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Curso: Letras Disciplina: Bases da Cultura Ocidental Conteudista: André Alonso AULA 16 – Sócrates e os reveses da justiça ou a fé e a razão no tribunal META Apresentar os diferentes fatos e elementos relacionados ao processo de Sócrates e à sua condenação, relacionando a isto o problema das relações entre fé e razão, entre religião e ciência. OBJETIVOS Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1. relacionar a figura de Sócrates com a crítica à sofística e aos novos valores educacionais que vigoravam na Atenas do séc. V a. C.; 2. descrever o processo de Sócrates e a ele correlacionar o problema das relações entre fé e razão; 3. identificar a crítica de Aristófanes à sofística e à filosofia; 4. explicar o problema relativo à justiça e à injustiça, a partir do processo e da condenação de Sócrates. PRÉ-REQUISITO Antes de começar a estudar a aula, leia o texto da Apologia, de Platão, que está disponível na plataforma. 1 INTRODUÇÃO Nossa última aula foi a ocasião de estudarmos uma série de tópicos relacionados ao saber humano que desponta na Grécia no limiar do período clássico. Opinião e ciência, educação e ignorância foram alguns elementos que abordamos, servindo-nos da célebre Alegoria da Caverna, que Platão narra no livo VII de sua República. Pudemos, também, aprender mais sobre a natural inclinação para o saber que todo ser humano possui. Vimos que aquilo que distingue o ser humano dos demais seres vivos é a razão e isso foi ilustrado com um belo trecho de Sêneca. Como consequência de sua natureza racional e de seu desejo pelo saber, há no homem uma inclinação natural para buscar a verdade e, sempre que possível, evitar o erro. E Santo Agostinho belamente demostrou isso, ao argumentar que conheceu muitos que quisessem enganar, mas jamais pôde conhecer quem quisesse ser enganado. Vimos, por fim, dois elementos que estão na origem mesma da filosofia: a admiração diante do desconhecido, que faz brotar em nós o desejo de saber, e o ócio (no bom sentido, de ter tempo livre para dedicar-se aos estudos e conhecer a verdade). Hoje, continuaremos com a filosofia. A figura central de nossa aula é Sócrates, o filósofo ateniense, mestre de Platão. Sócrates encarna, aqui, a própria filosofia, forma de saber relativamente recente na Grécia e que vai transformar radicalmente a sociedade grega e moldar, de modo indelével, a cultura ocidental. O impacto causado pela filosofia nos hábitos, valores e instituições helênicas é tão forte que Aristófanes retrata o fato rocambolescamente em sua comédia Nuvens, na qual Sócrates figura como personagem. E Sócrates, por seu ensino, será acusado de desrespeitar os deuses da cidade e de corromper a juventude. Temos aqui um exemplo primeiro, provavelmente o mais antigo, do confronto entre razão e fé na cultura ocidental. A acusação de corrupção da juventude mostra que a filosofia socrática é vista, na época, ao menos por uma parte da cidade, como uma ameaça ao status quo, aos valores e instituições que até então vigoravam. E Sócrates será processado e condenado à morte, o que será, para nós, uma oportunidade de explorar o problema da justiça. 2 1. SÓCRATES A história de Sócrates está envolta em uma bruma de mistérios. Ele nada escreveu. Todo o seu ensino foi oral, na forma de conversas (diálogos). O que dele sabemos nos foi transmitido por contemporâneos, sobretudo Platão e Xenofonte, ou por autores posteriores. Sua mãe teria sido parteira, como no-lo diz Platão (Teeteto, 149a 1-2): E então, engraçadinho, você não ouviu dizer que eu sou filho de Fenarete, uma parteira excelente e respeitada? Sócrates nasceu por volta de 470 a. C. e morreu em 399 a. C., aos 70 anos. Viveu, portanto, sua juventude na Atenas governada por Péricles, período em que a cidade prosperava e durante o qual a arquitetura e as artes (inclusive a literatura) tiveram um momento privilegiado. O Século de Péricles é a Idade de Ouro da civilização grega, o período clássico. É nele que se constrói o Partenon, é nele que vive o grande escultor Fídias. Sócrates cresce e vive, até sua maturidade, em uma Atenas venturosa e fervilhante de cultura. Mas tudo começa a mudar com o início, em 431 a. C., da Guerra do Peloponeso, que opôs Atenas e Esparta, e trouxe os infortúnios e as vicissitudes da guerra. A população ateniense que vivia nos campos teve de abandoná-los e abrigar-se na cidade, que era protegida por muralhas. A superpopulação causa carestia e condições de higiene deploráveis, que fazem eclodir a peste. As pessoas, atingidas pela doença, morrem rápido, de modo aterrador e em grande número. O filósofo presencia a decadência de sua cidade, que vai, paulatinamente, mergulhando no caos político e social. Sem dúvida, esses elementos têm uma importância na filosofia de Sócrates. Não é fácil, já que ele nada escreveu, formar um panorama de seu pensamento. Se dermos credibilidade ao Sócrates retratado por Platão em seus diálogos de juventude, ele seria alguém voltado para o problema do ser humano, em sua dimensão moral e política. Nesse sentido, ele representa um marco na Filosofia Antiga e, por isso mesmo, os filósofos que o precederam são chamados de pré-socráticos. Estes, com efeito, dedicavam-se a questões relativas à cosmologia e Sócrates inova, trazendo para o centro da discussão filosófica o ser humano e seu comportamento. Antes, a filosofia procurava explicar as causas do mundo e da natureza; agora, ela se volta para as causas do agir humano. 3 Verbete cosmologia – O termo vem do grego, composto de κόσμος (kósmos), mundo ou universo, e λόγος (lógos), discurso racional e, por conseguinte, estudo. A cosmologia é a parte da filosofia que estuda a natureza, o mundo, o universo. É também conhecida como Filosofia da Natureza. Aristóteles dedicou-lhe uma série de tratados dentre os quais uma obra que teve grande importância na filosofia e na ciência ocidentais, a Física (ligado ao grego φύσις (phýsis), natureza). O termo grego κόσμος (kósmos) significa, originalmente, “ordem”, “organização”. Daí deriva o sentido de “universo”, pois este está organizado, em oposição ao caos. “Mundo” vem pelo viés latino, pois o adjetivo “mundus, a, um” significa limpo (lembre-se de “imundo”, isto é, não limpo, sujo). O mundo, o cosmos, implicam, portanto, ordem, organização. A cosmologia visava, então, ao estudo do mundo e das leis que o regiam. Fim do Verbete Figura 16.1 – Busto de Sócrates 4 Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Socrates_Louvre.jpg (autor: Geni) Sócrates encarna uma contradição: ao mesmo tempo em que se coloca entre seus concidadãos para com eles dialogar sobre o bem, a justiça, ele não é um professor ou mestre no sentido estrito. Os professores, propriamente falando, encarregavam-se da formação das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Essa compreendia a educação física (esportes), a educação musical (que compreendia não só a música instrumental e o canto, mas também a dança, havendo os coros, nos quais o canto e a dança se completavam), a poesia (que, como vimos, está intimamente ligada ao canto e à música) tanto épica (Homero) quanto lírica. Toda essa parte da educação se fazia ao largo da escrita (lembre-se da oralidade, discutida na Aula 02), inclusive a poesia, que era memorizada pela frequente audição e repetição. A esses elementos de formação, soma-se, finalmente, a escrita, que, no período clássico, já tinha se expandido e tornado uma realidade palpável. A criança aprende,assim, a “gramática” (do grego γράμματα, letras), isto é, a ciência das letras: ler e escrever. Sócrates, evidentemente, não se encarregava de nenhuma dessas funções. Ele não era, nesse sentido, um mestre. Box Multimídia Em 1971, Roberto Rossellini, cineasta italiano, lançou um filme intitulado “Sócrates”. A obra narra o final da vida de Sócrates. É baseado em diálogos de Platão e em sua Apologia. Veremos, no decorrer da aula, alguns trechos desse magnífico filme sobre nosso magnânimo filósofo. No primeiro vídeo, temos uma visão sobre a pessoa de Sócrates. Ridicularizado pelo seu aspecto e por suas roupas andrajosas, ele mostra um fino senso de humor, enquanto critica a pretensão de saber dos atenienses (eles só têm opiniões e não uma verdadeira ciência) e revela a sua sabedoria: “Eu sei que nada sei”. Ao comprar comida (um polvo) para sua família, Sócrates cospe uma moeda, que não é suficiente para cobrir o preço. Seu amigo Críton sinaliza discretamente ao vendedor que lhe pagará posteriormente a diferença. Chegando em casa, Sócrates é recebido pela esposa, que, entre lágrimas, o acusa de não cuidar da família, de dedicar-se apenas às suas conversas e de nem sequer receber por isso, como o 5 fazem os sofistas (ela menciona Hípias, que aparecerá em outro vídeo). Sócrates, com carinho e humor, abraça a esposa e comenta: “Quando Xântipe troveja (=briga), acaba sempre chovendo (=chora)”. Veja o vídeo em: http://youtu.be/rw7zeMJEAJg Fim do Box Multimídia A essa educação tradicional, vem somar-se um novo elemento: a sofística. Os sofistas eram “sábios profissionais”, ou ainda, “profissionais do saber”, já que a palavra grega σοφιστής (sophistés) designa um nome de agente calcado no termo σοφία (sophía), saber ou sabedoria. Se tomarmos a definição que Platão (Protágoras, 317d) coloca nos lábios de Protágoras, um sofista, eles seriam professores, mestres, profissionais da educação: “…admito que sou um sofista e que educo homens…” A educação física e as diferentes artes que tradicionalmente constituíam a formação das crianças gregas, como acabamos de ver, corresponderiam ao hodierno ensino fundamental. A educação sofística, ao contrário, estaria em um outro nível, equivalendo ao ensino superior ou universitário (MARROU, 2000, p. 87): “Saudemos esses grandes ancestrais, os primeiros professores do ensino superior, quando a Grécia não tinha conhecido senão treinadores esportivos, mestres de ateliê e, no plano escolar, humildes professores de escola.” Os sofistas estabelecem um sistema de ensino próprio, com uma remuneração por vezes considerável, e procuram atrair discípulos, dando demonstrações de suas habilidades (MARROU, 2000, p. 87-88): “Eles não abriram escolas, no sentido institucional do termo; seu método, ainda muito próximo do das origens, pode-se definir: um preceptorado coletivo. Eles reúnem em torno de si os jovens que lhes são confiados e cuja formação completa eles assumem; essa deve requerer, conjectura-se, três ou quatro anos. O serviço é prestado a um preço fixo: Protágoras 6 pedia a quantia considerável de dez mil dracmas (a dracma, um franco-ouro, aproximadamente, representava o salário diário de um trabalhador qualificado). Seu exemplo servirá, por muito tempo, de modelo, mas os preços baixarão rapidamente: no século seguinte (entre 393 e 338), Isócrates não pedirá mais do que mil dracmas e lamentará que concorrentes desleais aceitem fazer por um preço menor, por quatrocentas ou mesmo trezentas dracmas. Protágoras foi o primeiro a propor um ensino desse tipo mediante pagamento: não existia antes dele uma instituição semelhante; os sofistas, por conseguinte, não encontraram uma clientela pronta: foi-lhes necessário fazê-la nascer, persuadir o público a recorrer a seus serviços, donde toda uma série de procedimentos publicitários; o sofista ia de cidade em cidade em busca de alunos, levando consigo aqueles que ele já conseguiu. Para se tornarem conhecidos, mostrar a excelência de seu ensino, dar amostras grátis de seu know- how, os sofistas fazem de bom grado uma exibição, ἐπίδειξις, seja na cidade à qual os conduz seu itinerário, seja em um santuário pan-helênico como Olímpia, no qual eles aproveitam a πανήγυρις, o público internacional que aí se encontra reunido por ocasião dos jogos: pode ser um discurso cuidadosamente pensado ou, ao contrário, uma improvisação brilhante sobre um tema proposto, uma discussão livremente iniciada de omni re scibili [=sobre qualquer coisa que possa ser sabida], a critério do público. Assim, eles inauguram o gênero literário da conferência, destinado desde a Antiguidade a uma tão espantosa fortuna.” Sócrates não é, também, um mestre nesse sentido. Ele não faz discípulos, propriamente falando, mas sim companheiros de diálogo e se nos referimos aos “discípulos de Sócrates”, isso se faz por comodidade de expressão e deve ser entendido de um modo bem específico. A Apologia de Sócrates composta por Platão seria o discurso de defesa que o filósofo apresentou no processo que contra ele foi movido e que o condenou à morte. Ele afirma claramente que nunca teve discípulos e mostra que havia aqueles que ensinavam os homens mediante pagamento – os sofistas (Apologia, 19e-20c; 33a-b): “E, se ouvirdes de alguém que eu me dedico a educar homens e ganho dinheiro assim, sabei também que não é verdade. Parece-me excelente que haja alguém capaz de educar homens, como Górgias, de Leontinos, Pródico, de Ceos, ou Hípias, de Élide, se é que o são. Cada um destes, ó homens, indo de cidade em cidade, naquelas em que é permitido aos cidadãos associarem-se livremente com quem quiserem, persuade os jovens a deixarem as suas companhias para se juntarem a eles. E estes dão-lhes dinheiro e ficam-lhes gratos. Além disso, está aqui um homem sabedor, de Paros, que julgo que reside entre nós. Sucedeu- me que, tendo eu ido ter com o homem que gastou mais dinheiro com sofistas do que qualquer outro – Cálias, filho de Hipônico, que tem dois filhos – lhe perguntei: 'Cálias, se tivesses dois potros ou dois vitelos, poderíamos achar-lhes um tratador e pagar-lhe para que cuidasse deles e os fizesse bons e belos, de acordo com a excelência que lhes é própria: seria um tratador de cavalos ou um camponês qualquer. Mas, uma vez que são homens, que tratador pensas arranjar-lhes? Alguém que seja entendido na excelência que é a deles, como homens e cidadãos, pois creio que zelas pelo enriquecimento dos teus filhos. Há alguém ou não?' – disse eu. 'Certamente' – respondeu ele. 'Quem é?' – perguntei eu – 'de onde é e por 7 quanto ensina?' – 'Eveno, de Paros' – ”respondeu ele – 'e pede cinco minas'. E eu achei que Eveno era um homem feliz, se, na verdade, possuía a arte e, possuindo-a, a ensinasse convenientemente. Eu próprio me enfeitaria e pavonearia, se soubesse tais coisas; mas não sei, Atenienses. […] Aliás, nunca quis ser mestre de ninguém. Se alguém, jovem ou velho, me desejar ouvir a falar ou me desejar ver a fazer o que me compete, nunca o recusei. Não sou dos que conversam só quando lhes pagam e ofereço-me para interrogar tanto o rico quando o pobre, se quiser responder-me e ouvir o que tenho para lhe dizer. E, se alguns se tornarem homens bons e úteis e outros não, não podereis responsabilizar-me por isso, pois nunca prometi qualquer instrução a qualquer deles, nem o ensinei. E se alguém disser que ouviu ou aprendeu alguma coisa comigo, enquanto os outros dizem que não, sabei que não está a dizer a verdade.” Sócrates nega que seja um educador de homens que tenha discípulos e que cobre pelosseus serviços (“se ouvirdes de alguém que eu me dedico a educar homens e ganho dinheiro assim, sabei também que não é verdade”; “Não sou dos que conversam só quando lhes pagam”). E dá mostras de não crer que seja possível educar alguém, ao menos no sentido em que o faziam os sofistas. Falando de homens como Górgias e Pródico, que se pretendiam capazes de educar alguém, o filósofo acrescenta: “se é que o são”. Do mesmo modo, ao falar de Eveno, ele coloca uma condicional: “se, na verdade, possuía essa arte”. Mas Sócrates, ao negar que seja um educador no sentido da sofística, não quer dizer que não o seja absolutamente. Sua tarefa é mostrar aos homens o verdadeiro saber e a isso ele se dedicará até a morte. 2. O PROCESSO DE SÓCRATES Sócrates, como dissemos, foi processado e condenado à morte. Isso ocorreu em 399 a. C. A atuação de Sócrates na vida política da cidade talvez tenha tido influência na condenação. Sócrates menciona algumas atitudes suas que poderiam ter desagradado a alguns, pois ele reagiu a injustiças que iam ser perpetradas (Apologia, 31e-32d): 8 “Peço-vos que não vos irriteis comigo por vos dizer esta verdade. Pois não há homem que esteja a salvo, se legitimamente se opuser a vós ou a qualquer maioria, para impedir muitas injustiças ou ilegalidades na cidade. É necessário que aquele que luta pelo que é justo o faça como cidadão particular e não como homem público, se quiser ficar a salvo algum tempo. Dar-vos-ei grandes provas disto não por palavras mas por algo que mais prezais: por atos. Ouvi o que me aconteceu e vede que não cedo ao que quer que seja, quando vai contra o que é justo, pois não temo a morte e prefiro morrer a ceder. O que vos vou contar é coisa comum e habitual em tribunais, mas é verdade. Eu, Atenienses, nunca tive qualquer cargo público, mas fui uma vez membro do Conselho. Sucedeu que a minha tribo tinha a presidência, quando vós queríeis julgar em grupo os dez generais que não tinham recolhido os corpos dos náufragos, após a batalha. Ora, tal decisão era ilegal, como depois vos pareceu a todos. Nessa altura, fui o único dos membros do Conselho que se opôs a fazer uma coisa contrária às leis e, quando os oradores se preparavam para me denunciar e mandar prender e vós dáveis ordens e gritáveis, julguei que seria melhor arriscar-me a tudo, pela lei e pela justiça, do que juntar-me a vós, por temer a prisão ou a morte. Isso foi quando a democracia ainda governava a cidade. Depois veio a oligarquia e os trinta chamaram-me, com mais quatro, à Rotunda e enviaram-me a Salamina, a buscar Leão, de Salamina, para o matarem. Davam frequentemente ordens dessas a outros, porque queriam implicar tantos quantos pudessem. Logo aí e por atos e não por palavras eu pude mostrar – para não falar com rudeza excessiva – que não me importava nada com a morte, mas que jamais cometeria um ato injusto ou nocivo, pois só isso me importava. Forte como era, esse governo não me intimidou, a ponto de me levar a cometer alguma injustiça. Depois de sairmos de Rotunda, os outros foram buscar Leão a Salamina, enquanto eu fui para casa. Talvez viesse também a ser morto, se o governo não tivesse sido rapidamente derrubado. Desses fatos tenho muitas testemunhas.” O trecho mostra-nos que Sócrates, mais de uma vez, contrariou interesses e arriscou sua vida pela justiça e pelo bem. Não é, portanto, impossível que ele esteja sendo processado por representar uma ameaça a determinadas pessoas. Podemos, ainda, tirar algo de muito proveitoso dessa passagem. O filósofo nos ensina como o homem deve comportar-se tanto em sua vida privada quando publicamente. Ele deve sempre viver para a lei e a justiça, arriscando tudo por elas, inclusive a liberdade e a própria vida. Ao compararmos o que Sócrates disse há 2500 anos com nossa situação, temos, certamente, muitos motivos para envergonhar-nos. Quantos poderíamos encontrar hoje preparados e dispostos a sacrificar a liberdade e a vida pela justiça e pelo bem? Parece que, em mais de dois milênios, compreendemos muito pouco sobre o real significado da palavra “justiça”. Box Multimídia 9 No vídeo seguinte, Sócrates discute com seus companheiros sobre a política, a justiça e a virtude. Mostra que aquele que comete injustiça prejudica somente a si mesmo. Os governantes devem ser virtuosos. E ele dá o exemplo. Nega-se a cometer uma injustiça a mando dos novos governantes de Atenas, ainda que, com sua recusa, corra risco de perder a própria vida. Veja o vídeo em: http://youtu.be/xu9sfjYJjs0 Fim do Box Multimídia Por mais que Sócrates possa ter tido problemas por se comportar de modo reto e não transigir, negando-se a cometer injustiças para agradar a quem quer que fosse, a acusação que o leva à morte é bem outra e tem um interesse todo particular para nós. Ei-la: “Agora, vou tentar defender-me do bom Meleto, o amigo da cidade, como se diz, e dos meus novos acusadores. Tal como fiz para os outros, pego no texto que juraram. É assim: declara- se que Sócrates incorre em falta por corromper os jovens e por não acatar os deuses que a cidade acata, mas divindades novas.” (Apologia, 24b) “Meleto, do demo de Pitos, filho de Meleto, jurou e acusou do seguinte Sócrates, do demo de Alopécia, filho de Sofronisco: Sócrates incorre em culpa por não reconhecer os deuses que a cidade reconhece, mas por introduzir novas divindades, e incorre em culpa também por corromper os jovens; pena de morte.” (Diógenes Laércio, Vitae Philosophorum, II, 40, 3-7) Sócrates é acusado de: a) não cultuar os deuses da cidade, introduzindo novas divindades; b) corromper a juventude. A primeira acusação é manifestamente de cunho religioso. Atenas cultua os deuses tradicionais da religião grega. Sócrates teria negado sua existência e apresentado novas divindades. Ele teria corrompido a juventude, ao afastá-la da religião tradicional, induzido os jovens a adotarem novos valores e um novo modo de vida. E como Sócrates teria feito isso? Com seu ensino, que era baseado na dialética e na filosofia. Vemos, portanto, que o processo de Sócrates coloca em 10 oposição e em confronto a fé e a razão (aqui representada pela filosofia). Essa é, talvez, a primeira ocorrência, no Ocidente, dessa oposição. O processo contra Sócrates inaugura, portanto, um longo embate entre fé e razão, entre religião e ciência, que durará vários séculos até encontrar uma solução satisfatória, como veremos na Aula 23. Se a simples leitura da acusação movida contra Sócrates já seria suficiente para nos fazer ver que a questão religiosa é o cerne mesmo do processo, podemos, entretanto, apresentar uma outra informação que corrobora nossa interpretação. Em seu diálogo Êutifron, Platão trata da piedade. O diálogo abre com Sócrates e Êutifron, que se encontram diante do Pórtico do Rei. Eis a cena (2a-3b): “ÊUTIFRON Que há de novo, Sócrates, para teres abandonado as conversas no Liceu e vires conversar agora aqui, no Pórtico do Rei? Não tens tu, como eu, um processo junto do Arconte Rei? SÓCRATES Os Atenienses, Êutifron, chamam-lhe processo, mas trata-se de uma queixa. ÊUTIFRON Que dizes? Que alguém, ao que parece, apresentou uma queixa contra ti? Pois não suspeito que possas ser tu a acusar alguém. SÓCRATES Decerto que não. ÊUTIFRON Quem foi ele? SÓCRATES Nem eu próprio conheço muito bem o homem, Êutifron, parece-me ser um jovem desconhecido. Chamam-lhe, creio, Meleto e é do demo Pito. Tens em mente algum Meleto, de Pito, com cabelo comprido, não muita barba e nariz adunco? ÊUTIFRON Não recordo Sócrates. Mas que espécie de queixa apresentou contra ti? SÓCRATES Que queixa? Não é vulgar, pelo que me parece, pois,sendo jovem, ter-se decidido por tão grande tarefa, não é coisa insignificante. Diz ele que sabe de que modo os jovens são corrompidos e quem são os que os corrompem. E receio que seja um homem sabedor pois, vendo a minha ignorância corromper-lhe os companheiros, vem acusar-me perante a cidade, como perante uma mãe. E parece-me ser o único dos políticos a conduzir-se com correção, porque é correto tratar primeiro dos jovens, com a finalidade de os tornar o melhor possível, tal como um bom lavrador se ocupa primeiro das plantas mais jovens e depois das outras. Por isso, talvez Meleto nos esteja a limpar, a nós, que corrompemos os jovens rebentos, como diz. Depois disto, é evidente que, ocupando-se dos mais velhos, se há-de tornar a causa de muitos e dos maiores bens para a cidade; como é natural que aconteça em semelhante ocorrência, a quem começa pelo princípio. ÊUTIFRON 11 Desejaria, Sócrates, mas temo que seja o contrário. Pois, simplesmente, me parece que desde o início começa por fazer mal à cidade, ao tomar nas mãos acusar-te. Mas conta-me como, por agires como ages, ele diz que corrompes os jovens. SÓCRATES Parece estranho, pelo que ouvi. Diz que sou um fazedor de deuses. E, como invento novos deuses e não acredito nos antigos, acusou-me por causa disso. ÊUTIFRON Compreendo, Sócrates, é porque estás sempre a dizer que te aparece um gênio. Então, por inovares nas coisas divinas, apresentou contra ti essa queixa e vai a tribunal caluniar-te, sabendo como as calúnias nesta matéria são bem recebidas pela multidão. […]” Sócrates está junto ao Pórtico do Rei. É onde exercia seu cargo o arconte-rei, que era encarregado da vida religiosa da cidade, inclusive dos processos ligados à religião. A denúncia contra Sócrates, perpetrada por Meleto, envolvia uma ofensa aos deuses cultuados em Atenas. O crime de nosso filósofo é “impiedade”. É por isso que ele deve comparecer diante do arconte-rei. Verbete pórtico – É uma estrutura arquitetônica coberta, caracterizada por um teto sustentado por colunas, podendo estar à entrada de um edifício. Em Atenas, os pórticos, sendo locais públicos abertos, mas recobertos, permitiam que os cidadãos se reunisse ao abrigo do sol ou das intempéries para tratar de diversos assuntos de caráter público ou privado. O texto de Platão menciona o Pórtico do Rei. Tratava-se de um dos pórticos atenienses, junto ao qual exercia suas funções o arconte-rei (donde o nome do pórtico). Em grego, o termo para pórtico é στοά (stoá), que deu origem a termos como “estoico” e “estoicismo”. O estoicismo é uma escola filosófica que recebe esse nome porque seu fundador, Zenão de Quítion (séc. IV-III a. C), lecionava em um dos pórticos de Atenas, conhecido como Pórtico Pintado (ἡ ποικίλη στοά – he poikíle stoá), assim chamado pelo fato de estar recoberto com pinturas de Polignoto, famoso pintor do séc. V a. C. O estoicismo é também conhecido como “filosofia do pórtico”. 12 Pórtico de Atallos (restaurado), séc. II a. C. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Stoa_in_Athens.jpg (autor: Tomisti) Pórtico de Atallos (restaurado), visto de cima Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Stoa_of_Attalus_-_View_of_the_building.jpg (autor: Flickr upload bot) 13 Fim do Verbete Verbete arconte – O termo, no grego (ἄρχων, árkhon), significa “governante”. Na Atenas do tempo de Sócrates, os arcontes eram encarregados cada um de uma função ou ofício (ἀρχή – arché) específico na administração da vida pública da cidade. Ao arconte-rei (ἄρχων βασιλεύς – árkhon basileús) cabiam os assuntos religiosos, como presidir sacrifícios e cuidar de processos que envolvessem ofensa ao sagrado, como é o caso de Sócrates. Fim do Verbete A acusação de impiedade é confirmada em outra passagem do diálogo (Êutifron, 5c-d): “SÓCRATES E eu, companheiro querido, desejo tornar-me teu discípulo, por saber isso e por ter compreendido que nenhum outro, nem esse Meleto, parecem conhecer-te. Pelo contrário, a mim, com tal agudeza e facilidade me notaram, que me acusaram de impiedade. Ora, por Zeus, visto que há pouco afirmaste sabê-lo com clareza, diz-me o que entendes por piedade e por impiedade, tanto no que respeita ao assassínio quanto a outras coisas? Ou não é o haver em todos os atos uma mesma piedade – ela própria, em si e por si, de todo contrária à impiedade e igual a si própria e tendo um aspecto único – que fará com que uma coisa seja ímpia, pela impiedade? ÊUTIFRON Sem dúvida, Sócrates. SÓCRATES Fala, pois, e diz-me então que espécie de coisa é a piedade e a impiedade.” Box Multimídia 14 Sócrates é acusado de impiedade e de corromper a juventude. A caminho do Pórtico do Arconte Rei, encontra-se com Hípias, o famoso sofista. Começam os dois a discutir sobre o conceito de beleza. Hípias, pressionado pelos argumentos de Sócrates, bate em retirada alegando pressa. Cruzando com um conhecido, ele narra uma fábula sobre a escrita e a memória (vimos o mito no diálogo Fedro, na Aula 02). Ao chegar ao Pórtico, encontra-se com Êutifron, que está processando o próprio pai pelo homicídio de um empregado. Discutem, então, sobre o conceito de piedade. Como Hípias, Êutifron, acuado pela argumentação socrática, se escusa e foge do debate. O vídeo está disponível em: http://youtu.be/-LvCKCeOSMc Fim do Box Multimídia No decorrer do diálogo, surgem várias definições de piedade. Uma, que podemos destacar é a seguinte (Êutifron, 12d-e): “SÓCRATES Vê agora isto. Se a piedade é uma parte da justiça, é preciso que nós, pelo que parece, descubramos que parte da justiça será a piedade. Se tu me perguntares alguma das coisas de há pouco, isto é, que parte do número é o par e que número ocorre ser este, diria que este é o que não é ímpar, o que pode ser dividido em duas partes iguais, ou não te parece? ÊUTOFRON A mim, parece-me. SÓCRATES Tenta agora tu ensinar-me que parte da justiça é a piedade, para que possa responder a Meleto sem errar nem ser acusado de impiedade, pois direi que fui instruído por ti, não só quanto às coisas da piedade e da devoção, mas também relativamente às que o não são. ÊUTIFRON Portanto, parece-me isto a mim, Sócrates, que a piedade e a devoção são a parte da justiça que respeita aos cuidados com os deuses. A restante parte da justiça é acerca dos cuidados com os homens.” Sócrates foi acusado de impiedade. O termo grego εὐσέβεια (eusébeia) designa a piedade, ou seja, o temor e o respeito pela divindade (e daí vem o nome Eusébio, cujo 15 significado seria “piedoso”). A ἀσέβεια (asébeia) é o seu contrário, a impiedade, a falta de temor e de respeito pela divindade. Esse é o crime que o filósofo teria cometido. BOX DE CURIOSIDADE A piedade é definida, hodiernamente, como “virtude que permite render a Deus o culto que lhe é devido” (Dicionário Houaiss). Vemos que o sentido corresponde à noção que perpassa a acusação sofrida por Sócrates. Mas há autores que tornam a piedade algo um tanto diferente. Santo Tomás de Aquino, afirma que existe uma virtude específica para o culto divino, a virtude da religião: “Portanto, como pertence à religião dar a devida honra a alguém, isto é, a Deus, está claro que a religião é uma virtude” (S. Theol., II-II, q. 81, a. 2, co.) “Como a virtude se ordena para o bem, onde há uma noção especial de bem é necessário que haja uma virtude especial. O bem para o qual se ordena a religião é dar a Deus a devida honra. A honra é devida a alguém em razão da excelência. Mas a Deus cabe uma excelência única, na medida em que Ele transcende ao infinito todas as coisas conforme um excesso ilimitado. Donde, é-lhe devidauma honra especial, assim como vemos nas coisas humanas que honras diversas são devidas às excelências diversas das pessoas, por exemplo, uma honra diferente para o pai, outra para o rei etc. Donde, está claro que a religião é uma virtude especial”. (S. Theol., II-II, q. 81, a. 4, co.) A piedade é, segundo ele, também uma virtude especial, voltada para os pais e a pátria: “O homem torna-se devedor de outros de diferentes modo, de acordo com a excelência diversa deles e os diferentes benefícios deles recebidos. Em ambos os casos, Deus obtém 16 o primeiro lugar, Ele que é excelentíssimo e princípio primeiro de nosso ser e de nosso governo. Secundariamente, o princípio de nosso ser e de nosso governo são nossos pais e nossa pátria, pelos quais e na qual fomos gerados e educados. E por isso, depois de Deus, o ser humano é devedor principalmente de seus pais e de sua pátria. Donde, assim como pertence à religião dar culto a Deus, assim, em segundo grau, pertence à piedade dar culto aos pais e à pátria.” (S. Theol., II-II, q. 101, a. 1, co.) A religião e a piedade são, assim, partes ou virtudes anexas da justiça. FIM DO BOX DE CURIOSIDADE Cumpre aqui fazer uma distinção. No início do diálogo, como vimos há pouco, Sócrates é interpelado por Êutifron, que lhe pergunta: “Não tens tu, como eu, um processo junto do Arconte Rei?” E a isso, responde: “Os Atenienses, Êutifron, chamam-lhe processo, mas trata-se de uma queixa”. A distinção entre processo e queixa, reflete, na tradução, o original grego δίκη (díke) e γραφή (graphé). Há uma diferença técnica entre ambos: δίκη designa a uma ação referente a interesses particulares, γραφή, ao contrário, é uma ação pública, cujo objeto afeta o interesse da cidade. Para aproximar um pouco de nossa realidade, δίκη poderia ser comparada a uma ação cível, γραφή, a uma ação penal (na qual é o Estado que processa o indivíduo, ainda que sob a queixa de um particular). É preciso, ainda, corrigir a tradução de que nos servimos (José Trindade dos Santos), pois o texto grego apresenta uma partícula negativa (οὔτοι – oútoi): “Os atenienses, na verdade, Êutifron, não o chamam de processo, mas de queixa”. Sócrates, portanto, estaria sendo processado penalmente, pois cometeu um crime: a impiedade. E de onde lhe vem essa acusação? Ele responde à pergunta no início da Apologia, quando fala de dois tipos de acusadores: os antigos e os recentes. E ambos serão por ele refutados (Apologia, -18b-19d): 17 “Primeiro, homens de Atenas, é justo que me defenda de antigas acusações falsamente apresentadas contra mim por antigos acusadores; depois, das novas acusações e dos novos acusadores. Pois muitos acusadores se ergueram antes contra mim, perante vós, durante muitos anos, sem nunca terem dito nada que fosse verdade. Tenho mais medo deles que dos amigos de Ânito. Estes, embora perigosos, são-no menos do que aqueles, que desde crianças vos persuadiram e me acusaram sem qualquer verdade, dizendo 'haver um tal Sócrates, homem sabedor, que investiga os fenômenos celestes e pesquisa tudo o que se passa debaixo da terra e faz dos argumentos fracos fortes argumentos'. Estes, que me espalharam tal fama, são os meus mais perigosos acusadores, pois quem os ouve julga que aqueles que investigam estas coisas não acreditam em deuses. Além disso, esses acusadores são muitos e andam a acusar-me há muito tempo. Ainda por cima, falam-vos naquela idade em que éreis crianças ou rapazes e vos deixáveis persuadir, acusando facilmente um ausente, que ninguém defendia. O que é mais absurdo em tudo isto é que nem é possível saber e dizer-lhes os nomes, exceto o de um que é autor de comédias. E aqueles que usaram de malícia e da calúnia para vos persuadir são os mais difíceis de combater. Não é possível mandá-los vir aqui, não é possível interrogar nenhum. Só posso defender-me sem que ninguém me responda. […] Comecemos pelo princípio. Qual é a acusação a partir da qual teceram as calúnias contra mim e em que Meleto fez fé para apresentar esta queixa? Que calúnias são as dos meus caluniadores? Deverei lê-las como num texto acusatório: 'Sócrates incorre em falta, excedendo-se a investigar as coisas que estão debaixo da terra e no céu e a fazer do argumento fraco o argumento forte, ensinando os outros a fazerem como ele'. É qualquer coisa deste gênero. Vós próprios vistes isto na comédia de Aristófanes: um tal Sócrates a andar à volta em cena, afirmando que caminhava pelos ares, deixando correr palavreado sobre assuntos em que eu não sou nem muito nem pouco entendido. Não falo de tal saber com desprezo, se há alguém sabedor em tal matéria (não tenha eu que responder a uma tão grave acusação, da parte de Meleto!), mas não tenho nada com isso. Dou como testemunha muitos de vós. Agradeço que aqueles que alguma vez me ouviram falar – e muitos de vós sois desses – digam aos outros se alguma vez me ouviram falar muito ou pouco em tais coisas.” Sócrates menciona dois tipos de acusadores: os antigos e os recentes. E começa a refutar os mais antigos, pois, segundo ele, estão na raiz da acusação. Há muitos anos o caluniam, tendo incutido uma série de mentiras nos cidadãos de Atenas que no tribunal se encontram. E o fizeram aproveitando-se da inocência desses mesmos cidadãos, que, então eram apenas crianças ou adolescentes, facilmente influenciáveis pela sua ingenuidade e imaturidade. O filósofo desconhece a identidade de praticamente todos esses caluniadores, não sendo, assim, possível chamá-los ao tribunal para interrogá-los. Há, entretanto, um que é conhecido de todos, pois fez uma comédia em que figurava um Sócrates, que caminhava pelos ares, falando de assuntos diversos. A comédia de 18 Aristófanes a que alude o filósofo seria, assim, uma prova de que essas calúnias circulavam há muito. Mas de quê trata a peça? 3. A COMÉDIA NUVENS, DE ARISTÓFANES Antes de prosseguirmos, valeria a pena você rever a Aula 13, mais especificamente as partes relativas aos festivais e à comédia. Em 423 a. C., no festival das Grandes Dionísias, Aristófanes apresenta uma comédia intitulada Nuvens. Sua peça ficou em terceiro e último lugar no festival, o que foi, obviamente, uma decepção para o poeta. O que chegou até nós foi uma segunda versão dessa peça, retrabalhada pelo autor por volta de 417. Há passagens da comédia que nos mostram que se trata de uma versão revisada, ainda que não seja possível saber quais modificações teriam sido feitas. Não há nem sequer a certeza de que a versão que temos tenha sido apresentada em algum festival. O título da peça, Nuvens, é tomado do coro. Na comédia antiga, da qual Aristófanes é o único dramaturgo de que se tenham conservado comédias inteiras, o coro é um elemento importante. Ele entra em um determinado momento da peça e, dançando e cantando, interage com o público, por vezes dando voz ao poeta e às suas aspirações, procurando, assim, atrair a simpatia dos espectadores para conquistar a vitória. Em Nuvens, o coro é composto de nuvens, que são as divindades que Sócrates vai revelar a um outro personagem, Estrepsíades. Temos aqui o paralelo com a acusação que motivou o processo, ou seja, que ele introduziu novas divindades na cidade. Na comédia, elas são representadas pelas “nuvens”. Aristófanes é o único detrator antigo de Sócrates a ser mencionado. O processo ocorreu em 399 a. C.. A comédia de Aristófanes foi representada em 423 a. C.. São quase 25 anos que separam a peça do processo, tempo em que, de acordo com o filósofo, ele teria sido constantemente caluniado junto aos cidadãos atenienses. Há um outrodetalhe que 19 devemos observar: o fato de que Sócrates ser ridicularizado em uma comédia encenada diante de uma multidão de espectadores mostra bem que era ele um indivíduo bastante conhecido da cidade, de modo que qualquer um pudesse identificar o Sócrates personagem com o Sócrates real. Box Multimídia Sócrates é interpelado na rua por um ator que representa um trecho da comédia Nuvens, de Aristófanes, na qual o filósofo é ridicularizado. No final, Sócrates explica que exerce o mesmo ofício de sua mãe, que era parteira: ele dá à luz a Verdade. Eis o vídeo: http://youtu.be/DdI5-eiqo0g Fim do Box Multimídia Vejamos agora algumas passagens da peça, para que melhor possamos entender o papel que Sócrates nela desempenha e a crítica que o comediógrafo pretende tecer. A comédia abre com um velho, Estrepsíades, que, insone, senta-se em sua cama e queixa-se de seus problemas. Ele não consegue dormir, pois está afundado em dívidas e já se aproxima o dia do mês em que deve pagar juros. O culpado de seu desastre financeiro é Fidípides, seu filho, que, sendo viciado em corrida de cavalos, levou o pai à ruína. Enquanto Estrepsíades se tortura com as dívidas, seu filho dorme tranquilamente, “peidando” confortavelmente sob as cobertas e sonhando com… corridas de cavalos. Vemos também uma oposição entre a vida simples e feliz do campo, representada por Estrepsíades, e os desregramentos e despesas assombrosas, encarnados em sua esposa (Nuvens, vv. 1-53): 20 “Estrepsíades — (Sentando-se na cama) — Arre! Ufa! ó rei Zeus, como são longas as noites! Não têm fim! O dia nunca mais raiará? Há muito tempo, no entanto, que ouvi o galo cantar. Os escravos roncam! Outrora não era assim, ó guer- ra maldita, por muitas razões, pois que nem me é permitido castigar os escravos! Nem mesmo este jovem obsequioso acorda; peida, enrolado em cinco mantas. (Deita-se) Mas, tentemos, se possível, roncar sob os cobertores. Não, não posso dormir, sou um desgraçado roído pelas despesas, pela cavalariça, pelas dívidas, por causa desse filho. Ele de cabelos compridos-, cavalga, dirige a biga, sonha com os cavalos; eu me vou consumindo, vendo a lua trazer o dia vinte, pois os juros crescem (Acorda um dos escravos). Moço, acende o candeeiro, vai pegar o livro de contas, para que eu veja a quantas pessoas devo e calcule os juros. Bem, vejamos, quanto devo? Doze minas a Pásias. A troco de que doze minas a Pásias? Para que pedi emprestado? Foi quando comprei o cavalo marcado com a letra copa. Desgraçado de mim, antes tivesse levado uma pedrada no olho. Fidípides — (Sonhando) Trapaceias, Filão, mantém a raia. Estrepsíades — Eis aí, eis aí a desgraça que me aniquilou. Mesmo dormindo, ele sonha com as corridas. Fidípides — (Sonhando) Quantas voltas darão os carros de guerra ? Estrepsíades — A mim; teu pai, é que fazes dar muitas vol- tas. (Retoma o livro de contas). Mas, que empréstimo fiz de- pois do de Cálias ? Três minas a Amínias por um pequeno as- sento de carro e um par de rodas. Fidípides — (Sonhando) Leva o cavalo à cocheira, fazendo-o antes espojar. Estrepsíades — É a mim, porém, que despojas... de meus bens. Já tenho condenações, e outros, por causa dos juros, falam em penhora. Fidípides — (Acordando) Verdadeiramente, meu pai, por que resmungas e remexes a noite toda ? Estrepsíades — As mordidelas… de um demarco tiram-me da cama. Fidípides — Diabo! Deixa-me dormir um pouco. Estrepsíades — Dorme então! Todas essas dívidas, porém, cairão sobre tua cabeça. Ah! Oxalá pereça desgraçadamente a alcoviteira que me induziu a casar com tua mãe. Eu tinha uma agradabilíssima vida de campônio, sem luxo, sujo, des- preocupado, com fartura de abelhas, de rebanhos, de baga- ços de uva. E eis que eu, um campônio, me casei com uma sobrinha de Mégacles, filho de Mégacles, moça da cidade, orgulhosa, arrogante, uma verdadeira Césira. No dia do ca- samento, ao lado dela na mesa, eu cheirava a vinho novo, a grades de secar figos e queijo, a lã, a abundância; e ela, por 21 sua vez, a perfumes, a açafrão, a beijos lascivos, a esbanja- mentos, a gula, a Afrodite Cólias e Genétilis.” A insônia de Estrepsíades parece ter-lhe trazido uma solução para seus problemas com os credores. Ele acorda Fidípides, seu filho, e o faz jurar que acatará suas ordens. O velho mostra, então, a portinha de um casebre e declara, em tom solene, que ali está o “Pensatório de almas sábias”, no qual habitam homens que discorrem sobre as realidades celestiais e ganham dinheiro para ensinar os jovens como vencer tanto as causas justas quanto as injustas. Estrepsíades quer que seu filho aprenda essa técnica e possa, assim, derrotar seus credores no tribunal, ainda que defendendo uma causa injusta. Aristófanes inventa uma palavra com um sentido cômico, φροντιστήριον (phrontistérion), literalmente, “lugar de pensamento”. O sufixo grego τήριον (-térion) indica lugar, tendo como equivalente em português “-tório” (pense em “laboratório” – lugar de trabalho –, “auditório” – lugar de escuta –, “mictório” – lugar de urinar –, “escritório” – lugar de escrever). Pode-se, assim, traduzir o termo grego como “pensatório” (lugar de pensamento) ou “elucubratório” (lugar de elucubrações), entre outras possibilidades. É importante, no entanto, ter a clara noção de que o termo é forjado pelo poeta com um sentido cômico, visando a ridicularizar as escolas filosóficas que então pululavam por toda Atenas. Fidípides, no entanto, não quer tornar-se discípulo no pensatório. Os que aí habitam são charlatães, cuja vida dedicada à filosofia os afastou do mundo real e de uma vida saudável e os deixou adoentados, com um aspecto sombrio. Certo de que o modo de vida dos filósofos trará a ruína de sua saúde física, deixando-o empalidecido e em frangalhos, e que sentirá, assim, vergonha diante de seus amigos cavaleiros, Fidípides não obedece ao pai. Aristófanes, nessa passagem, contrapõe o novo modus vivendi dos filósofos, que afasta os jovens dos esportes e das atividades físicas, à educação tradicional grega, da qual uma parte essencial é o culto à saúde física e às habilidades esportivas, inclusive a luta. Os filósofos, com seus hábitos nefastos, estariam 22 corrompendo e destruindo a juventude ateniense, que, seguindo os preceitos tradicionais, sempre buscou uma excelência corpórea. Vejamos o trecho (vv. 75-125) “Agora, passando a noite toda a imaginar uma saída, encon- trei uma só, uma vereda divinamente maravilhosa. Se o con- vencer a segui-la, estarei salvo. Quero, porém, acordá-lo pri- meiro. Como o despertaria da melhor maneira possível? Co- mo? Fidípides! Fidipidinho! Fidípides — Que é, pai? Estrepsíades — Abraça-me e dá-me tua mão direita. Fidípides — (Abraça o pai e dá-lhe a mão) Ei-la. Que há? Estrepsíades — Dize-me: tens amor a teu pai? Fidípides — (Apontando para uma estátua de Posídon) Sim, por este Posídon, protetor dos cavaleiros. Estrepsíades — Não, por este protetor dos cavaleiros, não! Este deus é a causa de minhas desgraças. Mas se me amas realmente de todo o coração, obedece-me, filho. Fidípides — Mas, em que devo obedecer-te? Estrepsíades — Muda o mais rapidamente possível de vida e vai aprender o que te vou aconselhar. Fidípides — Dize lá, o que mandas Estrepsíades — E me obedecerás? Fidípides — Obedecerei, por Dioniso. Estrepsíades — Olha então para ali. Vês esta portinha e esta casinha? Fidípides — Vejo. Que é isto afinal, pai? Estrepsíades — Este é o Pensatório das almas sábias. Habi- tam-na homens que, falando sobre o céu, nos convencem ser ele um forno colocado em torno de nós e nós as suas brasas. Ensinam, mediante pagamento, a triunfar as causasjustas e injustas. Fidípides — Quem são? Estrepsíades — Não sei exatamente o seu nome: são “pen- sadores-inquiridores”, gente honesta. Fidípides — Ora! Charlatães, eu sei. Falas desses imposto- res, de faces pálidas e descalços, de que fazem parte Só- crates e Querefonte. Estrepsíades — Psiu! Cala-te. Estás dizendo besteira. Mas, se te preocupas com o pão de teu pai, torna-te um deles e deixa de cavalgar. Fidípides — Não, por Dioniso, mesmo que me desses os fai- sões criados por Leógoras. Estrepsíades — Vai, eu te suplico, ó mais querido dos seres, vai aprender. Fidípides — Vou aprender o quê? Estrepsíades — Dizem que eles possuem dois argumentos, um, realmente forte, e o fraco. Um destes dois argumentos, 23 o fraco, vence nas disputas as causas injustas. Se me apren- deres esse argumento injusto, não teria que pagar a ninguém um só óbolo das dívidas que fiz por tua causa. Fidípides — Não posso obedecer; com as faces pálidas não ousaria encarar os cavaleiros! Estrepsíades — Então, por Deméter, não mais comerás às minhas expensas, nem tu, nem teu cavalo de trela, nem o corredor marcado com S. Vou expulsar-te de casa e irás pa- ra o inferno! Fidípides — Meu tio Mégacles não me deixará sem cavalos Vou entrar e não te darei importância (Entra)” Abandonado à próprio sorte, Estrepsíades não encontra outra solução: apesar de velho, tosco e sem memória, ele terá de entrar no pensatório como discípulo de Sócrates para aprender as artimanhas da argumentação e poder vencer suas causas nos tribunais. Ao bater à porta do pensatório, ele é mal recebido por um discípulo, que não lhe quer revelar os segredos do pensatório, por ser ele um leigo. Aristófanes, aqui, ridiculariza uma vez mais as escolas filosóficas, assimilando-as a um culto de mistérios do qual apenas os iniciados podem tomar parte. Estrepsíades revela, entretanto, que ali está para se fazer discípulo. São-lhe, então, revelados, alguns “segredos” do pensatório e a alta cultura filosófica que aí se desenvolve. Sócrates é ridicularizado pelo poeta. Ele dedica- se a questões importantíssimas, como medir a distância do pulo de uma pulga ou descobrir a origem do zumbido de um mosquito: a boca ou o “traseiro”. Encontramos também o trecho a que fez alusão a Apologia (18c): “um tal Sócrates a andar à volta em cena, afirmando que caminhava pelos ares”. E o filósofo apresenta ao velho Estrepsíades as divindades cultuadas no pensatório: as Nuvens. Leiamos, agora, a passagem (vv. 126- 299): “Estrepsíades — Eu, porém, não ficarei estendido no chão mesmo depois de derrubado, mas, após invocar os deuses, irei eu próprio aprender no Pensatório. Mas… velho, sem memória, de raciocínio lento, como aprenderei as sutilezas de argumentos exatos? (Decidido) Tenho que ir. Mas, por que fico de um lado para o outro, e não bato a esta porta? 24 (Bate) Jovem, Jovenzinho! Um Discípulo — (Do interior) Vai para o inferno! Quem bate à porta? Estrepsíades — O filho de Fídon, Estrepsíades, do demo de Cicina. Um Discípulo — Por Zeus, és um grosseirão: escoiceias ir- refletidamente a porta, provocando o aborto de uma ideia recém-descoberta. Estrepsíades — Desculpa-me. Eu moro longe, no campo. Mas dize-me, que foi que abortou? Um Discípulo — Não é permitido dizê-lo, a não ser aos dis- cípulos. Estrepsíades — Dize-me então, agora, sem receio, pois eu próprio venho ao Pensatório para ser discípulo. Um Discípulo — Direi, então, mas é preciso guardar estas coi- sas em segredo. Sócrates perguntava ainda há pouco a Que- refonte quantas vezes o pulo da pulga corresponde ao com- primento das patas; a pulga havia mordido a sobrancelha de Querefonte e voado para a cabeça de Sócrates. Estrepsíades — E ele como calculou ? Um Discípulo — Muito engenhosamente. Derreteu cera e em seguida, pegando a pulga, mergulhou as duas patas na cera; esfriadas estas, ficou a pulga calçada de botas pér- sicas. Retirou-as e com elas mediu a distância. Estrepsíades — Ó Zeus soberano, que inteligência arguta! Um Discípulo — Que não seria, se conhecesses uma outra concepção de Sócrates! Estrepsíades — Qual? Conta-me, eu te suplico. Um Discípulo — Querefonte de Esfeto, perguntou-lhe qual era sua opinião: se os mosquitos zuniam pela boca ou pelo tra- seiro. Estrepsíades — Que disse ele a respeito do mosquito ? Um Discípulo — Respondeu que o mosquito possui a tripa estreita e, sendo alongada, o ar faz força para abrir caminho até o traseiro; em seguida, dilatando-se após passagem tão estreita, o fiofó ressoa com a violência do sopro. Estrepsíades — Nesse caso o traseiro dos mosquitos é uma trombeta. Três vezes bem-aventurado o autor dessa “éntero- -pesquisa”. Facilmente se livraria de uma condenação aquele que conhece a fundo o intestino do mosquito! Um Discípulo — Anteontem uma lagartixa destruiu-lhe uma grande meditação. Estrepsíades — Como foi ? Conta-me. Um Discípulo — Estava a pesquisar o curso e as revoluções da lua, e à noite, no momento em que, de boca aberta, olha- va para o céu, uma lagartixa de cima do telhado sujou so- bre ele. Estrepsíades — Alegro-me com a lagartixa sujando em Só- crates. 25 Um Discípulo — Ontem à tarde nada tínhamos para o jantar. Estrepsíades — Bem, e que inventou ele para o jantar? Um Discípulo — Espalhou sobre a mesa uma fina camada de cinza, entortou um espetinho e, em seguida, segurando-o co- mo se fosse um compasso… roubou o manto da palestra! Estrepsíades — Que mais havemos de admirar no famoso Tales? Abre, abre depressa o Pensatório e mostra-me logo Sócrates. Quero ser discípulo, mas abre a porta. (Abre-se a porta. No interior os discípulos de Sócrates, imó- veis, pálidos e magros). Ó Héracles, donde vieram esses monstros? Um Discípulo — Estás espantado? Com quem os achas pa- recidos ? Estrepsíades — Com os Espartanos aprisionados em Pilos. Mas, por que olham para a terra assim ? Um Discípulo — Pesquisam o que existe sob a terra. Estrepsíades — Certamente procuram cebolas. (Falando aos discípulos). Não vos preocupeis com isso: eu sei onde encontrar grandes e bonitas cebolas. E que fazem estes tão curvados para a frente? Um Discípulo — Estes investigam o Érebo até as profunde- zas do Tártaro. Estrepsíades — Por que então têm o fiofó voltado para o céu? Um Discípulo — É que o traseiro deles estuda astronomia por conta própria. (Aos discípulos) Entrai, para que Sócrates não vos surpreenda aqui. Estrepsíades — Ainda não, ainda não! Que fiquem, para que eu lhes comunique um negocinho meu. Um Discípulo — Mas não lhes é permitido permanecer por muito tempo ao relento. Estrepsíades — Pelos deuses, dize-me, que é isto ? (Pene- trando no Pensatório) Um Discípulo — Isto é astronomia. Estrepsíades — Isto, o que é ? Um Discípulo — Geometria. Estrepsíades — Para que serve isto ? Um Discípulo — Para medir a terra. Estrepsíades — A que é distribuída por sorteio? Um Discípulo — Não, a Terra inteira. Estrepsíades — É interessante o que dizes. A ideia é demo- crática e útil. Um Discípulo — Eis diante de ti a volta da terra inteira. Vês? Atenas é aqui. Estrepsíades — Que dizes? Não acredito, porque não vejo os juízes nos tribunais. Um Discípulo — Como digo, este é realmente o território da Ática. Estrepsíades — E onde estão os Cicinenses, os do meu de- 26 mo ? Um Discípulo — Aqui estão. A Eubeia, como vês, é esta que se estende ao lado, longa, bem longe. Estrepsíades — Sei. Ela foi esticada por nós e por Péricles. Mas, onde se encontra Esparta? Um Discípulo — Aqui está ela. Estrepsíades — Como está perto! Esforçai-vos para afastá-la para bem longe de nós! Um Discípulo — Mas isso não é possível. Estrepsíades — Então, por Zeus, pagareis por isso. Olha! Quem é este homem suspenso no cesto? Um Discípulo — ELE. Estrepsíades — Ele quem? Um Discípulo — Sócrates. Estrepsíades — Ó Sócrates! (Ao Discípulo) Vamos, tu aí, chama-o em voz alta. Um Discípulo— Chama-o tu mesmo. Não tenho tempo. (Re- tira-se) Estrepsíades — Sócrates, ó Socratesinho! Sócrates — (Suspenso num cesto) Por que me chamas, ser efêmero?! Estrepsíades — Em primeiro lugar, dize, eu te suplico, o que fazes aí? Sócrates — Caminho pelos ares e examino atentamente o sol. Estrepsíades — Quer dizer que é de um cesto que olhas de cima os deuses e não do chão, se é que em verdade… Sócrates — Na realidade, jamais poderia eu penetrar com exatidão os assuntos celestes, se não erguesse a inteligên- cia e não fundisse o pensamento sutil com o ar, seu congê- nere. Permanecendo no chão e observando cá de baixo as regiões celestes, nada descobriria, pois a terra atrai vio- lentamente para si a seiva do pensamento. É exatamente isto que acontece com o agrião. Estrepsíades — Que dizes? O pensamento atrai a seiva pa- ra o agrião? Vamos, desce até mim, Socratesinho, a fim de me ensinares o que venho buscar. Sócrates — (Descendo) Vens para quê? Estrepsíades — Quero aprender a falar. Por causa de juros e credores intratáveis sou roubado e pilhado; meus bens es- tão penhorados. Sócrates — E como te deixaste endividar sem o perceber ? Estrepsíades — Uma doença cavalar, voraz e terrível me ani- quilou. Ensina-me, todavia, um de teus dois argumentos, aque- le com o qual nada se paga. Juro pelos deuses que te pa- garei o salário que exigires. Sócrates — Juras por quais deuses ? Para começar, os deu- ses não são moeda corrente entre nós. Estrepsíades — Por quem jurais então? Pelas moedas de ferro, como em Bizâncio? 27 Sócrates — Desejas conhecer claramente os assuntos divi- nos e saber como são na realidade? Estrepsíades — Sim, por Zeus, se é possível. Sócrafes — Entrar em contato e conversar com as Nuvens, nossas divindades? Estrepsíades — Perfeitamente. Sócrates — Senta-te então no leito sagrado. Estrepsíades — Já estou sentado. Sócrates — Agora coloca esta coroa. Estrepsíades — Para que uma coroa? Ai, Sócrates, por aca- so vais me sacrificar como Átamas? Sócrates — Não, mas tudo isto fazemos com os que vão ser iniciados. Estrepsíades — E eu, que lucrarei com isso? Sócrates — (Espalhando sobre ele uma espécie de farinha) Tornar-te-ás um orador manhoso, uma castanhola, uma flor de farinha. Mas não te movas. Estrepsíades — Por Zeus, a mim não enganarás; empoado assim, tornar-me-ei flor de farinha. Sócrates — (Declamando) É necessário que o velho se con- centre e ouça em silêncio a oração, ó rei soberano, ó Ar in- finito, que susténs a terra no espaço, ó Éter brilhante e vós, deusas sacrossantas, Nuvens carregadas de raios e trovões, subi, senhoras, e aparecei ao pensador lá nas alturas. Estrepsíades — (Cobrindo-se com o manto) Ainda não, ainda não, deixa-me cobrir primeiro com o manto, para não me molhar. Desgraçado de mim que saí de casa sem trazer um boné. Sócrates — Vinde pois, Nuvens augustas, vinde mostrar-vos a este homem, quer estejais nos píncaros sagrados e co- bertos de neve do Olimpo, quer danceis para as Ninfas num coro sagrado… nos jardins de vosso pai Oceano, quer estejais abastecendo vossos cântaros de ouro nas emboca- duras do Nilo, quer habiteis o lago Meótis ou os penhascos nevosos do Mimas, ouvi-me, aceitando o sacrifício e ale- grando-vos com as vítimas. Coro das Nuvens — (Ouve-se ao longe o coro das Nuvens) Nuvens eternas, mostremo-nos, arrastando nossa volátil es- sência orvalhada. Do seio de nosso ruidoso pai Oceano ga- nhemos os píncaros umbrosos das altas montanhas, para contemplarmos de lá os cimos visíveis ao longe, as searas e o sagrado torrão irrigado, os sacros rios murmurantes e o mar de surdos bramidos, porque o olho do Éter brilha infa- tigável no esplendor de seus raios. Dissipemos a bruma aquo- sa que encobre nossa forma imortal e contemplemos a ter- ra com olhar que penetra longe. Sócrates — Ó sacrossantas Nuvens, atendestes claramente ao meu apelo (A Estrepsíades). Ouviste-lhes a voz e simul- taneamente os mugidos do divino trovão? 28 Estrepsíades — Eu vos adoro, augustas divindades, e quero retribuir com um peido aos vossos trovões (A Sócrates), de tal modo eles me fazem tremer de pavor. E agora mesmo, com ou sem a permissão dos deuses, eu vou evacuar. Sócrates — Não ironizes, como fazem esses poetas cômicos. Concentra-te: eis que avança um enxame de deusas cantan- do.” As situações cômicas são várias, com Sócrates tentando ensinar e Estrepsíades, abrutalhado, compreendendo tudo erradamente. O filósofo acaba por irritar-se com tamanha estultícia e desiste de educar Estrepsíades (vv. 776-791): “Sócrates — Como te livrarias de uma condenação iminente em um processo, por ausência de testemunhas? Estrepsíades — De modo muito simples e fácil. Sócrates — Dize, então. Estrepsíades — Vou dizê-lo. Quando houvesse apenas um processo para ser julgado, antes de anunciarem o meu, eu corria a enforcar-me. Sócrates — Só dizes tolices. Estrepsíades — Juro pelos deuses que, após a minha morte, ninguém me processará. Sócrates — Deliras. Vai-te embora, não te ensinarei mais. Estrepsíades — Mas, por quê ? Em nome dos deuses, Só- crates! Sócrates — Esqueces rapidamente tudo que aprendeste. Di- ze agora, por exemplo, a primeira coisa que aprendeste. Estrepsíades — Bem, vejamos, qual foi a primeira? Qual foi mesmo? Como se chamava aquilo em que amassávamos o pão? Droga, como era? Sócrates — Vai para o inferno! Dane-se o mais esquecido e o mais estúpido dos velhos.” O velho vê-se, então, forçado a convencer o filho a entrar no pensatório. O filho, por fim, aquiesce. Sócrates fará, então, com que Fidípides seja educado pelos dois argumentos, o Justo e o Injusto. Confiado nas habilidades de argumentação do filho, Estrepsíades põe para correr os seus credores sem nada pagar. Mas a justiça não tardará. O filho desentende-se com o pai e dá-lhe uma surra, tranquilo por poder usar suas técnicas persuasórias e provar que era justo espancar o próprio pai (vv. 1323-1334): 29 “Estrepsíades — Ai! Ai! Vizinhos, parentes, pessoal do bairro, socorro! Estão me batendo, ajudai-me de qualquer maneira! Miserável, bates em teu pai? Fidípides — (Tranquilamente) — Sim, meu pai. Estrepsíades — Vede: ele concorda que me bate. Fidípides — E muito. Estrepsíades — Canalha! Parricida! Criminoso! Fidípides — Repete estas mesmas injúrias e outras mais. Sabes, sinto prazer em ouvir tantos insultos! Estrepsíades — Traseiro-escancarado! Fidípides — Distribui em profusão as tuas rosas! Estrepsíades — Bates em teu pai? Fidípides — E provarei, por Zeus, que bati com razão. Estrepsíades — E como é possível, supremo canalha, bater no pai com razão? Fidípides — Vou demonstrá-lo e te derrotar com meus argu- mentos.” Estrepsíades cai em si e vê o quanto se deixou iludir, a ponto de abandonar sua crença nos deuses tradicionais em prol da argumentação, da dialética, dos “novos deuses” trazidos pelos sofistas. Irritado por ter levado seu próprio filho para o mal caminho, o velho resolve cortar o mal pela raiz: pede que seu escravo, Xântias, o ajude a demolir o pensatório, enquanto ele próprio, com um tocha, põe fogo na escola de Sócrates, “porque eles ultrajavam os deuses” (vv. 1479-1508): “Estrepsíades — Ah! Que loucura! Como eu estava alucina- do, quando repeli os deuses por causa de Sócrates! (Vol- tando-se para uma estátua de Hermes). Mas, querido Her- mes, de modo algum te irrites comigo, nem me esmagues; ao contrário, perdoa-me, se me deixei extraviar pela taga- relice. Aconselha-me se devo denunciá-los e processá-los, ou o que te parece melhor. (Finge escutar a resposta de Hermes) — Correto o conselho que me dás de não multipli- car processos, como os chicaneiros, mas de o mais rapida- mente possível tocar fogo na casa dos tagarelas. Vem cá, Xântias, vem; traze aqui uma escada e uma picareta; e depois, se estimas teu senhor, sobe ao Pensatório e destrói--lhe completamente o teto, até que a casa se desmorone sobre eles. Que me tragam uma tocha acesa: farei cada um deles me pagar hoje, por mais fanfarrões que sejam. (Es- trepsíades põe fogo no Pensatório). 30 Primeiro Discípulo — Ai! Ai! Estrepsíades — Vamos, tocha, larga uma chama forte! Segundo Discípulo — Homem, que estás fazendo? Estrepsíades — Que estou fazendo? Coisa simples: dialogo sutilmente com os caibros da casa! Terceiro Discípulo — (No interior) — Que desgraça! Quem põe fogo em nossa casa? Estrepsíades — Aquele de quem tirastes o manto. Segundo Discípulo — Vais nos matar! Vais nos matar! Estrepsíades — É isto mesmo o que desejo, se a picareta não me trair as esperanças e eu não cair antes e quebrar o pescoço. Sócrates — (Surgindo numa janela) — Tu aí, por favor, que fazes em cima do telhado? Estrepsíades — Caminho pelos ares e examino profundamen- te o sol. Sócrates — Ai, desgraçado de mim, vou morrer sufocado! Segundo Discípulo — E eu, infeliz, vou morrer carbonizado! Estrepsiades — E por que insultais os deuses e perscrutais a sede da lua? (A Xântias) Persegue-os, bate, espanca, por muitos motivos, e sobretudo por saberes que eles ultrajavam os deuses.” Os trechos que lemos nos permitem constatar que as acusações mencionadas na Apologia e que deram ocasião ao processo por impiedade contra Sócrates estão na comédia de Aristófanes, o que nos poderia levar à conclusão de que o comediógrafo estaria na raiz da condenação do filósofo. A questão, entretanto, não é tão simples quanto parece. Aristófanes não criou do nada essas acusações. Como autor de comédias, ele inspirava- se no ambiente, na cultura e nos fatos que o cercavam. Para que o Sócrates da peça pudesse ser facilmente identificado com o Sócrates real, seria preciso que este já fosse bem conhecido dos Atenienses, que fosse uma figura pública. A comédia trabalha com exageros e distorções que visam a criar o efeito cômico, mas, no caso de Nuvens, parte de uma realidade tangível para todo e qualquer ateniense: a existência de escolas de sofistas e filósofos e o impacto que elas representavam na cultura grega, no modo de vida e na educação tradicional que vigoraram até então. Aristófanes escolhe Sócrates justamente por ser uma figura pública, muito conhecida em Atenas e que poderia ser facilmente identificado por qualquer espectador. Mas a crítica do poeta está voltada não contra o nosso filósofo, mas contra os sofistas e sua arte da persuasão. O retrato 31 aristofânico de Sócrates é o de um sofista, que cobra por suas lições e que ensina as técnicas de argumentação para que se possa prosperar na vida pública e nos tribunais. A figura de Sócrates é usada para encarnar o protótipo da educação sofística: “Nós não saberemos jamais quem, do Sócrates cômico ou do Sócrates dos Filósofos, era o mais próximo do verdadeiro Sócrates, nem se Aristófanes o considerava um verdadeiro perigo para a Cidade, ou, ao contrário, se ele não era senão um pretexto para representar os Sofistas em um retrato que dissimularia um certa admiração, quem sabe uma afeição, pelo indivíduo. Com efeito, é manifesto que Aristófanes estava estreitamente envolvido na vida cultural e artística de sua época e é certo que ele conhecia bem Sócrates, ainda que não seguisse seus ensinamentos. Aristófanes devia encontrar alguém que representasse para o público a nova retórica da época. Entre os que agora consideramos como Sofistas, os mais reputados eram estrangeiros, como Górgias, e não eram familiares aos espectadores, visto que eles exerciam suas atividades diante de um público escolhido a dedo, na casa do rico Cálias, por exemplo. Não eram, portanto, pessoas que se pudessem encontrar facilmente na cidade, enquanto os atenienses cruzavam frequentemente com Sócrates, ou o tinham conhecido durante campanhas militares; eles estavam familiarizados com seu físico peculiar e com sua conduta 'anormal': ele não tinha as mesmas maneiras nem as mesmas necessidades de seus concidadãos e, para as pessoas que não eram versadas nos mistérios da filosofia, havia, evidentemente, pouca diferença entre Sócrates e os Sofistas. Além disso, Sócrates tinha uns quarenta e cinco anos na época (e Platão uns cinco ou seis anos), muito distante do nobre idoso condenado à morte em 399, cujos pensamentos e o método tinham tomado, nesse meio tempo, uma extensão considerável: nem Aristófanes nem seu público podiam, portanto, prever o destino que o esperava. Pode-se, por conseguinte, estimar que o Sócrates das Nuvens é uma espécie de híbrido que apresenta certas particularidades próprias de Sócrates, às quais se acrescentam elementos que se referem de fato às pessoas que ele representa enquanto cristalização dos Sofistas da época. É, de fato, novamente, a crítica dos novos costumes da juventude que interessava a Aristófanes, muito mais do que a pessoa mesma de Sócrates.” (THIERCY, 1999, p. 57-58) De que a comédia se refira especificamente aos sofistas, dão-nos prova algumas passagens, como por exemplo (vv. 1105-1113): “Argumento Injusto — (A Estrepsiades) Bem, e agora? Pre- feres pegar teu filho e levá-lo para casa ou queres que eu o ensine a falar? Estrepsiades — Ensina-o, castiga-o e lembra-te de me deixá- -lo bem afiado, de um lado para os processozinhos, do outro afia-lhe o queixo para as grandes causas. Argumento Injusto — Fica tranquilo. Receberás de volta um hábil sofista. Fidipides — Isto é, pálido, creio eu, e desgraçado.” 32 A comédia pode visar, na realidade, aos sofistas, utilizando a figura de Sócrates apenas como um recurso dramatúrgico. Entretanto, é o filósofo ateniense que será punido com a morte. Como se disse, quaisquer que sejam as reais motivações por detrás do processo contra Sócrates, a acusação de impiedade nos leva à conclusão de que estamos diante de uma primeira ocorrência do choque entre a razão e a fé, entre a religião e a ciência. Atividade 1 Atende aos objetivos 1 e 3 1. Por que Aristófanes utiliza a figura de Sócrates em sua comédia Nuvens? O que ele critica na peça? DIAGRAMADOR: DEIXAR 15 LINHAS PARA RESPOSTA 2. Que passagem(ns) cômica(s) mostra(m) os resultados perigosos da educação sofísticas? Em que consistiria o perigo? DIAGRAMADOR: DEIXAR 10 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA 1. Mostre que Aristófanes não está criticando a pessoa de Sócrates, mas que nele o poeta faz encarnar a figura do sofista. Aponte a razão disso: na comédia, certos personagens ou tipos têm de ser facilmente identificados. Era preciso, assim, que Aristófanes escolhesse alguém que fosse uma figura pública em Atenas, bem conhecido por todos e que pudesse, com as devidas adaptações e com o exagero cômico, representar o grupo que ele pretende criticar: os sofistas. Como eles eram principalmente estrangeiros, eram desconhecidos pelo grande público. A figura de Sócrates é, por assim dizer, apropriada e 33 modificada de acordo com as necessidades da peça. Ele passa a representar o protótipo do sofista e da nova educação que estava transformando Atenas. Destaque bem o fato de que Aristófanes critica a sofística e, em última instância, as transformações introduzidas pela nova educação e os novos valores, que corrompem a juventude ateniense, inclusive do ponto de vista físico. 2. A juventude ateniense está suscetível a um duplo perigo. (a) Há um perigo de ruína física, visto que as atividades de pensamento podem afastar os jovens das atividades físicas que sempre foram a base da educação tradicional. Duas passagens demonstram isso: (1) Estrepsíades — Que mais havemos de admirar no famoso Tales? Abre, abre depressa o Pensatório e mostra-me logo Sócrates. Quero ser discípulo, mas abre a porta.(Abre-se a porta. No interior os discípulos de Sócrates, imó- veis, pálidos e magros). Ó Héracles, donde vieram esses monstros? (2) Argumento Injusto — Fica tranquilo. Receberás de volta um hábil sofista. Fidipides — Isto é, pálido, creio eu, e desgraçado. (b) Há um perigo de corrupção moral, dos costumes. O abandono da educação tradicional representaria o abandono dos valores tradicionais. Os jovens já não teriam os mesmos valores de seus pais e antepassados. E perdendo esses valores, perderiam também os critérios para viver e agir em sociedade. Uma passagem que mostra bem esse perigo é aquela em que o filho bate no pai (Estrepsíades), o que pode ser visto, inclusive, como a imagem da nova educação e dos novos valores que agridem a tradição da cultura ateniense e se impõe com uma certa violência: 34 Estrepsíades — Ai! Ai! Vizinhos, parentes, pessoal do bairro, socorro! Estão me batendo, ajudai-me de qualquer maneira! Miserável, bates em teu pai? Fidípides — (Tranquilamente) — Sim, meu pai. Estrepsíades — Vede: ele concorda que me bate. Fidípides — E muito. FIM DA RESPOSTA COMENTADA 4. A DEFESA DE SÓCRATES Na Apologia de Platão, Sócrates atribui uma origem divina à sua busca pela sabedoria. Ele menciona uma história vivenciada por Querefonte, seu amigo de juventude. Em Nuvens, Aristófanes faz também referência a Querefonte: “Fidípides — Ora! Charlatães, eu sei. Falas desses imposto- res, de faces pálidas e descalços, de que fazem parte Só- crates e Querefonte.” (vv. 102-104) “Estrepsíades — (Despindo-se) Dize-me agora uma coisa: se eu for aplicado e dedicado aos estudos, com qual dos discí- pulos ficarei parecido? Sócrates — No aspecto, em nada diferirás de Querefonte. Estrepsíades — Desgraçado de mim, vou virar moribundo!” (vv. 501-504) Leiamos, agora, a história da vocação filosófica de Sócrates (Apologia, 20d-21e; 22e-23c): “Por nada, Atenienses — a não ser por uma certa sabedoria — cheguei eu a alcançar essa reputação. E que sabedoria é essa? Será talvez a sabedoria própria de um homem. Receio bem que só dessa eu seja sabedor. Mas esses de que há pouco falava é que serão mais sábios, pois têm uma sabedoria mais que humana, ou, então, eu não tenho aquela de que falo, visto que não sei. E quem o afirmar mente e espalha calúnias contra mim. Da minha sabedoria — se é que é sabedoria e de quê — dou como testemunha o deus de Delfos. Não protesteis, nem vos pareça que estou com grandes discursos, pois não direi o que afirmo, como obra minha, mas atribuo-o a alguém digno de respeito. Conheceis Querefonte; era meu companheiro desde jovem, bem como da maioria de vós. Foi exilado convosco e convosco voltou. Com certeza que sabeis como era Querefonte, como era impulsivo em tudo aquilo a que se entregava. Uma vez, foi a Delfos, perguntar ao oráculo — peço-vos que não 35 vos manifesteis contra o que estou a dizer, homens—, se havia alguém mais sábio que eu. Em resposta, retorquiu-lhe a Pítia que ninguém era mais sábio. E disto o seu irmão vos prestará testemunho, pois o próprio morreu. Examinai então aquilo de que vos estou a falar: estou a explicar-vos de onde me veio a má fama. Então eu, ao ouvir isto, refleti assim: 'Que indicará o deus e que deixa ele perceber? Se eu nem muito nem pouco reconheço ser sabedor, que poderá ele querer dizer, ao afirmar que eu sou o mais sábio? Pois com certeza não mente, não tem esse direito!' Durante muito tempo me debati com esta dificuldade: que dirá o deus? E, depois de muitas e duras investigações, lancei-me a esta obra. Fui junto de um daqueles que aparentavam ser sábios, pensando que aí — ou em parte alguma — poderia contradizer a resposta do oráculo, objetando-lhe: 'Eis um homem mais sábio que eu. Porque disseste que era eu o mais sábio?' Mas, ao examinar o homem com quem se passou isto — não preciso de o nomear, era um dos nossos estadistas — e, conversando com ele, homens de Atenas, achei que parecia a muitos outros ser sabedor e, sobretudo, a si próprio, mas não o era. De seguida, tentei mostrar-lhe como ele desejava ser sábio, mas não era. Com isto, tornei-me detestado por muitos dos presentes e, ao afastar-me dali, pensei que era por ser mais sábio que aquele homem. Pois é possível que nenhum de nós saiba nada do que é bom e belo, mas, enquanto ele julga saber algo, eu, como nada sei, nada julgo saber. E nisto parece-me que sou um pouco mais sábio que ele, por não julgar saber as coisas que não sei. Daí, fui a outro daqueles que pareciam mais sábios que ele e fiquei com a mesma opinião. E assim passei a ser detestado por esse e por muitos outros. Depois disto, continuei, apesar de sentir, ressentir e lamentar ser detestado, mas parecia-me ser necessário atender ao deus, acima de tudo o mais. Tive, portanto, de continuar a investigar o que dizia o oráculo acerca de todos os que julgavam saber. […] 9. Por causa desta investigação é que atraí tantos ódios violentos e gravosos, de que resultaram tantas calúnias, ficando eu com fama de sábio. E isto porque os presentes julgam que eu sou sabedor das coisas sobre que costumo interrogar e refutar. Mas é possível, homens, que, na realidade, sábio seja o deus, que por este oráculo indica que a sabedoria humana é coisa de pouco ou nenhum valor. E parece-me que o deus não atribui a sabedoria a Sócrates, mas que se serve do meu nome, fazendo de mim um exemplo, como se dissesse: 'Entre vós, homens, o mais sábio é aquele que, como Sócrates, na verdade, reconhece ser a sua sabedoria de nenhum valor.' E é por isso que continuo a procurar e a examinar, de acordo com a vontade do deus, tanto os concidadãos, quanto os estrangeiros, que de algum modo eu julgue serem sabedores. E, sempre que me pareça que o não são, mostro-o, com a ajuda do deus. Por motivo desta ocupação, não tenho tempo para os negócios da cidade que são dignos de menção, nem para os da minha casa, vivendo na maior pobreza, ao serviço do deus.“ A vocação filosófica de Sócrates nasce de uma consulta feita ao oráculo de Delfos por seu amigo Querefonte, que queria saber se havia alguém mais sábio do que nosso filósofo. O oráculo respondera que não, mas que Sócrates era o mais sábio de todos. Ele, então, vê-se em uma delicada situação: por um lado, sabia que não tinha nenhuma 36 sabedoria; por outro lado, compreendia que o deus (no caso Apolo), que falara através do oráculo, não podia mentir. O deus estava, obviamente, certo e Sócrates precisava compreender em que consistia sua sabedoria. Aqui nasce sua vocação e ele põe-se a conversar com todo e qualquer homem que se pretenda sábio ou seja tido como tal. Ao mostrar que aqueles que pensavam ser sábios na verdade nada sabiam, Sócrates ganha muitos inimigos. E, assim, vemos que a sabedoria humana é de pouco ou nenhum valor e que o verdadeiro sábio é aquele que sabe que nada sabe, ou seja, que reconhece a fragilidade e a limitação da sabedoria humana. Box Multimídia Temos, no vídeo seguinte, o processo de Sócrates, com a acusação, sua defesa contra os antigos acusadores e uma parte da defesa contra os novos acusadores, entre os quais Meleto. Sócrates fala de Nuvens, de Aristófanes, e de sua vocação filosófica, oriunda de uma consulta de seu companheiro Querefonte ao oráculo de Delfos. Não deixe de assistir ao vídeo em: http://youtu.be/7bA-4Er7_Jc Fim do Box Multimídia O senso de dever e de justiça é fundamental para Sócrates. O homem não deve preocupar-se em viver ou morrer, mas em fazer o que é justo e cumprir com o seu dever. No caso dele, o deus o incumbiu de filosofar. Ele não desertou quando serviu como soldado em algumas batalhas. Assim, não deve também desertar do combate
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