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FICHAMENTO - DIREITO PENAL NA GRÉCIA ANTIGA Autora: GASTALDI, Viviana Por: Víctor Rodrigues Nascimento Vieira Direito Penal na Grécia Antiga / Viviana Gastaldi – Florianópolis – Fundação Boiteux, 2006. Tradução de Mônica Sol Glik.120 p. (Coleção Arqueologia Jurídica / dir. Arno Dal Ri Júnior) Resumo: A partir de testemunhos oferecidos por fontes literárias, são analisadas nesta obra noções de direito penal na Grécia Antiga. Em especial, examina-se o homicídio e suas consequências jurídicas em diferentes etapas da cultura grega. Esboçam-se também, questões relativas à penalidade, e à voluntariedade. Em uma perspectiva filosófica são abordadas as principais teorias sobre a justificação da punição na Antiguidade. Autora: VIVIANA GASTALDI, Professora e pesquisadora de Humanidades na Universidade Nacional Del Sur, na Argentina, é Doutora em Letras com especialidade em Direito Grego e Literatura. Publicou diversos artigos em revistas especializadas e proferiu conferências, à convite, na Università degli studi di Bari na Itália, na Universidad Nacional Autónoma de México e nas Universidades Federal de Santa Catarina, Federal do Rio de Janeiro, Federal do Paraná e Estadual de São Paulo. Ministra seminários e cursos de pós-graudação sobre Direito Grego e Literatura na Argentina e no exterior. A OBRA PREFÁCIO: (p. 5) - nascimento e evolução direito penal na Antiguidade grega; - características mais importantes do direito grego, não só a partir dos seus fundamentos teóricos, mas também, a partir dos testemunhos que as fontes literárias da Antiguidade nos oferecem; - a problemática de um dos delitos privados considerados mais graves dentro do sistema jurídico da Grécia: o homicídio; suas regulações e consequências de sua sanção nas origens do mundo jurídico e na época clássica (período durante o qual a sanção sofreu a influência dos códigos normativos escritos pelos primeiros legisladores); (p. 6) - Abordam-se também (após uma breve referência ao delito de adultério no mundo homérico) questões relativas à penalidade, à intencionalidade como elemento essencial do direito penal e às teorias filosóficas em relação à justificativa da punição. QUESTÕES PRELIMINARES 1. TEORIAS SOBRE O NASCIMENTO DO DIREITO. O MITO DO PRÉ-DIREITO - Individualização do Direito (Platão, Hobbes e Marx); - Existência do Direito vinculada à existência do Estado (perspectiva evolucionista). (pág. 11) - Michael Gagarin (1989) 1 : Para tal autor, é praticamente impensável falar de Direito penal em uma sociedade arcaica, pois este surgiria quando o Estado, tendo estabelecido normas legitimas de comportamento, passasse a regular os delitos e, desta forma, as penas. (pág. 11) - Direito como um modo mais flexível (perspectiva antropológica do direito; funcionalismo). (pág. 11) - Malinowski: para tal autor, são jurídicas todas as regras concebidas e aplicadas como obrigações de vínculo (Teoria geral do direito primitivo baseada no mecanismo de reciprocidade de certas atividades sociais 2 ). (pág. 11/12) - Particularmente iluminadora do direito grego mais arcaico é a postura de Hoebel 3 , que sustenta que: 1 Michael Gagarin comenta que há três estágios de desenvolvimento do Direito em uma sociedade: Sociedade pré-legal: Onde não há critérios estabelecidos sobre os litígios; Sociedade proto-legal: O avanço chega com procedimentos para dirimir as disputas, porém não existem regras definidas ainda; Sociedade legal: Estágio mais avançado de uma sociedade em crescimento. O Estado intervém nas querelas, através de normas e sanções. Há também a construção embrionária de um Direito positivado em códices. (GAGARIN, Michael. Early Greek Law. Califórnia: 1989) 2 Reparamos elementos sociais distintos no que tange a razão quantitativa de bens em clássicos exemplos de Malinowski das populações das ilhas Trobriand na Melanésia. O urigibu é a distribuição de bens e prestações ao marido da irmã. Este, por sua vez, retribuirá o cunhado (e aliado), pois a avareza é extremamente condenada na ética trobriandesa. Neste caso, observa-se que uma prestação, obviamente não somente material, tem uma contrapartida subjetiva e se estabelece em função deste valor de hierarquia suprema nas trocas que é a generosidade. O vaygu’a é uma forma de troca hierarquicamente superior e envolve objetos específicos: colares e braceletes feitos de conchas que tem sua própria história mítica e circulam segundo regras específicas (MALINOWSKI, 1978). http://www.pet-economia.ufpr.br/banco_de_arquivos/00018_texevincirodrigo.pdf (pág. 2) 3 Conforme CANTARELLA, Eva (2002, p. 193) (...) quando a comunidade considera justo e correto o exercício da força por parte do indivíduo que sofreu um dano, ou por parte do grupo parental em uma situação determinada, e, ao mesmo tempo impede ao transgressor o contra-ataque, o direito prevalece e a ordem triunfa sobre a violência. Tal postulado é essencial para a compreensão do direito arcaico e, em especial, para sustentar a opinião de todos aqueles que consideram que o direito grego nasce com Homero, pois segundo fontes que os poemas épicos testemunham, a existência, não só de certas regras de conduta, como também de violações a essas regras, e ainda de sanções públicas que fixam a punição – executada por uma autoridade legitimamente estabelecida -, permite-nos falar de um direito penal em gestação ou, pelo menos de um ordenamento jurídico. (pág. 12) - O pré-direito: este mito do pré-direito remete os estudiosos ao problema de estabelecer as origens do direito penal na Grécia. A esse respeito, Louis Gernet afirma que já em tempos muito antigos identificava-se o delito como um ato sacrilégio 4 (e esta identificação foi o começo do direito penal). (pág. 12 e 13) - Cultura de vergonha/culpa evidencia a necessidade de manter comportamentos fixados pelo costume e aplicar sanções as violações às regras. (pág. 13) - Na etapa do pré-direito não havia direito porque não havia um Estado apto a impor a observação das regras por meio da força. O que havia era um conjunto de forças que impunham a observação de determinadas normas de comportamento. - Âmbitos em que o pré-direito se manifesta: 1 – Relações interfamiliares (regulado através da reciprocidade, ou xemia5, no benefício da hospitalidade); (pág. 13) 2 – Questões como a autoridade e a lei. Uma definição extrema e restritiva da lei, sustentada por alguns juristas, ignora a diferença entre jus e lex. Esta se define exclusivamente em termos da lei escrita; ou seja, a lei se baseia em princípios formais e abstratos adotados pela autoridade política de uma sociedade que tem uma legislação positiva. - Modelo de Popsil: A existência do direito requer 4 atributos: autoridade; intenção de aplicação universal, obrigatio 6 (iuris vinculum 7 ), ou deveres e direitos e a aplicabilidade da sanção. 4 Desrespeito a certas normas e/ou preceitos religiosos; pecado cometido contra aquilo que é considerado sagrado. Desonra ou difamação direcionada as coisas que são caracterizadas sagradas. Falta de respeito contra o que deveria ser respeitado e/ou admirado; ato condenável: derrubar aquele monumento foi um sacrilégio. 5 Do grego: Hospitaleiro; Hospitalidade. 6 Do latim: obrigação 7 Do latim: Vínculo Jurídico Autoridade: possuir o poder necessário para induzir ou forçar a maioria dos membrosde um grupo a aceitar suas decisões. Intenção de aplicação universal: que existam diferenças entre jurídicas e políticas, podendo as primeiras serem aplicadas a situações idênticas no futuro; Obrigatio (iuris vinculum): ou deveres e direitos entre as partes Aplicabilidade da sanção: Por meio da força física ou coerção. De acordo com essa teoria antropológica, o direito definido segundo os quatro critérios acima citados, está presente em todas as sociedades; logo, nem a escrita, nem a formulação de sistemas abstratos de leis são requisitos necessários para a sua existência. (pág. 14 e 15). 2. DIREITO GREGO E DIREITO ÁTICO DIREITO ÁTICO: - pela denominação “direito ático” entendem-se o direito público e o privado que imperaram em Atenas nos séculos V e IV a.C. (pág. 15) - A reconstrução do direito ático interessa aos historiadores, filólogos e juristas. (pág. 16) Historiadores da Grécia: por pormenorizar o ordenamento da polis 8 na política interna e externa, as suas instituições e os meios através dos quais os cidadãos exerciam as suas atividades; Filólogos: o rigor e a exatidão das expressões jurídicas de que dão conta os testemunhos conservados, permitem uma avaliação cabal do direito e uma melhor interpretação dos textos em um sentido interdisciplinar Juristas: pela contribuição do direito grego à história e à cultura jurídica da Antiguidade. - Fonte de dados do direito grego: diretas e indiretas Diretas: documentos nos quais emerge de forma imediata a existência de uma norma ou de uma instituição jurídica. Exemplos: textos legislativos (epígrafes e manuscritos); textos dos oradores; Constituição de Atenas; antiga lei de Gortina; as Leis e a República (Platão) e a Política (Aristóteles). 8 Do latim: cidade Indiretas: (subsidiárias das anteriores), constituem-se naqueles textos em que tais elementos se apresentam de maneira implícita. Exemplos: - autores latinos das palliatae, Menandro, os textos históricos de Xenofonte e Tucídides, dramas de Aristófanes (tratam de direito público). - as tragédias, especialmente na obra de Eurípedes (tratam de direito Ático Privado). (pág. 17) DIREITO GREGO: Inseparável da moral e da política, não aparece restrito a um número limitado de Especialistas, mas revela-se como “(...) Sentimento comum a todo o povo e se reflete em todas as manifestações da vida.”9 (pág. 17) Homero e sua obra A Odisséia 10 : é legítimo apontar para determinada organização jurídica presente já na obra de Homero. A existência de certas regras de conduta, de violações a essas regras, e de sanções públicas que fixam castigos executados por uma autoridade legitimamente estabelecida, permite-nos falar de um direito em gestação ou, pelo menos, de um ordenamento jurídico 11 . (pág. 17) 3. AS NOÇÕES DE LEI E DELITO NA ANTIGUIDADE: DELITOS PÚBLICOS E DELITOS PRIVADOS - Direito Penal: “Aquela parte do direito que descreve os crimes e suas punições”12 (pág. 18) - Delito: “(...) incapacidade ou recusa de viver à altura do padrão de conduta considerado obrigatório pelo restante da comunidade”. Ou “ (...) uma revolta do indivíduo contra a sociedade” ou “(...) uma ação proibida” (CALHOUN, George. 1977, p. 2) (pág. 18) 9 “(...) sentimento comune a tutto il popolo e che investe tutte le manifestazioni dela vita.” In: BISCARDI (1982, p. 14 ss) 10 A Odisseia narra a história de Ulisses, que depois de passar 10 anos na Guerra de Troia, leva mais 17 anos para voltar para casa, passando por muitas aventuras no caminho. Escrito, provavelmente no fim do século VIII a.C. 2 . 11 CANTARELLA, Eva (2002); também Maine, citado por CALHOUN, GEROGE (1997, p. 15, nº1) percebe a peculiar importância dos poemas Homéricos para o estudo do direito e das instituições. 12 “that part of the law which relates the crimes and their punishment, In: CALHOUN, George (1997, p. 1) - Direito arcaico – por Pollock: gérmen do direito penal, primitivo e elementar, mas apenas direito, pois consiste em normas reconhecidas de conduta que eram feitas cumprir pela comunidade, envolvendo uma ação punitiva. (pág. 18) - Delito e sua evolução: ofensa que a sociedade costuma punir, primeiro pela ação direta do povo, mais tarde pela lei e pela ação pública institucionalizada. (pág. 19) - Hybris: primeiro termo que se refere à noção de mal e violência na cultura grega; (Homero: não constitui ato contrário à lei, sendo, pois, um atentado à honra e à prosperidade. Sanção: reprovação da opinião pública.). Hybris 13 viola um nomos 14 (entendido como harmonia geral e não corpo de leis) Hybris num primeiro momento: ato ilícito religioso; delito de traição; ação contrária à segurança geral; noção primitiva de delito; primeiro estágio do direito penal. Hybris e sua evolução: violação das normas que regem a conduta entre os homens; ideia de injustiça. (pág. 19) Hybris no Século V: sacrilégio, adultério, incesto, violações à hospitalidade, ofensas a mortos e parentes, injúrias verbais, atentados contra a autoridade constituída. - adikía 15 : Injustiça. Representação do sacrilégio, da violação de algo sagrado, donde viria a mácula criminal. Noção de impiedade cometida no interior da cidade, e a ideia de delito fixa-se sobre uma repressão organizada. - agos: o crime concebido como sacrilégio. - DELITOS PRIVADOS* X DELITOS PÚBLICOS: *Privados: Requerem sanção jurídica, supõe uma justiça organizada; o fato de lesar os indivíduos não é percebido de forma imediata, como uma ofensa à comunidade e só provoca reação organizada do grupo de forma secundária. Para Gernet: o homicídio, o roubo (salvo exceções) e todo atentado a bens alheios ou a pessoas. - Lei na Grécia: Primitivamente, de dois tipos: a themis e dikê.(pág. 20) themis: primeiro conceito (época homérica): preceito que fixa os direitos e deveres de cada um sob a autoridade do chefe do genos 16 . 13 Tudo que passa da medida; desmedido. 14 Mitologia grega: materialização da lei humana na Grécia Antiga. 15 Mitologia grega: Deusa da injustiça, que era a companheira inseparável de Disnomia, a Deusa da desordem. 16 O termo genos significa família no seu sentido mais amplo: comunidades de parentes de várias gerações que vivem sob um mesmo teto e numa mesma terra. Suas características mais relevantes são: solidariedade recíproca, rituais religiosos comuns, lugares comuns de incineração, direito hereditário, dever de endogamia. Os themistes eram decisões autoritárias emanadas por um chefe, princípios latentes e fórmulas mágico-religiosas que provinham de Zeus e que se impunham a todos os membros da comunidade. Dikê: ideia de ordem e equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos da sociedade humana. - Começo do século VIII: nas diversas cidades os primeiros legisladores ditam as suas constituições: a lei se opõe deste modo, ao arbitrário. - Atenas: A constituição estabelecida por Clístenes logo após a morte de Sólon destitui a aristocracia gentílica e divide (pág. 21) a cidade topograficamente; o conselho – composto agora por quinhentos representantes das dez tribos – e a assembleia do povo impõem um sentido jurídico à norma: a lei, fundamento e emanação da democracia, tem sua origem na norma política, nomos, que constitui “(...) a expressão do que o povo, como um todo, considera como uma norma válida e obrigatória”17. (pág. 22) PARTE I O COMEÇO: HOMERO 1. A SOCIEDADE HOMÉRICA E A CULTURA DE VERGONHA.CÓDIGOS DE COMPORTAMENTO - “Cultura da Vergonha”: Sociedade na qual o respeito a regras não se deve à imposição de deveres, característica da cultura de culpa. A observação das regras é obtida através dos modelos positivos de condutas, e os que não se adaptam, incorrem na vergonha social em uma consequente sanção. Sanção: de inadequação definida por vergonha (aideomai 18 ). No mundo homérico, os heróis transferiam seus atos reprováveis aos deuses ou às forças externas (moira 19 ). Sanção: perder a sua própria dignidade. Temor a boatos e à burla dos seus concidadãos; privação da honra; Temor a demou 20 phêmis 21 , voz popular que reconhece a virtude ou sanciona a falta. Esta sanção é antecedente à atimia 22 clássica. 17 “(...) the expression of what the people as a whole regard as a valid and binding norm.” In: JARRAT, Susan (1991, p. 41) 18 Do grego: do que se envergonhar. 19 Do grego: partilhar. - Atimia: penalização que já na polis 23 implicava exclusão e a separação dos espaços públicos e a perda total ou parcial dos direitos de cidadão. - Cultura de Culpa: Quem tem um comportamento proibido sente-se oprimido pela culpa, pelo temor e pela angústia. 2. LEI E AUTORIDADE NOS POEMAS HOMÉRICOS (pág. 26) Descrição da sociedade proveniente dos poemas homéricos: Poder articulado em três órgãos; Comunidade composta pelos gemê (agrupados em phratrias 24 e philais). O conselho (boulê), em que os gerontes 25 não eram definidos por idade; Rei descendente de um Deus ou grande herói, que ostentava os themistes; Nas reuniões da ágora 26 , o arauto é quem dá (pág. 26) a cada um o cetro para que possa falar; o povo tem um papel passivo e só intervém através de sons ou ruídos de aprovação (aclamação ou descontentamento); É possível apontar algumas passagens de poemas que demonstram a existência de juízes únicos; Enquanto a competência desses juízes, únicos possuidores do cetro, parecia abranger múltiplos aspectos da vida social e política, a dos gerontes, limitava-se ao litígio em matéria de vendetta 27 . (pág. 27) 20 Do latim: demonstração 21 Do latim: Blasfêmia, difamação. 22 Do grego: Desonra, desgraça. 23 Do grego: cidade. 24 Fratrias; subdivisões da tribo. 25 Anciãos 26 Corpo legislativo, câmara; comício; reunião. 27 Casos de homicídio - Aerópago (do período de Drácon): era semelhante ao órgão encarregado de regular a norma consuetudinária da vendetta. - Noção de lei: themis e dikê Noção de lei themis dikê - conjunto de regras de comportamento que coincidem com a vontade divina; consuetudinárias 28 . Themistes: pronunciamentos oraculares de sentenças divinas recebidas através da mediação de um eleito (o rei). (pág. 28) themisteuein: indica o ato de emanar uma ordem. (pág. 29) - Expressão da justiça humana; - ordem imanente 29 que deve uniformizar a ação do indivíduo enquanto membro de uma coletividade. - regra que domina as relações interfamiliares em um âmbito de relações públicas que constitui o prelúdio de um sistema democrático. dikazein: ato de oferecer uma solução para uma controvérsia. (pág. 29) 3. A REGULAÇÃO DO HOMICÍDO, VENDETTA E POINÉ30. 4. - HOMICÍDIO: Ato ilegítimo mais importante dos tempos de Homero. Três aspectos relevantes: solidariedade do grupo familiar (genos); o sentimento de honra do grupo e do indivíduo (time) e a escassa intervenção de um Estado organizado. (pág. 29) - Sociedade homérica: pode ser pensada em termos da cultura da vergonha. A sociedade operava, neste contexto, mediante os códigos de aidos 31 , a time 32 , a orge 33 e a bia 34 (extremamente valorizada, numa sociedade extremamente competitiva). (pág. 30) 28 Habitual, acostumado; Direito consuetudinário: direito não escrito, fundado no uso, costume ou prática. 29 Que fazer parte de maneira inseparável da essência de um ser ou de um objeto; inerente. 30 Penê, Poine, Pojné ou Pena (Pœna), “Castigo” é uma das Queres, a personificação do Castigo, identificada às vezes com as Fúrias, em cuja companhia vivia. Na mitologia romana Pœna aparece como mãe das Fúrias, sendo uma das Divindades Infernais. 31 Vergonha e pudor, utilizados em sentido amplo, já que abrangem a aidos pessoal e a cooperação na batalha. 32 Do latim. Referente ao medo, ter medo, ter medo, ficar apreensivo, com medo, medo, apreensão. - Podem-se distinguir, nos poemas (Ilíada e Odisseia), três situações de ruptura da ordem social: o homicídio, a lesão da honra e os atos que provocam algum tipo de dano patrimonial. - HOMICÍDIO: O homicídio no mundo homérico, segundo Eva Cantarella, era aceito na medida em que refletia a superioridade do homicida, o qual demonstrava ter mais força e arete 35 do que o morto. Em somente três casos o homicídio era reprovado: quando acompanhado de engano, contra um hóspede e em caso de parricídio 36 . A violação a esses valores heroicos (a philia 37 nos laços parentais, o dever de hospitalidade) era, portanto, objeto de reação. CONSEQUÊNCIAS: O homicídio dava início a uma reação, as vezes de tipo privado; outras vezes parecia ser um meio através do qual a comunidade expressava seus sentimentos e regia com violência física à violação de uma regra. A vendetta, dominada pelo sentimento de honra do grupo e pela necessidade de dar satisfação ao morto, era uma sanção material, mas na interação jurídica existiam outras, como a desonra e a sanção da demou phatis 38 . Existiam dois modos de evitar a vendetta por parte do grupo da vítima: o exílio e a poiné, mas a aplicação de um não exclui a possibilidade de que o outro pudesse ser aplicado também. Todavia, não fica claro se o exílio era um modo de fuga (pág. 31) ou se era fruto de um acordo com os parentes da vítima. O grupo da vítima não era obrigado a aceitar a poiné: mas, se o fizesse não poderia executar a vingança, que seria, então um ato reprovável e legitimaria nova vendeta. (pág. 32) poiné Composição pecuniária fruto de um acordo entra as partes, com a qual se renuncia à vendetta de sangue de modo a evitar o exílio – era em parte utilizada para 33 Cólera 34 Força física 35 Definida como: “excelência prática de natureza física, intelectual ou moral”, e também “excelência e virtude”, foi adquirindo, com o tempo, diferentes matizes por causa da diversidade das situações contextuais. VIANELLO DE CÓRDOVA, Paola (1990) esboça os diferentes significados do termo de acordo com a realidade histórica, política e social de Atenas. 36 Assassinato de pai, mãe, ou qualquer outro ascendente legítimo. 37 Philia (em grego: "φιλíα"; transliteração para o latim: "philia", e para o português: "filia") retirado do tratado de Ética a Nicômaco de Aristóteles, o termo é traduzido geralmente como "amizade", e às vezes também como "amor". 38 A língua grega distingue estes diferentes sentidos: entre numerosos termos, a resposta divina pode ser designada por χρηςμόσ - khrêsmós, literalmente o fato de informar. Pode-se também dizer φάτις - phátis, o fato defalar. O intérprete da resposta divina é freqüentemente designado por προφήτησ - prophêtê, aquele que fala em lugar (do deus), ou ainda μάντισ - mántis. Por fim, o lugar do oráculo é χρηςτήριον - kherêstêrion. honrar e aplacar o morto. O termo poiné está relacionado a time: ambos indicam valorização, honra, pagamento. Pode ser inicialmente entendido como indenização, ressarcimento material; posteriormente virá a se revestir de um caráter mais moral de sanção, pena ou expiação; em Homero, contudo, não era somente um remédio de fato contra a vendeta: era uma instituição com uma configuração jurídica precisa, tal como se aponta em uma passagem da Ilíada: Pela morte do irmão ou filho, recebe-se uma compensação; e, uma vez paga a importante quantia, o assassino fica no povoado, e o coração e o ânimo irado se acalmam com a compensação recebida (...). 39 (pág. 32) De qualquer sorte, caso houvesse dúvidas sobre pagamento efetivo da poiné, ou seja, sobre a legitimidade da vendetta, a comunidade intervinha com os gerontes, e tinha lugar um processo que reconhecia e investigava os fatos e argumentos de cada uma das partes em litígio. Este processo – considerado um dos primeiros testemunhos de repressão por homicídio – é o que aparece representado no escudo de Aquiles: (pág. 32) Os homens estavam reunidos no mercado. Ali uma discussão se iniciou. Dois homens pleiteavam a pena devida por causa de um assassinato: um deles insistia em que tinha pago tudo em presença do público, o outro negava ter recebido. Ambos pediam o recurso a um árbitro para um veredicto. As gentes aclamavam a ambos, em defesa de um ou de outro; os arautos, por sua vez, tentavam conter o povo. Os anciãos estavam sentados sobre polidas pedras em um círculo sagrado e tinham nas mãos os cetros de claros arautos, com os que se iam levantando, por turno, para dar o seu veredicto. No centro, havia dois talentos de ouro no chão, para premiar aquele que pronunciasse a sentença mais justa. 40 E esta era a questão a resolver: tinha-se pago ou não, ou seja, qual dos dois argumentos era legítimo? No que concerne ao caráter da decisão, a crítica formula o seguinte problema: a sentença emitida era de caráter arbitral ou judicial? 39 Ilíada, 632-36 40 Ilíada, XVIII, 496-508 O uso de dikazein no texto grego remete a uma decisão imediata e direta, baseada no exame dos fatos por parte dos anciãos, sem que mediasse a vontade das partes. Ou seja, os gerontes constituíam um órgão institucional, público, que emitia (pág. 33) uma sentença judicial? A presença de istôr 41 , por sua vez, remete a uma testemunho ou a uma espécie de juiz instrutor do seu testemunho? Dependia definitivamente, da decisão dos gerontes. Por último, os dois talentos dos versos 507-508 estavam destinados a quem fosse o vencedor, ou seja, à parte que oferecesse a dikê (o raciocínio) mais justa. - A cena do julgamento mostra alguns elementos sobre a administração da vendeta no interior da comunidade. - A Assembleia é o único juiz da sociedade representada; guia o comportamento dos homens tendo por base regras e valores comuns. - Incerteza sobre o comportamento a seguir. Consequência: recurso ao conselho; pronunciamento dos gerontes (os quais, como depositários das regras, devem procurar uma solução). - Assim, a dikê nasce como norma de direito ritualmente proposta em assembleia, em um contexto formalmente público e diferente da sanção espontânea da demou phêmis. - O exílio: era considerado um remédio para evitar a vingança de sangue; não era suficiente para que o indivíduo ficasse a salvo. (pág. 34) 5. A QUESTÃO DA INTENCIONALIDADE 6. Intencionalidade: Exame do elemento intencional. - No mundo homérico, a vendetta poderia assumir outras formas que considerassem o caráter voluntário do ato cometido? - Aquele que comete o delito é, na realidade, vítima da própria condição humana; isto não o isenta, porém, da responsabilidade, nem o protege da vingança dos ofendidos. - Homicídio preterintencional 42 : mesmo não pretendendo provocar a morte do outro, o homicida parte para o exílio: com isso, outorga-se satisfação para a alma da vítima, que não tolera a presença do criminoso na própria terra. Ao mesmo tempo, a honra do grupo é restituída pelo afastamento do culpável. (pág. 36) 41 Um homem sábio, aquele que conhece direito, um juiz 42 Cujo resultado se agravou, ainda que a intenção do criminoso fosse menos grave; diz-se do crime cujo resultado foi mais grave que o esperado; preterdoloso. - A necessidade de reparar a honra perdida e de dar satisfação à vítima não levava em consideração a intencionalidade do homicídio. - O exílio, então, para além do caráter voluntário do homicídio, advém do costume admitido pelo grupo social em conjunto. - Embora não exista ainda a ideia de impureza do homicida e de contaminação, os poemas revelam a noção de ódio da vítima e terror do grupo diante da presença do homicida. 7. O ADULTÉRIO: A SANÇÃO PÚBLICA E A SANÇÃO MATERIAL - A presença do povo na celebração (das bodas ou gamos 43 ) ratifica a importância do reconhecimento social do matrimônio, já que este se realiza kata nomon 44 , ou seja, de acordo com a lei e o costume. - na época homérica, é o marido quem oferece os seus bens ao pai de sua esposa (eedna 45 ). Tais bens, poderiam ser reclamados pelo marido, uma vez que se comprovasse o adultério feminino. Esta instituição jurídica chamada por Homero engue 46 , é o que hoje conhecemos sob a denominação de “garantias pessoais de obrigações”. - Em se tratando de adultério, Homero refere-se na Odisséia - mediante o relato do aedo 47 Demódoco – aos amores ilícitos de Ares e Afrodite. Tal ato divino contém, todavia, elementos chaves de semelhança com o adultério cometido entre os homens; faremos menção a estes com o objetivo de elucidar a passagem citada: 1 Como é aplicada a sanção da demou phati; 2 O poder da assembleia para sancionar; 3 As garantias pessoais e a devolução dos eedna; 4 O pagamento de uma multa (khreos) por moikhagria e 5 O papel feminino no adultério. - Uma vez que os amantes deitaram-se no leito, tornaram-se prisioneiros da armadilha que Hefeso fabricou. Este deus, então, chamou os demais deuses para que se reunissem em assembleia e fossem testemunha de sua desonra. (pág. 37) 43 Do grego : casamento 44 Por leis. 45 Do grego: “bride-price” ou o preço da noiva. 46 Do grego: uma garantia 47 Um aedo (em grego clássico ἀοιδόσ / aoidos, do verbo ᾄδω / aidô, "cantar") era, na Grécia antiga, um artista que cantava as epopeias acompanhando-se de um instrumento de música, o forminx. - O requerimento da devolução do dote entregue por Hefesto não se faz esperar; (pág. 38) - Com a chegada dos deuses, que riem ao contemplar os amantes na armadilha, a sanção pública do ridículo e do boato é infligida e a honra de Ares já está comprometida. A reação reivindicatória de Hefesto, enquanto marido traído que não pode recuperar por si só a honra perdida, apela a um procedimento público que tende a tutelar sua vendetta: a assembleia dos deuses, em paralelo com a assembleia humana, exige que Ares pague pelo adultério. (pág. 38) As três sanções indicam a regulação do adultério homérico: 1 O riso e a sanção psíquica (o ridículo); 2 A devolução do dote por parte do pai, ligado possivelmente ao repúdio da adúltera, a sanção material e 3 O pagamento da multa.(pág. 38) - o texto revela, em relação ao poder da assembleia, a voz e o murmúrio dos deuses, similar ao que acontece numa reunião de homens. - descrição da sociedade real, cujas regras de comportamento estabelecem obrigações contratuais. - A menção homérica de khreos 48 , como ressarcimento material por adultério ou moikheia 49 , implica uma consideração importante: o uso deste termo, e não de poiné, aplicado em casos de homicídio ou dano patrimonial, parece antecipar uma mudança na regulação da vendetta, uma diferenciação substancial na natureza do dano, indício de uma maior precisão e maior aperfeiçoamento do sistema reivindicatório. (pág. 39) - O único destino possível para a adúltera, era, por certo, o retorno à casa paterna e a uma vida de reclusão e humilhação. - A mudança mais significativa terá lugar dois séculos mais tarde, uma vez que o Estado passa a regular o delito de moikheia e o marido pode, então, dar morte impunemente ao cônjuge adúltero sob certas condições de flagrante. A lapidação, ademais, impõe-se não como lei, mas como sanção coletiva para a adúltera, tal como testemunham o mito e os textos trágicos. (pág. 40) 8. O ABANDONO NOXAL 48 Do grego: dívidas 49 Do grego: Adultério - O abandono noxal é, então, essencialmente, um ato de rompimento da solidariedade entre o culpável e seu grupo, e marca, na história jurídica o ponto de emergência do princípio da responsabilidade. - Tal como aponta Glotz: 50 “Em um tempo em que toda obrigação real era ainda no fato ou na forma uma obrigação ex delicto 51 , as famílias não aceitavam mais, a este respeito, o peso da solidariedade.”52 PARTE II A ÉPOCA CLÁSSICA 1. EVOLUÇÃO DO SISTEMA PENAL O CÓDIGO DE LEIS DE DRACON O primeiro passo para o desenvolvimento das instituições jurídicas na antiga polis aconteceu através da separação de poderes e de funções judiciais, a serem desenvolvidas por nove magistrados: o arconte epônimo, o arconte basileus (chefe religioso da comunidade), o polemarco (que comandava durante a guerra) e seis thesmotheai. O primeiro deles tinha responsabilidades especiais em questões de herança, o segundo presidia festivais e julgamentos por homicídio, o polemarco era o responsável pela justiça militar e os outros seis magistrados, cuja etimologia significa "fixadores de pareceres", eram, presumivelmente, responsáveis pela organização de tribunais e julgamentos; em outros termos, eram juízes. - Com a expansão do alfabeto: tornou-se possível fixar por escrito as normas que deveriam ser aplicadas. Os primeiros legisladores surgiram no Oriente, em meados do século VII: Zaleuco, (pág. 45) em Locros, e Carondas, em Catana. A invenção da escrita passa a ser, então, um requisito para a emergência da legislação. (pág. 46) - Nas últimas décadas do século VII (621 a.C.) aparece um documento legislativo de fundamental importância para a história do direito na Grécia arcaica. Este documento, representado nas leis de Dracon, demonstra que o Estado, no século VII, toma para si, por via exclusiva, o direito de punir quem comete um homicídio. É deste modo que a ideia de 50 GLOTZ, Gustave (1904, p. 858 ss) 51 Algo que fora causado por infração penal 52 “(...) em um temps où toute obligation réelle était encore em fait ou em la forme une obligation ex delicto, les familles n’acceptaient plus à cet ègard les charges de la solidarité” delito, de crime, aparece como um comportamento proibido, sancionado por um órgão institucionalmente competente. (pág. 46) - Na realidade, a situação político-social de Atenas no final do século VII, após o levante de Cilon numa tentativa de derrocar a aristocracia, fez com que fosse imperativa a redação de um código de leis que mantivesse a regulamentação fora do alcance exclusivo dos árbitros ou dos juízes, colocando-a no plano de administração da justiça. Tinha por intenção substituir o regime da vingança privada pela repressão social e colocar freio ao derramamento de sangue; por isto, a parte lesada ficava obrigada a levar o culpável perante os magistrados e a reconhecer que o direito de punir caberia somente aos representantes da cidade. (pág. 46) - As leis, escritas em axones 53 (tabuinhas de madeira sustentadas por eixos giratórios), foram descobertas em 1843 em uma (pág. 46) tábua de pedra sobre a qual foram reeditadas no ano de 409 pelos anagrafeis 54 ; nelas aparece pela primeira vez a distinção entre homicídio premeditado, voluntário e homicídio involuntário. Também previa uma aidesis 55 concedida pelos membros do grupo da vítima, por meio da qual o homicida poderia evitar a pena ou retomar à pátria após o exílio. (pág. 47) - Um elemento importante a ser destacado refere-se ao estabelecimento do exílio não como remédio para a vendetta, mas como pena. Neste sentido, deve-se salientar o aparecimento do exílio na época de Dracon como a única sanção pública para o homicídio 56 . Esta lei influenciou notavelmente o oráculo de Delfos e o culto de Apolo, que instituiu o princípio de impureza do homicida (miasma) e a regulamentação do katharmós 57 (puro). Logo, a lei grega sobre o homicídio tem suas raízes mais profundas na religião, tal como afirmam os estudiosos do direito. (pág. 47) - A implantação de diferentes tribunais encarregados de julgar os delitos foi outro elemento considerado essencial para a evolução do sistema jurídico. (pág. 47) - No caso de homicídio premeditado, a lei não impedia a intervenção da família: a prorresis 58 , ou proibição ao homicida de aparecer em lugares públicos, bem como o anúncio 53 Do grego: eixos 54 Do grego: inscrição 55 Do grego: aplicação 56 Em definitiva, e segundo a opinião de MODRZEJEWSKI, J. Mélèze (1991, p. 11), tanto o exílio como a pena de morte para o homicídio voluntário, não são mais do que modalidades de vingança de sangue, estabelecidas dentro de um sistema profundamente reivindicatório. 57 Do grego: claro 58 Do grego: predição de vingança, poderiam ser realizadas pelos parentes da vítima: o pai, irmão e os filhos apresentavam-se, deste modo, como acusadores oficiais. A lei também permitia ao homem matar o sedutor, o adúltero pego em flagrante com sua esposa, mãe, irmã, filha ou concubina. (pág. 48) 2. AS MODIFICAÇÕES DE SÓLON. O SISTEMA DEMOCRÁTICO O código draconiano, com exceção de sua lei em matéria de homicídio, foi substituído, ao cabo de uma geração, pelo cófigo soloniano. Sólon, poeta e magistrado principal, é considerado o fundador do Estado ateniense. Suas reformas foram conhecidas como "a liberação das cargas", ou seja, a abolição da (pág. 48) escravidão por dívidas e a redistribuição de terras. Junto a essas medidas, Sólon estabeleceu que a riqueza seria o único critério para a atribuição do poder público, e não mais a nobreza de berço. - De acordo com Aristóteles, as suas reformas democráticas mais importantes foram duas: Reformas solonianas A norma que estabelecia que qualquer cidadão que desejasse poderia empreender uma ação a favor dos agravados e o direito de apelação a um tribunal popular contra a decisão de um magistrado (ephesis 59 ) Portanto, a disposição draconiana que reconhecia a um membro da família lesada o direito de vingança é estendida por Sólon a qualquer cidadão. Surgem, deste modo, as graphai 60 , ou ações públicas, junto às dikai 61 , ou ações privadas. Graças a Sólon, as grapahi se multiplicaramà medida que a justiça pública se fortaleceu: o povo transformou-se, deste modo, em mestre da República. - Clístenes: No final do século VI, entre 510 e 500 a.C., limitaram-se os poderes do Areópago, introduziu-se o ostracismo, ou seja, o desterro dos cidadãos considerados perigosos para a democracia, e fomentou-se, na população da Ática, a ideia de defesa de seus próprios direitos. As fontes de poder residiam em três órgãos institucionais; o Conselho 59 Do grego: apelação 60 Do grego: escrituras 61 Do grego: Direito (boulê) composto por quinhentos membros eleitos por sorteio entre os (pág. 50) cidadãos, os tribunais e a Assembleia Geral. 3. AS CONSEQUÊNCIAS DO HOMICÍDIO: A MÁCULA, O EXÍLIO E A PURIFICAÇÃO Uma característica importante na evolução do direito ateniense é sua estreita relação com a religião. Os delitos cometidos no interior da cidade implicam um atentado contra a ordem estabelecida pela divindade. Deste modo, a religião força a sociedade a intervir nos assuntos de sangue interfamiliares, e esta atua contra a família que rejeita a sua intervenção. - Uma ideia nova aparece no espírito dos gregos: a da mácula que o homicida contrai. O miasma vinculado ao crime vira objeto de horror, já que constitui uma ameaça de contágio; por esta razão, o homicida está proibido de habitar sob um teto comum e de participar da mesma refeição; e sua presença, na Ágora ou nos templos, deixava a cidade vulnerável à maldição dos deuses. Para ele, só restava o exílio como recurso. (pág. 50) - Apolo: exige que todo crime seja expiado para assegurar a punição do culpável. (pág. 51) - Um outro elemento importante nesta consideração sobre a questão da mácula é que o homicídio cometido no interior da família cria um laço estreito de contágio entre o homicida e os seus parentes mais próximos. Deste modo, Platão impõe severas restrições ao homicida logo após o retorno do seu exílio. Na cena trágica, esta penalidade, estabelecida na realidade segundo a lei ateniense pelo tribunal correspondente, revela-se como uma sanção auto imposta. Assim, o exílio de Orestes em Coéforas: Estas mulheres horrendas como Górgones! Vestidas de negro e emaranhadas em múltiplas serpentes! Já não posso ficar aqui. - Ligada à questão do homicídio justificado ou legítimo aparece a ideia da purificação como medida punitiva. A esse respeito, não existe unanimidade: para Platão, certos crimes requerem purificação, mesmo que estejam isentos de sanção legal, mas nestes casos é somente depois da purificação que o criminoso é chamado katharós 62 . Para 62 Do grego: claro Demóstenes, ao contrário, e da mesma forma que para oradores posteriores, katharós significa "sem sanção legal" e "puro", pois, como afirma Parker: (pág. 52) O status ritual e jurídico é assimilado fazendo com que, em contextos de homicídio "puro" e "não sujeito às sanções legais", sejam frequentemente sinônimos. (pág. 53) Todavia, estudiosos do direito grego afirmam que, nos testemunhos da oratória, katharós não significa que o homicida de um ato justificado esteja isento de uma purificação simbólico-religiosa, e o fato de um homicídio justificado não ser punível pela lei não implica que o criminoso seja dispensado da purificação. 4. O TESTEMUNHO DA ORATÓRIA EM CASOS DE HOMICÍDIO: MÁCULA E CONTÁGIO NA RETÓRICA DE ANTIFONTE - O documento mais revelador da questão da mácula e do contágio por homicídio é o produzido por um orador: Antifonte, primeiro logógrafo grego e mestre da persuasão. O sofista demonstra com absoluta clareza que a oratória Ática constitui uma fonte importantíssima de dados para a apreciação da cultura e da vida política de Atenas. (pág. 54) - a retórica de Antifonte contém numerosos traços que a aproximam do pensamento sofista da segunda metade do século V - suas obras demonstram um profundo conhecimento de pautas e valores sociais que faziam parte do imaginário ateniense, tais como as relacionadas com o homicídio, a responsabilidade, a vítima e a mácula contraída pelo homicida. (pág. 54) - a narrativa é quase inexistente, o esforço do orador concentra-se nos argumentos, dando quase por óbvios outros pormenores. (pág. 55). - dikê phonou - procedimento por homicídio no qual os parentes da vítima - logo após uma proclamação na Ágora em que declaram o nome do agressor e exigem vingança - conduzem a causa para a frente do basileus, oficial encarregado dos assuntos de homicídio. Apesar da intervenção do Estado em matéria de homicídio, este continuava sendo um assunto privado (tinha vigência a lei de Dracon com as reformulações posteriores de Sólon). Mas, diferentemente de épocas mais primitivas, no século V eram o Estado e os seus tribunais que, mediante um julgamento, comprovavam a culpabilidade do acusado e, consequentemente, pronunciavam um veredicto. - O tribunal era o Aerópago, que entendia em matéria criminal. (pág. 56) - o problema da mácula por homicídio é uma característica recorrente nas Tetralogias. A teoria da mácula, aparentemente ausente em Homero, encontra-se com singular força na produção das tragédias do século V e diretamente vinculada a homicídios ocorridos no seio do oikos, ou no âmbito mais extenso do genos. Neste sentido, os agentes do homicídio viravam, por este ato, seres maculados que deveriam se auto-exilar para evitar não só o contágio, mas também que o miasma se espalhasse. (pág. 59) - Contudo, a mácula nas tragédias, como fenómeno irracional que afeta quem cometeu um delito, desencadeia também uma determinada conduta na sociedade. A atitude da comunidade frente a isto é naturalmente de rejeição e expulsão do maculado. (pág. 59) - Tal como se depreende dos textos, os alcances da mácula e da contaminação por homicídio apresentam características distintas: a imagem literal do sangue nas mãos - tal como aparece no drama é aqui substituída pelo símbolo, já que a mácula é invisível. - Na retórica de Antifonte, é a cólera das vítimas, e não o crime - como ocorre na cena trágica - que se revela como causa principal do miasma. Mas o orador vai ainda mais longe, e nisto, cremos, baseia-se a sua inovação. - Em todos os casos analisados, o tema da mácula e do contágio estão imersos em um contexto específico: o da punição. E nele, Antifonte explora, mediante recursos arcaicos do direito, uma das questões mais vitais de sua época: a atuação dos magistrados, ou seja, a conduta do órgão institucional que emitia uma sentença. Em cada uma das alegações das partes, resulta ser primordial "fazer vingança pela vítima" para não serem vítimas da mácula do homicídio. Entretanto, o problema não se concentra somente nos juízes, mas também nas testemunhas. (pág. 61) - Antifonte, pois, organiza sua preocupação dentro do aparato processual que julga o delito de homicídio. Esta preocupação pode ser verificada na necessidade de que os tribunais operem a céu aberto, segundo observamos em 5.11.82, costume que Aristóteles revela na Constituição Ateniense, 57, 4. 5. DIKÊ6364 PHONOU65: O PROCESSO POR HOMICÍDIO. A RETÓRICA PROCESSUAL: A CENA TRÁGICA E O TRIBUNAL 63 Na mitologia grega, Diké (ou Dice; em grego Δίκη), é a filha de Zeus comTêmis, é a deusa grega dos julgamentos e da justiça (deusa correspondente, na mitologia romana, é a Iustitia), vingadora das violações da lei. 64 Do grego: lance, lançado. 65 Do grego: assassinato código draconiano Preserva, enquanto documento legal, a invenção fundamentalda retórica como uma técnica de discurso público. Desta forma, a justiça passa a ser decidida através de argumentos apresentados perante um corpo de cidadãos que representam a comunidade. A profunda inovação das leis gera, também, uma nova realidade social: aquilo que constitui a retidão ou a injustiça encontra-se agora definido por padrões fixos, aos quais toda a sociedade tem acesso. (pág. 62) No tardio século V, o processo por homicídio era constituído por uma série de formalidades. O papel dos basileus (rei-arconte) era preparar o caso para o juiz. No começo estava prevista uma etapa instrutiva: a anakrisis 66 ou prodikasia. anakrisis nome através do qual os atenienses designavam a fase do processo durante a qual o magistrado instruía a ação e reunia todos os elementos decisórios que deveriam ser produzidos perante o tribunal. (Segundo Darember e Saglio; In: SAGLIO, Edmond, 1919, p. 241) (pág. 63) Nesta etapa, o arconte ou magistrado, no dia fixado para a apreciação do caso, tinha em seu poder um escrito (lexis), no qual constavam os nomes das partes, a exposição dos fatos que tinham dado lugar ao processo, o objeto da demanda e a designação de testemunhas que tinham presenciado o fato. O exame da lexis pelo magistrado, centrava-se nas seguintes questões: (pág. 63) 1 Se o acusador tinha o direito de apresentar a demanda; 2 Se o acusador tinha a capacidade para se defender pessoalmente; 3 Se a lexis era regular em suas formas e 4 Se o magistrado era competente para resolver o caso. (pág. 63) No dia fixado, as partes apresentavam-se diante do magistrado; eram oferecidas quatro possibilidades diferentes ao acusado: (pág. 63) 1 Reconhecer como legítima a demanda, aceitar a acusação e cumprir as exigências do seu demandante; 2 Sem contestar as faltas alegadas por ele, paralisar a demanda por uma exceção; 3 Admitir em princípio as reclamações do acusador, mas preparar contra ele, outra demanda e 66 Do grego: interrogatório 4 Contradizer as afirmações do demandante. (pág. 63) Nestes dois últimos casos, o acusado apresentava um ato inscrito, no qual indicava a posição que adotava (pág. 63); estabelecia-se, então, um debate entre os litigantes e começava a instrução. O primeiro ato da anákrisis era constituído pelo juramento das partes: o acusador jurava que o acusado tinha cometido o homicídio, o acusado jurava que não o tinha feito; ambos os juramentos – diomosia – confirmatórios comprometiam os deuses (o que deixava os depoimentos seguros e de proteção contra falso testemunho). (pág. 64) A finalidade da anakrisis era, portanto, reunir todos os elementos necessários para o julgamento, através do qual o magistrado introduzia a causa no tribunal e o arauto a proclamava. A cena do juízo de Orestes é considerada por toda a crítica especializada, uma reconstrução, com traços poéticos, bastante precisa das práticas contemporâneas; É digno de destaque, também, o fato de que – entendendo o direito não como uma disciplina ou uma ciência isolada do contexto que a produz, mas sim como um campo transdisciplinar que abrange diferentes aspectos econômicos, sociais, religiosos e políticos – determinadas pautas de argumentação retórica, reveladas nas instâncias processuais, apresentam valores, tal como demonstra o julgamento na cena trágica. (pág. 65) - negativa de Orestes e a postura que ele toma – enquanto acusado – frente aos seus demandantes. É evidente que Orestes não pode se declarar não-culpável, pois que em todo momento reafirmou o seu homicídio e a legitimidade do mesmo; por outra parte, fazê-lo significaria perjúrio – neste caso duplamente grave – já que os deuses perante os quais e pelos quais deve jurar são, precisamente, os seus demandantes. (pág. 67) - seu discurso contém um elemento significativo, já que confirma, mediante um silogismo retórico, sua capacidade jurídica para comparecer ao julgamento. Este traço configurava-se como o eixo mais importante em torno do qual se desenvolve a anakrisis, uma vez que da credibilidade do seu argumento depende a possibilidade de levar a cabo o processo judicial. (pág. 68) - o recurso da interrogação ou erotesis 67 . Em virtude deste, um orador podia interrogar o seu adversário e os juízes podiam interrogar o seu adversário e os juízes podiam interromper e perguntar ao orador. M Carawan tem examinado este motivo, destacando a sua função: (pág. 70) 67 Do grego: pergunta A erotesis nos discursos existentes, porém, frequentemente indica quais posições os adversários simbolizaram no anakrisis e qual era o assunto central do julgamento. (pág. 71) Este tipo de recurso, aplicado tanto na anakrisis como no transcurso do próprio julgamento, é essencial para definir a questão e a legalidade dos cargos. Geralmente é na anakrisis que estas questões são resolvidas, enquanto no juízo as exposições são somente exercícios de argumentação. A erotesis, formalmente colocada no texto em um breve e rápido diálogo, tenta esclarecer algumas questões: o modo com que se levou a cabo o homicídio, se houve ou não instigação e o problema de o réu ser assassino de alguém que não possui o mesmo sangue. (pág. 71) - synegoros 68 : Uma das características essenciais em todo o juízo público era a presença de synegoros ou representante defensor das partes, o qual se dirigia aos juízes imediatamente depois dos principais. A figura de synegoros era importante nos tribunais, porquanto ele mesmo podia atuar como testemunha. - Como afirma Harrison, no desenvolvimento do próprio julgamento, referindo-se aos testemunhos das partes: Com seus auxiliares [as testemunhas do synegoroi 69 ] eram envolvidos em uma disputa [agón 70 ]; os juízes concediam a vitória à performance mais impressionante. (HARRISON, Alick. 1971, p. 156) (pág. 73) O Corifeu, porém, reitera uma preocupação similar àquela que havia manifestado anteriormente: Orestes não pode ser absolvido em virtude do perigo que pressupõe para o resto da sociedade a presença de um homem átimos e, sobretudo, pelo que isto significa para sua reintegração ao oikos paterno. Para o acusador, Orestes continua sendo um ser maculado e esta convicção continua evidenciando as diferenças entre as partes. (pág. 76) Tal como já examinamos, as únicas provas que parecem ser válidas no processo são as que cada orador cria com um propósito deliberado. Neste sentido, tal afirmação leva a questionar a funcionalidade da divisão aristotélica, que não parece resultar, no gênero trágico, facilmente aplicável. Na última instância processual e diante do requerimento de Atena, os juízes depositam os votos nas urnas. A cena contém todos os elementos que se correspondem com a prática jurídica: 68 Do grego: conselho 69 Do grego: advogados 70 Do grego: luta Existiam duas urnas, mas uma era para absolvição e a outra para condenação. Cada jurado tinha, para votar, apenas uma pedrinha, que deveria ser colocada na urna apropriada. Logo após, Atenas proclama o Aerópago como o único tribunal insubornável para julgar os delitos de sangue e reclama novamente que os juízes depositem nas urnas o voto. Uma vez emitidos os votos, Atena declara que o seu será em favor de Orestes e, depois da recontagem, anuncia que Orestes fora absolvido, dado que existe um empate. (pág. 77) Indo além das controvérsias entre os críticos em relação à interpretação destes versos e à atitude real de Atena, é possível analisar tal cena levando em conta a importânciada justificativa com a qual Atena argumenta a sua postura; ou , de outro modo: mais do que elucidar se Atena “cria” ou “quebra” o empate do júri, resultam significativas razões pelas quais Orestes recebe absolvição por delito. Com as suas palavras, Atena ratifica a argumentação anterior de Apolo, que a tinha citado como exemplo de um nascimento “sem mãe”, mas vai além disso: expõe a sua virgindade e, o que ainda é mais importante, salienta o fato de ela não ter preferido defender uma mulher que matou seu esposo, “o chefe do oikos”. As razões de Atena, compreendidas em um dado contexto social, manifestam categoricamente a necessidade vital da permanência do pai como eixo através do qual se estruturam as relações familiares ; do ponto de vista jurídico, a restituição a Orestes de sua identidade como argivo 71 - fato que pressupõe, definitivamente, estar livre de miasma 72 e, consequentemente, de atimia – e a possível reintegração ao seu lar paterno implicam a forte reconsideração de uma categoria de homicídio que - pelo menos nas fontes filosóficas e literárias – aparece problemática e ambígua (pág. 78) no que concerne à qualificação jurídica do agente do fato e no que diz respeito à precisão da respectiva punição. Compreendida deste modo, a cena do julgamento por homicídio representa a ritualização de uma forma de penalidade racional e institucionalizada, que substitui o antigo sistema reivindicatório pelo sangue. Desta forma, justificando a inclusão da tragédia em nosso exame sobre o homicídio na época clássica, diremos que a cena dramática resulta sempre paidêutica: os espectadores podiam , mediante a ficção do drama, confrontar suas ideias com as crenças e normas jurídicas contemporâneas, ao mesmo tempo em que os exercícios retóricos enquadrados nos agoes ajudavam a 71 De Argos, antiga cidade do Peloponeso. O mesmo que grego. 72 Do grego: mancha, contaminação reafirmar sua verdadeira identidade como cidadãos participativos da polis ateniense. (pág. 79) PARTE III A PENALIDADE 1. ABORDAGENS DA PENALIDADE. CONSIDERAÇÕES GERAIS O estudo da punição na Atenas Clássica implica basicamente, para os estudiosos do direito grego, as seguintes questões: - Como e de que modo, o sistema de penalização interagia com a vida da polis em seu conjunto; - O que significa examinar como era o impacto das instituições e dos processos de punição sobre outras estruturas sociais e de que forma estas serviam pra expressar a construção do poder e da autoridade (pág. 83). - No âmbito específico da penalização na Grécia , Louis Gernet analisa a punição inserida em uma estrutura social ampla, a partir do simbólico. Diferenças básicas entre vingança e penalização; - as diferentes penalidades e sua evolução no transcurso das distintas etapas da vida política e social Ênfase às instituições que tinham a função de aplicar tais penalidades - Questão da voluntariedade e as diferentes posturas sobre as teorias da finalidade da punição. 2. VINGANÇA VERSUS PENALIZAÇÃO Vingança Penalização Focada sobre um mal pessoal sofrido; Passional e irada; (pág. 84) Não existe limitação alguma; Produzida por um ator judicial imparcial que não está pessoalmente envolvido com a matéria e que age de É pessoal; Envolve um tom particular de emoção e prazer causados pelo sofrimento do outro. (pág. 85) Simples respostas a outros atos: não tem autoridade nem estão legitimados. (pág. 86) acordo com a lei; (pág. 84) Para Hart: “Deve ser uma ofensa às normas jurídicas e deve ser imposta e administrada por uma autoridade constituída pelo sistema jurídico contra o qual a ofensa foi cometida”73 ; Existe um limite conforme a gravidade da ofensa; Ajustam-se a princípios gerais – prima facie – que demandam punições idênticas em circunstâncias similares. (pág. 85) As bases de autoridade para a punição são legitimas e incontestáveis. Esta autoridade pode ser política, familiar ou institucional; não necessita ser criada por leis, mas sim ser estabelecida através de outros mecanismos de legitimação; - Autoridade: A autoridade é criada através da obediência (consenso), mas também é capaz de criar consenso e obediência mediante um conjunto de mecanismos racionais e emocionais Todo o sistema punitivo democrático estável depende disto, ou seja, legalidade, ação pública e imparcialidade, aceitos pela maior parte da sociedade. 3. PRINCIPAIS PUNIÇÕES: EVOLUÇÃO E CARACTERÍSTICAS. OS EXEMPLOS DAS TRAGÉDIAS 4. 73 In: Op. Cit. (p. 18) Na época anterior à formação da polis, eram consideradas infrações graves todas aquelas que colocavam em perigo a existência da sociedade: sacrilégio e traição. Os antigos recorriam então à ordalia 74 . - atimos: todo aquele que cometera um delito era considerado átimos, um homem marginalizado e separado do seu grupo social, devendo ele fugir por estar sujeito à lapidação 75 , escárnio 76 e golpes. (pág. 86). Tinha o valor de uma humilhação nos tempos anteriores a Sólon. (pág. 87) - Estabelecimento da cidade: a atimia se converte em uma penailidade imnposta por lei: no direito Ático ela é definida como a privação do exercício de todos os seus direitos ligados à condição de cidadania (ou de uma parte deles). Na polis clássica, a atimia adquire o sentido jurídico de degradação. Neste sentido, reconhece-se: 1. Uma atimia que proíbe temporariamente o exercício dos direitos de cidadania; 2. Uma atimia perdurável, subdividida em duas partes: parcial e total. (pág. 87) - Marcando a estreita relação entre direito e religião, outra forma de penalidade, as arai 77 ou imprecações 78 , aparece escrita na lei ou proferida publicamente: por este mecanismo de punição o culpável poderia estar sujeito à excomunhão imediata e severa, frequentemente hereditária. - Outra das penalidades a que faremos menção, pouco usual e somente aplicável a casos extremos de traição contra o Estado era a lapidação. (pág. 90) Pouco frequente entre os atenienses, somente aplicado em casos extremos, tais como prodosia 79 ou antagonismos políticos. (pág. 91) Aparece nos mitos e textos trágicos com características singulares em sua aplicação: contra as adúlteras, contra o incesto, contra o poder estabelecido. (pág. 92) - Para Heródoto a punição passa a ser, então, a partir desta ótica, um ato instintivo, violento e coletivo que a comunidade usava para (pág. 90) penalizar os traidores da pátria. - Para Licurgo a punição aprece aqui com um elemento importante: a legalidade. A inclusão do termo psêphisma (decreto), como afirma Rosivach, 80 indica que a lapidação de 74 Ordálio ou ordália é um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza e cujo resultado é interpretado como um juízo divino. Também é conhecido como juízo de Deus (judicium Dei, em latim). 75 Suplício que consistia no apedrejamento do criminoso 76 Aquilo que se diz ou faz para zoar (caçoar) alguém ou alguma coisa; caçoada ou zombaria: as cantigas que ficaram famosas foram as de escárnio e de maldizer. Comportamento que demonstra desdém por (algo ou alguém); menosprezo. 77 Do grego: oração 78 Ato de imprecar; maldição, praga 79 Delitos que afetavam a vida interna ou externa do Estado. Lícides não fora um ato coletivo e espontâneo, massim a aplicação racional de um processo legal. - As tragédias mencionam casos de lapidação por traição ou ameaça de traição, como Heraclidas, de Eurípedes, Os Sete contra Tebas, de Ésquilo, e Antígona, de Sófocles. - Inscrições em pedras: Não se pode esquecer das inscrições em pedras ou emplacas de bronze, uma forma eficaz de assegurar a publicação das condenações. Expostas à vista de todos, reservava-se um lugar, ao lado das disposições das leis, para inserir os nomes de todos aqueles que tinham delinquido. (pág. 93) - ataphia : Ligada à atimia, a privação de sepultura (ataphia) era prevista para traidores e ladrões. Esta era uma forma excessiva de privação da honra, devido à importância que os costumes e rituais funerários tinham para a cultura grega. (pág. 93) - precipitação: é certo que segundo um decreto proposto por Canonos, aproximadamente na metade do século V, seria morto mediante precipitação aquele que fosse condenado por (pág. 93) delitos políticos. Deste modo, assinala Xenofonte: “Se alguém tiver cometido um delito contra o povo dos atenienses, que seja julgado e acorrentado diante do povo e, se condenado, que seja jogado no barathron 81 . (pág. 94) - Envenenamento: O envenenamento com cicuta transforma-se em alternativa em relação à morte por lapidação ou precipitação: eis a famigerada morte doce que, introduzida em Atenas, consagrou-se como privilégio concedido a poucas pessoas. (pág. 94) - Prisão: No que concerne à prisão, convém salientar incialmente que nunca se tratou de uma penalidade estabelecida pela lei. Atenienses empobrecidos que não podiam pagar suas multas ficavam na prisão durante um determinado período, até que pagassem suas dívidas. Aliás, a função primária do cárcere, coincide com o exílio: afastar-se do alcance social aquele que delinquiu. (pág. 94) - Multa: Por último, consideraremos brevemente o pagamento de multas como penalidade leve. Aplicada nos seguintes casos: 1. Pelo uso de linguagem abusiva (dikê kakegorias); 2. Por dano intencional (blabê); 3. Pela violação de uma mulher livre; 4. Por abuso ou negligência dos deveres oficiais. (pág. 95) 5. A EXECUÇÃO DA PUNIÇÃO: AS INSTITUIÇÕES 80 ROSIVACH, Vincent (1987, p.238) 81 um abismo, abismo, golfo, Os veredictos e penalidades eram decididos por tribunais populares, chamados dikasteria 82 , cujo quórum, eleito por sorteio, oscilava entre 200 e 1000. Uma exceção era o homicídio, cuja sanção estava a cargo dos cinco tribunais especiais, presididos pelos primeiros arcontes 83 . Com a exceção do Aerópago, que tinha jurisdicção sobre casos de homicídio intencional, incêndio premeditado, envenenamento e ofensas religiosas, os outros tribunais eram presididos por um grupo de 51 juízes, conhecidos como ephetai, cuja identidade não está bem determinada. (pág. 95). No período clássico o Aerópago tinha a reputação de ser “a última instância em Atenas.” Licurgo chama o tribunal de “ (...) a forma superior da Grécia” e Lísias destaca que esse tribunal é tão superior a todos os outros que mesmo os homens condenados por ele concordam que seus veredictos são justos. Quanto às ações, são significativas duas distinções: a primeira é aquela que diferencia os casos públicos dos casos privados. (pág. 96) Casos públicos Casos privados granphai – se realizam perante um júri formado por quinhentos cidadãos. (pág. 96) dikai – Tinham lugar em caso de homicídio (considerado um caso privado) e de roubo, o qual poderia ser considerado caso público ou privado (pág. 97) A segunda distinção baseia-se em duas modalidades diferentes de sentenciar um caso. timesis agon atimetos Tanto o demandante como o acusado propunham uma sentença perante o tribunal e, após uma discussão, votavam-se as duas opções. Procedimento de estimação. (pág. 97) Sem estimação (avaliação), poderia ser deixada a pena para a discrição dos juízes, determinada em adiantado, por uma lei, pela jurisprudência do tribunal ou por um acordo entre as partes. Este procedimento era chamado agon atimetos, e a sentença condenatória implicava pena, sem outra formalidade. (pág. 97) 82 Do grego: tribunais 83 Dentre os cinco tribunais encarregados do homicídio os mais importantes eram o Aerópago, o Palladium e o Delphinion. Do Pritaneo e Phreato conhecem-se, na realidade, poucos dados. Demóstenes (23, 73-74) une o Aerópago ao Palladiun, apontando que são “two tribunals of great antiquity and high characte” e define o Delphinion como a “triad aside from these two courts whose usages are still more sacred and awe-inspiring” A legislação aplicada pelos tribunais fundamentava-se na opinião comum e nas teorias dos filósofos, nas ideias de correção, reparação, intimidação e defesa social. O procedimento e a punição diferiam segundo a condição jurídica das partes: se fossem cidadãos (punições tratadas anteriormente) ou escravos. Neste último caso, era comum o flagelo. A notificação da sentença dava-se por escrito e era entregue aos magistrados competentes, aos Onze, aos oficiais administrativos ou a outros, fosse o algoz ou aqueles encarregados de confiscar os bens do acusado. (pág. 97) 6. VOLUNTÁRIO-INVOLUNTÁRIO COMO CATERGORIAS JURÍDICAS. A CONTRIBUIÇÃO DA SOFÍSTICA Estudiosos do direito grego, em particular, do direito ático, coincidem em afirmar que o problema da responsabilidade individual, da intencionalidade ou voluntariedade em qualquer ato ilícito constitui a essência mesma e a base fundamental do direito penal. - Responsabilidade Jurídica – ou seja, o grau de compromisso (seja autoria ou cumplicidade) que cabe a um indivíduo que cometeu um delito e sua correspondente sanção, outorgada por uma autoridade legitimamente constituída em um contexto organizado juridicamente 84 . - Distinção voluntário-involuntário: aparece definitivamente adquirida na sociedade como categoria jurídica quando as representações da polis dominam e regulam as representações familiares: é o Estado quem não somente define o equilíbrio entre ambas as forças, mas também impõe uma ordem sistemática às crenças. (pág. 98) - Com a evolução do pensamento, o indivíduo delineia-se como um ser autônomo na realização de seus atos, e o direito, sob o poder de Dracon e regulado agora pelo nomos, ordena e classifica diferentes órgãos institucionais destinados a julgar os atos cometidos, atribuindo-lhes diferentes faculdades segundo se trate de faltas voluntárias, premeditadas ou involuntárias. - Nesta nova realidade social (pág. 99): 84 Para esta distinção remetemos a HART, Herbert (1968). Tratando-se em particular de um texto literário, é necessário pontuar que a sanção ou castigo correspondente à falta cometida está somente dentro dos limites do discurso, já que nenhuma execução ocorria realmente na cena trágica. Esta ausência não invalida, porém, a consideração das tragédias como fontes incontestáveis e fundamentais para o estudo de questões jurídicas e legais do século V Ateniense. hekon (hekousios) e pronoia 85 akôn Ideia de intenção e de vontade é expressa através dos termos hekon (hekousios) e pronoia. No que tange a hekon, há divergências acerca dos alcances e significados da vontade: para alguns estudiosos do direito grego, Dracon não distingue intenção de premeditação e confere à hekon ambos os sentidos,empregando-se, com efeito, hekon e pronoia indistintamente. (pág. 99) A involuntariedade, entretanto, verifica-se com uma única expressão: akon. Outros, ao contrário, assinalam que na realidade, Dracon diferencia três tipos de homicídio, segundo a atitude psicológica do homicida. Naturalmente, das três categorias, a menos grave e que tem maiores possibilidades de obter o perdão é a última: akôn. - akôn: os diferentes usos de akôn em dramaturgos e historiadores do período clássico revelam os diferentes significados do termo: ausência completa de algo, falta, negligência, imprudência, erro ou ignorância. - Distinção voluntário-involuntário: A distinção voluntário-involuntário engendrara-se lentamente antes de Dracon, sendo elaborada no domínio da justiça familiar ou interfamiliar. A distinção é baseada em um princípio, em juízos de valor que traduzem o estado de uma sociedade. (pág. 100) - Para Gernet: Entre os gregos, uma necessidade de universalidade entre hekon adikein e akon adikein, uma vez organizado plenamente o direito na polis e considerado o termo adikeîn como o mais significativo para determinar um princípio geral de incriminação. (pág. 101) - A sofística : Com a chegada da sofística como fenômeno cultural, as questões relativas ao problema da responsabilidade nas argumentações de defesa adquirem novas matizes. Nesta perspectiva, precisamente, a práxis do agoreuiem segue como uma forma de ação política que permite o desenvolvimento de raciocínios capazes de definir os interesses e 85 A pronoia é um conhecimento, uma intelecção feita de antemão, uma pre-meditação. Na palavra hekon, de grau, está implícita a ideia pura e simples de intenção, concebida sem nenhuma análise prévia. Entretanto, segundo a análise de VERNANT, Jean-Pierre (1980, p. 58) ambas as categorias são intercambiáveis na legislação draconiana. os valores da sociedade. Por esta razão, o logos 86 constitui a condição fundamental para o (pág. 101) exercício da política, da retórica e do direito. - Segundo Górgias: Somente se é responsável por um ato ilícito quando existe intenção. (pág. 102) - Platão e Aristóteles: a noção de involuntário adquire novos significados, que depois sistematizarão as obras de Platão e Aristóteles 87 . (pág. 103) - as discussões dialéticas sobre a responsabilidade fomentavam a excessiva elaboração e sofisticação dos argumentos de defesa. Por sua vez, estes argumentos constituíam um esforço importante para elucidar fatos e causas a partir dos quais atenienses tentavam fixar as bases para uma justiça mais clemente. (pág. 103) - Tragédias: As estreitas relações entre ambos os âmbitos (oratória e drama) permitem uma leitura da tragédia que a identifica – principalmente nos agões – com as práticas forenses; da mesma forma, as situações de índole judicial formuladas na retórica do fim do século evidenciam o problema da involuntariedade. (pág. 103) - As manifestações e justificações de um ato involuntário definem-se assim, a partir de vários aspectos: a ignorância: (agnoia 88 , de origem religiosa), a compulsão (bia 89 ) do amor (eros 90 ) ou enfermidade (nosos). Em outra perspectiva, as discussões acerca de uma ação definida como involuntária estabelecem diferentes (pág. 103) critérios para avaliar o papel do agressor e da vítima: o suposto agente responsável por uma ação torna-se – devido à argumentação retórica – o verdadeiro “sofredor”, ou seja, a vítima forçada pelas circunstâncias. Sob tais circunstâncias, as tragédias revelaram-se, nos discursos de defesa das personagens, uma série de atenuantes que tendem a conseguir a absolvição de suas penas. (pág. 103) - Entretanto, na retórica de Górgias e nos escritos de Antífone, ambos os sofistas de fins do século V, é possível perceber uma inversão dos critérios de responsabilidade 86 O logos (do grego: razão), significava inicialmente a palavra escrita ou falada – o verbo. Mas a partir de filósofos gregos, como Heráclito, passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e Beleza. 87 Sabemos que a especulação filosófica teve um papel fundamental na história do direito grego. Aristóteles, como Platão, distingue claramente três tipos de atos ilícitos: os cometidos por erro (hamartemata), ato injusto cometido sem premeditação e ato injusto cometido com premeditação e voluntariedade (adikemata). Platão distingue entre ato involuntário, ato cometido com impetuosidade (thymô) e ato premeditado. 88 Do grego: ignorância. 89 Do grego: violência, força física, força, restringir. 90 Do grego: amor, desejo. anteriormente expostos. Em primeiro lugar, tratando-se de Antífone convém analisar a Terceira Tetralogia. Nessa obra, um jovem, depois de se envolver em uma luta com o ancião, o mata. A situação parece deste modo, enquadrada em um caso de “homicídio justificado” ou de legitima defesa, embora a argumentação do acusado (ou a da sua defesa) aponte para a “involuntariedade” da sua ação. Mas o que nos interessa mencionar neste caso é a inversão dos critérios de responsabilidade: resulta ser a vítima que, atuando de forma voluntária, impôs a condição para a própria morte. O agente que cometeu a ação ilícita (o homicídio) é, ao contrário, quem “sofreu involuntariamente” um infortúnio. (pág. 104 e 105) 7. AS TEORIAS SOBRE A FINALIDADE DA PUNIÇÃO: UTILITARISMO E RETRIBUCIONISMO Na época clássica, os gregos necessitavam justificar a sua legislação penal e, a esse respeito, os filósofos davam estas explicações: 1. A pena é punição, uma correção que tem por finalidade punir o culpável (kolasis); 2. A pena é a reparação de uma ofensa (timôria 91 ) e tem por finalidade devolver a ofensa com todas as satisfações às quais se tem direito; 3. A pena é um ato de intimidação, uma lição dada aos que delinquem (paradeigma 92 ) e tem por objetivo dissuadir, mediante a expectativa de um sofrimento, qualquer um que queira cometer algo prejudicial para o interesse público. (pág. 106) UTILITARISMO RETRIBUCIONISMO Uma justificativa clássica para a prática da punição fundamenta-se nas consequências benéficas que sua aplicação produziria em uma determinada comunidade (utilitarismo). (pág. 106) Aristóteles: trata a pena como uma medicina para a dissipação e a injustiça; (pág. 109) Uma réplica clara a esse utilitarismo insiste na possibilidade de que infligir uma punição aos transgressores seja algo valioso em si mesmo (retribucionismo). Como foi assinalado, o direito penal grego, em suas origens, é essencialmente retribucionista. (pág. 106) Segundo Kelsen 94 , temos aqui a primeira afirmação de uma lei imanente que governa o universo, análoga à lei de 91 Do latim: medos 92 Do grego: exemplo 94 KELSEN, Hans (2000) A pena é, então, um “ato de necessidade”, e o criminosos deve ser punido segundo a proporção da lesão causada; a medida para a pena deve ser consequentemente, proporcional à gravidade da infração cometida. Sua teoria é, basicamente, distributiva e corretiva Contudo, os séculos posteriores testemunharam uma mudança voltada para a compreensão, a indulgência e a philantropia 93 (pág. 110). Modernamente, estas questões se ajustam nas palavras dos juristas e filósofos da punição. Cesare Beccaria afirma a respeito:
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