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AARÃO REIS, Daniel Ditadura e Sociedade, as reconstruções da memória

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Parte I 
Hí,tória e Memória 
REIS, José Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas: Papiros, 1994 .. 
SANTOS, Wanderley Guilherme. Sessenta" e quatro: anatomia da crise. R1o de 
Janeiro: Vértice, 1986. 
STARLING, Heloísa. Os senhores das Gerais: os novos inc?nfidentes e o golpe 
de 1964. Petrópolis: Vozes, 1986. 
TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo 
financeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. 
TOLEDO, Caio Navarro. O governo João Goulart e o golpe de 64. São Paulo: 
Brasiliense, 1982. 
___ . A democracia populista golpeada. ln: TOLEDO, Caio Navarro (Org.). 
1964: visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campi-
nas: Ed. da Unicamp, 1997. 
C._A. 
DE 
ENGEN~-Lt\RIA 
( 
Capítulo 2 
DITADURA E SOCIEDADE: 
AS RECONSTRUÇÕES DA MEMÓRIA 
Daniel 'Aarão Reis* 
A essência de uma nação ... 
é que todos sejam capazes de esquecer muitas coisas. 
Ernest Renan 
MEMÓRIA E HISTÓRIA 
São conhecidas as artimanhas da memória. Imersa no presente, preo-
cupada com o futuro, quando suscitada, a memória é sempre seletiva. Provo-
cada, revela, más também silencia. Não raro, é arbitrária, oculta evidências 
relevantes, e se compraz em alterar e modificar acontecimentos e fatos cru-
ciais. Acuada, dissimula, manhosa, ou engana, traiçoeira. Não se trata da afir-
mar que há memórias autênticas ou mentirosas. Às vezes, é certo, é possível 
flagrar um propósito consciente de falsificar o passado, mas mesmo neste 
caso o exercício não perde o valor porque a falsificação pode oferecer interes-
santes pistas de compreensão do narrador, de sua trajetória e do objeto recor-
dado. Por outro lado, e mais freqüentemente, embora querendo ser sincera, a 
memória, de modo solerte, ou inconsciente, desliza, se faz e se refaz em vir-
tude de novas interpelações, ou inquietações e vivências, novos achados e ân-
gulos de abordagem. 
* Professor Titular de História Contemporânea. Núcleo de Estudos Contemporâ-
neos do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. 
29 
Parte I 
História e Memória 
O propósito deste artigo' é visitar criticamente certas "batalhas" de 
memória a respeito de processos 2í:uciais de um passado recente da história 
de nosso país: a gênese e a consolidação da ditadura militar, as lutas que se 
travaram contra ela, particularmente a luta armada, e o processo lento, segu-
ro e gradual através do qual os militares abandonaram o proscênio da cena 
política. 
Como se sabe, em História, quando ainda se desenrolam os enfrenta-
mentos nos terrenos de luta, ou mal se encerram, o sangue ainda fresco dos fe-
ridos, e os mortos se~ sepultura, já se desencadeiam as batalhas de memória. 
Nelas os vitoriosos no terreno haverão de se desdobrar para garantir os troféus 
conquistados. E a vitória que fora sua, no campo de luta, poderão perdê-la na 
memória da sociedade que imaginavam subjugada. 
Porque o tempo dá voltas inesperadas. Os derrotados de ontem, na luta 
aberta, podem ser os vitoriosos de amanhã, na memória coletiva. Nas batalhas 
de memória, o jogo nunca está definitivamente disputado, as areias são sempre 
movediças e os pontos considerados ganhos podem ser subitamente perdidos. 
O intuito do texto não é formular, recuperar ou restabelecer verdades. 
Mas compreender como e porque determinados exercícios de memória têm 
sido empreendidos, a lógica interna, as incoerências e as fraturas, e as possí-
veis consequências para a construção de uma sociedade democrática nestes 
brasis do século 21. 
A DITADURA MILITAR: GÊNESE 
Tentemos começar pela conjuntura anterior à intervenção de março de 
1964 que instaurou a ditadura militar. Nela se acumularam as forças que se 
30 
As idéias centrais deste artigo foram originalmente apresentadas no Seminário: 40 
anos do golpe (1964-2004), promovido no Rio de Janeiro e em Niterói, entre 22 e 
26 de março de 2004, pelos Departamentos de História da UFF/Núcleo de Estudos 
Contempor.âneos e da UFRJ, pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo Ar-
quivo Público do Rio de Janeiro/APERJ. Ligeiramente modificadas, e enriquecidas 
pelos debates que provocaram, foram também apresentadas no Seminário: Pensan-
do 1964, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil, entre 30 de março e 2 
de abril de 2004, no Rio de Janeiro (25 de março) e em São Paulo (1 de abril). 
Capitulo 2 
Ditadura e sociedade: as reconstruçôes dà memória 
enfren,taram num grande embate, o mais complexo e violento, e de maiores 
dimensões sociais, que até então conhecera a república brasileira. 
Quando tudo pode ter começado? Na sucessão do tempo, sempre fluí-
do e contínuo, o historiador depara-se com o desafio de estabelecer referên-
çias sem escorregar no puro arbítrio. Compartilho o ponto de vista de muitos 
que apontam agosto de 1961 como um marco inicial.' Deu-se, então, a renún-
cia de um presidente eleito, Jânio Quadros, há apenas sete meses no poder. O 
quanto este líder carismático despertara de esperanças positivas, nas eleições 
que o consagraram, e na posse, em janeiro de 1961, desencadearia, agora, com 
a renúncia, de perplexidade e de decepção. 
Os ministros militares, nomeados por ele, não se conformaram. De 
modo atabalhoado urdiram o golpe: impedir a posse do vice-presidente elei-
to, João Goulart, o Jango, que estava no momento, longe, em visita à China 
Popular, acusando-o de vínculos com o sistema e com o legado de Getúlio Var-
gas, que segundo eles fora derrotado p~lo renunciante,' e também com o co-
munismo internacional. 
Entretanto, contra os primeiros prognósticos, que imaginavam uma vi-
tória rápida, o golpe não prosperou. Foi co11tido por um movimento de resis-
tência democrática liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leo-
nel Brizola, cunhado e correligionário de Jango. Agindo com determinação e 
ousadia, Brizola alertou e mobilizou a população de Porto Alegre, formou uma 
cadeia nacional de comunica,ções, a rede da légalidade, e persuadiu_o general 
Machado Lopes, comandante do III Exército, a mais poderosa grande unidade 
do exército brasileiro, sediada no sul do país, a resistir com ele ao golpe. 
Referindo-se à tradição dos militares brasileiros em ganhar ou perder 
batalhas apenas fazendo ameaças ou comunicando intenções, Brizola lançou: 
2 LABAKI, 1961; CASTELO BRANCO, 1996; MARKUN; HAMILTON, 2001. 
3 Pela legislação vigente na época, votava-se separadamente para' presidente e vice-
presidente da República. Assim, Jânio Quadros, apoiado por uma ampla coligação 
liderada pela União Democrática Nacional/UDN (que tinha em sua chapa Miltom 
Campos, político mineiro da UDN, como vice-presidente),' elegeu-se com João 
Goulart, que era vice-presidente de outra chapa, encabeçada pelo Marechal Henri-
que Lott, candidato à presidência apoiado pela coligação formada pelo Partido So-
cial-Democrático/PSD e pelo Partido Trabalhista Brasileiro/PTB. 
31 
Parte I 
História e Memória 
"Desta vez, eles não vão ganhar .. pelo telefone". De fato, não ganharam. Quem 
ganhou, mas também pelo telefone, foi o próprio Brizola. 
Entretanto, temendo enfrentamentos, Jango aceitou negociar a posse, 
ocorrida em 7 de setembro de 1961. Mas assumiu a presidência com os· pode-
res castrados por uma emenda parlamentarista votada poucos dias antes a to-
que de caixa e de clarins pelo Congres_so Nacional. 
Passada a ameaça da refrega, conjurada mais uma batalha de Itararé: o 
importante para nossos propósitos, é verificar como as forças em presença 
analisaram e interpretaram o ocorrido. 
As direitas ficaram aturdidas. Já perplexas com a renúncia de Jânio, 
quedaram-se completamente desorientadas com o fracasso da aventura gol-
pista. Mais tarde, rememorando os acontecimentos, muitos narrariam o quão 
difícil seria atar e reatar os fios de um processo conspiratório contra Jango.' 
A opinião centrista, largamente majoritária, e coma qual se identifica-
va o presidente empossado, embora ele próprio fosse um moderado de es-
querda, respirou aliviada. Jango percebia a fragilidade da aliança em que se 
apoiava, e tentaria a partir de então manobrar com ela, exercitando a tradição 
de arbitragem e conciliação que herdara de seu mestre e padrinho político, 
Getúlio Vargas. Desde o início, deixara clara a intenção de recuperar os plenos 
32 
4 A batalha de Itararé, em 1930, entrou para os anais da história corno a maior bata-
lha convencional da América Latina ... que não houve. Caso acontecesse, teriam en-
trado em choque as tropas "revolucionárias" da Aliança Liberal, que vinham do Sul, 
lideradas por Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha e Góis Monteiro, e as forças que de-
fendiam o governo legal de Washington Luís. Entretanto, ambas as forças retira-
ram-se para evitar confrontos e resolveram a luta recorrendo à arma que se torna-
ria usual entre os militares brasileiros: o telefone. 
5 Adotarei ao longo do artigo as categorias clássicas de direita, centro e esquerda. Por 
direita, entenderei as forças conservadoras, alérgicas a mudanças e dispostas a 
manter o status quo. Centristas são as tendências da moderação e da .conciliação. 
Segundo as circunstâncias, podem se inclinar favoravelmente a reformas, desde que 
dentro da lei e da ordern,ou podem apoiar soluções de força para deter as reformas. 
À esquerda se situarão as forças favoráveis às mudanças em nome da Justiça e do 
Progresso sociais. Empregarei as categorias sempre no plural por entender que, em 
cada termo, agrupam-se posições, lideranças e forças diversas, das mais moderadas 
às mais radicais. 
6 Cf. GASPARJ, 2002/1 e 2; D'ARAÚJO; SOARES; CASTRO, 1994/1. 
Capitulo 2 
Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória 
poderes presidenciais, mas, por cálculo e índole, não deu mostras de escolher, 
ou preferir, métodos de confronto./· 
As esquerdas, surpreendidas com a rápida vitória, conheceram uma es-
pécie de euforia. Tenderam a esquecer duas circunstâncias associadas, e deci-
sivas, da vitória contra a tentativa de golpe militar: o fato de que assumiram, 
ao lado de Brizola e do III Exército, uma posição defensiva, e o de que esta po-
sição defensiva articulara-se em torno da preservação da lei. Posição defensiva, 
e de defesa da lei: por estas razões fora possível vencer Ós golpistas. Esquecê-
lo, no futuro, teria profundas e desastrosas co'nsequências. 
Encerrada a grave crise institucional, abriu-se uma conjuntura crítica 
de múltiplas dimensões, que iria num crescendo até o fim de março de 1964. 
Antes, porém, de apresentar a crise, e sobretudo como as forças políti-
cas a analisaram, valeriá a pena tratar do contexto internacional e de seu im-
pacto no desenvolvimento do processo histórico brasileiro. 
Viviam-se então os tempos da guerra fria entre os EUA e a URSS. As 
duas superpotências empenhavam todos os recursos no sentido da polariza-
ção das contradições existentes em escala mundial em torno de seus interesses 
universalistas e expansionistas. Tentavam, com seus aliados em cada país, fa-
zer de cada área de tensão, de cada conflito, um momento do choque maior 
de dois projetos civilizacionais. Os partidários da liderança dos EUA falavam, 
segur:do o jargão da época, ná defesa da livre iniciativa, dos valores liberais, do 
ocidente, da civilização cristã. Os que de, algum modo, simpatizavam com a 
URSS, enfatizavam a justiça, o progresso, a libertação nacional, as reformas e 
a revolução social. Ambos os lados defendiam a democracia, acusando-se re-
ciprocamente por desprezá-la, mas em toda parte tinham com este regime 
uma refação meramente instrumental, não se furtando a pisotear alegremen-
te os valores e as instituições democráticas sempre que isto lhes parecesse im-
portante para fazer avançar seus interesses imediatos e o alcance de seu poder. 
Nos anos 50 e 60 do século 20, no âmbito do então chamado terceiro 
mundo, a guerra fria tornara-se quente. Embora fosse possível relacionar pro-
cessos de transição pacífica, marcados pela conciliação, o que predominava, 
no imag_inário, na mídia, no vocabulário e no terreno, era o confronto violen-
to, a luta armada, reformas arrancadas pela força, guerrilhas e revoluções so-
ciais. A guerra do Vietnã, re_tomada desde o início dos anos 60, a guerra da Ar-
gélia, encerrada em 1962 com o reconhecimento da independência do país, as 
33 
Parte I 
História e Memória 
guerras arabo-israelenses, o agressivo nacionalismo pan-árabe nasserista, a 
guerra civil no Congo, as guerrillias na África sub-saariana. Nas Améric~ ao 
sul do Rio Grande, avolumava-se uma nova onda nacionalista, de caráter po-
pular, reformista e revolucionária. Desdobravam-se movimentos sociais ofen-
sivos nas cidades e guerrilhas rurais. A revolução cubana, vitoriosa em 1959, 
representou um ápice neste processo. A sua radicalização política e social, a 
transformação do processo em revolução socialista (1961), a expulsão de 
Cuba da Organização dos Estados Americanos, patrocinada pelos EUA, a cri-
se dos mísseis, em outubro de 1962, que levou o mundo à beira de uma ter-
ceira guerra mundial, todos estes fenômenos evidenciam, principalmente no 
terceiro mundo, uma fase histórica em que a política se associava constante-
mente a enfrentamentos violentos, decididos pelo confronto de forças e/ou 
pela luta armada. 
O Brasil não conseguiria naturalmente ficar imune a esta atmosfera. 
Mas é preciso evitar a idéia corrente_ - e distorcida - de que o país era um mero 
joguete nas mãos das superpotências. Nem as direitas eram manipuladas pelo 
imperialismo norte-americano, nem as esquerdas, pelo ouro, ou pelo dedo, de 
Moscou. Jargões de época, de considerável eficácia propagandística, não dão 
conta, porém, da autonomia política de que dispunham as forças antagônicas. 
Feita a ressalva, passemos à crise, cuja peculiar importância na história 
republicana já foi ressaltada. Não se tratará de descrever as etapas e os.princi-
pais acontecimentos do processo de radicalização que desembocou na instau-
ração da ditadura militar.' O que importa, para os propósitos do artigo, é cha-
mar a atenção para os grandes traços dos embates que se travaram, para as 
forças em presença, e principalmente para a forma como interpretaram, na 
época e depois, os acontecimentos vividos, ou seja, para como elaboraram a 
memória do que se passara. 
Animados pela vitória contra a tentativa de golpe de agosto de 1961, 
desencadearam-se em todo o país amplos movimentos sociais populares: 
càmponeses, trabalhadores urbanos, principalmente do setor público e das 
empresas estatais, estudantes e graduados das forças armadas. Gi:eves econô-
micas e políticas, manifestações, comícios, invasões de terra, nunca se vira, 
34 
7 Para o período 1961-1964, cf. CASTELO BRANCO, 1975; DINES, 1964; DREI-
FUSS, 1981; MORAES, 1989. 
Capitulo 2 
Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória 
como já se disse, algo semelhante na história republicana brasileira. Deseja-
vam, em síntese, melhorar as condições de vida e de trabalho ·e também os ní-
veis até então alcançados de participação no poder político. Havia neles a per-
cepção de que o surto desenvolvimentista dos anos 50, embora tendo promo-
vido grande mobilidade geográfica e social, não distribuir~ equitativamente as 
benesses e os lucros auferidos, nem ampliara de forma significativa a demo-
cratização do Estado e das instituições. As demandas enfeixaram-se gradativa-
mente num programa, o das reformas de base, porque, alegava-se, era preciso 
reforma~ as bas~s do sistema econômico e do regime político. Reforma agrá-
ria, urbana, bancária, financeira, universitárü1, educacional. Reforma das po-
líticas públicas, em especial do estatuto dos capitais estrangeiros, que deve-
riam ser controlados e, no limite, em certos casos, expropriados. 
Ao longo do processo de lutas, os movimentosreformistas foram adqui-
rindo um claro cunho nacionalista, anti-imperialista (leia-se: contra a prepon-
derância dos capitais estrangeiros), e estatista, dada a importância conferida 
ao Estado, e ao lugar central que ocuparia, nas propostas de reorganização da 
economia e da sociedade. A partir de 1963, quando Jango recuperou enfim os 
plenos poderes presidenciais, e considerando o imobilismo das elites e classes 
dominantes, que não pareciam sensíveis às demandas populares, os movimen-
tos radicaliiaram-se cada vez mais, empolgando crescentes setores sociais. No 
início do ano seguinte, já se podia falar num movimento reformista revolucio-
nário,ª principalmente se consideradas as alas mais radicais do Partido Traba-
lhista Brasileiro/PTB, do PCB/Partido Comunista Brasileiro, da Frente Parla-
mentar Nacionalista e da Frente de Mobilização Popular, mini-parlamento al-
ternativo construído pelas forças populares mais decididas. No âmbito das es-
8 Quer-se referir com o termo um processo, ou um movimento, que, embora ainda 
comprometido com reformas, as apresenta de tal forma que sua realização tende a 
implicar rupturas revolucionárias. A rigor, nos processos históricos concretos, não 
há, nem nunca houve, uma muralha da China entre reforma e revolução. Basta 
atentar p~ra as grandes revoluções do século 20. O conceito no Brasil foi consagra-
do por Carlos Nelson Coutinho, mas pode ser referido, a meu ver, à conjuntura po-
lítica anterior à instauração da ditadura militar no Brasil e, especialmente, às alas 
radicais dos movimentos sociais que lutavam pelas reformas de base. No entanto, 
mesmo no interior do PCB, explicitavam-se as relações entte reforma e revolução. 
Cf. DIAS, Giocondo. Sentido revolucionário da luta pelas reformas. Novos Rumos, 
n. 255, 10/15 jan. 1964. Cf. igualmente FERREIRA, 2004. 
35 
ParuI 
História e Mnnória 
querdas organizadas, como expressão do processo em curso, e o incentivando, 
multiplicavam-se organizações políticas claramente definidas pelo enfrenta-
mento revolucionário: Partido Comunista do Brasil/PC do B, Ação Popu-
lar/ AP, Movimento Revolucionário Tiradentes/MRT, Ligas Camponesas, Mo-
vimento Nacionalista Revolucionário/MNR, Organização Marxista Revolu-
cionária/ORM, entre outras, atestam o fenômeno. Com imprensa própria e 
grande atuação junto aos movimentos sociais, apareciam no cenário com um 
peso desproporcional ao número efetivo de seus militaptes, pressionando as 
forças políticas mais tradicionais. a radicalizarem também suas posições: 
Nos primeiros meses de 1964, configurava-se uma clara ofensiva políti-
ca reformista-revolucionária dos movimentos mais radicalizados. Crescia a 
descrença na possibilidade de que as reformas pudessem ser conquistadas nas 
margens legais. As eleições realizadas em outubro de 1962, para o parlamento 
federal e para um certo número de governos estaduais, evidenciaram o peso 
considerável das direitas e das forças centristas, que resistiam às reformas de 
base. Inspiradas pelas revoluções .vitoriosas em várias partes do mundo, em 
particular pelos êxitos aparentes da revolução c;ub.ana, e também pelos cho-
ques e enfrentamentos travados em diversas tegiões do terceiro mundo, qs se-
tores e organizações mais radicais ousavam já propostas de ruptura. Brizola 
falava num inevitável desfecho, atribuindo ao termo conotações apocalípticas. 
No congresso de fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores da 
Agricultura/CONTAG, apareceu e foi ovacionada uma palavra de ordem que 
sintetizava diagnósticos e prognósticos: reforma agrária na lei ou na marra. 1º 
Estavam longe as esquerdas de então, em particular os setores mais ra-
dicais, da plataforma de resistência de agosto de 1961. A posição defensiva, de 
defesa da legalidade, metamorfoseara-se em posição ofensiva, e, se fosse o caso, 
contra a lei. 
36 
9 Cf. as publicações do PCB: A Voz Operária, e, particularmente, o semanário Novos 
Rumos, editado a partir de 1959; as do PC do B, especialmente A Classe Operária, e 
as da Organização Revolucionária Marxista, em particular a revista Marxismo mi-
litante e o jornal Política Operária. 
10 A palavra de ordem foi amplamente agitada no congresso de fundação da Confe-
deração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura/CONTAG e difundida, por 
toda a imprensa de esquerda, mesmo pelos partidos mais moderados de esquerda, 
como o PCB. 
Capítulo 2 
Ditadura e soâedade; as reconstruções da memória 
As direitas, amplamente derrotadas em agosto de 1961, cedo se rearti-
cularam. De início de forma lenta, ainda confusas e desorientadas, pouco a 
pouco, ganhando ritmo e vigor. Os partidos conservadores começaram a se 
mover, entre os quais, a União Democrática Nacional/UDN, com seus dois lí-
deres de estatura nacional, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, governadores 
respectivamente da então Guanabara e de Minas Gerais; o Partido Social Pro-
gressita/PSP, liderado por Adhemar de Barros, dáí a pouco eleito governador 
de São Paulo, em 1962; e o próprio Partido Social Democrático/PSD, formal-
mente da base política de Jango, mas cujos setores mais radicais, de direita, 
iriam ajudar a vertebrar novas organizações políticas extra, ou supra-partidá-
rias: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/IPES e o Instituto Brasileiro de 
Ação Democrática/IBAD. 11 Os êxitos obtidos nas eleições de 1962, quando ga-
nharam os governos estaduais de São 'Paulo, Rio Grande do ~ul, Paraná, entre 
outros, consolidando também maioria na Câmara e no Senado federais, im-
pulsionaram as direitas, conferindo-lhes determinação e ousadia. 
Num outro plano, a Igreja Católica e sua cúpula institucional, a Con-
ferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB, claramente tomavam partido 
por posições conservadoras. Tenderam a caracterizar nos movimentos popu-
lares uma inspiração, e uma dinâmica, comunizantes. O fantasma da revolu-
ção cubana assombrava: lá também uma revolução nacionalista e democráti-
ca transmudara-se numa revolução socialista e numa ditadura revolucionária, 
levando um país católico para a órbita da União Soviética, sede e centro do 
materialismo ateu. Ora, segundo a encíclica de Pio XI, não formalmente revo-
gada pelo aggiornamento promovido por João XXIII, o comunismo era intrín-
secamente mau_.12 Não viria ele, na esteira das reformas de base, assolar o maior 
país católico do mundo, a Terra da Santa Cruz? Não se pode dizer que a Igre-
11 O estudo de René Dreifuss,.já citado, cf. n. 7, desvendou as articulações entre lide-
ranças civis, religiosas e militares qtie levaram à formação e à ação destas organiza-
ções, assim como o impacto que tiveram na sociedade brasileira. Cf. igualmente o 
estudo organizado por ASSIS, 2001. 
12 A encíclica Divinis Redemptoris, de 1937, afirmava: "Velai, Veneráveis Irmãos, para 
que se não deixem iludir os fiéis. Intrinsecamente mau é o comunismo e não se 
pode admitir, em campo algum, a colaboração recíproca, por parte de quem quer 
que pretenda salvar a civilização cristã". Agradeço a referência ao colega e amigo 
Rodrigo Motta. 
37 
Parte l 
História e Memória 
ja, como um todo, derivou para posições de direita. Mas é fato que a Institui-
ção, na grande maioria, e na cúpula, adotou posições de resistência às refor-
mas e aos movimentos que as defendiam. Não gratuitamente, logo depois da 
vitória do golpe mijitar, de março de 1964, a CNBB abençoaria, com sua au-
toridade, os vitoriosos. 
Quanto às Forças Armadas, e apesar das mutações efetuadas por Jan-
go nos principais comandos, passariam a questionar, de forma .gradativa, o 
rumo dos acontecimentos, principalmente a partir do momento. em que os 
graduados das diversas forças incorporaram-se ao movimento das reformas 
de base. Ameaçados nos fundamentos da disciplina e da hierarquia, condi-
ções indispensáveis para o exercício de comando de quaisquer forças milita-
res regulares, os oficiais da Marinha, daAeronáutica e do Exército pressio-
navam Jango a se afastar de m.ovimentos que tendiam a sair dos marcos ins-
titucionais. Dois episódios contribuiriam para consolidar grande parte da 
oficialidade em posições de direita, para as quais, aliás, já se encontravam 
vocacionadas, pela própria natureza das instituições a que serviam: a insur-
reição dos sargentos de Brasília, em setembro de 1963, e a insubordinação da 
associação dos marinheiros no Rio de Janeiro, em março de 1964." 
Restaria mencionar os capitalistas, pudicamente conhecidos como 
empresários, cujo papel absolutamente crucial, embora desvendado, ainda 
continua não merecendo a atenção dispensada.1• Temiam que as reformas de 
base, uma vez implementadas, subvertessem os padrões habituais de domi-
nação e as taxas de lucro. Foram peças decisivas na ar'ticulação do IPES e do 
IBAD, no comando da grande mídia - jornais e televisões-, no financiamen-
to de projetos e de organizações e na montagem dos contactos e alianças na-
cionais e internacionais. 
Toda esta frente, bastante heterogênea, constituiu um verdadeirn movi-
mento civil, expresso em encontros, comícios e nas famosas Marchas da Famí-
38 
13 Cf. PARUCKER, 1992. E tambéi:n CAPITANI, 1997. 
14 Os trabalhos recentemente publicados por Elio Gaspari, citados, comprovando o 
que DREIFUSS, 1981, também já havia assinalado, evidenciam a ativa participação 
dos capitalistas nacionais na urdidura e desencadeamento do movimento golpista 
e, mais tarde, no financiamento da polícia política. Sem dúvida, também foram eles 
os grandes beneficiários do milagre econômico brasileiro. Apesar disso, continuam 
sendo relativamente "esquecidos" quàndo se exercita a memória sobre o período da 
ditadura militar. 
Capitulo 2 
Dita.dura e sociedade: as reconstruções da memória 
lia com Deus e pela Liberdade, reunin.do milhões de pessoas em todo o país, 
fundamentais para legitimar as posições favoráveis à intervenção militar gol-
pista. Conferiram bases sociais à aliança entre o Dinheiro, a Cr~z e a Espada 
que derrubou o governo Jango. 
O interessante a notar, no entanto, é que as direitas, ao contrário do que 
ocorrera em agosto de 1961, apareciam agora em posições defensivas, de defe-
sa da legalidade e da democracia, justificando o golpe como um último recur-
so para salvar a democracia. De sorte que as direitas terão passado por uma 
mutação oposta à das esquerdas. Enquanto estas, inebriadas pela vitória de 
agosto de 1961, passavam à ofensiva política, e desafiavam abertamente ale-
galidade existente, aquelas situavam-se em defesa da legalidade e da ordem de-
mocrática, articulando o movimento ofensivo a partir de posições defensivas, 
embora seja certo dizer que muitas de suas forças organizadas manifestassem 
um superior desprezo pelos valores democráticos e conspirassem cada vez 
mais abertamente no sentido do golpe. 
O desfecho, como desejava e anunciava Brizola, mas em sentido contrá-
rio a suas expectativas, ocorreu, como se sabe, no final de março de 1964. De 
um lado, o reformismo revolucionário das esquerdas. De outro, as direitas e os 
movimentos conservadores, contra-reformistas e contra-revolucionários. Ga-
nharam desta vez as direitas, depois de mais uma série de eletrizantes batalhas 
de Itararé, resolvidas, como sempre, pela tradicional arma do telefone. A partir 
de 1 º de abril de 1964, o país entrava na longa noite da ditadura militar. 
Encerrado o embate, no campo de luta, iniciaram-se imediatamente as 
batalhas de memória. 
As direitas no poder, enquanto durou a ditadura militar, esmeraram-se 
em cultivar a memória do golpe como intervenção salvadora,'em defesa da de-
mocracia e da civilização cristã, con'tra o comunismo ateu, a baderna e a cor-
rupção. Para isto mobilizaram-se grandes meios propagandísticos e educacio-
nais.15 O esforço, no curto prazo, teve resultados apreciáveis, sem dúvida. A 
partir de um certo momento, já todos, ou quase todos, passavam a se referir 
ao golpe militar, que de fato se verificara, como revolução, como os golpistas 
15 Particularmente no período em que foi presidente o general Garrastazu Médici, or-
ganizou-se uma Assessoria de Propaganda, a AÊRP/Assessoria Especial de Relações 
Públicas, que desempenhou um grande papel nas campanhas publicitárias do 
39 
gostavam de referir a intervenção militar. Entretanto, progressivamente, na 
medida mesma em que a ditadura foi se tornando impopular, _e que se foi 
mostrando insustentável a versão de que uma ditadura podia salvar, ou cons-
truir, uma democracia, e que a sociedade passou cada vez mais a aderir e a 
simpatizar com os valores democráticos, _as versões de esquerda, também for-
muladas desde o momento seguinte à derrota, passaram a aparecer com mais 
vigor. Nesta memória, apagaram-se a radicalização e o confronto propostos 
pela maré reformista, sobretudo pelos setores mais radicais, desapareceu o ím-
peto ofensivo que marcara o movimento pelas reformas de base, evaporou-se 
o reformismo revolucionário. Neste quadro, as esquerdas, e Jango em particu-
lar, ressurgiram como vitimas bem intencionadas, atingidas e perseguidas pelo 
movimento golpista. A ameaça revo,fucionária, alegariam desde sempre as es-
querdas, inexistira na prática, não passara de infelizes declarações retóricas e 
metafóricas de U_!ll punhado de lideranças esquerdistas desavisadas, um fan-
tasma, uma espécie de bicho-papão, habilmente ·explorados pelas direitas na 
manipulação deste profundo sentimento humano, que, posto a serviço da po-
lítica, pode gerar, segundo as circunstâncias, uma tremenda energia: o m_edo. 16 
Para desespero dos militares golpistas, estigmatizados como gorilas, estas ver~ 
sões predominariam, quase incontrastáveis, a partir dos anos 80, quando hou-
ve a redemocraticação do país. 17 
Assim, as esquerdas, derrotadas no campo dos enfrentamentos sociais, 
históricos, puderam ressurgir vitoriosas, nas batalhas de memória. 
40 
"Brasil Grande". Na mesma época, foram constituídas as disciplinas de Educação 
Moral e Cívica (primeiro grau), Organização Social e Política do Brasil/OSPB (se-
gundo grau) e Estudos de Problemas Brasileiros/EPB, (ensino superior), todas 
obrigatórias, e imaginadas na perspectiva de inculcar valores e propostas políticas 
à juventude brasileira. 
16 A descaracterização e a diluição da ofensiva reformista revolucionária foram am-
plamente difundidas pela imprensa de esquerda, desde o período ipi.ediatamente 
posterior à vitória do golpe. O caráter drástico da derrota serviu de argumento para 
provar as inconsistências das supostas ameaças de esquerda. A interpretação seria 
retomada pelo excelente filme: Jango, de Sílvio Tendler, e pelos trabalho de Caio 
Navarro de Toledo apresentado no Seminário a respeito dos 40 anos do golpe mi-
litar, promovido no Rio de Janeiro em 2004 (cf. nota 1). Cf. igualmente: TOLEDO, 
1997. 
17 Cf. D'ARAÚJO; SOARES; CASTRO, 1994/1, também 1994/2 e 1995. Em 2004, a 
Biblioteca do Exército lançou, em dez volumes, uma extensa coleção de depoi-
Capitulo 2 
Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória 
A CONSOLIDAÇÃO DA DITADURA: 
DA CELEBRAÇÃO AO ESTIGMA 
A ditadura militar instaurou-se com grandes propósitos. Sua "vanguar-
da" política mais consistente, o IPES. 1' desejava destruir o sistema legado por 
Vargas e remodelar o país. Entretanto, a frente heterogêna que havia conquis-
tado o poder impôs limites a estas ousadias. Por outro lado, esta mesma fren-
te impediu uma radicalização exacerbada do arbítrio, permitindo-se brechas 
por onde p'uderam manifestar-se setores contrariados com as políticas gover-
namentais e até mesmo forças de esquerda, que recobraram alento, principal-
mente nas classes médias, na mídia e nos meios artístico-culturais, cujas ma-
nifestações sempre alcançam uma grande repercussão. 
Os militares,estigmatizados como gorilas, foram perdendo popularida-
de e legitimidade.Dificuldades econômicas, geradas por uma rígida política 
monetarista, e políticas, em virtude dos problemas decorrentes de gerenciar as 
múltiplas forças que haviam participado do golpe, desgastavam o poder. Der-
rotados nas primeiras eleições pós-golpe, em 1965, recorreram à força bruta, 
reeditando o mec_anismo dos atos institucionais. Mais tarde, em fins de 1968, 
percebendo uma erosão ainda maior de sua capacidade de direção política, 
deram um golpe dentro do golpe: .o Ato Institucional n. 5. Embora referindo-se 
a ameaças de subversão da ordem, o que de fato os preocupava era a questão 
das dissidências no próprio interior das direitas, que ameaçavam fugir ao con-
trole, como se evidenciou na tentativa de abertura de um processo contra o 
deputado Mareio Moreira Alves, proposta pelo governo militar e recusada 
pela maioria no Congresso Nacional. 
Fechou-se a cortina, começaram os an~s de chumbo. No entanto, ao 
mesmo tempo, o país já ret?mara um ciclo ascendente de desenvolvimento 
econômico, que se prolongaria até 1973: o milagre brasileiro, gerando conten-
tamento e euforia, potencializados pela conquista do tri-campeonato mundial 
mentos de militares sobre o golpe e a ditadura militar, uma tentativa de reganhar 
terreno nas intensas batalhas de memória que se travam atualmente na sociedade 
brasileira. 
18 Cf. a obra organizada por Denise Assis, citada na nota 11. 
41 
Paru I 
História é Mem&ria 
de futebol e pela recuperação d<t auto-estima nacional. São conhecidos os slo-
gans da época: Brasi~ potência emergente. Ninguém segura este pais. Num con-
texto de grande mobilidade geográfica e social, aparecia um país estável e 
próspero: anos de ouro para os que se beneficiaram - e não foram poucos -
com as benesses proporcionadas pelo progresso material. 
A ditadura dispunha de altos índices de popularidade, os estádios 
aplaudiam o ditador de turno (Garrastazu Médici), o regime voltava a legiti-
mar-se, reagrupando a ampla frente de forças de direita e de centro que sus-
tentara a intervenção militar, agora em nome da eficiência e da modernização 
realmente existente. Quem não estivesse góstando, que se retirasse: Brasil, ame-
o ou dei:,;e-o. Ou então, que enfrentasse o braço duro da repressão e a tortura 
como política de Estado, executada pelos serviços de inteligência das forças ar-
madas, devidamente centralizados pelo Governo e financiados e apoiados pe-
los expoentes do grande capitalismo nacional. 19 
Quanto às esquerdas, reagiram diversamente à derrota de 1964. 
Depois de um primeiro momento de aturdimento e desorientação, 
que se expressou, como costuma acontecer depois de grandes fracassos, 
numa extraordinária fragmentação orgânica, decantaram-se duas grandes 
tendências. 
De um lado, os moderados, que- preferiram empenhar-se na luta péla 
redemocratização do pais, nas margens da lei, por estropiadas que estivessem, 
à sombra das lideranças e das forças políticas que ainda l)Odiam se articular 
no país legal. Suas propostas tiveram alguma vigência até a edição do AI-5. A 
partir de então, submergiram, só reaparecendo a partir de 1974, no quadro da 
política de distensão lenta, segura e gradual, inaugurada pelo quarto ditador 
de turno, o general Geisel.2º < 
De outro lado, os radicais, jogando todas as fichas na utopia do impas-
se. Emergiu então uma esquerda revolucionária. Formulava análises catastrófi-
42 
19 As dúvidas remanescentes que ainda poderiam subsistir seriam definitivamente es-
clarecidas pelos trabalhos de Elio Gasperi, recentemente publicadós, 2002/ 1 e 2 e 
2003. Já há muitos anos não é mais possível sustentar a metáfora dos "porões" para 
· designar os "órgãos" repressivos. Eles atuavam na "sala de visitas" da Ditadura, pois 
a tortura era urna política de Estado. 
20 B importante registrar que os remanescentes da esquerda moderada, depois de 
1974, nào puderam representar, em larga medida, senão o papel de "força auxiliar" 
Capitulo 2 
Ditadura e sociedade: as reconstruçôts da memória 
cas ( o capitalismo não tinha alternativas para o país), apostava na exasperação 
das contradições sociais e políticas, e, em consequência, propunha uma ofen-
siva revolucionária contra a ditadura, através de insurreições de massa ou da 
luta armada.21 
As .duas alas também divergiam a propósito das circunstâncias que pro-
vocaram a .derrota de 1964. Enquanto os moderados lamentavam o excesso de 
ousadia do movimento reformista revolucionário anterior a 1964, o que, se-
gundo eles, involuntariamente contribuíra para a coesão das forças centristas 
e direitistas (os chamados desvios esquerdistas), os revolucionários, ao contrá-
rio, deploravam a falta de audácia deste mesmo movimento, o que levara ao 
despreparo político e militar para o enfrentamento decisivo e inevitável (os 
desvios direitistas). 
Não houve jeito de se chegar a um acordo. Entretanto, os tempos eram 
mesmo desfavoráveis às esquerdas. Em suas múltiplas organizações e partidos, 
cada ala a seu modo, ambas foram derrotadas. As propostas moderadas não 
vingaram, postas na ilegalidade ou neutralizadas pelo arbítrio da ditadura. As 
radicais, igualmente, foram destruídas em combate desigual contra a repres-
são política do regime. Em meados dos anos 70, todas as organizações de es-
querda estavam praticamente dizimadas, ou decisivamente enfraquecidas, os 
principais dirigentes mortos, ou nas prisões ou nos exílios sem fim. Suas for-
ças, dispersas, tenderiam a se re"organizar na esteira dos movimentos que tive-
ram lugar na segunda metade dos anos 70. 
do Movimento Democrático Brasileiro. Cumpriram um importante papel "mili-
tante", mas sem conseguir rn;:i.rcar um perfil específico, ou urna alternativa própria, 
no processo de redemocratização do país. 
21 A esquerda radical, para além da miríade de organizações que a constituía, estru-
turava-se em duas vertentes: as que propunham o enfrentamento armado (ações 
armadas, guerrilha urbana e/ou foco guerrilheiro rural), os chamados militaristas, 
inspirados pelo castrisrno, guevarisrno ou rnaoísrno; e os que preconizavam gran-
des insurreições de massa, chamados massistas, que se apoiavam nas referências da 
revolução soviética de 1917.Arnbas as vertentes, e muitos dos próprios rnodeqdos, 
cultivavam a utopia do impasse, ou seja, a idéia de que o capitalismo não seria ca-
paz de oferecer alternativas para o país. Tais formulações, diga-se de passagem, 
apoiavam-se em renomados trabalhos acadêmicos ( Celso Furtado, Octavio Ianni, 
entre ~tros) e em convicções amplamente difundidas em todas as correntes de es-
querda da época, nacionais e internacionais. 
43 
Parte[ 
História e Memória 
e" 
Dois acontecimentos marcariam o ano de 1974. De um lado, a posse na 
presidência da República de um novo ditador, o general Geisel, com uma pro-
posta de transição controlada à democracia. De outro, as eleições realizadas 
em novembro, assinala.ndo uma grande vitória do único partido legal da opo-
sição, o Movimento Democrático Brasileiro/MDB. 
Os anos seguintes assistiriam ao progressivo deslocamento da socieda-
de brasileira, e de suas elites políticas e econômicas, no rumo da defesa do res-
tabelecimento das instituições democráticas. Passaram a compartilhar esta 
orientação as decisivas forças de centro e boa parte da própria direita. Porém, 
não foi um processo linear, nem tranquilo. 
Forças de extrema-direita, particularmente as concentradas na chama-
da comunidade de informações (serviços de inteligência das forças arma-
das/policia política), resistiram como puderam, pressionando, ameaçando, 
urdindo golpes, assassinando de forma escandalosa presos indefesos, prati-
cando atos de terrorisino. 22 Por outro lado, muitos líderes do capitalismo na-
cional e políticos de expressão temiam que os militares pudessem perder o 
controle da abertura, ensejando .ª volta dos fantasmas de subversão, agora 
controlados.O próprio ditador, líder do processo e autor da proposta de dis-
tensão lenta, segura e gradual, hesitava quanto aos meios e aos objetivos. 
Entretanto, eram agora muito fortes as pressões pelo fim da ditadura. 
No plano internacional, a guerra fria dera lugar a relações distendidas 
entre as duas superpotências, falava-se mesmo que os EUA e a URSS estavam 
prestes a converter o planeta num vasto condomínio. O presidente Carter, elei-
to em 1976, defendia com vigor o respeito aos direitos humanos e os regimes 
democráticos. 
No Brasil, a Igreja Católica mudara radicalmente de lado, substituin-
do a bênção aos militares pela condenação ao capitalismo selvagem, à tortura 
e ao arbítrio. O MDB, fortalecido pela vitória eleitoral, ganhava legitimidade 
política e apoio social. Até mesmo setores importantes da base política do go-
44 
22 Do assassinato de Vladimir Herzog, em 1975, ao atentado do Rio-Centro, em 1981, 
foram inúmeros os atos de terrorismo dos "órgãos" de repressão no sentido de de-
ter a transição pelo alto no rumo da redemocratização do país. A partir de um cer-
to momento, porém, em vez de intimidar, fizeram mais forte o movimento pela re-
democratização. 
Capitulo 2 
Ditad11ra e sociedade: as reconstruçôe.s da memória 
verno inclinavam-se pela distensão e pela democracia. Entre os próprios mi-
litares, conscientes dos perigos de derrapagem engendrados pela crescente 
autonomia dos aparelhos de repressão, crescia a ade_são às pro'postas de disten-
são, isolando os radicais que desejavam permanecer grudados nas fórmulas 
ditatoriais. Ou seja, a ditadura, como fórmula política, perdia legitimidade 
aos olhos de grande parte dos de cima: capitalistas, chefes militares, políticos 
de expressão, formadores de opinião. Finalmente, mas não menos importan-
te, as próprias esquerdas, no seu conjunto, superavam as diferentes propostas 
de confronto violento, e passavam a acolher, e a elaborar, perspectivas demo-
cráticas e de participação nas lutas institucionais. Diversos movimentos so-
ciais e políticos, animados por estas forças, desempenharam importante pa-
pel no processo da redemocratização, mostrando, muitas vezes, rara cora-
gem, pois, se hoje se sabe que a democracia foi reconquistada no país, na épo-
ca, de modo nenhum esta questão era considerada como dada, inclusive por-
que, como já se disse, ainda havia forças que apostavam na ditadura militar, 
ou simplesmente se conformavam com a sua permanência por um tempo 
ainda indefinido. 
Asim, a liberalização do regime foi progredindo, entre avanços e re-
cuos, pacotes e pancadas, transações e transições, à brasileira, até que foi 
possível liquidar a censura e, um pouco mais tarde, revogar os atos institu-
cionais. Nem tudo o que fora previsto nos estados maiores acontecera. Mas 
o país recuperara a democracia, ou suas premissas essenciais, em ordem e 
tranquilidade. 
No processo a nação foi se metamorfoseando. Ali já não havia mais 
partidários da ditadura, e todos eram convictos democratas. Figuras da maior 
expressão - favoráveis à instauração do arbítrio e, durante muitos anos, par-
tidários de sua continuidade - e seus beneficiários surgiam agora visitando 
presos políticos e defendendo a democracia, e fosse alguém duvidar da auten-
cidade de seus propósitos, seria imediatamente estigmatizado como mesqui-
nho revanchista. Chegou um momento em que não se sabia mais como pude-
ra existir naquele país uma ditadura tão feroz. A força daquela maré democrá-
tica, tão disseminada, suscitava a questão de como fora possível àquela gente 
ter aturado tantos anos o arbítrio dos militares, e não· logo escorraçado a di-
tadura tão repudiada? 
45 
Paru I 
Hist6ria e Memória 
Cada um a seu modo, todos haviam resistido. 
Resisttncia, a palavra font encontrada. Virou um mote. Seria preciso 
agora universalizá-la. De modo que não houvesse naquela refrega vencedores 
e vencidos, pois era grande o ânimo da conciliação. 
A LUTA PELA ANISTIA OU A UNIVERSALIZAÇÃO 
DA RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA 
A luta pela anistia arrostou tremendas dificuldades. Hoje, passados 25 
anos da aprovação da primeira lei de anistia, em 1979, mais de 15 anos depois 
da aprovação da Constituição de 1988, restabelecidas as plenas liberdades de-
mocráticas, não é muito fácil recuperar a atmosfera de tensão que prevalecia 
nos estertores do regime ditatorial, mesmo depois de revogados os atos insti-
tucionais e a censura à imprensa e.aos meios de comunicação. 
Enunciada desde antes do Al-5, para os perseguidos depois do golpe de 
1964, a proposta de anistia desapareceú de _cena durante longos anos para re-
tornar à consideração da sociedade no processo de abertura promovido pelo 
governo Geisel. Mas enfrentaria poderosas resistências. No governo e fora 
dele, nas forças de direita e de extrema-direita e mesmo em setores de centro 
que recusavam estender uma eventual anistia aos chamados crimes de sangue." 
Empreendida de início por pequenos grupos de familiares e amigos de 
presos e exilados, trabalhando em condições de extremo risco, porque sujeitos 
ao total arbítrio da ditadura ainda vigente, com uma coragem que nunca se-
ria demais enaltecer, a idéia da anistia foi progredindo lentamente no país, 
principalmente nas grandes cidades, entre os estudantes u~iversitários, inte-
lectuais, artistas e formadores de opinião. 
Duas vertentes cedo se destacaram: de um lado, os que desejavam uma 
anistia ampla, geral e irrestrita e, além disso, uma apuração conseqüente dos 
crimes da ditadura, com o desmantelamento dos orgãos da polícia política, a 
famigerada comunidade de informações, responsável pela execução da tortura 
como política de Estado. De outro, uma tendência desejosa de alcançar uma 
anistia que reconciliasse a família brasileira, uma esponja suficientef!lente es-
46 
23 No jargão da época, eram considerados crimes de sangue os que configurassem 
atentados à vida de pessoas. 
Capitulo 2 
Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória 
pessa para conseguir que todos esquecessem tudo e nada mais restasse senão 
a construção da democracia nos horizontes que então se abriam. 
Prevaleceu na sociedade a segunda formulação, concretizada na anistia 
redproca (beneficiando torturados e torturadores), afinal efetivada em fins de 
agosto de 1979. A pequena margem com a qual o congresso a aprovou, e ainda 
assim excluindo do seu alcance um conjunto de acusados, diz bem do conser-
vadorismo daquela sociedade que emergia apenas de uma longa noite ditatorial. 
Do ponto de vista das relações entre memória e história, entretanto, e 
para além das diferenças de concepção presentes no processo de luta pela anis-
tia, houve uma tendência extraordinária, e unânime, em consagrar uma pro-
funda metamorfose na recuperação da luta armada contra a ditadura militar. 
Como já foi referido, desde o período anterior ao golpe, formaram-se 
no país tendências e organizações de esquerda dispostas ao confronto violen-
to com o poder. A perspectiva reformista revolucionária traduzia-se, entre 
muitas outras, pela palavra de ordem: reforma agrária na lei ou na marra. 
Depois da instauração da ditadura militar, estas tendências constitui-
riam a chamada esquerda revolucionária. Tinham porque se chamar assim. 
Sob o impacto das revoluções vitoriosas, ou em curso, nos anos 60 (Cuba, 
Vietnã, Argélia), propunham a destruição da ditadura militar e do capitalismo 
e a construção de uma sociedade socialistá, regida por uma ditadura revolu-
cionária. Podiam divergir, e divergiam, e se consumiam nestas divergências, a 
respeito de como nomear o processo que desejavam empreender, mas havia 
um acordo básico no que se desejava realizar: nada menos do que a revolucio-
narização social, política e econômica, profunda e radical, da sociedade." 
Imaginavam o capitalismo enredado em contradições insanáveis, e que a 
sociedade estava madura para a aventurarevolucionária. E desencadearam ações 
armadas com o objetivo de conduzi-la nesta direção com uma ousadia e uma de-
terminação sem limites. Não mais estavam dispostos a permanecer numa tradi-
24 Cf. REIS FILBO; SÁ, 1985. A leitura dos documentos políticos da esquerda revolu-
cionária da época, reunidas nesta coletânea e disponíveis, dentre outros, no Arqui-
vo Público do Rio de Janeiro, de São Paulo e da Unicamp (Arquivo Edgar Leuen-
roth), evidenciam o sentido revolucionário e ofensivo de suas propostas. Outras in-
terpretações, alternativas, podem ser encontradas em GORENDER, 1998; e RI-
DENTI, 1993. 
47 
Parte I 
História e Mem6ria 
ção estóica de morrer pela revoluçiio, mas se sentiam dispostos, se fosse o caso, a 
matar por e/a.25 Encarnavam, sem dúvida, um espírito ofensivo que recuperava as 
tradições de ousadia das grandes revoluções vitoriosas do século 20. 
Entretanto, as propostas revolucionárias não encontraram respaldo 
na sociedade. É certo que, em determinados momentos, algumas ações espe-
taculares chegaram a atrair simpatia em importantes setores da população 
dos grandes centros urbanos. Efêmera simpatia. De modo geral, a sociedade 
não se empolgaria pela luta armada. Os ecos das comemorações pelos gols 
marcados no México pela seleção tri-campeão mundial ressoariam mais al-
tos, e cobririam, os gritos dos que estavam nas câmaras de tortura da OBAN 
e dos DOI-CODis- Destacamentos de Operações e Informações/Centros de 
Operações de Defesa Interna. E, assim, aqu_ela energia e aquela ,coragem fo-
ram despedaçadas e trituradas, nas cidades e nas áreas rurais, pela policia 
política da ditadura. 
Enquanto se consumava a destruição das esquerdas revolucionárias, 
ganhando corpo com a sua completa aniquilação, já se elaboravam análises 
críticas e auto-críticas a respeito das propostas de luta armada. No exílio e no 
Brasil, mesmo entre muitos que haviam se envolvido diretamente no proces-
so, crescia uma profunda revisão crítica de avaliações, estratégias e métodos. 
Como sempre acontece nestas situações, não foi simples, nem fácil, nem li-
near. Perderam gratativamente força as teses apocalípticas, baseadas nos im-
passes, no confronto e no recurso à força armada. Sem que muitos perdessem 
a perspectiva revolucionária, aquelas esquerdas descobriam os valores, e a im~ 
portância, da democracia. 
Criaram-se assim as condições para que, no interior da luta pela anis-
tia, se operasse uma notável reconstrução: a luta armada ofensiva contra adi-
tadura militar, com o objetivo de destruir o capitalismo e instaurar uma dita-
dura revolucionária, ou seja, o projeto revolucionário transmudou-se em re-
sistência democrática contra a ditadura. As organizações revolucionárias, ma/-
gré elles-mêmes, foram recriadas como alas extremadas da resistência democrá-
tica. Ora, e de acordo com as elaborações prevalecentes no apagar das luzes do 
regime ditatorial, corno todos, ou quase todos, haviam resistido, aqueles bra-
vos rapazes e moças de armas na mão ganhavam seu lugar, legítimo, como os 
25 A formula é de DEBRAY, 1974/1 e 2. 
48 
Capitula 2 
Ditadura e sodalade: as reconstruções da memória 
desesperados de uma nobre causa, os equivocados de uma luta justa, agora, afi~ 
nal, triunfante, a redemocratização. 
Por estas razões, mereciam a anistia, mesmo os que tinham se envolvi-
do nos crimes de sangue. E se em 1979, não foi ainda possível incorporá-los to-
dos sob o manto da anistia, mais tarde, em edições sucessivas, todos seriam 
agraciados, podendo, inclusive, postular reparações morais e indenizações 
materiais ao Estado.26 
DA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DA 
DITADURA À NAÇÃO DE DEMOCRATAS 
São evidentes as dificuldades da sociedade brasileira e~ recordar o pe-
ríodo da ditadura militar. Os brasileiros não devem se autoflagelar por isto ( um 
cacoete i:iacional), nem se imaginar como particularmente desmemoriados, 
como se costumá dizer. A rigor, não se trata de algo original. Também a socie-
dade francesa, mais de meio século depois, ainda tem dificuldade de se colocar 
frente à frente com a ocupação nazista e com a reduzidíssima resistência que 
ofereceu ao invasor e à ocupação." O mesmo se poderia dizer, entre muitos e 
muitos exemplos, dos alemães em relação a Hitler e ao nazismo, ou dos russos 
quando pensam na ditadura de Stalin. Sempre quando os povos transitam de 
uma fase para a outrá da história, e quando a seguinte rejeita taxativamente a 
anterior, há problemas de memória, resolvidos por reconstruções mais ou me-
nos elaboradas, quando não pelo puro e simples esquecimento. 
A sociedade brasileira, depois que aderiu aos valores e às instituições 
democráticas, enfrenta grandes dificuldades em compreender como partici-
pou, num passado ainda muito recente, da construção de uma ditadura, que 
definiu a tortura como política de Estado. E, apesar de o regime ter sido con-
26 Depois da primeira lei de Anistia, em 1979, outras leis foram ampliando O alcance 
da an_is~a, até a última, a Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, garantindo am-
plo dire1to a reparações e a indenizações. 
27 f: conhecida a cruel anedota norte-americana segundo a qual se a França fosse es-
perar pelos franceses para obter a libertação do país, estaria hoje certamente falan-
do alemão. 
49 
PRruI 
História e Memória 
siderado abominável, não o expulsou a pedradas ou a tiros, antes compade-
ceu-se de um processo de transição pelo alto, lento, segur°. e gradual e de uma 
anistia recíproca. Mas a ditadura militar, não há como negá-lo, por mais que 
seja doloroso, foi um processo de construção histórico-social, não um aciden-
te de percurso. Foi processada pelos brasileiros, não imposta, ou inventada, 
por marcianos. Reconhecê-lo pode ser um exercício preliminar para com-
preender seus profundos fundamentos históricos e sociais e para criar condi-
ções para que o abominável não volte a assombrar e a atormentar a história 
destes brasis. 
O presente artigo tentou considerar alguns aspectos da história recen-
te da ditadura militar, relacionando determinados acontecimentos e episódios 
à memória que se construiu e se continua a construir a respeito. 
Na gênese da ditadura, tendeu-se a apagar o grande embate social. O 
projeto reformista revolucionário evaporou-se, transformado em um fantas-
ma. As esquerdas foram vitimizadas. Os amplos movimentos sociais de direita, 
praticamente apagados." Os militares, estigmatizados gorilas, culpados únicos 
pela ignomínia do arbítrio. A ditadura, quem a apoiou? Muito poucos, raríssi-
mos, nela se reconhecem ou com ela desejam ainda se identificar. Ao contrário, 
como se viu, quase todos resistiram. Mesmo a esquerda revolucionária trans-
mudou-se numa inventada resistência democrática de armas nas mãos. 
E assim a nação que construiu a ditadura absolveu-se e reconstruiu-se 
como uma nação democrática, reconciliando-se, reconciliada, legitimando, 
uma vez mais, a sugestão do pensador francês, E. Renan, qu~, há mais de cem 
anos, já dizia, sem nenhuma sombra de cinismo: "O esquecimento, e eu direi 
mesmo o erro histórico, são um fator essencial na criação de uma nação ... as-
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28 Ê interessante, e bastante sintomático que, até o momento, não existam trabalhos 
acadêmicos publicados sobre as Marchas da Familia com Deus pela Liberdade ou 
a respeito das bases sociais da ditadura militar no Brasil. Neste sentido, uma im-
portante lacuna vem ser preenchida por uma dissertação de mestrado, ·orientada 
pelo Professor Carlos Fico, do Programa de Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Foi preciso esperar 40 anos para que ti-
véssemos um primeiro inventário das Marchas ... cf. Presot, Aline Alves, 2004. Do 
ponto de vista da história política, foi também necessário esperar quase 40 anos 
para ver surgir um trabalho sério sobre as bases sociais e históricas da ARENA: cf. 
GRINBERG,2004. 
,r 
Capitulo 2 
Ditadura e sociedtuie: a, reconstrufÕes da memória 
sim, o progresso dos estudos históricos é freqüentemente um perigo para a 
nacio~alidade."29 · 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
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Ofícios, 1997. · 
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29 Cf. RENAN, 1992, p. 41. 
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