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Curso: Letras Disciplina: Bases da Cultura Ocidental Conteudista: André Alonso AULA 15 – Nascer para saber ou saindo da caverna META Apresentar, utilizando a alegoria da caverna, de Platão, uma visão geral sobre diversos aspectos da filosofia, como a relação entre opinião e ciência, educação e ignorância, demostrando que existe no ser humano um desejo natural de conhecer a verdade. Mostrar como verdade, admiração e ócio são elementos que estão na origem do pensamento filosófico. OBJETIVOS Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1. estabelecer a relação entre opinião e ciência, educação e ignorância; 2. explicar a alegoria da caverna (Platão); 3. relacionar filosofia e natureza humana, explicando o significado de “desejo inato de saber”; 4. relacionar verdade, admiração e ócio com a filosofia. PRÉ-REQUISITO Leia o texto da “Alegoria da Caverna”, de Platão, que está na plataforma. INTRODUÇÃO Nossa última aula mostrou-nos o surgimento, na Grécia, de um novo tipo de saber: a filosofia. Vimos que as questões que serão exploradas pelos filósofos gregos já se encontram nos mitos e 1 na poesia gnômica. Lemos um pequeno trecho da Metafísica de Aristóteles que aproximava o amante de mitos (philómythos) do amante da sabedoria (philósophos). O mito, com efeito, é uma tentativa de racionalização e de explicação das realidades que desconhecemos e que nos causam espanto, admiração ou mesmo temor. Vimos também que houve uma série de fatores, de diferentes ordens, que colaboraram para o nascimento da filosofia na Grécia. Exploramos, por fim, o conceito de filosofia, trabalhando, inicialmente, com o sentido etimológico do termo e analisando, em seguida, algumas definições que circulavam na Antiguidade e na Idade Média. Pudemos ver, também, que é entre os séculos VI e V a. C. que se desenvolve a prosa grega, utilizada, em sua origem, para tratar de assuntos mais técnicos ou científicos. Temos, então, uma série de campos do saber, alguns dos quais estavam apenas nascendo, que buscam na prosa um canal adequado para a expressão de seus conceitos e teorias: a filosofia, a história, as matemáticas, entre outros. Em nossa aula de hoje, aprofundaremos certas questões relativas ao saber filosófico. Precisaremos o sentido da afirmação de que a filosofia é uma ciência e exploraremos o problema da origem da filosofia. Estudaremos a necessidade da filosofia para o ser humano e como ela está intimamente ligada à natureza humana, cuja curiosidade conduz à busca pela verdade. Em tempos como o nosso, em que o relativismo tornou-se absoluto, pode causar estranhamento falar em “busca da verdade”. Em nosso socorro vem Santo Agostinho, que, utilizando-se de uma experiência que é de todos nós, mostra-nos como o homem tem um desejo natural de conhecer a verdade, de fugir do erro e de evitar a mentira. Teremos a oportunidade de conhecer um texto fundamental de Platão (a alegoria da caverna), que discute conceitos como opinião e ciência, educação e ignorância, ao mesmo tempo em que mostra que o caminho da cultura é árduo, mas conduz à verdadeira liberdade, e que a posse do conhecimento implica uma responsabilidade para com os demais seres humanos: revelar-lhes a verdade conhecida, que também os libertará. Verbete 2 Platão (esquerda) e Aristóteles – detalhe de “Escola de Atenas”, famoso afresco de Rafael (séc. XV e XVI), localizado no Palácio Apostólico do Vaticano Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Sanzio_01_Plato_Aristotle.jpg (autor: Jacobolus) Aristóteles – Nasceu na cidade de Estagira, na Grécia, em 384 a. C., e por isso mesmo é chamado, por antonomásia, de Estagirita. Morreu em 322 a. C. Foi discípulo de Platão e mestre de Alexandre Magno. Aristóteles fundou o Liceu, uma escola filosófica situada em Atenas. Compôs uma vasta obra dedicada não apenas aos diversos ramos da Filosofia (Física ou Filosofia da Natureza, Metafísica, Psicologia, Ética, Política), mas à Lógica, à Biologia, à Poética, à Retórica. Suas obras tiveram um impacto profundo não apenas na Antiguidade, mas também na Idade Média, tendo sido lidas e comentadas por diversos filósofos de língua grega, árabe e latina. De fato, alguns dos textos de Aristóteles foram traduzidos, ainda na Antiguidade, para o latim. Durante o Medievo, conheceram diferentes traduções para o árabe e o latim. Sua importância nas universidades europeias, a partir do séc. XIII, é tão grande e tão fundamental que ele era chamado simplesmente de “o Filósofo”. O currículo de filosofia das universidades medievais baseava-se, então, majoritariamente nas obras do Estagirita, que eram lidas e comentadas durante as aulas. Averróis, filósofo árabe do séc. XII, comentador da obra de Aristóteles, diz o seguinte a respeito do Filósofo: 3 “Com efeito, eu creio que esse homem foi uma regra na Natureza e um modelo que a Natureza inventou para mostrar o último grau de perfeição humana no mundo material”. (Comm. Magnum in De Anima, III, comm. 14, 142-145) Fim do Verbete Box de Curiosidade O nome Liceu vem do local onde se situava a escola, um ginásio esportivo situado em Atenas e consagrado a Apolo. Um dos epítetos de Apolo é “Liceu” ou “Lício”, do adjetivo grego λύκειος (lýkeios), que significa “de lobo”, “relativo a lobo”, seja porque a mãe de Apolo, a deusa Leto, teria se transformado em loba para fugir da ira de Hera, esposa de Zeus, seja porque Apolo, como pastor e protetor dos rebanhos, afugentava os lobos. O fato é que o termo “Liceu” significa “de lobo” e, por isso, o termo é, em certas regiões do Brasil, sinônimo de prostíbulo, já que, em latim, “loba” – lupa – podia designar a prostituta, como, em português, “piranha”, além de indicar um tipo de peixe, pode ser usado com o sentido de “meretriz”. O termo “lupanar”, em português, é sinônimo de prostíbulo, já que, em latim, lupanar, um composto de lupa, tinha exatamente esse sentido. Veja quão curiosos – e tortuosos – são os caminhos que as palavras percorrem, carregando, assim, diferentes matizes. Desde a Antiguidade, circula a história de que Aristóteles ensinava seus discípulos caminhando pelo Liceu. Como em grego “passeio”, “caminhada”, se diz “perípatos” (περίπατος), a escola filosófica do Estagirita ficou conhecida como “peripatética” e seus discípulos, como “peripatéticos”. Dada a grande importância do ensino e da filosofia de Aristóteles, o nome de sua escola entrou para a história e passou a designar um estabelecimento de ensino, de estudo, assim como a Academia de Platão tornou-se um substantivo comum significando “local de ensino ou de pesquisa”. “Liceu” e “academia” são duas palavra que demonstram a importância incomensurável que Aristóteles e seu mestre Platão tiveram na cultura mundial, mormente ocidental. 4 Fim do Box de Curiosidade 1. OPINIÃO E CIÊNCIA, EDUCAÇÃO E IGNORÂNCIA No final de nossa aula anterior, ao definirmos a filosofia, dissemos que ela é uma ciência ou um conhecimento. Podemos, então, perguntar o que é ciência ou conhecimento. Santo Tomás de Aquino (séc. XIII d. C.) estabelece as características básicas do conceito de ciência em algumas passagens de sua vasta obra. Eis aqui duas ocorrências: a) a ciência é um conhecimento certo (scientia est etiam certa cognitio rei – Expositio Posteriorum Analyticorum, lib. I, l. 4, n. 5); b) a ciência implica uma certeza de conhecimento adquirida por meio de uma demonstração (scientia importat certitudinem cognitionis per demonstrationem acquisitam – Expositio Posteriorum Analyticorum, lib. I l. 44, n. 3). Ciência seria, então, umconhecimento certo adquirido por meio de uma demonstração. A definição implica que: a) a ciência é um conhecimento certo – ela distingue-se, assim, da opinião; esta pode definir-se como o assentimento que se dá a uma das possíveis soluções por parecer ela a mais provável, temendo-se que a solução oposta seja a verdadeira; a ciência implica na certeza do conhecimento, enquanto na opinião não há essa certeza, mas antes o temor, o medo de que a posição contrária seja a verdadeira; por isso, quando você tem ciência, você diz que “sabe”, quando tem opinião, diz que “acha”; b) a ciência é um conhecimento adquirido por meio de uma demonstração – a ciência nos dá a conhecer as coisas por meio de suas causas; ter a ciência de alguma coisa significa ter um 5 conhecimento perfeito, completo, o que supõe conhecer-lhe as causas; ciência, portanto, implica um conhecimento pelas causas. Platão (séc. V e IV a. C.) assenta sua filosofia na distinção entre opinião (δόξα – dóxa) e a ciência (ἐπιστήμη – epistéme). Em sua República (479e-480a), ele estabelece a distinção entre filósofo, o amante da sabedoria e da ciência, e o filódoxo, o amante da opinião. A ciência e a opinião representam dois níveis distintos de conhecimento. Na mesma República, Platão constrói uma belíssima alegoria que nos permite compreender a diferença entre ciência e opinião e entre educação e ignorância. A passagem, situada no início do livro VII, é conhecida como alegoria ou mito da caverna. Verbete Platão – cópia romana de escultura grega do séc. IV a. C. 6 Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Head_Platon_Glyptothek_Munich_548.jpg (autor: Bibi Saint-Pol) Platão – Nasceu por volta de 424 a. C., provavelmente em Atenas, e morreu em 348 a. C.. Foi discípulo de Sócrates, que aparece como personagem central em seus diálogos, e mestre de Aristóteles. Platão fundou a Academia, uma escola filosófica situada em Atenas. O nome “Academia” vem do fato de que Platão ensinava no lugar em que havia um jardim ou bosque que teria pertencido ao mítico herói ateniense Academo (Ἀκάδημος – Akádemos) e onde ele tinha sido sepultado. Por causa de Academo, o bosque era chamado Ἀκαδήμεια (Akadémeia) e a escola de Platão passou, assim, a ser conhecida como “Academia”, de onde deriva, obviamente, o termo em português (que indica um lugar para o cultivo do espírito ou do corpo – lembre-se das academias de ginástica). Fim do Verbete Box de Explicação Platão emprega o diálogo como meio de investigação filosófica, levando o leitor/interlocutor a fazer um percurso filosófico sobre questões variadas. Os temas abordados pelo filósofo são bastante diversos e abrangem diferentes ramos da filosofia: política, ética, metafísica, teoria do conhecimento. Sua teoria das Formas ou das Ideias é bastante conhecida e teve grande importância desde a Antiguidade. As Formas ou Ideias são os verdadeiros seres, a verdadeira realidade e nosso mundo material é apenas um reflexo tosco, uma cópia, dessa realidade superior e imaterial. As Formas imateriais constituem um dos núcleos da filosofia de Platão. Por isso, em português, o adjetivo “platônico” pode ser sinônimo de “imaterial”, de “não-concreto”, de desligado do mundo material. Assim, falamos de “amor platônico”, isto é que não se concretiza em atos, mas que fica apenas na esfera imaterial, teórica, imaginada. Outro detalhe 7 interessante é que Platão recorre várias vezes a exemplos tirados da Matemática e da Geometria para ilustrar o desenvolvimento de suas teorias. Um de seus diálogos mais conhecidos e importantes é a “República”, no qual ele trata do tema da justiça e imagina uma cidade governada por reis-filósofos. Na obra, surgem questões relativas à educação e à formação dos cidadãos e nela encontramos a famosa passagem da alegoria da caverna, que descreve o estado da alma humana relativamente à educação ou à falta dela. Papiro do séc. III a. C., no qual se pode ler um trecho do livro VI da “República” (476e 6 e ss.) Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:P._Oxy._LII_3679.jpg (autor: Bender235) Fim do Box de Explicação 1.1. A ALEGORIA DA CAVERNA Platão pede a seu interlocutor, Glauco, que imagine, para melhor compreender o estado de nossa natureza no que tange à educação ou à falta dela a seguinte alegoria. Há uma espécie de caverna subterrânea, com uma grande entrada pela qual entra luz. Aí moram, desde sua infância, homens que estão agrilhoados pelos pés e pelo pescoço, de modo que não podem, 8 mesmo que queiram, nem se mover nem virar a cabeça e olhar para trás. São forçados, pelos grilhões, a ficar imóveis e olhar sempre para frente, o que, em seu caso, é o fundo da caverna. Atrás deles, ao longe, em uma posição superior, há um fogo que arde e que emite a luz que eles veem no fundo da caverna. Entre o fogo e os prisioneiros, há um caminho elevado, ao longo do qual está construído um pequeno muro. Há outros homens que estão por trás desse muro, carregando todo tipo de objetos que conhecemos, de modo que os homens estão encobertos pelo muro, mas os objetos que carregam aparecem por cima dele. Alguns desses outros homens falam, outros ficam em silêncio. A luz emitida pelo fogo projeta, no fundo da caverna, as sombras dos objetos que passam por sobre o muro, mas não a sombra dos que carregam esses objetos, pois eles não ultrapassam a altura do muro. Assim, os prisioneiros, imobilizados pelos grilhões desde sua infância, forçados a olhar sempre para o fundo da caverna e impedidos de virar-se para trás, podem apenas ver as sombras projetadas no fundo da caverna, ouvindo alguns sons que acompanham essas sombras e que provêm dos carregadores que eles não sabem que existem, pois estes estão protegidos pelo muro. Tudo o que os prisioneiros conseguem ver são as sombras dos objetos. Eles julgam, então, que essas sombras são a realidade, que elas são os próprios objetos, ignorando que, na verdade, elas são apenas representações grosseiras dos objetos. Os prisioneiros também não conseguem olhar para o lado e ver seus companheiros de infortúnio, podem apenas ver as sombras de seus companheiros projetadas no fundo da caverna. Como estão imobilizados pelo pescoço, não conseguem ver seu próprio corpo e tudo o que veem é a sombra de seus próprios corpos também projetada. Desde sempre, tudo o que conheceram foram apenas sombras e nada mais. Assim, tomam as sombras que veem pela própria realidade, não sabem que essas sombras são apenas representações toscas. As vozes dos carregadores ecoariam no fundo da caverna e os prisioneiros acreditariam que são as sombras que emitem os sons. 9 Figura 15.1 – Representação esquemática do mito da caverna, de Platão ILUSTRADOR: por favor, faça um desenho representando a alegoria da caverna, de Platão. Um modelo é a imagem que está acima. Estou enviando, no final da aula, nas últimas páginas, uma série de imagens que podem ajudar na inspiração (elas não fazem parte da aula, servem apenas para você ter algumas ideias). Pediria que o desenho ficasse grande (eventualmente deitado, ocupando toda uma página). Quando o desenho estiver pronto, mande uma cópia para eu indicar em que partes você deve colocar umas legendas para ajudar na compreensão da alegoria. Se algum prisioneiro fosse libertado de suas cadeias e fosse forçado a se virar e a subir em direção aos objetos e ao fogo, ele certamente experimentaria um grande desconforto, teria seus olhos turvados pela maior claridade e sentiria dores físicas,pois estaria realizando movimentos que até então nunca tinha feito. Se lhe mostrassem os objetos e pedissem que dissesse seus nomes, ele não conseguiria, pois não saberia reconhecê-los. Na verdade, ele pensaria que as sombras são mais reais do que os próprios objetos. Se o fizessem olhar para a luz do fogo, seu desconforto e a dor em seus olhos seria ainda maior e ele tentaria evitar a luz, fechando ou 10 desviando seus olhos para o fundo da caverna, para aquilo que ele julga ser a própria realidade e que lhe traz conforto. Se, entretanto, ele fosse forçado a sair da caverna, tendo de subir um caminho difícil e íngreme, e não o deixassem até que estivesse na superfície, sob a luz do sol, ele certamente sentiria dores ainda maiores em seus olhos e protestaria por estar sofrendo uma tal violência. Seus olhos estariam, em um primeiro momento, cegados pelo brilho do sol. Aos poucos, ele poderia abri- los, mas não enxergaria nada corretamente, apenas manchas indistintas. Na medida em que se acostumasse à luz do sol, ele poderia ver melhor, contemplando, inicialmente, o reflexo dos objetos na água, depois os próprios objetos. Por fim, após um longo período de adaptação, ele poderia olhar o próprio sol. Fruindo dessa nova vida, podendo conhecer coisas que nem imaginava que existiam, se ele se lembrasse de como vivia antes, da caverna e de seus antigos companheiros de infortúnio, pensaria o quão feliz ele era por ter sido libertado das cadeias e como infelizes eram os demais, que continuavam enterrados na escuridão. Se, por algum motivo, nosso liberto descesse novamente para a caverna, ele sentiria um grande desconforto causado pela escuridão. Ao reencontrar seus companheiros, ele olharia as sombras passando, mas não poderia distingui-las, pois estaria cegado pela escuridão e levaria um bom tempo para acostumar-se novamente a ela. Ao ver que ele voltara com a visão arruinada, seus companheiros ficariam chocados, dele debochariam e julgariam que sair da caverna seria algo com terríveis consequências. Se alguém os soltasse de seus grilhões e quisesse forçá-los a subir para fora da caverna, eles, se pudessem, o agarrariam e o matariam, com medo do sofrimento que encontrariam ao serem levados para fora da caverna. Box multimídia Para que você possa visualizar melhor o cenário descrito por Platão em sua alegoria, há algumas animações em vídeo que podem ajudá-lo. 11 Você pode ver uma delas em português. Ela possui algumas imprecisões em relação ao texto da Platão, mas nos permite ter uma ideia dos fatos descritos pelo filósofo. Veja o seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=Rft3s0bGi78&feature=related Há um outro vídeo (desenho animado) que contém toda a alegoria em detalhes. É muito interessante e bem feito. A narrativa é feita por ninguém menos do que Orson Welles, cineasta e ator americano que dirigiu, entre outros filmes, “Cidadão Kane” (no qual é também o ator principal), indicado para 9 Oscar (ano: 1941) e ganhador de uma estatueta, na categoria de melhor roteiro original. O áudio está em inglês, mas as imagens falam por si e você, tendo lido o trecho da República que descreve a alegoria, não terá a menor dificuldade em compreender o que está se passando. Não deixe de assistir em: http://www.youtube.com/watch? v=d2afuTvUzBQ Por fim, você pode ver uma bem-humorada e atualíssima versão em quadrinhos da alegoria, feita por Maurício de Souza, o criador da Turma da Mônica (são cinco páginas; navegue, clicando em “capítulo”, no canto inferior direito da página): http://www.monica.com.br/comics/piteco/pag1.htm ou http://www.youtube.com/watch?v=faCphlZOoG0&feature=related Fim do box multimídia Eis o retrato de nossa própria situação. Nós somos os prisioneiros da caverna e tudo o que temos visto durante nossa vida são apenas sombras toscas e ilusórias. A caverna, com sua escuridão, é o símbolo da ignorância e nós estamos nela aprisionados desde nosso nascimento. Nem sequer sabemos que há algo fora da caverna. As cadeias que nos prendem são o sinal de nosso imobilismo, físico, em um certo sentido, mas sobretudo intelectual. Se nos livramos dos grilhões, precisamos ser levados à força para o caminho de subida. Quando nos deparamos com 12 alguma luz, isto é, com algum conhecimento mais aprofundado, sentimos um incômodo, inicialmente. Nossa inteligência sofre, como sofreriam nossos olhos, se, na escuridão, tivessem de olhar para a luz. Ao sermos retirados da caverna (símbolo de nossa indigência intelectual), encontramos um mundo luminoso, que causa um grande desconforto a nossos olhos (símbolo de nossa inteligência), pois eles não estão habituados e preparados para olhar diretamente para objetos iluminados (como nossa inteligência, apenas liberta da escuridão da ignorância, não conseguiria compreender facilmente verdades mais elevadas). Com o passar do tempo, suportando o desconforto inicial, habituamo-nos à luz e podemos, finalmente, contemplar o próprio sol. Este, na alegoria, é o símbolo da Ideia de Bem, que ilumina tudo o mais e está na raiz da verdade. O quadro traçado por Platão mostra-nos o percurso para o alto que devemos fazer para nos libertar da caverna-ignorância e isso se faz com a educação, mais especificamente, segundo nosso filósofo, com uma educação filosófica. A filosofia é vista, portanto, como o meio de escaparmos da ignorância (=caverna) e de chegarmos a contemplar o Bem (=sol): “Se tudo o que afirmamos estiver certo, prossegui, precisaremos chegar à seguinte conclusão: a educação não é o que muitos indevidamente proclamam, quando se dizem capazes de enfiar na alma o conhecimento que nela não existe, como poderiam dotar de vista a olhos privados de visão. É realmente o que afirmam, respondeu. No entanto, continuei, nosso argumento vem provar que essa faculdade é inata à alma, como também o órgão do conhecimento; e assim como o olho não pode virar-se da escuridão para a luz sem que todo o corpo o acompanhe, do mesmo modo esse órgão, juntamente com toda a alma, terá de virar-se das coisas perecíveis, até que se torne capaz de suportar a vista do ser e da parte mais brilhante do ser. A isso damos o nome de bem, não é verdade? Certo. Assim, prossegui, a educação não será mais do que a arte de fazer essa conversão, de encontrar a maneira mais fácil e eficiente de consegui-la; não é a arte de conferir vista à alma, pois vista ela já possui; mas, por estar mal dirigida e olhar para o que não deve, a educação promove aquela mudança de direção. É mais do que claro, observou.” (Platão, República, 518b-d) Todo o processo de libertação da ignorância e de ascensão até a contemplação das verdades mais elevadas e do próprio Bem é longo e bastante penoso. Por vezes, é preciso que sejamos forçados a continuar a ascensão, pois preferiríamos, certamente, voltar para o conforto da escuridão na qual crescemos. 13 Platão acrescenta, ainda, um detalhe interessante. Aquele que foi libertado dos grilhões e que pôde contemplar o Bem deve retornar à caverna para instruir seus antigos companheiros de infortúnio e mostrar-lhes que há um caminho que leva a uma realidade superior, muito mais luminosa e bela. O filósofo, portanto, tem esse papel fundamental de instruir os demais e levá- los a conhecer as verdades que ignoram, de guiar os outros homens em seu caminho para fora da caverna. A alegoria construída por Platão permite-nos compreender que o Bem é aquilo que buscamos conhecer e contemplar, que o caminho para sairmos de nossa ignorância é ascendentee difícil e que temos, uma vez libertos, a obrigação de voltar para libertar aqueles que ainda estão aprisionados na miséria de sua própria ignorância. Atividade 1 Atende aos objetivos 1 e 2 1. Reconte a alegoria da caverna, partindo do texto de Platão (não utilize o resumo apresentado na aula). Em seguida, explique o seu significado. DIAGRAMADOR: DEIXAR 40 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA Compare seu texto com o de Platão. Não se preocupe com uma fidelidade absoluta. Atenha-se aos elementos centrais da alegoria. Quanto ao significado, trabalhe em torno dos grupos caverna-ignorância-opinião-mundo das sombras e região superior-educação-ciência- mundo real. Essa é a chave para explicar a alegoria. Não deixe também de fazer um paralelo entre a dificuldade do caminho ascendente que leva para fora da caverna e o trabalho árduo que a educação demanda. Mostre também que você compreendeu que a alegoria ensina que a 14 mera opinião e o conhecimento da verdade são duas coisas bem distintas e que estão em níveis muito afastados um do outro. FIM DA RESPOSTA COMENTADA 2. NATUREZA HUMANA E FILOSOFIA A alegoria da caverna diz que o prisioneiro, uma vez libertado, deve ser forçado a tomar o caminho ascendente que conduz para fora do antro. Poderíamos ser levados a pensar que a filosofia, portanto, é algo antinatural, que ela não se coaduna com a a natureza humana. Platão não fala aqui da filosofia em si mesma, mas de um processo de educação, que requer, em certos momentos, que o educando seja puxado para cima, para fora da caverna. A filosofia é um saber que tem raízes na natureza humana. Aristóteles (séc. IV a. C.) abre sua Metafísica com uma afirmação que se tornou uma das frases mais famosas da filosofia: Todos os homens desejam, por natureza, saber. O desejo de saber é algo inerente, inato a todo e qualquer ser humano. E Aristóteles apresenta como prova de sua afirmação o prazer que sentimos pelo conhecimento sensível, pelas sensações, mormente as visuais: Um sinal [desse desejo universal e natural] é o amor pelas sensações, pois, independentemente de sua utilidade, elas são amadas por si mesmas e mais do que as outras a sensação da visão. Aristóteles utiliza o conhecimento sensível, algo que é utilizado por todos os homens antes mesmo de nascerem, quando ainda no ventre materno, para mostrar que o desejo de conhecer e de saber é universal (=todos os homens o possuem) e natural. E, quando ele diz “por natureza”, quer significar que é inato ao homem, que este desejo está inscrito ou gravado na alma humana. Uma outra prova disso é a curiosidade, que todos nós demonstramos desde a mais tenra infância. Uma criança de menos de dois anos já pergunta “o que é isso?” inúmeras vezes, pois 15 quer saber o nome das coisas que a cercam. Por volta de três anos, a criança muda a pergunta, mas o desejo de saber se manifesta sempre mais intensamente: é a fase dos porquês. A curiosidade infantil, com os seus insistentes o quês e porquês, mostra como Aristóteles estava certo: todos os homens desejam, por natureza, saber. As crianças manifestam uma inegável ebulição filosófica e estão sempre inquietas entre uma descoberta e outra e cada novo aprendizado abre inúmeras portas para que o desejo de saber se manifeste mais e mais. Se o desejo de saber é universal e inato e se a filosofia é o amor à sabedoria, então, a inclinação à filosofia tem de ser universal e inata. A busca filosófica nasce com o homem, faz parte de sua natureza. O homem, por toda a sua vida, é chamado a filosofar, a buscar a sabedoria. Para provar a inexorabilidade da filosofia, Aristóteles apresenta um inteligentíssimo e interessantíssimo argumento que, para nós, soa quase como um enigma. O trecho é um fragmento de uma obra perdida de Aristóteles, citado por um autor do séc. VI da era cristã: E Aristóteles em sua obra Protréptico (=Persuasivo), na qual exorta os jovens à filosofia, diz que, se não é preciso filosofar, é preciso filosofar e, se é preciso filosofar, é preciso filosofar; em todos os casos é preciso filosofar. (David Philosophus, Prolegomena, 9, 2-5) O argumento de Aristóteles é: Se não é preciso filosofar, é preciso filosofar. Se é preciso filosofar, é preciso filosofar. Logo, em todo e qualquer caso, é preciso filosofar. Aristóteles está provando que a filosofia é algo natural ao ser humano, que todo ser humano é chamado à filosofia e que filosofa, ainda que de modo informal e sem saber que o está fazendo. Não vá adiante na leitura. Pare aqui e responda à pergunta seguinte, antes de prosseguir. Atividade 2 Atende ao objetivo3 16 Como você pode explicar o argumento de Aristóteles, sobretudo no que tange à contradição “se não é preciso filosofar, é preciso filosofar”? DIAGRAMADOR: DEIXAR 8 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA Veja a sequência do texto, pois o argumento estará aí explicado. FIM DA RESPOSTA COMENTADA O argumento de Aristóteles tira sua força não só na concisão, mas também da aparente contradição expressa já na primeira frase: se não é preciso filosofar, é preciso filosofar. Qual o sentido de tal afirmação? Quem pretende demonstrar que não é preciso filosofar terá de apresentar argumentos e fornecer uma explicação que prove que está com a razão. Ao apresentar seus argumentos e construir um raciocínio que demonstre que sua afirmação está correta, ele já estará filosofando, pois é próprio da filosofia servir-se de argumentos, raciocínios e demonstrações. Para provar que não é preciso filosofar, é preciso que ele faça filosofia, que ele filosofe. Portanto, a simples tentativa de provar que não é preciso filosofar já constitui uma prova de que é preciso filosofar. Por outro lado, se o indivíduo quiser provar que é preciso filosofar, ele terá igualmente de apresentar seus argumentos e construir um raciocínio, ou seja, o próprio esforço de provar sua assertiva já é, em si mesmo, uma demostração de que é preciso filosofar. Conclusão de Aristóteles: em todo e qualquer caso, é preciso filosofar, isto é, queira você provar qualquer uma das duas proposições, será preciso filosofar para fazê-lo. Nosso filósofo, ao nos fazer pensar sobre o argumento, já prova que está certo, que o homem é, efetivamente, um ser filosófico. 17 O argumento apresentado por Aristóteles serve-se de uma aparente contradição para dela tirar uma força expressiva. O uso da linguagem para jogar com contradições ou utilizar termos que impliquem em um resultado inesperado cria situações interessantes. Vejamos dois exemplos, tirados da cultura grega. Tomemos a frase seguinte: “Eu ordeno que vocês não me obedeçam!”. Ele é, ao menos à primeira vista, contraditória. Se eu ordeno que não me obedeçam, a ordem jamais poderá ser cumprida. Com efeito, se não me obedecerem, estão acatando a ordem de não me obedecer e estão, assim, me obedecendo, quando eu havia mandado que não o fizessem. Em outras palavras: ao me desobedecerem, obedecem-me e desobedecem-me, o que é contraditório e impossível. Se me obedecerem, não estão obedecendo à ordem que os proibia de me obedecer. Em outros termos: ao me obedecerem, desobedecem-me e obedecem-me, o que não faz sentido. Como poderíamos sair desse impasse? A solução está no contexto. Tente agora imaginar uma situação em que essa ordem seria válida e não implicaria uma contradição. Pense com calma e procure achar uma resposta. Não vá adiante na leitura, antes de tentar encontrar uma circunstância que torne a ordem inteligível.Se você chegou a uma boa resposta ou ao menos tentou com afinco, vou-lhe dar uma boa possibilidade. Ela é tirada da literatura grega, mais especificamente, da Odisseia, de Homero. No canto XII, a feiticeira Circe fala sobre os perigos que aguardavam Odisseu e seus companheiros. Ela menciona as Sereias. Em algumas representações pictográficas, as Sereias aparecem como um misto de mulher e ave, por vezes com uma parte de peixe. Nossa moderna representação desses seres míticos os vê como parte mulher e parte peixe. Na Grécia antiga, eram parte mulher e parte ave (geralmente de rapina, o que era sinal de sua periculosidade). No que seria uma ilha, elas, sentadas em um prado, atraíam, com seu belíssimo canto, os marinheiros, que, enfeitiçados, conduziam o navio para o naufrágio e eram por elas devorados. Homero fala que “à sua volta estão amontoadas ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes”. Eis as palavras de Circe sobre as Sereias: “'Todas estas coisas foram cumpridas; mas ouve agora aquilo que te direi, e um deus to recordará. Às Sereias chegarás em primeiro lugar, que todos os homens enfeitiçam, que delas se aproximam. Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias, 18 ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos estarão para se regozijarem com o seu regresso; mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto, sentadas num prado, e à sua volta estão amontoadas ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes. Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros cera doce, para que nenhum deles as oiça. Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto, deixa que, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz das duas Sereias. E se a eles ordenares que te libertem, então que te amarrem com mais cordas ainda.” (Odisseia, XII, vv. 37-54) Figura 15.2 – Vaso grego do séc. V a. C.: Odisseu amarrado ao mastro, enquanto as Sereias cantam para seduzi-lo e atraí-lo para a morte. Pode-se ver que elas tem uma cabeça de mulher e um corpo de ave de rapina. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Odysseus_Sirens_BM_E440_n2.jpg (autor: Jastrow) Odisseu narra a seus companheiros o que lhe dissera a feiticeira: “Falei então aos companheiros, com tristeza no coração: 'Amigos, não é justo que apenas um ou dois conheçam os oráculos que proferiu Circe, divina entre as deusas. Falarei, para que todos saibamos se morreremos ou se, evitando a morte e o destino, conseguiremos fugir. Primeiro foi o som das Sereias divinamente inspiradas e seu prado florido que nos aconselhou a evitar. Disse para ser só eu a ouvi-las: devereis amarrar-me 19 com ásperas cordas, para que fique onde estou, de pé junto ao mastro; e que as cordas sejam atadas ao mastro. E se eu implorar e vos ordenar que me liberteis, devereis amarrar-me com mais cordas ainda.'” (vv. 153-164) A ordem de Odisseu é algo como: “Se ordenar que me libertem, amarrem-me com mais cordas ainda!”. No entanto, poderíamos imaginá-lo, nesse contexto, exprimindo a mesma coisa com outras palavras: “Se eu ordenar que vocês me libertem, eu ordeno que vocês não me obedeçam!”. Assim, nossa frase, aparentemente contraditória, faria todo sentido. Ele estaria ordenando agora que os marinheiros, no futuro, quando ele estivesse seduzido pelo canto das Sereias, não obedecessem às ordens que ele então daria, pois estaria fora de seu juízo normal. Seguindo os conselhos de Circe, Odisseu pôde desfrutar do canto das Sereias sem perder a vida: “Com o bronze afiado cortei pedaços de um grande círculo de cera e amassei-os com as minhas mãos fortes. Logo se aqueceu a cera por causa da grande pressão e dos raios do soberano filho de Hiperíon, o Sol. Besuntei depois com a cera os ouvidos dos companheiros. Eles ataram-me na nau as mãos e os pés, estando eu de pé contra o mastro; e ao próprio mastro ataram as cordas. Sentaram-se e percutiram com os remos o mar cinzento. Quando estávamos à distância de alguém, gritando, se poder fazer ouvir, a rápida nau navegando depressa não passou despercebida às Sereias, que entoaram o seu límpido canto: 'Vem até nós, famoso Ulisses, glória maior dos Aqueus! Para a nau, para que nos possas ouvir! Pois nunca por nós passou nenhum homem na sua escura nau que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas; depois de se deleitar, prossegue caminho, já mais sabedor. Pois nós sabemos todas as coisas que na ampla Troia Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos deuses; e sabemos todas as coisas que acontecerão na terra fértil.' Assim disseram, projetando as suas belas vozes; e desejou o meu coração ouvi-las: aos companheiros ordenei que me soltassem, indicando com o sobrolho; mas eles caíram sobre os remos com mais afinco. De imediato Perimedes e Euriloco se levantaram para me atar com mais cordas, ainda mais apertadas. Depois que passamos a ilha, e já não ouvíamos a voz, nem o canto, das Sereias, os fiéis companheiros tiraram a cera com que os ouvidos lhes besuntara e a mim libertaram-me das amarras.” (vv. 173-200) 20 Ainda na Odisseia, temos uma outra passagem interessantíssima. No canto IX, Odisseu chega à terra dos Ciclopes. Ele vai, com doze de seus companheiros, a uma enorme gruta, na qual havia alimento em abundância. Era a morada de Polifemo, um dos Ciclopes. Este chega e fecha com uma enorme pedra a entrada da gruta. Ao acender um fogo, percebe a presença dos homens, que não podem escapar, já que a saída estava selada pela pedra. Devora, então, dois dos companheiros: “Assim falei. Do seu coração impiedoso não veio qualquer resposta, mas levantou-se de repente e lançou mãos aos meus companheiros. Agarrou dois deles e atirou-os contra o chão como se fossem cãezinhos. Os miolos espalharam-se pelo chão, molhando a terra. Depois cortou-os aos bocados e preparou o seu jantar Comeu-os como um leão criado na montanha: nada deixou, mas comeu as vísceras, a carne, os ossos e o tutano.” (IX, vv. 287-293) Para escapar, Odisseu serve-se de um ardil. Embebeda o Ciclope e o cega. Enquanto o embriagava, revela se nome: diz chamar-se “Ninguém”: “Assim falou; e de novo lhe ofereci o vinho frisante. Três vezes lho dei a beber; três vezes esvaziou a tigela, na sua estupidez. Depois que o vinho deu a volta ao Ciclope, assim lhe falei, socorrendo-me de palavras doces como mel: 'O Ciclope, perguntaste como é o meu nome famoso. Vou dizer-to, e tu dá-me o presente de hospitalidade que prometeste. Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros.' Assim falei; e ele respondeu logo, com coração impiedoso: 'Será então Ninguém o último que comerei entre os teus companheiros: será esse o teu presente de hospitalidade.'” (vv. 360-370) Embriagado, o Polifemo adormece. Odisseu e seus companheiros pegam, então, um tronco e colocam a ponta no fogo, até que fique em brasa. Em seguida, eles o cravam no único olho do Ciclope, que fica cego e grita terrivelmente de dor e pede ajuda aos outros Ciclopes, que acorrem e perguntam o que se passava. Polifemo responde que “Ninguém” o estava matando, o que faz com que os Ciclopes partam tranquilos: “O Ciclope dava gritos lancinantes, e toda a rocha da caverna ressoou. Recuamos, aterrorizados, enquanto ele arrancava o tronco 21 do olho, imundo e coberto de abundante sangue. Depois lançou o tronco para longe e, perdido de fúria, chamou alto pelos Ciclopes que viviam ali ao pé, em cavernas nos píncaros ventosos. Eles ouviram os gritos e ali vieram ter de todas as direções: em pé junto à gruta perguntavam-lhe que mal padecia: 'Que se passa, Polifemo, para gritares desse modo na noite imortal, tirando-nos assim o sono? Seráque algum homem mortal te leva os rebanhos, ou te mata pelo dolo e pela violência?' De dentro da gruta lhes deu resposta o forte Polifemo: 'Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência!' Então eles responderam com palavras apetrechadas de asas: 'Se na verdade ninguém te está a fazer mal e estás aí sozinho, não há maneira de fugires à doença que vem de Zeus. Reza antes ao nosso pai, ao soberano Posídon.' Assim dizendo, foram-se embora. E ri-me no coração, porque os enganara o nome e a irrepreensível artimanha.” (vv. 395-414) A argúcia de Odisseu em jogar com o sentido da palavra “ninguém”, que ele tomou como seu nome (“Ninguém) salvou-o, bem como a seus companheiros. Para escapar da gruta, ele e seus companheiros encondem-se, agarrando-se, sob carneiros e ovelhas que o Ciclope levaria para apascentar. E assim conseguem fugir da morte. 22 Figura 15.3 – Vaso grego do séc. VI-V a. C.: Odisseu, escondido sob um carneiro, escapa do Ciclope. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:KAMA_Ulysse_fuyant_Polyph %C3%A8me.jpg (autor: Marsyas) Voltemos a Aristóteles. Seu argumento parte do fato de que o homem é um animal racional e a razão é o que o diferencia de tudo o mais. O ser humano compartilha muitas semelhanças com os animais, mas é o único a possuir a razão, que constitui, assim, sua diferença específica: “Animal” é o gênero do homem e “racional” sua diferença constitutiva. (Sto. Tomás de Aquino, Compendium theologiae, I, cap. 91, co.) Com efeito, nas coisas materiais que, existindo em um único gênero, são de diferentes espécies, a noção de gênero é tomada do princípio material, a diferença de espécie do princípio formal. De fato, a natureza sensitiva, da qual é tomada a noção de “animal”, é algo material no homem com relação à natureza intelectiva, da qual é tomada a diferençá específica do homem, ou seja, “racional”. (Sto. Tomás de Aquino, Contra Gentiles, II, cap. 95, n. 1) A razão é aquilo de próprio ao homem, é o que faz com que ele seja distinto dos demais seres. Ele pode ser igualado ou mesmo superado nos demais aspectos, mas a razão faz dele algo único. E o reto cultivo da razão é que torna plena a felicidade humana, no dizer de Sêneca: O que há de mais excelente no homem? A razão. Com ela, ele ultrapassa os animais e segue os deuses. Logo, a razão perfeita é o bem próprio do homem, as demais coisas são comuns a ele e aos animais e às plantas. O homem é forte: também o leão é. É belo: também o são os pavões. Ele é veloz: os cavalos também o são. Não digo que ele é superado em todas essas coisas. Não me importa saber o que ele tem em si de maior, mas o que lhe é próprio. O homem tem um corpo: também as árvores o têm. Ele tem impulso e movimento voluntário: os animais e os vermes também. Ele tem voz: mas quanto mais sonora é a voz dos cães, quanto mais penetrante a voz das águias, quanto mais forte a dos touros, quanto mais doce e ágil a dos rouxinóis? O que há de próprio no homem? A razão. A perfeita e reta razão tornou plena a felicidade do homem. Logo, se toda coisa, quando obteve seu bem, é louvável e alcançou o fim de sua natureza, o bem do homem é a razão e, se ele a aperfeiçoou, ele é louvável e atingiu o fim de sua natureza. […] Idêntica é a condição dos homens e a das coisas. Não se diz que é bom o navio que foi pintado com cores ricas nem que tem o rostro de prata ou de ouro nem que tem o deus protetor cinzelado em mármore nem que está carregado de tesoures e riquezas dignos de um 23 rei, mas aquele que é estável e robusto e compacto, com junções que não deixam a água entrar, sólido para resistir ao choque do mar, dócil no timão, veloz e resistente ao vento… Logo, também no homem não importa quanta riqueza agrária tenha, quantas aplicações financeiras, quantas pessoas o saúdem, em quão rico leito durma, em quão cintilante cálice bebe, mas, sim, o quão bom ele é. Ele é bom se sua razão é esclarecida, reta e conforme com a inclinação de sua natureza. Esta se chama virtude, este é o único bem nobre do homem. Com efeito, como apenas a razão torna o homem perfeito, apenas ela o faz perfeitamente feliz e este é o único bem que, sozinho, o torna feliz. (Sêneca, Epistulae Morales ad Lucilium, 76, 9-10, 13, 15) Se a razão é o que há de próprio ao homem, a filosofia, portanto, é um caminho para educá-la corretamente, como ficou claro pela alegoria da caverna, e “é também a excelência de vida”, como vimos, na Aula 14, na citação do De Dialectica de Alcuíno de York. A filosofia, no dizer de Sêneca, “torna plena a felicidade humana”, pois “todos os homens desejam, por natureza, saber”. Ora, como diz Santo Tomás de Aquino, “é impossível que um desejo natural seja inane, pois a natureza não faz nada em vão. Mas um desejo da natureza seria inane, se nunca pudesse ser satisfeito” (Contra Gentiles, III, cap. 48, n. 12). O homem, portanto, tem a capacidade e é chamado a preencher esse desejo natural de conhecimento e é na filosofia que ele encontra os melhores meios para fazê-lo. 3. O DESEJO DA VERDADE Mas se o homem tem o desejo natural de conhecimento, podemos perguntar o que o homem quer conhecer. As definições de filosofia que vimos anteriormente nos permitem responder: tudo. De fato, a filosofia foi definida como ciência de todas as coisas por suas causas últimas. E ao conhecer “todas as coisas”, o que exatamente busca o filósofo? A resposta não poderia ser mais simples: a verdade. E essa constatação é imbuída de um sentido bastante profundo, pois, como se disse, citando as palavras do Cristo no Evangelho segundo São João (8, 32), “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Não foi exatamente um processo de libertação que experimentou o prisioneiro da caverna de Platão, ao descobrir que vivia uma vida mergulhada na ilusão das sombras e que havia uma outra realidade, plena de verdade e de luz? E não sentia ele pena de seus antigos companheiros de infortúnio, por estarem imersos ainda na escuridão, no erro, no engano? É óbvio que a alegoria da caverna nos leva a pensar que a escuridão é o símbolo da ignorância, que as cadeias representam o erro, e que a luz é a 24 imagem do bem e da verdade. O prisioneiro está agrilhoado pelo erro e sepultado na ignorância (caverna) e é a filosofia que o liberta das correntes e o força a percorrer um caminho ascendente e difícil, para poder, finalmente, chegar à verdade e ao bem. O desejo de saber é inato ao homem, diz Aristóteles. E Santo Tomás de Aquino (séc. XIII d. C.) completa: de conhecer a verdade. Mas, para conhecer corretamente a verdade, é preciso aplainar o caminho e, portanto, refutar o erro, combatê-lo. Todos os homens têm um desejo natural de fugir do erro: Assim como todos os homens desejam naturalmente saber a verdade, assim há nos homens um desejo natural de evitar os erros e de, havendo a possibilidade, refutá-los. (Santo Tomás de Aquino, De Unitate Intellectus, Pro.) A mesma percepção teve Santo Agostinho (séc. IV e V d. C.), bispo de Hipona, ao identificar a vida feliz com a posse e a fruição da verdade. Com a sutileza psicológica que lhe é característica e debruçado sobre a concretude da vida, Agostinho mostra-nos que os homens fogem do erro, pois não querem ser enganados, e amam a verdade, pois é na fruição desta que consiste a vida feliz: Com efeito, eu pergunto a todos os homens se preferem mais gozar da verdade a gozar da mentira. Eles não hesitam em dizer que preferem gozar da verdade, assim como não hesitam em dizer que querem ser felizes. De fato, a vida feliz consiste no gozo da verdade…Esta vida feliz todos querem, esta vida, que, ela só, é feliz, todos querem, o gozo da verdade todos querem. Conheci muitosque quisessem enganar, porém, que quisesse ser enganado eu não conheci ninguém. Onde, portanto, conheceram esta vida feliz, se não onde conheceram também a verdade? Com efeito, eles também amam a verdade, porque não querem ser enganados, e, como amam a vida feliz, o que não é outra coisa que o gozo da verdade, amam certamente também a verdade e não a amariam, se não houvesse, em sua memória, uma certa noção dela. Por que, então, não gozam da verdade? Por que não são felizes? Talvez porque estão ocupados em outras coisas que os fazem mais infelizes do que os faz felizes aquilo de que têm apenas uma tênue lembrança. Com efeito, há ainda um pouco de luz entre os homens; que eles andem, que andem, para que as trevas não os surpreendam. (Confessiones, X, 23, 33) A frase final do texto, inspirada no Evangelho de São João (12, 35), pode ser relacionada à alegoria da caverna. O prisioneiro, em seu caminho de ascensão, sai, paulatinamente, das trevas 25 e, chegando ao fogo intermediário, tem ainda um caminho a percorrer até a saída. É preciso que ele avance, apesar do desconforto causado pela luz, e que escape das trevas. A verdade é algo tão fundamental para o ser humano que ela deve se sobrepôr, inclusive, à amizade. Por mais que você ame alguém, que o tenha por amigo, não deve preferir sua opinião à verdade. A ideia foi condensada em uma sentença latina que atravessou os séculos: “Amicus Plato, sed magis amica ueritas” – Platão é meu amigo, mas a verdade é mais minha amiga. A frase parece ter origem em uma passagem da Ética a Nicômaco (1096a 14-17) de Aristóteles, na qual o filósofo, ao comentar a teoria das Ideias de Platão, diz o seguinte: Poderia parecer talvez ser melhor e ser preciso, pela salvação da verdade, refutar inclusive os nossos próprios interesses, especialmente quando somos filósofos. Com efeito, quando ambos são nossos amigos, é uma obrigação sagrada preferir a verdade. Ao comentar a passagem de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino a explica da maneira seguinte (In Ethic., I, l. 6, n. 4-5): Que seja preciso preferir a verdade aos amigos, ele mostra com este argumento. Porque se deve honrar mais aquele que é mais amigo. Visto que temos amizade para com ambos, ou seja, para com a verdade e para com o homem, devemos amar mais a verdade do que o homem, porque devemos amar o homem precipuamente por causa da verdade e da virtude, como se dirá no livro VIII da Ética. Mas a verdade é o amigo mais eminente ao qual se deve a reverência da honra. A verdade é também algo divino, pois é primeiramente e principalmente em Deus que é encontrada. E, por isso, conclui que é sagrado honrar a verdade mais do que os amigos. Diz, pois, Andrônico, o peripatético, que a piedade faz os homens fiéis e observadores do que é justo para com Deus. Esta também foi a opinião de Platão, que, reprovando uma opinião de seu mestre Sócrates, disse que é preciso preocupar- se mais com a verdade do que com qualquer outra coisa. E disse alhures: Sócrates é, de fato, meu amigo, mas a verdade é mais minha amiga. E em outro lugar: deve-se, na verdade, preocupar pouco de Sócrates e muito da verdade. Vemos que se faz menção a alguns ditos de Platão que seriam a fonte do ditado, sobretudo a segunda citação: Sócrates é, de fato, meu amigo, mas a verdade é mais minha amiga. E Platão, de fato, coloca nos lábios de seu Sócrates palavras que exprimem exatamente essa ideia. Assim, no Fédon, podemos ler a seguinte fala de Sócrates (91 b-c): 26 Então, assim preparado, ó Símias e Cebes, lanço-me no argumento. Mas vocês, se se deixarem convencer por mim, preocupando-se pouco de Sócrates e muito mais da verdade, se lhes parecer que digo algo verdadeiro, concordem comigo, mas, se não, oponham-se a mim com todo e qualquer argumento, cuidando para que eu, pela minha ânsia, enganando, ao mesmo tempo, a mim e a vocês, não parta, como uma abelha, deixando-lhes o ferrão. Vemos, assim, que a preocupação com a verdade é algo natural ao ser humano e tão importante para ele, a ponto de fazê-lo honrar mais a verdade do que os amigos e seus próprios interesses. Ninguém, como disse Santo Agostinho, quer ser enganado. Mesmo aqueles que enganam os outros, que vivem de enganar, não querem ser enganados. Esse amor que temos pela verdade é a expressão da necessidade natural que temos de conhecê-la e que se exprime em nossa linguagem cotidiana. Quando queremos saber algo, por mais banal que seja, pedimos ao nosso interlocutor que nos diga a verdade: “Maria, quero que você me responda algo, mas, por favor, me diga a verdade: fiquei bonito com esse penteado?”. A expressão “me diga a verdade”, que usamos constantemente, sem nos darmos conta, é a prova de que o desejo de conhecer a verdade está tão intimamente gravado em nossa alma, que o exprimimos naturalmente, sem nele pensarmos. Mas, por que queremos conhecer a verdade? Porque ela é o objeto próprio de nossa inteligência, que foi criada para conhecer a verdade: Com efeito, o bem do intelecto e seu fim natural é o conhecimento da verdade. (Sto. Tomás de Aquino, Suma contra os Gentios, III, c. 107, n.8) O objeto próprio do intelecto é a verdade (idem, ibidem, n.9) Vemos, assim, que o homem, para realizar a vocação natural de sua inteligência, deve buscar a verdade, ainda que o caminho possa ser árduo. 3. A ORIGEM DA FILOSOFIA: A ADMIRAÇÃO Se todos os homens desejam, por natureza, saber, a filosofia é algo natural ao espírito humano. Sua semente habita, por assim dizer, nossa alma. E o que faz essa semente germinar? Segundo Aristóteles, a admiração (θαῦμα – thaûma). É ela que faz com que o homem comece a filosofar (repare nas ocorrências do radical θαυμ- / thaum-, ligado a “admiração”): 27 De fato, os homens começaram a filosofar , agora como na origem, por causa da admiração (τὸ θαυμάζειν – tò thaumázein), na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos (θαυμάσαντες – thaumásantes) diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração (θαυμάζων – thaumázon) reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis (θ αυμασίων – thaumasíon). De modo que, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já se possuía praticamente tudo o de que se necessitava para a vida e também para o conforto e para o bem-estar, então se começou a buscar essa forma de conhecimento. (Metafísica, I, 982b 12-24) A admiração diante das dificuldades mais simples leva o homem a pensar. Surgem, então, ou explicações míticas, que procuram racionalizar, em um nível elementar, os fenômenos que nos causam espanto, ou explicações filosóficas, cujo intento é buscar as causas mais universais e últimas da realidade. A filosofia, em suas origens, começa a abordar problemas simples, ligados a fenômenos da natureza, e, gradativamente, avança em direção a fenômenos mais complexos, até chegar a questões que dizem respeito à condição humana, ao sentido da vida, às regras do bem viver e do interagir em sociedade, tratando também de questões bastante complexas, como a existência de Deus e os atributos divinos. Ao comentar a passagem de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino dizo seguinte: É certo que a dúvida e a admiração provêm da ignorância. Com efeito, quando nós vemos alguns efeitos manifestos cuja causa nos é desconhecida, nós nos admiramos (=interrogamos cheios de admiração) sobre qual é a sua causa. E pelo fato de que a admiração foi a causa que levou à filosofia, está claro que o filósofo é, de algum modo, filômito, isto é amante do mito, o que é próprio dos poetas. Donde, os primeiros que, servindo-se de uma certa abordagem mitológica, trataram dos princípios das coisas foram chamados de poetas teologizantes, como foi Perseu e alguns outros, que foram os Sete Sábios. Mas a causa pela qual o filósofo é comparado ao poeta é porque ambos ocupam-se das coisas admiráveis. Com efeito, os mitos, de que se ocupam os poetas, são constituídos de algumas coisas admiráveis. Também, os próprios filósofos foram levados a filosofar por causa da admiração. E porque a admiração provém da ignorância, está claro que eles foram levados a filosofar para espantar a ignorância. E assim está claro, além disso, que eles perseguiram a ciência, isto é buscaram com dedicação, apenas para conhecer e não por causa de algum uso, isto é, de alguma utilidade. (In Metaph., I, l. 3, n. 4) 28 A admiração e a dúvida originam-se da ignorância. Quando o homem se depara com algo cuja causa desconhece, fica admirado, espantado e cheio de dúvidas a respeito desse algo. Suas dúvidas existem porque ele ignora a explicação do que está presenciando. A ignorância, portanto, é o que o faz admirar-se e encontrar-se em dúvida. O homem, vê-se, então, forçado a filosofar para pôr fim a sua própria ignorância. O saber que ele busca não é desejado por nenhum outro motivo que não fazer cessar a ignorância. É, assim, um saber que é buscado por si mesmo, e não em virtude de outra coisa, como a glória ou a riqueza. E aqui retornamos à imagem traçada por Pitágoras, que comparava a vida humana a um festival e os filósofos aos espectadores, que estão no teatro apenas para observar e aprender. O homem, ao conhecer as causas que explicam aquilo que o põe em um estado de admiração ou perplexidade, encontra, então, uma certa paz de espírito. Isso podemos constatar em nossa própria vida: quando temos um problema, quando precisamos de uma resposta ou uma solução, estamos inquietos até que a encontremos. Ao encontrarmos solução para uma questão, avançamos mais, até que possamos, efetivamente, chegar ao conhecimento daquela causa que tudo explica, a causa primeira. E é exatamente o que Santo Tomás de Aquino diz em uma passagem de sua Suma contra os Gentios (III, c. 25, n. 11): Há naturalmente em todos os homens um desejo de conhecer as causas daquelas coisas que se veem. Donde, por causa da admiração daquelas coisas que eram vistas, cujas causas eram desconhecidas, os homens começaram primeiramente a filosofar e, encontrando a causa, eles descansavam (=se tranquilizavam). Mas essa investigação não cessa até que se chegue à causa primeira. E, então, julgamos que sabemos com perfeição quando conhecemos a causa primeira. Portanto, o homem deseja naturalmente conhecer a causa primeira como seu fim último. Mas a causa primeira de tudo é Deus. Logo, o fim último do homem é conhecer a Deus. Em uma outra passagem, tirada do Comentário ao Evangelho de São Mateus (c. 5, l. 2), ele reafirma o mesmo, mais sucintamente: Há um desejo natural de que o homem, ao ver um efeito, investigue a sua causa. Donde, também a admiração dos filósofos foi a origem da filosofia, porque eles, ao verem os efeitos, se admiravam e buscavam a causa. Logo, esse desejo não se aplacará até que ele chegue à Causa Primeira, que é Deus, ou seja, à própria essência divina. 29 Figura 15.1 – A ignorância é causa da admiração, a qual, por sua vez, é causa da filosofia (autor: André Alonso) 4. O ÓCIO: CONDIÇÃO PARA A FILOSOFIA Na Aula 14, ao mencionarmos os diversos fatores que contribuíram para o aparecimento da filosofia na Grécia, citamos o ócio ou lazer. Chegou o momento de nos aprofundarmos sobre o tópico. Em uma passagem da Metafísica (I, 982b 19-24), Aristóteles mostra que o homem só se dedicou à filosofia de modo mais direto e regular após ter conseguido reunir aquilo que era necessário não apenas para sobreviver, mas o que era essencial também para o seu conforto e bem-estar: De modo que, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já se possuía praticamente tudo o de que se necessitava para a vida e também para o conforto e para o bem-estar, então se começou a buscar essa forma de conhecimento. Comentando o trecho, diz Santo Tomás de Aquino (In Metaph., I, l. 3, n. 6): 30 Em seguida, quando ele (=Aristóteles) diz “Mas demonstra”, ele prova a mesma coisa por meio de um indício. Ele diz que aquilo que foi dito ― ou seja que a sabedoria ou filosofia não é buscada por causa de nenhuma utilidade, mas por causa da ciência mesma ― o prova um ocorrido, isto é, um acontecimento que ocorre com aqueles que buscam a filosofia. Com efeito, quando eles obtiveram quase tudo o que é necessário à vida e que é necessário ao ócio, isto é ao lazer, que consiste em uma certa tranquilidade de vida, e também o que é necessário à instrução, como é o caso das ciências da Lógica, que não são buscadas por si mesmas, mas como ciências introdutórias a outras artes, então (=depois de terem obtido tais coisas) é que se começou em primeiro lugar a buscar a prudência, isto é, a sabedoria. A partir disso está claro que ela não é buscada por causa de alguma outra necessidade diferente dela mesma, mas por causa dela mesma. Com efeito, ninguém busca o que já se possui. Donde, porque ela foi buscada depois que se obtiveram todas as demais coisas, está claro que ela não foi buscada por causa de alguma outra coisa, mas por causa de si mesma. Para dedicar-se à filosofia, a humanidade teve de atingir um certo grau de conforto material, que, por sua vez, colaborava para a tranquilidade de espírito necessária para a investigação filosófica. Enquanto o homem precisava conseguir diariamente sua sobrevivência, buscando comida, caçando ou plantando, e obter proteção para seu corpo, fosse contra as condições climáticas – frio, calor – e as intempéries, fosse contra seus predadores, não lhe sobravam energias físicas nem mentais para investir na filosofia. Todas as suas forças eram direcionadas à árdua tarefa de sobreviver. Quando o ser humano conseguiu reunir os elementos básicos que lhe permitiam sobreviver, voltou seus esforços para alcançar um estado de vida melhor, no qual estivessem presentes não apenas as condições mínimas de sobrevivência, mas um nível satisfatório de conforto e bem-estar. Ao obter o que lhe garantiria a sobrevivência e o conforto, o homem viu-se um tanto livre e despreocupado. Por não mais precisar dedicar-se à aquisição de do que era uma vida satisfatória, o homem tinha tempo livre e o espírito despreocupado. Esse estado de lazer era chamado pelos gregos de σχολή (scholé) e pelo romanos de “otium”. O termo grego σχολή (scholé) deu o nosso “escola”. A razão é simples. O conceito geral de σχολή (scholé) era tempo livre, mas vai se especificando até significar um estado de liberdade material e espiritual que permitia à pessoa dedicar-se ao cultivo do espírito, à instrução. Apenas quem gozava da σχολή (scholé) podia enriquecer-se espiritual e intelectualmente. A “escola”, inicialmente, é essa circunstância material-temporal. Mas hoje, também, só vai à escola quem tem tempo livre econdições materiais mínimas que o permitam. Se o indivíduo tiver de trabalhar de sol a sol para ganhar seu sustento, não terá o tempo livre necessário – a σχολή 31 (scholé) – para instruir-se e, mesmo que tenha um tempo mínimo, não poderá fazê-lo adequadamente. O conceito grego foi absorvido pela noção de “otium” dos romanos. O “otium” era todo e qualquer tempo livre, mas mas vai se especificando, como a σχολή (scholé), para significar o tempo livre e a despreocupação que permitiam ao indivíduo dedicar-se a questões suas pessoais, bem como ao cultivo do espírito. O “otium” exprime, então, a condição do indivíduo que, afastado dos negócios públicos, pode dedicar-se a questões de foro privado. A ausência desse tempo livre era expressa pela negação “nec” e, assim, temos o não-tempo-livre, o “nec- otium”, que dá o termo “negócio”. Negócio é, portanto, a negação ou ausência de ócio. Quando você tem negócios a tratar, não está ocioso e não pode dedicar-se à filosofia. O ócio, como vemos, não é um conceito negativo para os gregos e os romanos, como é para o mundo moderno. A noção de ócio, para nós, é, geralmente, negativa. O termo “ocioso” é tomado como sinônimo de vagabundo, malandro ou mandrião. Nós, porque queremos ser produtivos, estamos sempre envolvidos em negócios e não temos, assim, tempo livre para dedicar à educação de nosso espírito. Talvez aqui esteja a raiz da futilidade de nossa sociedade moderna: nela não há espaço para o ócio e, portanto, para o crescimento interior. O único crescimento que nos ocupa é o exterior, o material, o financeiro. E, quando temos uma boa situação de vida, livramo-nos ao ócio no sentido moderno: não trabalhar, ficar ocioso, não formar nossa inteligência, dedicar-nos a coisas fúteis, perder o tempo precioso em ninharias. Precisamos, urgentemente, redescobrir o valor incalculável do ócio produtivo, do tempo para nos dedicarmos a nossa própria formação e enriquecimento interior. Para termos uma ideia de como os antigos podiam valorizar o “otium”, vejamos um trecho de Santo Agostinho (séc. IV e V d. C.; Contra os Acadêmicos, II, 2, 4). O autor exprime como as ocupações prementes da vida quotidiana, a necessidade do trabalho para sobreviver e sustentar seus familiares, representavam um pesado fardo, que o impediam de dedicar-se à filosofia. Para ele, a única vida que lhe parecia feliz seria aquela que lhe proporcionaria o “otium philosophandi”, o tempo livre, isento de preocupações terrenas, para abraçar a filosofia: 32 Finalmente, tudo aquilo que agora eu gozo de meu ócio: o fato de que eu escapei dos grilhões dos desejos supérfluos, que, deixados de lado os fardos das preocupações mortais, eu respiro, recobro meus sentidos, volto a mim, que eu procuro com grande aplicação a verdade, que já estou começando a encontrá-la, que estou confiante de que chegarei a seu grau mais elevado – foste tu que mo inspiraste, estimulaste e obtiveste. Mas de quem foste servidor eu admiti ainda pela fé mais do que compreendi pela razão. Pois, quando eu te expus, face a face, os movimentos interiores de meu espírito, e veemente e frequentemente afirmei que nenhuma sorte me parecia próspera, exceto aquela que permitisse a dedicação à filosofia (=otium philosophandi), que nenhuma vida me parecia feliz, exceto aquela pela qual se poderia viver na filosofia, mas que eu era refreado pelo imenso peso dos meus familiares, cuja vida dependia de minha profissão, pelas muitas necessidades, seja da minha vergonha, seja da despropositada miséria de meus familiares, tu foste tomado de uma tão grande alegria, inflamado por um tão santo entusiasmo por esta vida, que disseste que haverias de romper, disponibilizando-me até teu patrimônio, com todos os meus grilhões, se, de algum modo, tu te livrasses dos grilhões daquelas lides inoportunas. E Cícero (séc. I a. C.) vê no ócio letrado (“otium litteratum”) aquilo que há de mais doce na vida, sobretudo quando consagrado à investigação de temas filosóficos: Com efeito, o que há de mais doce do que o ócio letrado, isto é, do que aqueles estudos pelos quais conhecemos a imensidão da realidade e da natureza e, neste mesmo mundo, o céu, a terra e os mares? (Tusculanae Disputationes, V, XXXVI, 105) O “otium” é visto como um momento especial, no qual, afastados do tumulto da vida quotidiana e dos muitos afazeres que nos consomem a existência, encontramos a tranquilidade que nos serve de bálsamo para o espírito. É o que deixa transparecer uma carta de Plínio, o Jovem (séc. I e II d. C.), ao descrever a agitação da vida de Roma em oposição à paz de sua estância: Plínio saúda seu querido Minício Fundano, É impressionante como, em Roma, esteja ou pareça estar certo o cômputo de nossas atividades de cada dia, mas que não haja essa exatidão, se considerarmos conjunto de vários dias. Com efeito, se perguntares a alguém 'O que fizeste hoje?', ele responderá: 'Estive presente a uma cerimônia de recepção de toga viril, assisti a um noivado ou a um casamento, um me pediu para vir para a assinatura de um testamento, outro para representá-lo no tribunal, um terceiro, para ir a uma reunião'. No dia em que fizeste estas coisas, elas te parecem indispensáveis, mas, se pensares que as fazes todo santo dia, essas mesma coisas te parecem sem importância, especialmente quando estás longe de Roma. Com efeito, vem, então, a lembrança: 'Quantos dias eu desperdicei com coisas tão banais!' É o que me aconteceu, quando, em minha estância de Lourenço, estou lendo algo ou escrevendo, ou dedicando-me também a exercícios do corpo, por cujo fortalecimento meu espírito se recobra 33 as energias. Não ouço nada de que me arrependa de ter ouvido, não digo nada que me arrependa de ter dito. Ninguém vem me falar horrores de outrem, eu mesmo não censuro ninguém, exceto a mim mesmo, quando escrevo de modo pouco adequado. Não me atormento com nenhuma esperança, com nenhum temor, não me inquieto com quaisquer boatos. Converso apenas comigo mesmo e com os meus livros. Ó vida nobre e pura! Ó doce e honrado ócio, mais belo, por assim dizer, do que todo negócio (=ocupação)! Ó mar, ó praia, verdadeiro refúgio das Musas, quantas descobertas, quantas lições! Tu também, do mesmo modo, abandona esse barulho, essa vã agitação e essas tarefas mais que banais, e entrega-te a teus estudos ou ao ócio. Com efeito, como nosso querido Atílio disse muito erudita e divertidamente, vale mais estar ocioso do que não fazer nada. Adeus. Repare no trecho final, no qual Plínio reproduz uma divertida frase de um seu amigo, Atílio, que contrapõe muito claramente o “otium” ao “não fazer nada”. São duas realidades bem diferentes. O “não fazer nada” é o nosso ócio moderno, o ócio, no sentido mais lamentável do termo. O ócio ou o estar ocioso, para o bom romano, é algo muito positivo, fonte de bens espirituais e intelectuais. Plínio critica abertamente o corre-corre quotidiano, as diversas tarefas profissionais e obrigações sociais que nos devoram o tempo. A conclusão não poderia ser mais severa: Quantos dias eu desperdicei com coisas tão banais! Portanto, estar muito ocupado, não significa estar bem ocupado. Em outras palavras: estar mergulhado em diversos negócios pode afastar o homem daquilo que há de mais fundamental: ocupar-se de seu espírito. O “otium”, a σχολή (scholé), é a ocasião que temos de reverter esse quadro lamentável de nossa vida e nos dedicarmos ao cultivo de nossa vida interior, à verdadeira cultura, à cura que nos traz a filosofia. E assim, poderemos também exclamar com Plínio: Ó doce e honradoócio, mais belo, por assim dizer, do que todo negócio! A oposição entre o ócio letrado de que falou Cícero e o ócio como entendemos modernamente está magnificamente sintetizada em uma frase de uma das cartas de Sêneca. O filósofo mostra que a filosofia é como uma muralha que nos cerca e nos protege tão fortemente que contra ela nada pode a fortuna (ou seja, o destino) com todo o seu maquinário. Mas a filosofia só pode ser alcançada através de um grande esforço e, para isso, é preciso que o nosso ócio seja dedicado a nossa formação, seja um ócio letrado, pois viver no ócio sem dedicar-se ao aprimoramento de nosso espírito é como estar enterrado vivo: O ócio sem as letras (=sem o estudo, sem a filosofia) é a sepultura de um homem vivo – otium sine litteris mors est et hominis uiui sepultura (Epistulae Morales ad Lucilium, 82, 3). 34 A expressão de Sêneca é cheia de uma força expressiva, sem dúvida, mas seu vigor maior repousa na veracidade. O filósofo nos desvela um grande ensinamento. Uma parte importante da vida da maioria dos homens se passa imersa nas agruras do trabalho, no esforço da sobrevivência. Os momentos de ócio não podem ser desperdiçados em insignificâncias, em futilidades. O ócio de que desfrutamos deve ser letrado, estudioso, dedicado à formação de nosso espírito, de nossa inteligência. O homem que dispõe de tempo livre e não o emprega judiciosamente na busca da sabedoria é como um morto-vivo, alguém que, embora vivo, está sepultado, ou seja, alguém que, vivo, não vive uma vida verdadeira e digna. E a frase de Sêneca nos remete, sem sombra de dúvida, à alegoria da caverna de Platão. O ócio letrado é comparável à ascensão para fora da caverna. Os negócios diversos e a vacuidade do ócio sem estudos são assimiláveis aos grilhões que nos aprisionam na caverna e no mundo das sombras. Os antigos ensinam-nos, uma vez mais, algo maravilhoso. Que é preciso nos libertarmos constantemente das amarras das diversas preocupações quotidianas para podermos nos dedicar à formação de nossa vida interior, ou seja, intelectual e moral. Você talvez não tenha se dado conta de que, como está cursando Letras, você está dispondo (ainda que de modo limitado, dependendo de suas circunstâncias) de ócio. E você não deve deixar que esse ócio – precioso para os gregos e os romanos – se torne um mero “nada fazer”, um simples desperdício de tempo. As diferentes disciplinas que você tem em seu curso são degraus no caminho ascendente de sua educação. Certamente, você terá momentos duros, penosos, em que vai preferir descer novamente para o fundo da caverna, que, como vimos, representa a ignorância. Tenha em mente que o caminho é íngreme, mas que, ao sair da caverna e contemplar a verdade e a realidade que você até então desconhecia, terá valido a pena o esforço. Sua obrigação será, então, libertar os outros do infortúnio que ainda os assombra e aprisiona. Atividade final Atende aos objetivos 1, 3 e 4 35 Componha um pequeno texto no qual você explique como ignorância, admiração, ócio e verdade estão relacionados com a origem da filosofia. DIAGRAMADOR: DEIXAR 25 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA Retome aqui os trechos que citamos de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino sobre o desejo natural de saber, a admiração e o ócio. Aproveitando-se da citação de Santo Agostinho, mostre que o homem deseja conhecer a verdade e evitar o erro. Tente acrescentar algum exemplo seu nesse sentido, usando, inclusive, alguma experiência que você possa ter tido que ilustre esse fato. Explique como o conhecimento da verdade põe fim à ignorância e, por conseguinte, à admiração que desta advém. Esses elementos são essenciais para o nascimento da filosofia, mas não são suficientes. Você deve acrescentar que, enquanto o homem estava mergulhado em múltiplas preocupações, procurando os meios para sobreviver, não tinha tempo livre para filosofar (explique a noção de ócio para os antigos e como ela é diferente da nossa ideia de ócio, que equivale a um simples “nada fazer” e que é, portanto, negativa). Somente quando uma parcela da sociedade conseguiu não apenas o necessário para sua sobrevivência, mas ainda conforto e bem-estar, é que teve o ócio para dedicar-se à busca da sabedoria, isto é, à filosofia. É importante que você procure formular sua resposta com um bom encadeamento de ideias e com uma argumentação clara, ilustrada por exemplos que auxiliem o leitor a melhor acompanhar seu raciocínio. FIM DA RESPOSTA COMENTADA RESUMO 36 Ao tomarmos a definição de filosofia que afirma que ela é uma ciência, precisamos compreender o significado de ciência. Esta pode ser definida como um conhecimento certo adquirido por meio de uma demonstração. Implica, portanto, a noção de certeza. Nesse sentido, a ciência distingue-se da opinião, que pode ser definida como o assentimento a uma solução acompanhado do temor de que o oposto seja verdadeiro. Na ciência, há certeza de conhecimento; na opinião, não. No livro VII de sua República, Platão apresenta uma alegoria. Ele descreve uma caverna na qual pessoas estavam aprisionadas desde seu nascimento. Elas estavam agrilhoadas e eram forçadas pelas correntes a olhar sempre para o fundo da caverna, no qual eram projetadas as sobras de objetos que eram carregados em um desfile em um nível superior da caverna, atrás dos prisioneiros, e eram iluminados por um fogo. Tudo o que as pessoas conheciam eram as sombras e essa era sua realidade. O mundo das sombras era, para elas, o mundo real, a própria realidade. Um desses prisioneiros é, então, libertado e forçado a virar-se e dirigir-se para a entrada da caverna, passando por um caminho ascendente. À medida em que subia, a luz do fogo causava-lhe grande desconforto. Ele preferiria voltar para o fundo da caverna, mas era forçado a dela sair. Uma vez fora, seus olhos estariam completamente obnubilados pela luz do sol. Com o passar do tempo, ele poderia abrir seus olhos, que, aos poucos, iam se acostumando à grande claridade do sol. Ao fim de um longo processo, ele poderia contemplar os objetos desse mundo superior e conhecer realidades que, enquanto estava preso na caverna, nunca pensou que pudessem existir. Se descesse novamente à caverna e contasse o que viu, descobriu e aprendeu, seria humilhado por seus antigos companheiros de infortúnio, que acreditariam que sua ascensão ao mundo superior lhe havia arruinado os olhos. Se ele, por sua vez, soltasse os que ainda estavam acorrentados e os tentasse forçar a subir e sair da caverna, eles, assustados com o estado em que voltara seu companheiro, matariam-no, se possível fosse, para evitar a mesma desgraça. Com essa alegoria, Platão descreve o estado de nossa alma quanto à educação e à ignorância e faz-nos compreender a diferença entre a opinião e a ciência. A caverna é 37 símbolo da vida de ignorância em que vivemos aprisionados. A ascensão para fora dela é a educação, que é árdua, difícil e mesmo dolorosa. Por mais difícil que seja essa ascensão, não significa que nossa inclinação à filosofia seja antinatural. Aristóteles abre o texto de sua Metafísica com uma das frases mais famosas da história da cultura humana: Todos os homens desejam, por natureza, saber. A sede do conhecimento está enraizada em todos e em cada um dos seres humanos. Uma indicação disso é que as crianças, antes mesmo dos dois anos começam a perguntar insistentemente “o que é isso?”. Aos três, acrescentam os “porquês”. Essa curiosidade, observável nas
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