então inatual e assim devia permanecer durante algum tempo, é que, ao chegar à categoria de uma organização coletiva, a psicanálise tomava- -se também, paralelamente, uma religião e uma igreja, com as suas divin dades, as suas escrituras sagradas, o seu dogma, os seus profetas, sumos sacerdotes, fiéis, adeptos, e depois os seus hereges, sem esquecer, é claro, as formas específicas da alienação (“o ópio do povo”) que tais organiza ções engendram inevitavelmente como superestruturas ou como sub produtos. A mesma aventura aconteceu a Karl Marx, que, ao denunciar a alienação produzida pelos grandes sistemas ideológicos de exploração c opressão — o capitalismo, a burguesia dominante, a religião —, não viu que o marxismo, como sistema, substituía essas estruturas denunciadas c combatidas, c, tal como elas, tendia a transformar-se num aparelho olicmmtr r opressor. A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA Porque, em essência, é sempre a mesma história que se repete: per cebemos muito bem um cisco (ou falha) no olho do vizinho, mas não notamos um calhau (ou abismo) em nosso próprio olho. No entanto, nesse como em muitos outros setores, foi Freud quem primeiro abordou de maneira inteiramente nova o estudo analítico desses fenômenos de alienação e de fascinação que circulam e se trans mitem do individual para o coletivo: foi ele ainda quem primeiro esten deu uma ponte de um domínio a outro. Em Massenpsychologie und Ich-Analyse (1921)(3), Freud compara os fenômenos de grupo e de multidão, as rèlações entre o guia, o chefe (Führer)e suas tropas sujeitadas e submissas, ao estado amoroso, à su gestão e à relação hipnótica. Para explicar as manifestações da “alma coletiva” tais como o espí rito gregário, a formação e organização de grupos, massas ou multidões, Freud recorre ao ideal do ego e, mais particularmente, ao mecanismo de identificação. Pois, se esta tem efeitos positivos, progressivos e estrutu- rantes numa primeira etapa — a da infância e da constituição do com plexo de Édipo —, pode depois, notadamente por fixação, tomar-se regressiva, neurótica e alienante no adulto, após o “declínio do Édipo”, de modo que, em muitos desses casos individuais e coletivos, é sobre a patologia da identificação que conviria falar com precisão. Como exemplos de multidões organizadas, Freud toma os da Igreja já citada — e do Exército, que ele qualifica igualmente de multidões “artificiais”, ainda que a oposição natural-artificial nos pareça, no caso, discutível e de certa forma insuficiente. Finalmente, não escapa a Freud que outras organizações coletivas, como os partidos políticos — chegando inclusive a citar o “partidp socialista” — podem assumir o lugar da Igreja e produzir os mesmos resultados, isto é, a alienação amorosa dos seus adeptos, e a intolerância e a crueldade para com os outros^4). Em contrapartida, seria inútil buscar nessa obra teórica a menor referência às Sociedades Psicanalíticas, elas próprias consideradas como grupos ou multidões (“Que súcia!” 9 exclamará um dia Freud, irritado), em que pese a essas Sociedades, nesse ano de 1921 e mesmo bem antes, já terem dado algumas decepções. na A História do Movimento Psicanalítico (1914), e mais tarde na Um Estudo Autobiográfico (1925)<5), que encontramos vestígios dos (3) Cf. Freud, S. Massenpsychologie und Ich-Analyse, 1921. GWXIII, p. 73. SE XVIII, p. 65. [SEB XVIII - A Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. ] (4) Cf. op. dt.t ctp. V (A) Freud, S. Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung, 1914. GW X, p. 44. SK X I V , p. 1. [ S K B X I V A História do Movimento Psicanalítico. [ H INTRODUÇÃO 9 conflitos, dissensões, lutas e rupturas que agitaram o movimento na ver dade quase que desde a sua criação e, especialmente, na primeira fase histórica da sua expansão, com as dissidências de Adler e Jung. Mas, quer se trate de contração ou de conquista, e até de expansio- nismo desordenado e de inflação à imagem de tudo o que hoje nos cerca — desde a economia até a cultura —, o movei central de todas essas polê micas, rupturas e dissidências é e continua sendo o mesmo desde a origem: o que é que é ou continua sendo da psicanálise, tanto na teoria como na prática? E o que não é ou já não é? Em outras palavras: quem é ou continua sendo psicanalista, e quem não o é ou já não o é? Onde começam o abandono, a desnaturação, a falsificação e a traição? Evidentemente, todas essas questões conduzem invariavelmente ao problema do exercício e àquele — primordial — da formação. Assim pois, singularizada entre todos os outros ramos de disciplina que compõem a frondosa árvore do conhecimento, a psicanálise — por sua essência e por sua base — tem o caráter de só avançar delineando uma figura em arco ou em espiral, isto é, de retomar permanentemente às suas origens. Sempre o retomo à origem. Privilégio? Talvez. Talvez um privilégio que a metapsicologia analítica compartilharia então com a metafísica e a ontologia; mas também um risco, perigo, desconforto, insegurança, desequilíbrio, inquietação, que deveriam em todo o caso afastar para sempre de toda forma de dogmatismo. E por isso que, com razão, a análise é qualificada de marginal. “À parte”, de qualquer forma. É verdade, com efeito, que a referida estrutura, que acaba de ser definida como curvilínea, helicóide, turbilhonar, caracteriza ao mesmo tempo o movimento “regressivo-progressivo” que parece regular a maio ria das curas analíticas observadas in vivo, e — estreitamente paralela e homóloga — a evolução da própria psicanálise. Por fim, essa figura recurvada — pensamos já tê-lo demonstrado — pode ser também a da construção, da invenção mítica, e, mais geral- mente, de todos os sistemas mitológicos^6). Ora, a psicanálise não é um mito, nem uma ficção, nem uma fan tasmagoria, nem um delírio, como propalam hoje, com estranha compla cência, autores que, arrastados ao limite do confusionismo pela inflação verbal, pela glossolalia, acabam por assimilar o objeto a conhecer e o conhecimento do objeto, o perceptum e o percipiens, o fenômeno e a lei. Por outro lado, a teoria analítica reivindica necessariamente a con- Frrucl, S. SelhstdarsteUung, 1924-A. GW XIV. p. 33. SE XX, p. 1. [SEB XX - Um Estu do Autohiográ/íco. | (<i) (lí,, <lr iioNM milorU r no prrlo: Phuutasmc, Mythe, Gorf)s et Sen». Parii, Payot. 10 A FORMA ÇA O DO PSICANALISTA sideraçâo, o exame integral desses fenômenos e produções psíquicas fundamentais: mito, sonho, ficção, fantasma, delírio. E é evidente que não poderia ser de outra forma, porquanto a psicanálise foi, é e conti nuará sendo, antes de tudo, a teoria do Inconsciente. E o que Freud jamais deixava de lembrar, sempre que fazia um balanço histórico e buscava entrever as perspectivas futuras. Qual será, pois, o futuro da psicanálise, mesmo sabendo que, no jogo da previsão, em geral nós nos enganamos? Entretanto, ainda nesse terreno, enxergaríamos com maior clareza se não confundíssemos o fenômeno trazido à luz, o objeto encontrado, por assim dizer, por um ladò, com as hipóteses, as interpretações explicativas apresentadas para elucidá-lo, nem, por outro lado, com os usos que dele se podem fazer. Isso define uma tríade gnosiológica: objeto, teoria do objeto, prática do objeto, a que cumpre acrescentar um termo suplementar — saber o assunto, para compor finalmente o tetragrama completo do conheci mento. O descobrimento da América por Cristóvão Colombo (crendo, aliás, tratar-se das índias) é uma coisa. O destino dos Estados Unidos é outra. E o mesmo ocorre com o descobrimento dessa terra incógnita que é o inconsciente. Mais do que um paralogismo, seria uma inadequação básica, uma incompatibilidade categórica [conceptual] falar de um futuro do incons ciente, assim como de um presente atual ou de um passado histórico, porquanto o sistema Ics. (Ubw. de Freud) está fora do tempo, para além mesmo não só da afirmação como da navegação, não só da ima nência como da transcendência. Seria mais certo abordá-lo — por via fenomenológica ou metapsicológica — à maneira, precisamente, de uma abordagem tangencial, de uma assintota, um “difícil de pensar”, uma perplexidade. O inconsciente figura um misterioso, um aleatório, indeterminável, como disse Freud a propósito das Triebe — as pulsões —, esses “seres míticos”. Lugar de mitos e de mistasí*), portanto, onde se encontram os Eternal Ones, como lhes chamou Géza Roheim. Entidades eternas: por uma vertente, isso se presta evidentemente a tomar esses “serès” ou a fazê-los passar por deuses — seres eternos. Donde uma das correntes — partindo do inconsciente — que arrasta a psicanálise, ou tende a levá-la para a religião, a fim de desagregá-la. Jung não é um exemplo isolado disso. Considere-se o dito espirituoso de Voltaire: “Se Deus nos criou à sua imagem, nós certamente o criamos à nossa”. Por outro lado, o (+) Iniciado». (N. doT.) INTRODUÇÃO 11 inconsciente, como a eternidade, se encarna, se converte em carne; e vê- -se assim que uma migalha de pensamento religioso, teológico, metafí sico ou mágico — como se há de ver — está em ação, intervém, circula, mesmo onde ela não parece ter nada que fazer, onde ela foi expulsa, extirpada, e onde subsiste apesar de tudo, ainda que como simples escó ria. Exemplos: a confiança, a crença, a superstição, o ato de fé. Somente as criaturas e seus empreendimentos têm, pois, uma história e um porvir, e não as entidades ou as verdades eternas. O incons ciente, a pulsão, o desejo, o sonho, o fantasma, o mito estão entre essas entidades, fatos ou verdades, cuja descoberta tem certamente uma histó ria, mas que já existiam antes e continuam a existir depois, fora da tem poralidade, indetermináveis na cadeia das origens e do começo primeiro, origem da origem, a qual é, entre todas e por definição, a questão sem uma resposta que não seja, ela mesma, mítica. Por outro lado, são as nossas teorias e práticas analíticas que têm uma origem, uma atualidade e um devir — este último hipotético, como todo futuro. E, sob esse ponto de vista, não temos nem um otimismo irrestrito, nem um pessismismo exagerado. Pode acontecer que o interesse pela psicanálise atravesse um perío do de declínio, que a demanda se desvie dela, se tome menor que a sua oferta, e se dirija para a biologia e a informática, ciências que hoje estão em plena expansão conquistadora. Isso já vem ocorrendo há vários anos na América do Norte; e, como se sabe, em muitos domínios, tanto técni cos como culturais, a velha Europa está seguindo as pegadas do Novo Mundo com um atraso de dez ou quinze anos. Contudo, além desses recomeços e repetições, o vaivém da história reserva também surpresas e imprevistos. É possível que, em sua forma (relativamente) “pura” — o ouro puro, segundo a metáfora freudiana - , o exercício da psicanálise desa pareça, seja por decreto de um poder legal, seja através da integração em algum sistema de assistência médico-social; aliás, tais exemplos já existem efetivamente em certos países. Alguns chegam a pensar que essa evolu ção é inevitável. No entanto, como o inconsciente não poderia nem ser suprimido por um governo, nem anexado a uma nomenclatura, o mais provável é que as flutuações da história levem a psicanálise a retomar periodicamente à situação marginal, ao isolamento, à quase-clandestini- dade das suas origens. O que não seria, forçosamente, prejudicial ao seu futuro, mas, antes, a faria renascer, também periodicamente, da sua degradação e dos seus vestígios. Se passarmos os olhos pela história do movimento freudiano depois de transcorrido um século no tempo c no espaço —, parece ser exata 12 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA mente essa acurva do destino dessa descoberta, quase tão surpreendente quanto no seu primeiro dia quando nos é dado fazê-la e refazê-la sobre o outro e mais ainda sobre nós mesmos. Movimento cíclico, comparável aos fluxos e refluxos dos grandes oceanos; alternância de marés que sobem até transbordar, seguidas de pequenos retornos e recessos à cal maria, às águas dormentes, à solidão e ao silêncio. Como corolário, deve-se sublinhar a enorme responsabilidade que cabe ao psicanalista, decorrente apenas da posição que ele quis assumir: tradutor, decifrador, intérprete do inconsciente, isto é, detentor ou, de maneira mais justa e modesta, intercessor de uma verdade não-aparente, invisível, oculta, diferente, heterogênea, distinta daquilo a que chama mos real ou realidade. É por essa razão que, se estivermos com os olhos bem abertos, poderemos verificar a cada dia que, no exercício da sua função, tudo o que o analista diz, tudo o que ele manifesta, o que ele deixa transpare- cer; entender ou adivinhar, o menor dos seus atos e gestos, inclusive o que lhe escapa, o que ele não pode ver ou entender, numa palavra, todo esse conjunto palpável ou inapreensível na análise ou à sua margem, reveste uma importância superlativa, que ultrapassa o imaginável e chega às vezes a provocar certo pavor. A influência duradoura, definitiva do analista é e continua sendo mais importante ainda do que se acredita para as gerações de sucessores que nele vierem a confiar. Esse analista assim “sobreinvestido”, apenas pelo jogo dos impul sos irresistíveis originários do inconsciente, estaria portanto em condi ções de saber o que deveria dizer ou fazer; poderia também refletir longamente antes de falar ou calar-se e — seguindo nisso um conselho dado por Balint — nunca se esquecer tampouco das vias e constatações negativas, ausentes, subentendidas, infraverbais, que se abrem para aquilo que se poderia chamar de análise “apofática”. O preceito poético de Paul Valéry, curiosamente, também se adapta como uma luva à intervenção psicanalítica: “Entre dois vocábulos, esco lher o menor”. E, para terminar, está aberto o caminho para uma técnica e, mais ainda, para uma ética da modéstia, da circunspeção e da dúvida. A função metodológica da dúvida, principalmente, ao que nos pa rece, deve ser sublinhada e reabilitada em psicanálise. Esse conceito da dúvida, aqui introduzido, deve evidentemente ser distinguido, de um lado, da inibição, e, de outro lkdo, da hesitação obsessiva que muito se aproxima da evasiva e remete a um conflito entre o desejo e a interdição. Tampouco se trata de cepticismo, que c uma atitude, uma disposi- INTRODUÇÃO 13 ção da alma ou do temperamento, ou ainda uma sistematização filosófica da dúvida. Mais próxima da dúvida metódica de Descartes ou — segundo uma óptica mais moderna — de um princípio de indeterminação ou incerteza, a dúvida analítica poderia ser definida pelos seguintes traços e critérios: Ela é metodológica e criticista. Em outros termos, contém uma intenção que visa à descoberta, à prospecção heurística; e, simultanea mente, exerce uma crítica às projeções subjetivas, contratransferenciais e ideológicas, ou seja, introduz um ponto de vista epistemológico na prá tica e na metapsicologia. Em segundo lugar, é suspensiva: situada num hiato, um intervalo de tempo e de espaço entre a ignorância, o conhecimento, a crença e a certeza. Ora, o analista raramente pode apoiar-se em convicções totais e definitivas. Freud foi quem primeiro advertiu os analistas sobre os perigos do orgulho terapêutico. Existe, porém, um outro tipo de orgulho que apre senta efeitos não menos aflitivos e perniciosos: é o orgulho teórico. E ele que faz com que velhos e conceituados mestres se encham de vento e depois, de maneira mais perigosa e por contágio, enche de vaidade os seus discípulos, fiéis, imitadores ou plagiários. Esses parvenus desvaira dos afirmam saber tudo; para tudo têm resposta, de nada duvidam e não duvidam principalmente da sua superioridade. Todos os outros são repu diados de modo agressivo e esmagados com o seu desprezo. A dúvida analítica, ao contrário, para voltarmos ao nosso ponto, insinua-se e insurge-se contra a empáfia terapêutica e a ostentação teó rica, contra a hipertrofia narcisista da pessoa e a intumescência do seu verbo. Em terceiro lugar, cumpre considerar a função metodológica da dúvida como provendo um intervalo indispensável entre diversos dados, referências e operações essenciais da análise. A dúvida é, antes de tudo, inerente, imanente, consubstanciai ao próprio conceito dt interpretação. E, neste ponto, devemos distinguir entre interpretação e demons tração; a arte de interpretar tem de ser diferençada da ciência de de monstrar. À certeza produzida pela demonstração opõe-se a conjectura proporcionada pela interpretação. Por conseguinte, o momento da dúvida — provisório mas necessá rio — ocupa o seu lugar não somente entre a interpretação exata e ine xata, mas também entre as diversas interpretações possíveis; e é esse momento de oscilação dubitativa que nos permite perceber, apreender uma pluralidade interprctativa e pussá-la cm revista. Entre a interpreta- 14 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA ção explícita c latente, entre a fragmentada e a global, a dos conteúdos ou da forma deles, a positiva ou a negativa, a da profundidade ou da superfície, do inconsciente ou da defesa, a dúvida suscita o problema da escolha da interpretação; e, reunindo os fatores da decisão, ela também permite resolver esse problema e reduzir,na medida do possível, a mar gem do intempestivo e do arbitrário. Uma certa dúvida lucra igualmente em ser intercalada e reiterada entre as estruturas psicopatológicas, de modo que permita, e até favo reça, as suas reordenações e metamorfoses. Esse aspecto salienta os caracteres próprios ao diagnóstico e ao prognóstico analíticos, os quais devem ser mantidos flutuantes, modificáveis, abertos, ao contrário das normas habituais do diagnóstico psiquiátrico. É ainda uma escansão suspensiva que se interpõe entre a transfe rência e a contratransferência. Ao abrir o caminho da interpretação eficaz, esse espaçamento essencial é, portanto, um dos constituintes de uma prevenção adequada contra as atuações exteriores (acting out) ou seus equivalentes: em especial, as soluções somáticas que, como se sabe, podem alcançar extremos realmente perigosos. Finalmente, de maneira mais geral, uma pequena dose de dúvida criticista aparece como um dos melhores antídotos para todas as formas de dogmatismo, com as suas conseqüências: o conformismo, a alienação, o fanatismo, até culminar, mais cedo ou mais tarde, no terror. Mesmo que só servisse para prevenir tais resultados, coercivos, opressores e tirânicos até o crime — e que infelizmente nada têm de ilusório —, a dúvida já mereceria um lugar e um papel na higiene mental dos indivíduos e das sociedades. 1979 1. A psicanálise científica Sócrates. — E essa ciência que ele agora possui, ele a adquiriu em alguma ocasião, ou sempre a teve? Platão. Mênon, 85c? Publiciulo pela primeira vez em L’Inconscient. Paris., PUF, nº. 8, 1969 Aqueles que — como nós — aderiram à idéia da significação mítica ima nente a todo nascimento não se surpreenderão com as associações que vamos propor: associações entre a psicanálise, o ensino — e, a fortiori, o ensino da psicanálise — e a filosofia grega; associações sobretudo com o pensamento platônico e, mais particularmente, com a dialética socrática. O sentido mítico inerente a toda e qualquer origem deve ser enten dido de duas maneiras complementares: em primeiro lugar ele é uma propriedade constitutiva, estrutural, consubstanciai, da própria repre sentação, do conceito, do eidos do ser e da sua aparição. Isso equivale a dizer que não há começo que não seja, que não signifique, em sua essên cia, um mito. Mas também o começo, assim definido como mítico, gera, por sua vez, e em troca, uma gênese, um gesto. Geração é, sem dúvida, o termo próprio; e onde, de resto, se vê despontar, saída do próprio seio do mito, a idéia de repetição. Desse modo, a significação que se busca alcançar pode ser denomi nada, simultânea e inseparavelmente, mítica e mitopoiética. No berço da psicanálise estiveram presentes as divindades do Olim po e dos Infernos, com a intermediação dos filósofos e poetas gregos. Os sinais dessa presença não faltam, mesmo ou sobretudo se, como é de regra em tais matérias, ela permanece a princípio oculta, velada, secreta, para só se revelar mais tarde no preciso momento e na própria frase em que a presença se enuncia e se denuncia, iniciando — ou melhor, reto mando — o relato mítico. Com efeito, a psicanálise é duas vezes nascida do sono. O sono, ou 17 18 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA seja, seguindo a tradição mais imemorial, mais universal, esse estado de todos o mais propício às comunicações com os deuses e demônios. Na primeira vez ela nasceu do sono hipnótico e, na segunda, do sonho, ou seja, mais uma vez do sono, pelas criaturas que vêm povoá-lo. Daí, sem dúvida, essa presença inscrita por Freud na famosa frase que serve de epígrafe à Traumdeutung: Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebol1). Deuses e demônios; inspiração divina e cenário demonológico. Os sonhos são mensagens dos deuses ou produtos da alma do sonhador, junta ou separadamente como é de lei na trama, na imbricação, na cir cularidade de um contínuo mítico, e coube a Aristóteles — disse Freud — dar a guinada entre essas duas concepçõesf2). E seguindo essa intuição freudiana no ponto em que se cruzam o mito e a história, intuição a princípio remota e como que subjacente, mas que não cessará de aparecer e de reaparecer ao longo de toda a obra, é nessa encruzilhada que a denominação aristotélica de catarse virá bati zar a primeira descoberta: aquela que é designada como um simples “procedimento”, com uma simplicidade, com uma modéstia exemplares, porquanto Freud colocou como ponto de honra atribuir o seu mérito principal a Breuer, o segundo pai<3). Por muito menos, sem dúvida, os descendentes modernos de Freud reivindicam a glória de terem prestado contribuições essenciais à psica nálise — e não só a esta; às vezes, em sua pretensão desmedida, gabam-se de possuir a teoria da própria Ciência, da Ciência com C maiúsculo. . . E então na última etapa da construção, e por não tê-la reconhecido e analisado como mito, que o psicanalista toma a si mesmo por um deus. Ora, se catarse é o termo de Aristóteles que se ajusta à primeira descoberta, o vocábulo — socrático — maiêutica é o que se aplica ao segundo nascimento. A psicanálise, aliás com toda a justiça, tem sido freqüentemente comparada, desde a sua origem, à maiêutica; não apenas em virtude de certa analogia, também no “procedimento”, mas princi palmente, segundo cremos, porque o parto como momento inicial, ao mesmo tempo que como termo de passagem, é um desses fenômenos (1) Virgílio. Eneida. [“Se não puder dobrar os deuses do céu, comoverei o Aquerontc.” (VII, 312) (N. do T.)j (2) Freud, S. Traumdeutung [A Interpretação de Sonhos\. 1900, cap. 1, prefácio. (3) Freud e Breuer, 1892-1895. A catarse, frisemo-lo uma vaa maJi, eitá ligada à hipnose e, portanto, ao sono. A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 19 diretamente abertos ao mito que serve de base obrigatória a todo nasci mento humano. De modo mais preciso, e como já se disse sobre a intui ção freudiana, todos os momentos inaugurais, os eventos, ou melhor, adventos, todas as passagens (concepção, parto, consagração do nome, iniciação, casamento, morte) são cruzamentos do histórico e do mítico, razão essencial para que elas sejam, em toda a parte, objeto de um ritual. A esse respeito, o rito nada mais é que a inscrição da história no mito e do mito na história. A maiêutica fez sua incursão na psicanálise desde o início do capí tulo II da Traumdeutung [A Interpretação de Sonhos], quando Freud afirma que o sentido do sonho vem do sonhador e não do intérprete. Princípio técnico fundamental que, de resto, é inseparável da teoria. Nesse trecho, Freud cita “a maior autoridade do Mundo Antigo em interpretação de sonhos ”(4), Artemidoro de Dáldis, que, por sua vez, procurava o sentido do sonho nas evocações e associações(I), mas nas do intérprete. “Diferença essencial”, sublinhou ele nesse texto. No entanto, é surpreendente que Freud nunca tenha feito — ao que parece — referência explícita à maiêutica. E verdade que Sócrates também nunca se ocupou do sonho. Sócrates sempre preferiu recorrer diretamente ao mito, que, como se sabe, desempenha um papel funda mental nos diálogos de Platão. O aparente desconhecimento do método socrático, por parte de Freud, causa espécie, apesar de tudo, e perma nece até hoje inexplicado. Nem por isso deixamos de pensar que o “segundo nascimento” da psicanálise é, por assim dizer, de essência maiêutica, e que esse primeiro princípio, formulado para o sonho por Freud no momento mesmo em que se libertava da catarse hipnótica, que esse princípio válido — repita mo-lo — ao mesmo tempo para a técnica e para a teoria, está muito de acordo com a teoria (ou o mito) da reminiscência, tal como foi exposta por Sócrates no Mênon. Sobretudo não vemos qualquer contingência nessa relação do sonho com a reminiscência. A relação é, ao contrário, plenamente neces sária. Se a referência à dialéticasocrática estranhamente não comparece na obra freudiana, é óbvio que o que falta a Sócrates é a noção de inconsciente; com ela, teria inventado a psicanálise. Em Sócrates, o lugar do inconsciente é ocupado pelo mito; e, até o advento de Freud, o inconsciente permaneceu encerrado, prisioneiro no mito. A partir de Freud, é o mito que habita o inconsciente. E a análise passa a ocupar o (4) Traumdeutung, <»p. I, pirtádo. 20 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA lugar que cabia ao diálogo socrático. É essa talvez a explicação desse “enigma de silêncio” entre Freud e Platão. Seja como for, parece-nos ter ficado demonstrado que a catarse e a maiêutica estão na origem da psicanálise. E isso evidentemente sem aludir aos grandes mitos: a luta entre Eros e Thánatos, Narciso, por fim e acima de tudo Edipo, o mito “nuclear”. Todo um conjunto que só se revelará mais tarde, mas que, pelo que tudo indica, estava presente desde o início. Onde portanto, senão no Panteão antigo, transmitido até à mitologia propriamente freudiana!5), para só se estabelecer à medida que se processava a descoberta do inconsciente? Aristóteles teve por mestre Platão, e, antes de Platão, houve Sófocles! Essas breves considerações levam-nos agora a focalizar o ensino sob a mesma perspectiva. Pois o ensino, ou ainda, a pedagogia!6), que constitui a sua ciência (ou arte?), encontra-se precisamente entre esses fenômenos que parecem regidos pela lei do duplo nascimento, isto é, em essência, o princípio de repetição. O ensino é sempre o Doceo pueros grammaticam da velha sintaxe latina. De mais a mais, ele tem sempre o sentido de uma tomada, de uma revivescência do nascimento. Possui uma significação e uma função iniciatórias. Se o primeiro nascimento é nascimento do corpo (e no cor po), já o ensino é visto como nascimento na alma ou no espírito. Co- -nascimento — conhecimento preferiríamos dizer, permitindo-nos um jogo de palavras com noscere e nascere. . . Desde o dokéô (ou o cogito, o “penso”) até o doceo (eu ensino), vale dizer, desde a opinião — e mesmo a aparência — até a opinião ver dadeira (Sócrates) que está no caminho, “ao lado” da ciência se não a própria ciência, que portanto é uma savance [“sabência”], com licença do neologismo, o ensino é esse co-nascimento, esse segundo nascimento tão claramente sugerido pela operação maiêutica. Por conseguinte, é correto dizer que todapaidonomía (educação), (jue toda paidopotêsis segunda (procriação) — nome que, em um ouvido romano, soa tão esplendidamente evocador, porquanto a criação é, no (5) Ai está o segredo da coleção de antiguidades de Freud; e também do problema — a que ele próprio chamou “neurótico** — das suas viagens, “peregrinação às fontes**; e ainda, final- mente, de certas expressões-chave: seres míticos, nossa mitologia, aplicadas às pulsões, essas essências elementares da Psique na teoria freudiana. (6) Pais, paidós: criança. A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 21 caso, a poesia —, todo esse processo começa e talvez até mesmo termine com o aprendizado da fala e da linguagem. Para que Sócrates possa efetuar o seu experimento maiêutico, ou seja, nada menos do que extrair ex nihilo — da reminiscência mítica — o conhecimento do número tradicional, a única condição é que o sujeito do experimento — o escravo (!) — saiba falar grego!7). Será então que a psicanálise, que é por excelência a fala do “sujei to do experimento” e o sentido dessa fala, pode ser ensinada? That is the question. O ensino acha-se claramente “ao lado” da linguagem, enquanto a análise se apóia na encosta da fala. Aí está talvez toda a diferença — ínfima mas enorme — que existe entre os dois. Daí já se poderia concluir que a psicanálise não pode ser objeto nem matéria de ensino. Em Platão, Sócrates introduz o problema do ensino por meio de uma questão, como sempre de aparência anódina: “Pode a virtude ser ensinada?” E o que se discute no Mênon e também no Protágoras. Essa questão, ao contrário do que parece, não é inteiramente anó dina, nada tem de “platônica”, mas, por outro lado, é eminentemente platônica! Ela na verdade abrange o tema maior, o Ei didaktóny que circula ao longo de todo o pensamento socrático. Esse ponto não escapou a um intérprete!8), infelizmente hoje quase esquecido dos doutos e, por conseguinte, de seus discípulos, para quem criaremos o neologismo candidadouto, ainda que a candura não seja, por via de regra, a virtude cardeal nem dos primeiros, nem dos últimos!9). Doutos e candidadoutos mostram-se mais preocupados, presentemente, com as críticas que se possam fazer, ou seja, com a doutrina que estará em voga na temporada. Houve quem chamasse a isso “estar na moda”. Mas, como se sabe desde Leopardi, “a moda é irmã da morte, pois ambas nascem da caduquice do homem”. Insistindo nesta questão socrática mais importante— periaretês [de virtude: sobre a virtude] —, digamos que ela poderia interessar-nos por mais de uma razão. Não que pensássemos por um instante sequer em comparar psicanálise e virtude! Isso não seria de bom-tom. (7) Mênon, 82b. (8) Dupréel, E. La légende socratique et les sources de Platon. Bruxelas, Sand, 1922. (9) Náo se trata, de maneira alguma, de um simples gracejo. O leitor poderá convencer- -ic dc que, segundo Freud, a candura — no sentido do século XVI: franqueza total, pureza — é uma dai virtudes fundamentais do amüista. Acrescenta ele: um dever (cf., por exemplo, Die Fragp der Laienanalyst, SE XX, p. 207. \A Questão da Análise Leiga |). Candidatus: o que está vestido dr braneo(l). 22 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA A virtude, no entanto, náo é apenas a garantia necessária — mesmo como simples postulação — da vida na cidade, e portanto da política, tal como Sócrates, de resto, não se esquece de afirmar; a virtude é também o indispensável penhor da própria ciência, pois não há ciência possível sem a postulação do valor da verdade, e, por conseguinte, do respeito a essa verdade, em outras palavras, sem honestidade intelectual. Isso equivale a dizer que a ciência não pode encontrar em si própria o seu fundamento; ela só o pode postular, e fora de si mesma, num prin cípio ético. Essa tese provocará escândalo? Seria, digamo-lo agora ou nunca, o escândalo da virtude, após os seus infortúnios! Mesmo que a verdade — para darmos outra formulação à idéia — se reduza à mera ramificação de uma alternativa: compatível ou incompa tível, como parece ser o caso, mesmo então há necessidade de uma com preensão justa para reconhecê-lo, e, como se diz, para registrar o fato. Do contrário, sairemos do domínio da verdade para ingressar no terreno do sofisma. Ora, o sofisma foi outra grande preocupação de Sócrates! A vir tude, conclui ele, não pode ser ensinada, porque não é uma ciência; e isso em que pese a não ser ela distinta da opinião certa. Mas a opinião certa deve ser distinguida da ciência, e temos aí uma das raras certezas que Sócrates reivindicai10). A virtude, finalmente, só pode ser uma graça divina. Não existem, portanto, mestres da virtude. Somente os sofistas têm a pretensão de o ser, mas os sofistas são falsificadores, mercadores de simulacros^11). Sócrates, com o seu problema do ensino da virtude, na verdade, não nos afasta demais da psicanálise. Pois, também para esta, a questão é saber se pode ser ensinada, se constitui uma ciência, se há quem a possa ensinar ou se aqueles que se proclamam seus mestres, tal como GórgiaSy Cálicles ou Protágoras, não passam de imitadores, sofistas e “caçadores interesseiros de jovens”, como, com certa violência, afirma o Estrangeiro no seu diálogo com Teeteto(12). A psicanálise, apesar das aparências, tem pois muito que ver com o (10) Mênon, 986. (11) Sofistay 223a, 224, 235a, b, 267e, passim. Mencionemos, porém, que certos exege tas apresentaram interpretações mais “otimistas”em favor do ensino da virtude; por exemplo, a de A. Koyré, em sua Introduction à la lecture de Platon. Nova York, 1945; Paris, Gallimard, 1962. Mas não nos parece que essas interpretações otimistas, até mesmo com alguns traços dc “cientismo”, sejam rigorosas em relação ao próprio texto dos Diálogos. (12) Sofista, 233a, b. A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 23 problema da virtude, em seu sentido socrático, e, se se fizesse necessária uma prova incontestável, encontrá-la-íamos na importância extrema que ela atribui à idéia de pureza. Desde a expressão “ouro puro da análise”, que Freud deixou esca par durante uma argumentação, a pureza conheceu um rápido êxito, ao mesmo tempo que, cumpre admiti-lo, a psicanálise se degradava de dia para dia. O catarísmo analítico, poderíamos dizer, sucedeu ao catarsismo das origens. Mas, segundo nos diz a experiência, a pureza — em nosso movimento — tem por principal função ser uma alegação, uma invoca ção, às vezes até mesmo uma imprecação ou uma invectiva, destinadas a mascarar o fato de que, muito pelo contrário, evoluímos em meio aos mais importunos comprometimentos. De resto, mal se percebe como poderia ser de outra forma desde o momento em que uma noção troca o domínio da dialética pelo do enfá tico e, assim engrossada, constitui-se em objeto de reivindicação, em mercadoria — portanto, em objeto de regateio, e até de marketing — em suma, em aposta. Temos aí o que aconteceu à noção de pureza, e a algumas outras que não vale a pena arrolar aqui. Pois, se dela falamos dialeticamente, é óbvio que a pureza não poderia existir sem as escórias que compõem, com ela, uma íntima mistura ou, pelo menos, a encastoam. Da mesma forma, numa experiência analítica, só conhecemos instantes de relativa pureza, que emergem de uma ganga da qual não teríamos aliás razão para nos desviar, na medida em que ela representa uma parte constitu tiva de nosso objeto. Nunca, salvo talvez no limite sem espessura da instantaneidade — o que, sem dificuldade, nos levaria às aporias dos eleatas —, nunca “apre ciamos as coisas em sua simplicidade e pureza naturais”; e mesmo o ouro, que serve sempre de exemplo por ser a representação mítica da pureza, “cumpre misturá-lo com algum outro metal para que possa ser por nós utilizado ”(13). Recorrendo a um exemplo pertencente ao domínio dessa psicaná lise “cátara” — expressão que utilizaremos de agora em diantei14) — sabe-se que um dos autores atualmente mais seguidos —Jacques Lacan — professa que a análise pura é idêntica, precisamente, à análise didáti ca^). Enquanto nós, em contrapartida, somos de parecer que a inten ção didática — onde quer que esteja situada — confere à análise contem- (13) Montaigne. Ensaios, II, 20. (14) E desnecessário esclarecer que, além de náo nos opormos às investigações “citara*”, trino» por cias especial simpatia no tarrann da psicanálise. (15) laicati, J. In Anrmêir* d* /TCml* fttudirntu , 1965. 24 A FORMA Çj40 DO PSICANALISTA porânea a hipoteca, o ponto de partida e, às vezes, o desenvolvimento, por mais impuros que sejam. A aproximação entre a pureza e o didatismo, operada aqui até ao ponto de confundidos, deve antes de tudo ser fortemente sublinhada: é realmente muito evocador do tema platônico da nossa meditação. Essa aproximação poderia facilmente nos envolver numa dessas controvérsias sofísticas onde Sócrates vai buscar alimento para a sua inspiração, e onde se demonstraria sucessivamente, por exemplo: 1) que a pureza não pode estar nas coisas, mas tão-somente nas idéias; 2) que a idéia de impureza pode ser, por sua vez, uma idéia pura; 3) que, por conseguinte, o puro é idêntico ao impuro, como aliás já se demonstrou acerca do movimento e da imobilidade(16h Depois disso, todos se separariam para ir tratar de suas ocupações, e dar a boa nova aos atenienses. . . Anágkê stênai. Impõe-se uma pausa! Nossa disciplina analítica tem uma particularidade que talvez não compartilhe com nenhuma outra; sabemo-lo: a formação — em nosso domínio — não equivale, sob nenhum aspecto, ao ensino e, ainda menos, evidentemente, poderia reduzir-se a ele. O ensino da psicanálise, mesmo que fosse possível, o que — como vimos — é muito contestável, não poderia de forma alguma, em nenhum caso, bastar a si próprio, porquanto remete necessariamente a outra coisa que não ele mesmo: a análise didática. Assim sendo, é indispensável distinguir entre a psicanálise exotérica e a psicanálise esotérica. Queira-se ou não (e por que não se haveria de querer?), o futuro da análise depende do destino que esteja reservado à análise didática. Todavia, a análise didática propriamente — ou impropriamente — dita não será abordada nestas poucas palavras dedicadas ao ensino. Ela ficará reservada para uma ocasião futura. A existência manifesta, ou mesmo a oposição entre análise exoté rica e análise esotérica, não implica que não se possa nem se deva ensi nar algo ao psicanalista, se é até verdade que é impossível ensinar-lhe a psicanálise, e que ele deve, por conseguinte, em qualquer etapa èfh que se verifique o acesso à “psicanálise científica”, abandonar essa esperança. Estamos lembrados de que, em seu artigo profético sobre a Laiena- nalyse(i7) [A análise leiga], bem como em outras exposições de caráter (16) Cf. o mestre,Zenão de Eléia. (17) IHe Fr age der Laienanalyse \A Questão da Análise Leiga], seguido de um pós-escri- l» (1926-1927) (<1W. X I V ; S E X X ) . A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 25 geral, Freud não se cansa de enumerar toda uma série de conhecimentos que interessam diretamente à psicanálise (sempre firme e unitariamente definida como teórico-prática), seja porque esta, em seu desenvolvimen to, deu a essas disciplinas idéias novas fundamentais, seja porque o psica nalista tinha grande necessidade de nelas haurir conhecimento, sem descurar as fontes vivas do seu próprio campo, e mais provavelmente ainda por essas duas razões ao mesmo tempo. Sem, em nenhum momento, deixar de aludir às ciências da natu reza, Freud enumera assim, entre as ciências mentais (hoje denominadas “ciências humanas”) e de uma forma completa ou parcial conforme os textos: a mitologia (colocada sempre em primeiro plano) e a história das religiões; a sociologia; a psicologia (aliás, mais freqüentemente mencio nada sob a especificação de psicologia da religião); a ciência da litera tura. Mesmo as ciências da linguagem não deixam de compareceri18). E Freud lastima, nesse passo, que a psicanálise tenha, até essa data, dado muito pouca contribuição a tais ciências lingüísticasH19) Mas, evidentemente, isso diz muito mais respeito à instrução do psicanalista do que ao ensino da psicanálise. Quando muito, significa que certo ensino — o melhor, talvez — poderia ser concebido pelo viés das contribuições recíprocas que podem ser trocadas pela psicanálise e pelas outras ciências. E por que as artes seriam esquecidas? O próprio Freud não as desprezava e nelas colheu algumas de suas inspirações mais seguras e duráveis. Quem sustentaria a tese de que o que ele foi buscar em Sófocles, em Shakespeare, em Miguel Angelo ou em Da Vinci tem menos valor, hoje, do que o que ele tirou de Charcot, Brücke ou mesmo Fcchner? A psicanálise é, ao menos, tanto uma arte como uma ciência, e às vezes muito rnais^20). Um analista que pretenda ser um puro homem de ciência, sem qualquer sensibilidade para com a estética do seu em preendimento — coisa felizmente quase impensável mesmo num cien tista — seria sem dúvida incapaz de analisar. Isso quer dizer, também e sobretudo, que, antes de se formar, um psicanalista deveria instruir-se numa ou em diversas outras matérias. Cumpre chegar à análise, em suma, por certos itinerários, de resto muito diversos e tão difíceis de estudar no plano de um conhecimento geral quanto o é a história individual de um indivíduose, para além dos seus determinantes biográficos, não aprendemos, não lhe restituímos a sua (18) E isso desde 19141 (cf. História do Movimento Psicanalttico, 1914. GW, X; SE X/V , |>. 87). (19) E lambem à história. (20) (Jf. entre dez outras rrfrrêtn ias, por exemplo: Ercud. Um Estudo Autobiográfico, 1926. SE, XX, p. 4». 26 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA dimensão mítica. Ora, é essa justamente uma das tarefas do empreendi mento psicanalítico que deveríamos comparar aqui não apenas a uma odisséia, mas ao cruzamento de duas odisséias. Imaginemos um psicanalista nascido, criado, educado, instruído “no serralho”. Não seria essa uma situação cheia de obstáculos para ele e só reversível à custa de muita dificuldade? Mesmo pela análise. Sobre tudo pela análise. Será que o psicanalista, como tal, pode ter alguma coisa para ensi nar? Aparentemente, não. Uma vez que a própria psicanálise, até mesmo na sua prática, não pode ser transmitida — como todas as demais ciên cias — apenas de maneira exotérica, não existe provavelmente um mestre da psicanálise, assim como não há, para Platão, um mestre da virtude. Isso nos conduzirá pela última vez a Sócrates e aos sofistas. Pois o que diremos daqueles que, apesar de tudo, são os mestres da análise, ou vêm a sê-lo, ou assumem essa pretensão, ou simplesmente ocupam o lugar deles? Descartemos a negação falaciosa — de essência realmente sofista — que consistiria em dizer que não há mestre porque é possível demonstrar que o eidos de mestre não está fundado na razão. Mesmo porque não é apenas com o mestre eidético que estamos lidan do: também estamos às voltas com a situação que se inicia —a minima — quando ouvimos um analista falar em “seus alunos” para designar aqueles dentre os seus “didatizáveis” que — conforme a justa expressão sul-americana — vêm analisar-se em seu consultório assistidos por ele; isso tem início com o institucionalismo do “candidadouto” e termina com a doutrinação cultural e, mais ainda, cultual da análise. Que dizer do mestre da dialética? Que dizer, em última análise, do próprio Sócrates? Durante toda a sua vida, Sócrates sustentou uma luta gigantesca contra os sofistas. Ora, o sofisma, idêntico nisso ao sistema obsessivo, é elaborado para derrotar a morte; para ser mais forte do que ela. Ele é, se o quisermos atacar ou ainda desmontá-lo intemamente debatendo as suas contradições, literalmente inexpugnável. Nesse combate, o dialé tico converter-se-á por sua vez em sofista e deporá as armas; o sofista dará a última palavra proferindo um “E depois?” a cada vitória do dialé tico, o qual, por isso, ganhará todas as batalhas, com exceção da última. E por essa razão que Sócrates foi morto. Pode o analista escapar ao destino de Sócrates? Antes de chegar ao combate decisivo e — necessariamente — de aí permanecer, cumpre voltar a um outro caráter fundamental da sofística. O sofista: retor, comerciante de simulacros, imitador e mágico, fazedor de prestígios, mestre da virtude, diz Sócrates, não passa de um A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 27 caçador de jovens endinheirados; os mesmos que hoje, na França, se chamam blousons dores. É o próprio argumento que Sócrates viu voltar-se contra ele mesmo, no combate final: . . . quod corrumperet juventutem, que é assim, uma vez mais, ensinado às crianças. E portanto, em suma, em tomo do argumento pedagógico que se desenrola o drama de Sócrates vivo e morto. O que está em jogo é a juventude, é o nosso candidadouto, vestido de cambraia de linho branca, de náilon branco! Desse modo, o grande assunto do sofista — como Sócrates bem sabe — não é tanto o conhecimento, a ciência, ou a verdade, ou a vir tude, como ele pretende fazer crer; não. E, isto sim, dominar e seduzir. Trata-se, pois, muito simplesmente da nossa boa e velha libido. O sofista é um sedutor oral. A sedução é o seu único e verdadeiro desejo. E o que ele joga de fato é o jogo da sedução e da morte. Pois bem, quando Sócrates joga esse jogo com o sofista, o ponto mais importante onde gira o carrossel da maiêutica e da sofística é que o próprio Sócrates é atingido, de certa forma, pela sedução. Para sedutor, sedutor e meio! Eis Sócrates forçado a se auto-sedu- zir para refutar e rachar ao meio o sedutor. Sócrates condenado — pois ele, na verdade, já está condenado desde esse momento — a igualar e superar os maiores sofistas para derrotar a sofística. Nessas condições, Sócrates toma-se — um pouco que seja, mas não existe pouco nesse domínio — um sofista, por sua vez! Como se vê, o verdadeiro perigo está aí. E que pela virtude — se é lícito o termo — da sedução que está no próprio âmago da intenção sofista, toma-se infinitamente estreita a fronteira entre Sócrates e Gór- gias, entre o dialético e o retor que, esse, não necessita de um saber, mas apenas de um saber dizer(21). Essa fronteira não tem mais que a espes sura de um fio de cabelo. Ora, não é tão mais fácil dividir um fio de cabelo em dois do que cortá-lo em quatro(*), que é a atividade sofista por excelência. No diálogo com o Escravo, que se desenrola diante de Mênon, e constitui uma fascinante demonstração de maiêutica, um desempenho extraordinário, um “número” que, por isso, se transformou num clás sico eterno, não é menos evidente que Sócrates “exagera”, induz sutil e (21) Górgias, 495a-c. Sofista, 233a, b. (*) Trata-se de um jogo de palavras que não logramos traduzir. O recurso é similar ao w»4ido por Machado de Assis em “Antes cair das nuvens que de um terceiro andar’’. Couper un < h fvêu (les cheveux) en quatre é procurar sutilezas, fazer distinções sutis, ser minucioso demais. A expressão portuguesa que de certa forma lhe corresponde é: “Catar pulgas em dorso de ele- Untr”. (N. doT.) 28 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA sub-repticiamente o sujeito-escravo pela própria habilidade das pergun tas e, numa palavra, tira notável partido da sugestão para fazê-lo dizer o que ele, Sócrates, pretende provar. Depois de opor alguma resistência a essa “tremelga do mar” (Sócra tes) que entorpece a sua vítima*22), é surpreendente a complacência de Mênon em admitir a demonstração. É que ele próprio está dominado, entorpecido, sugestionado, hipnotizado, como atestam os seus protestos cada vez mais tímidos: “Tens razão, Sócrates, embora eu não saiba como”*23), até submeter-se inteiramente ao mestre da dialética. . . Assim, não há dúvida de que uma das forças da ação maiêutica reside na sugestão, essa mesma sugestão cujos efeitos Freud muitas vezes escla receu que, mesmo na mais pura das análises, era impossível eliminar. A sugestão atua como sedução, com ou sem a nossa anuência; e se, no final das contas, Sócrates explica as razões que o levam a ser a “tremelga do mar”: não só porque isso demonstra a sua própria perplexidade*24), mas sobretudo porque assim procede no interesse do escravo, “por mo tivo justo”, em síntese*25), quer isso dizer principalmente que o único penhor da dialética nas mãos do dialético não é, em última análise, mais do que a própria virtude. Estariam essas observações afastadas da relação entre mestre e dis cípulo, ou não introduziriam elas na essência oculta da referida relação, nesse ponto perigoso em que o mestre, transpondo o imperceptível limite entre dialética e sofisma, entre maiêutica e erística, entre ciência e retórica, instaura com o aluno a relação de sedução mútua? E precisa mente nesse cruzamento que o mestre, de sábio que era, se transmuda em sedutor e toma-se o representante (comercial) da sua ciência. Sabe- -se a que preço — a cicuta — Sócrates escapou a essa degradação, e uma tal atitude extrema é a única que podia convir — não há dúvida — ao remate do mito platônico. Do contrário, pode-se imaginar que o mestre vencedor teria sido, naturalmente, o único a não ver aquilo que, para todos, se tomaria mo tivo de indignaçãoou de sarcasmos: que os seus discípulos amados e enamorados só faziam devolver-lhe a sua própria imagem. E que, se por não ser possível, esses discípulos tivessem pensado em converter — para se livrarem dela — a alienação numa teoria, só de forma introspec- tiva poderiam perceber, e isto é ainda duvidoso, alguns dos seus raros estigmas. (22) Mênon. 79e;80d, (28) Ibid., 86b-d. (24) Ibid, 80c. (25 Ibid., 84a-d. A PSICANÁLISE CIENTIFICA 29 Aproveitando o ensejo de estarmos, por mais um momento, em companhia de Sócrates e de seus sofistas, e dos discípulos que ele não teve, o que dizer, por fim, da oposição — apurada há pouco no Górgias — entre o saber verdadeiro e o saber dizer, entre a verdade e a falsa ciên cia, mais fundamentalmente ainda, entre o saber e a verdade? Pois em tudo isso, como diz também Platão, ó que está em foco é sempre a ver dade. Trata-se de um tema tão repisado que, mesmo neste momento, cumpre admiti-lo, hesitamos em abordá-lo, tão grande é o risco em seme lhante conjuntura de não fazermos mais do que juntar uma voz — ainda que discordante — ao coro que tem os favores da moda e uma audiência certa. Mas, no final das contas, são as nossas meditações socráticas que tomam essa conclusão inevitável! Mas, ainda aqui, escutemos o que nos diz Sócrates. Em primeiro lugar, é evidente que a distinção — antes que a oposição — entre saber e verdade se impõe, se não a toda e qualquer ciência, pelo menos a toda filosofia da ciência e do conhecimento, a toda epistemologia e, em maior grau, à psicanálise, já que ela é a maiêutica do sentido, a maiêu tica do outro sentido, para sermos ainda mais explícitos. Sócrates, por seu tumo, proclama aos quatro ventos que nada sabe, ou, mais filosoficamente — e inaugurando assim um caminho princi pesco da filosofia primeira que se tomará tradicional, estendendo-se até Descartes e depois à fenomenologia —, diz que a única coisa de que está certo é da sua ignorância. Sócrates também não desconhece a função do silêncio e da reticên cia. Convém insistir sempre, por exemplo, no fato de que, no Sofista, Sócrates, embora presente, permanece quase silencioso. Ele intervém, é certo, mas suas palavras são ditas por outra personagem. Será que isso não evoca em nós alguma lembrança? Quanto ao próprio Sócrates, ele recebe os participantes, dá o pon tapé inicial. Foi ele que marcou o encontro! Mas o que se deve ver sobretudo, no imo, é que a ignorância e o silêncio em tela são suspensivos. Vale dizer: teleológicos, metodológi cos, heurísticos. Trata-se do silêncio de quem pode falar e da ignorância de quem sabe, e não, de forma alguma, do silêncio do mudo ou da igno rância do ignaro. Uma é a ignorância ante; a outra, a ignorância post. Trata-se da segunda: cm outras palavras, da ignorância sábia ou douta ignorância*26). (26) Cf. Nicolau clr Cuia. De Poete Ignorontk, 1440. De la docte ignorance, tr»d. fran zia, Pariu, K. Álea», 1080. 30 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA O não-saber socrático é em suma um truque, um ardil, assim como o serão a dúvida metódica (metodológica) e a epokhê fenomenológica. A respeito dessa ignorância, pode-se dizer o que quase proverbialmente já se disse de Deus: um pouco de ciência nos afasta dela, muita ciência a ela nos conduz. Por conseguinte, o que é de recear, na distinção entre o saber e a verdade, não é a distinção em si própria, visto que ela tem sua base, mas um certo uso que dela se pode fazer e que, aliás, já está em voga. E esse mau uso que convém examinar e passar pelo crivo da crítica. Entre saber e verdade existe, em primeiro lugar, a passagem de um distinguo a uma oposição. Ora, não é evidentemente por não serem as mesmas que essas duas coisas são opostas, contrárias ou antagônicas. A essas doxografias grosseiras — como diz Platão —, e quer se proponha um único ser (Parmênides), dois (Alcméon), três (Ion), quatro (Empé- docles), uma infinidade ou nenhum (Górgias), Sócrates já lhes fez jus tiça em vários passos do Parmênides, do Teeteto ou do Sofista<27). A passagem ao limite, portanto, transforma nesse caso uma proposição verdadeira (a distinção) numa falsa (a oposição). De sorte que acabamos por contrastar verdade e saber: deslizamos sub-repticiamente ddi suspensão à recusa, e é para concluir “em nome da verdade” que se chega ao ponto de recusar o saber. Pois bem, temos de dizer que tudo isso não passa de um terrível equívoco. Enquanto o não- -saber socrático e a ignorância douta pertencem à ordem teleológica da suspensão, a recusa do saber, essa, nada tem em comum com a docta ignorantia: é simplesmente uma inépcia. Depois, essa mesma oposição dissimula um sofisma inconsciente, que se poderá indiferentemente qualificar de sofisma de justificação ou de álibi, pois ele merece igualmente ambas as denominações e lhes desempenha as funções. Eis o que ele é: “Como o sábio se diz ignorante, o ignorante, ao proclamar a sua ignorância, igualar-se-á portanto ao sábio e se tomará um seu igual”. A esse processo, que nos parece fundamental em psicanálise eru dita, isto é, em psicanálise ensinada, propomos que se reserve o nome de identificação sofistica. Ora, é fácil entender que um elemento sofístico entre provavelmente em toda identificação, seja ela qual for. Entretanto, nos casos gerais, a análise não tardou em desmascarar o sofisma, ao passo que nessa relação muito particular entre mestre e aluno, e que,,de maneira inequívoca, impregna a relação “didática”, ele assume uma gra vidade especial por ser, de certa maneira, perenizado. Em outras pala (27) Sofista, 242d. A PSICANÁLISE CIENTÍFICA 31 vras, o mestre aí se acha cativo, enquanto o aluno é captado. Na relação de identificação sofística, é o anterior e o ulterior que se acham confun didos, o ignorado com o ignaro, alhos com bugalhos. Assim, desse mau uso, que se resume numa oposição falaciosa, não é de forma alguma a verdade ou a “teoria da Ciência” que surgem, mas, isto sim, o álibi da ignorância, na identificação sofística. Já não se trata da douta ignorân cia, mas da ignorância satisfeita, gloriosa, sistematizada. A psicanálise, decerto, nada tem que ver, fundamentalmente, com a pedagogia. Numa ampla medida, ela chega a ser o seu contrário, por quanto substitui o conhecimento “já feito”, constituído, por um conhe cimento “por fazer” e constituinte a que se pode, por exemplo, chamar verdade. Ou mito. . . pois a verdade participa do mito, que pode, sob esse aspecto, ser definido como o ponto em que se cruzam o constituinte e o constituído. Mas a psicanálise científica — aquela que tem uma teoria para ser ensinada — retoma necessariamente à lição. Ela ensina. E como, no en tanto, ela pretende ignorar isso, para não se contradizer em sua própria essência, encontra-se diante de um perigo, ainda mais que qualquer outra ciência, de transpor a fronteira em que a pedagogia se projeta na demagogia: simulacro da parte do mestre sedutor, imitação da parte do discípulo seduzido que, por sua vez, se transforma em sedutor. Simulacro e imitação: estamos no mesmo grupo, nesse jogo de enganados em que todos têm uma “boa opinião”, a melhor possível, sobre o outro; essa sociedade mútua de contemplação em que o aluno admira o mestre e este admira a si próprio na imagem que dele lhe dá o seu discípulo. Com o Estrangeiro do final do Sofista, dir-se-á, o que se aplica palavra por palavra à identificação sofística: “A imitação que se apoia na opinião daremos o nome de doxomimética; e à que se apóia na ciên cia chamaremos mimética sábia”(28). Será possível tirar daí um preceito de psicanálise erudita? Ao mes- Ire nada se pode dizer. Pois, desde que se tomou mestre, há uma carrada dc anos, ele, segundo tudo indica, só faz escutar a si próprio, e, por con seguinte, por toda a parte “.ouve ressoar o doce nome de Amarílis”(*). Essenome, no entanto, é o seu. Ao candidadouto, mas sem grande ilusão tampouco, pois esse não saboreia as palavras, e sim a boca que as pronuncia, poderíamos citar (28) Sofista, 267e. (*) Ucininwcôncia vir^ilianu: Fortnoxam resonare doces Arnaryllida . . . (Bucólicas, I, 5.) (N. <lo T.) 32 A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA apenas uma das injunções da velha tradição comercial: “Evitem as imita ções”! . . . Em todas as acepções do termo. Depois dessas breves considerações analítico-platónicas consagra das ao mestre e ao seu discípulo (por haplologia, o candidouto), numa próxima vez tentar-se-á dizer alguma coisa sobre essa mesma persona gem apanhada na tarefa formadora (o candidato, mais uma vez por haplologia). Mas, desde já, o comércio com Platão e a escuta socrática nos ensi naram — ou nos lembraram — uma coisa que poderia ser de importância fundamental no início da próxima etapa. Além de uma modéstia, de uma humildade que é sempre útil lembrar aos detentores ou dispensado- res do conhecimento, e mais ainda àqueles que se proclamam mestres da virtude, a lição socrática é que a virtude não pode ser ensinada, ao passo que a ciência o pode. Outros dirão até que ela deve, transportando-nos aliás, nesse ponto, da ordem da axiomática para a ordem da axiologia. Todavia, a parte científica dos nossos conhecimentos, a ciência, não pode efetivamente encontrar sua garantia nem seu fundamento em si própria; mas quanto a essa garantia, a ciência a deve buscar, formular ou pressupor, ela a deve postular — ainda que de maneira implícita — nessa virtude mesma que escapa à sua jurisdição, ao seu saber, e conse- qüentemente, à sua transmissão. Esse apelo necessário, em última análise, a uma transcendência da ética não deve causar espécie a ninguém. Como já se disse, a garantia da ciência só pode estar num conhecimento correto. Por acaso não se poderia pensar, portanto, na existência — não digamos de uma virtude, para evitar o risco de um escândalo — de uma qualidade peculiar ao ensino, isto é, à transmissão da ciência e, da mesma forma, de uma qualidade específica à formação, ou seja, à trans missão da aptidão? Em termos mais precisos: qualidades próprias, por um lado, ao ensino e, por outro, à formação, qualidades que seriam as principais condições de possibilidade de todo ensino ou de toda formação? Essas qualidades específicas, onde deverão ser situadas? No mestre — no que tange ao ensino —, no analista — no que tange à formação ana lítica —, ou no aluno, no candidato? Ou antes em algo — objeto, ato ou processo — que ocupa um lugar eqüidistante entre os dois protagonistas? Sem dúvida, essa questão da qualidade específica é tão antiga como a própria reflexão. No entanto, no mundo atual e principalmente no mundo psicanalítico, pode ser que essa antigüidade venha a assumir uma feição de novidade singular. 2. Os caminhos da j formação psicanalítica ? “Conheço um indivíduo que, quando lhe pergunto o que sabe, pede-me um livro para aí o mostrar; e não ousaria dizer-me que tem sarnas no traseiro sem antes ir consultar o dicionário para ver a acepção de Sarna e de Traseiro.” Montaigne. Ensaios, I, 24 Publicado prlii primeira ve/, m Toftü/uc. Pari», IM »K, m> |( 19(p) No capítulo anterior, tentamos examinar o problema do ensino da psicanálise. Deliberadamente inspirado em Freud e Sócrates, esse estudo chega a duas idéias que, de resto, não constituem uma novidade sensacional, pois desde longa data os autores analistas, com certa constância ou de modo mais ou menos periódico, se viram conduzidos até elas: 1? A psicanálise não pode ser ensinada da mesma forma que as demais ciências. Talvez nem sequer seja uma ciência. Ou, quando muito, se, no conjunto teórico-clínico por ela constituído, algumas de suas par tes se prestam a um tratamento, a uma estruturação científica ou de aparência científica, outras há que se assemelham mais à arte, ou ainda â virtude, no sentido socrático do termo. 2? Existe em psicanálise uma distinção entre ensino e formação, distinção essa que é englobada pela distinção entre exotérico e esoté rico; isso se deve, sobretudo, ao papel fundamental exercido pela análise dita didática. Esse papel é de tal ordem que, a cada nova geração analí tica, pode-se dizer que o próprio destino da análise e todo o seu futuro lhe estão subordinados. Em psicanálise, a referida distinção entre ensino e formação está longe de ser meramente retórica e acadêmica; ao contrário, mostra-se tão definida, que somos levados a indagar — como veremos — se, em certos casos muito comuns da prática formadora, ela não se torna incompatível. E cumpre-nos admitir que diante dessa questão, que decorre diretamente da transmissão, com a qual nos vemos diariamente confrontados, tanto os analistas “em exercício” quanto os “postulan tes” se encontram no mais profundo embaraço. 36 A FORMA ÇÃO DO PSICANALISTA Prova-o a observação que tivemos o ensejo de fazer em data ainda bem recente, durante um congresso que terminou em cisão, já que, em vez de pactuar com um sistema de formação imposto em condições que, a nosso ver, eram das mais duvidosas, fomos obrigados a deixar a socie dade de que fôramos um dos primeiros fundadores!1). Durante essa assembléia vimos um colega, por quem pessoalmente nutríamos muita estima, estruturar sua intervenção em tomo tão-somente da preocupa ção de evitar proferir esta “terrível palavrinha vinda do grego”; tratava- -se, é claro, do vocábulo didática, assim subitamente promovido à emi nente dignidade aterradora de objeto tabu. Ora, se naquilo que nos concerne estamos longe de condenar uma preocupação com o rigor terminológico, tendo mesmo tido ocasião de propor numerosas modificações de termos e sobretudo de conceitos, não podemos deixar de afirmar que é necessário pôr alguma coisa atrás (ou adiante) das palavras, mas em todo o caso em relação estreita com elas; por exemplo, uma mudança verdadeira e autenticável — isto é, que possa ser justificada — da prática formadora, por trás da mudança do termo “didática” ou da sua supressão. Em outras palavras, por trás da indispensável crítica terminológica, é preciso antes de tudo que a pala vra deixe de exercer um papel de mero álibi ou uma função quer de objeto fóbico, quer de objeto fetiche. Certamente não defendemos o termo “didática” — e ainda menos o termo “controle”, como se verá — na medida em que tais vocábulos arrastam consigo um passado teórico e prático que vai até a aberração, sobretudo porque esse passado confunde permanentemente ensino com formação, e não consegue, de modo algum, dar um conteúdo utilizável e utilizado a uma distinção que, no entanto, é tão necessariamente imposta pelo próprio exercício analítico. Em contrapartida, nada ou quase nada se modifica nos proble mas suscitados pela formação quando se suprime pura e simplesmen te o termo “didática”, nem quando alguém se limita a propor novas denominações para os representantes da “população” de postulantes — objeto das preocupações ansiosas e ambivalentes dos psicanalistas em sua área, não menos que dos políticos na deles. “Estudantes”, alunos, candidatos, universitários, discípulos ou “bacharéis” — segundo um dos últimos vocábulos inventados!2). A multiplicidade de nomes dissimula aqui a identidade da coisa, e elide o problema ao invés de defini-lo. {1) TraU-ir da Esc o ia Freudiana d* Paris. (2) <XJ. Ut mi, ln Scilictt, Perl», Seuil, HlfiH. OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO PSICANALÍTICA 37 “Assim, quando dizemos os Outros diferentes do Uno e o Uno diferente dos Outros, essa dupla enunciação do diferente não tem em absoluto o efeito de transportar o seu nome para uma natureza nova; ela só designa, em ambas as oportunidades, essa natureza própria a que o nome pertence originariam ente.^W I. O problema criteriológico
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