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Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social Boaventura de Sousa Santos Teresa Cruz e Silva organização Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social Boaventura de Sousa Santos Teresa Cru^ e Silva (organizadores) Centro de Formação Jurídica e Judiciária Maputo , 2004 Ficha T é c n i c a título: Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social organizadores: Boaventura de Sousa Santos Teresa Cruz e Silva editor: Centro de Formação Jurídica e Judiciária n° de registo: 4 3 6 5 / R L I N L D / 2 0 0 4 arranjo gráfico e impressão: C I E D I M A , Sari tiragem: 1000 exemplares Maputo, 2004 «Quando não há problemas, estamos de boa saúde, sem azar nem nada»: para uma concepção emancipatória da saúde e das medicinas1 Maria Paula G. Meneses Introdução E m vários trabalhos produzidos no continente africano, o acto de localização de saberes dos «outros» é o momento crucial na produção de uma relação de desigualdade, pois que a partir de então as formas de protecção e recuperação da saúde pré-medicina moderna passam a ser caracterizadas como terapias tradicionais, de âmbito local (Ngubane, 1981; Hewson, 1998). Quando as parteiras tradicionais, os curandeiros e a medicina verde são concebidos como os principais componentes da «medicina tradicional» ( W H O , 1996), na realidade o que está em curso é uma simplificação extrema do conceito de saúde, onde não são tidas em atenção as especificidades históricas, económicas, políticas e culturais por detrás do desenvolver dos conhecimentos sobre saúde (Meneses, 2000). E m Moçambique, na maioria dos trabalhos abordando a temática da «medicina tradicional», o discurso predominante confere à ciência moderna u m 1 Este capítulo nunca poderia ter aparecido sem a colaboração inestimável de vários terapeutas tradicionais em Moçambique, que pacientemente me introduziram em vários universos de saber. Gostaria de agradecer em especial o apoio de Maciane F. Zimba, Carolina Tamele e Pedro Cossa, que sempre encontraram tempo e disposição para falar comigo, oferecendo conselhos e apreciando uma versão preliminar deste trabalho. O texto beneficiou enormemente das discussões com Boaventura de Sousa Santos. A Teresa Cruz e Silva o meu obrigada pela apresentação a vários terapeutas tradicionais; agradeço a Nanette Barkey pelas discussões tidas sobre o tema; aos meus «camaradas» de grupo, um agradecimento pelos comentários feitos ao texto. O meu obrigado igualmente a colegas de várias instituições moçambicanas que me ajudaram na realização da pesquisa (Universidade Eduardo Mondlane, Ministério da Saúde, Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, de entre muitos), bem como a Zefanias Matsimbe e António Langa, cuja ajuda se revelou preciosa em vários momentos deste trabalho. A Félix Khosa, o meu agradecimento pelo auxilio na correcção de expressões em xirhonga; a ajuda de Bento Sitói, meu colega de Faculdade, foi imprescindível na tradução de vários termos médicos e de doenças para e de xichangane. Finalmente, gostaria de referir que parte da informação discutida neste texto proveio de projectos paralelos e/ou anteriores, contando com financiamento da SAREC e da Fundação Ford. 77 estatuto hegemónico de conhecimento, protegido e definido pelo Estado na qualidade de «saber oficial».2 Pelo contrário, às formas de conhecimento nativas é atribuído u m carácter secundariamente situacional (Marrato, 1995; Tsenane, 1999; Instituto Nacional de Estatística, 1999). A procura de uma definição de «medicina tradicional», que vá para além da diversidade e da heterogeneidade das práticas e saberes terapêuticos, está inscrita na ordem social resultante do processo de colonização do próprio conhecimento; o que constitui estas práticas em objecto é simplesmente a negação do seu reconhecimento pelo Estado (Santos, 1995). A hipótese alternativa que gostaria de discutir neste trabalho está centrada no argumento de que as formas e as práticas de saber ditas «tradicionais» detêm realmente u m estatuto de saber legítimo, o qual é reafirmado pela grande afluência de pacientes a estes terapeutas. Apesar das repetidas tentativas de epistemicídio3 de que estas formas de saber sobre saúde têm sido alvo, tal facto poderá ajudar a explicar a enorme vitalidade e persistência dessas práticas, quer no período colonial, quer nos dias de hoje. Mas muitos outros aspectos têm de ser explorados. O que será uma medicina alternativa? Alternativa em função de quê e de quem? O que deverá ser considerado conhecimento legítimo? E legítimo na óptica de quem? Para que o saber se transforme em solidariedade, que garanta a libertação e a igualdade de cada cultura, é preciso dar a essa cultura, ao «outro», o estatuto de sujeito.4 O tema central deste capítulo — a interrogação sobre a relação dicotômica entre saberes locais e globais, vista através do prisma da evolução da medicina «tradicional» — está ainda pouco explorado enquanto objecto de pesquisa. A s reflexões aqui apresentadas são fruto de u m projecto de pesquisa a decorrer há mais de 18 meses na cidade de Maputo , especialmente no Bairro da Polana- Caniço (parte da chamada zona suburbana da cidade). Trata-se de uma região extraordinariamente complexa e de grande riqueza cultural, onde estão presentes vários sistemas de saúde, que frequentemente se cruzam e interpenetram. Esta pluralidade de sistemas médicos (MacCormack, 1986) não é fácil de avaliar, pois que diferentes percepções individuais e de distintos grupos sociais sobre a saúde, b e m estar, sobre o mal, estão presentes, resultando numa trama imensamente rica que se traduz em formas de intermedicina. 5 2 Assunto que será analisado ao longo do texto na perspectiva sugerida por Boaventura de Sousa Santos (2000), que se refere a este fenómeno como um «Iocalismo globalizado». 3 A morte de um conhecimento local perpetrada por uma ciência alienígena (Santos, 1998:208). 4 Esta temática é abordada igualmente por T. Xaba (2000), num texto que discute criticamente o impacto negativo da medicina científica moderna sobre os conhecimentos médicos indígenas sul- africanos. 5 Aqui sigo a proposta teórica de Boaventura de Sousa Santos sobre a interlegalidade (Santos, 1987; Santos, 2003), ampliando-a e projectando-a, para além do espaço da justiça, ao espaço da saúde. 78 N u m mundo onde a produção de diferenças culturais é permanente, este processo actua como catalisador de espaços atravessados por relações políticas e económicas de desigualdade. P o r isso, neste trabalho, o aspecto inicial da discussão centra-se no questionamento das razões da construção desta diferença. Q u e m é o «outro», aquele que produz e preserva outras formas de saber? Para avaliar as percepções existentes em relação aos distintos sistemas médicos presentes foram realizadas entrevistas a praticantes da medicina tradicional, a seus pacientes e elementos envolvidos na elaboração das políticas de saúde no País (a nível do Governo e de várias organizações não-governamentais), entre outros. 6 Este estudo incluiu entrevistas abertas e em profundidade a cerca de 30 pessoas, cujas idades variam entre os 22 anos e mais de 60 anos. N a maioria dos casos as pessoas foram entrevistadas separadamente. Grande parte das informações aqui apresentadas e discutidas provêm de entrevistas realizadas a «médicos tradicionais» da nova direcção da A M E T R A M O , os quais partilharam comigo quase numa rotina quotidiana, reflexões sobre as suas práticas e sabedorias, os seus problemas, dúvidas e incertezas. 1. Medicina, medicinas... E m várias das conversas c o m uma das terapeutas tradicionais, esta afirmou que «tem doença nossa, tradicional, mas lá na escola [Faculdade de Medicina] não sabe o que é isto. Mas nosso quando tem problemas que não saberesolver, manda no hospital». 7 Estas palavras sublinham a afirmação de vários autores sobre como a doença, o mal, são explicados: as etiologias são a expressão directa de normas e representações que sustentam os edifícios sociais (as transgressões a proibições, as manifestações de espíritos ancestrais, as agressões de feiticeiros, etc. ( D o z o n , 1987, Hess, 1994). N u m país c o m o Moçambique, c o m uma matriz sociocultural extremamente complexa, é inquestionável a existência de uma amálgama de subculturas médicas, cada uma c o m as suas próprias características e estruturas, embora para a biomedicina estas sejam descritas como uma entidade homogénea, resultando, por ignorância, na referência a uma medicina tradicional de carácter único e geral (Nords t rom, 1991; Jurg, 1992; Frel imo, 1999). Estes estereótipos, emergentes em situações coloniais, persistem ainda nos dias de hoje. 6 Por a investigação estar centrada no sul de Moçambique, a faixa de população envolvida é falante principalmente de xirhonga ou de xichangane. As palavras e expressões locais que surgem no texto assinaladas são destas línguas. De referir igualmente que em vários casos, quer com terapeutas tradicionais, quer com pacientes, as entrevistas foram conduzidas nestas línguas. 7 Tamele, G , entrevista pessoal. Junho-Julho, 2000. 79 T a l como se discutirá ao longo do texto, em Moçambique desde há muito que se detectam evidencias da germinação de sistemas médicos híbridos. Esta hibridização inclui mesmo o modelo médico moderno, criando espaço para a sua actuação. Vista desta perspectiva, a vitalidade das medicinas tradicionais é u m espelho das dificuldades de uma biomedicina que parece não conseguir alcançar os seus objectivos. A hibridização dos conhecimentos terapêuticos constitui uma diversidade entremeada de apropriações transformadas, e não cristalizadas no espaço e no tempo, como tantas vezes sugerem os «valores tradicionais».8 C o m o ponto de partida, a análise desta pluralidade de sistemas médicos é feita utilizando cautelosamente as variáveis oficial/não-oficial, t radicional/moderno. Este cuidado aqui referido decorre da situação de intermedicina, da permanente mistura e cruzamento de decisões que originam uma multiplicidade de situações híbridas. A dicotomia oficial/não-oficial é definida pelo Estado, sendo este quem estabelece, pelo direito, no seio da multiplicidade do pluralismo terapêutico presente em Moçambique, uma distinção mais ou menos explícita entre o que é legal e o que é ilícito, senão mesmo ilegal. N o caso da medicina, tudo o que é reconhecido como medicina oficial é alvo de apoio por parte do Estado. Toda a medicina que não é reconhecida como «estatal» é tolerada, mas continua sendo mais frequentemente ignorada, porque pouco permeável a imposições e controlo por parte da biomedicina. A formalização, em curso, da medicina tradicional, é a causa da sua fragilidade, sendo esta tentativa de normativização reflexo da natureza do próprio Estado em Moçambique. Vista da perspectiva da medicina moderna, a medicina tradicional surge como abrangendo vários saberes, como a biologia e a química (i.e., as plantas usadas como remédios e os extractos/compostos activos que delas é possível extrair), a biomedicina (o tratar, o curar do corpo), a justiça (o resolver de problemas, de conflitos que encontram no corpo doente a sua expressão), e a religião (as explicações para as crenças descritas em função de um aparato conceptual mágico-religioso). A redução da complexidade dos saberes a uma lista de áreas científicas, através da compartimentação e da normativização do conhecimento, é a expressão mais visível da formalização do Estado. E por isso que, no campo «tradicional», as instituições que tomam conta da doença, que estão encarregues de curar, são simultaneamente políticas, 8 Relativamente a Africa, muito tem sido escrito sobre o lugar do «tradicional» nas actuais discussões epistemológicas. Como referências sugere-se: Hobsbawm, 1988; Copans, 1990; Gentili, 1999; O'Laughlin, 2000; Santos, 2003. Noutros contextos políticos, o debate entre o «moderno» e o «tradicional» tanto é visto como um espaço conflitual que pode resultar no germinar de novas realidades (caso da índia — Vlsvanathan, 2000), como é visto como constituindo o elemento que forma espaços de diferença e de contraste (Florez, 2000, Xaba, 2000). 80 terapêuticas, jurídicas e religiosas; neste sentido, abarcam uma extensa área de competências e funções que submetem a eficácia do tratamento a uma eficácia mais envolvente, colocando em jogo os poderes tutelares, as estruturas normativas e simbólicas, as relações de força, de saberes e de poderes (Fisiy e Geschiere, 1990 e 1996; Geschiere, 1995; Fisiy e Goheen , 1998; C o m a r o f f e Comaroff, 1999). Este ponto requer uma avaliação cuidadosa da variável tradicional/moderno, na perspectiva da origem c do desenvolver das medicinas em Moçambique. Para uma modernidade assente em experiências eurocêntricas, o apelo ao qualificativo «tradicional» nas práticas médicas é feito para referir valores colectivos existentes desde «sempre», reforçando o estatuto de objecto de quem os produz. E m Moçambique, a tradicionalização dos saberes locais surge assim em paralelo e em oposição à emergência, a partir de finais do século X I X , do paradigma biomédico. E m função dos anseios sociais dos pilares desta dicotomia, tanto pode ser o tradicional uma invenção do moderno, como o moderno uma criação do tradicional. Nas palavras de C . Tamele, «a medicina tradicional é esta nossa, não escrevemos, não é como lá na universidade. M a s nós estudamos muito para saber curar, sabemos coisas que na escola não ensinam». 9 A medicina moderna aparece apenas como mais uma prática terapêutica nesta região, sem constituir, ainda hoje, u m concorrente verdadeiro às restantes medicinas, 1 0 que mantêm a sua vitalidade. O denominador c o m u m reside na vantagem que estas medicinas «tradicionais» paradoxalmente possuem, por não constituírem u m domínio autónomo, fechado n u m corpo de regras, saberes, práticas e especialistas. D e facto, as chamadas «medicinas tradicionais» estão imbricadas em muitos outros sectores da vida social — neste sentido, elas obrigam ao redimensionamento dos conceitos de «doença» e «mal», que ultrapassam a categoria de infelicidade, e que se traduzem em aspectos de ordem cognitiva, simbólica e institucional próprios à sociedade. A questão pr imordial que se coloca, conforme já referido, é a de compreender c o m o se desenvolveram as dinâmicas de hibridização destas medicinas. Este universo traduz a coexistência, no campo social, entre as instituições terapêuticas que tratam a doença e o mal em geral enquanto, em 9 Tamele, C , entrevista pessoal. Maio de 2000. 1 0 Verifica-se ainda que as religiões importadas (cristã, muçulmana) têm vindo a gerar movimentos sincréticos, cuja especificidade reside no facto de o seu trabalho religioso incluir funções terapêuticas. Este facto contribui assim para aumentar a gama de recursos terapêuticos disponíveis. Entre as «medicinas tradicionais» e estes movimentos sincréticos não há uma resolução de continuidade; outrossim, constituem exemplo de uma enorme diversidade de recursos terapêuticos que mantêm a sua actualidade na manutenção das ordens e na resolução das crises (Schoffeleers, 1991; Honwana, 1996; Cruz e Silva, 2000). 81 simultâneo, tratam a sociedade. O s «tratamentos» visam garantir quer a reprodução e a manutenção da ordem - normas e representações — quer a sua perturbação (tensões, conflitos, infelicidades colectivas). Neste processo reside o cerne da autovalorização das medicinas tradicionais e m Moçambique. 2. A invenção da medicina tradicional A doença, como símbolo de desajuste, de desequilíbrioindividual e social, é pois, como qualquer outro símbolo, alvo de representações ambíguas e fluidas, construídas como práticas de conhecimento e exercício de poder (Appadurai, 1999; Santos, 1995 e 2000). N u m mundo onde a imposição hegemónica de conhecimento-ciência está em todo o lado, canibalizando outras formas de conhecimento, uma das batalhas principais incide sobre o que se quer saber (ou ignorar), como representar este saber, e para quem. E m Moçambique, a procura de uma definição de «medicina tradicional», para além da diversidade e da heterogeneidade das práticas terapêuticas, está inscrita na ordem social resultante do processo de colonização do próprio saber — o que constitui estas práticas em objecto é simplesmente a negação do reconhecimento peló Estado 1 1 e seus organismos. 1 2 Esta abordagem implica a criação do «outro» pelo não saber, pela sua inclusão no mundo natural, e exclusão do mundo civilizado (Liengme, 1844-1894; Maugham, 1906; Pina, 1940; Silva Tavares, 1948; Santos Reis, 1952). Os conhecimentos sobre saberes e práticas terapêuticas vão sendo decompostos em função da sistemática classificatória da ciência moderna. Esta compartimentação de saberes vai permitir a apropriação, por parte do sistema colonial, dos princípios farmacológicos de produtos conhecidos pelos terapeutas locais, conforme atestam vários comentários de sábios portugueses em missão de serviço em Moçambique: «Os remédios empregados pelos doutores indígenas são numerosos, por eles largamente utilizados em múltiplas doenças e, às vezes, com assinalado êxito. N a flora indígena muito há a estudar e, possivelmente, algumas coisas a aproveitar» (Santos Júnior e Barros, 1952: 615). E m simultâneo, ao se localizar o saber e posteriormente restringir o conhecimento apenas ao seu conteúdo simbólico, as comunidades ganham uma aura de exotismo, possuindo interesse como mercadoria para o turismo étnico, bem como para o estudo antropológico desta diferença (Meneses, 2000). A o identificar o saber local com o «sagrado» desvia-se o foco da acção para longe dos autores, ao mesmo tempo que se reinscrevem continuamente as barreiras entre o 1 1 Inicialmente pelo Estado colonial, mas mantendo-se a prática no periodo pós-independência, i.e., após 1975. 1 2 Ministérios, Faculdade de Medicina, de Direito, etc. 82 mesmo e o outro, barreiras estas que sustentam o conhecimento como colonização. Os extractos de trabalhos que apresento em seguida são exemplo da continuidade subterrânea de u m discurso onde a oposição entre medicina e magia é reinscrita através da divisão entre biomedicina e medicina tradicional. Ontem, tal como hoje, a «medicina tradicional» surge associada ao saber localizado, nativo, indígena (Batalha, 1985; Green, 1996; Green et aí., 1999). O feiticeiro não oferece nada de extraordinário. E um preto como os outros (...) tendo apenas a esperteza bastante para se impor à sua consideração incurindo-lhes um respeito misterioso por seus processos clínicos, faculdades divinatórias e recursos para resolver várias dificuldades da vida. (...) Mas no geral não passa de um intrujão (Cruz, 1910:140). Neste extracto é ainda exemplar o modo hostil como o sistema colonial avalia negativamente as práticas médicas, ao tentar estabelecer uma equivalência entre o feiticeiro e médico tradicional. Feito o diagnóstico em que se desprezam sempre os simptomas físicos, os doentes são encaminhados [pelos «médicos negros»] assim se trate de males causados por espíritos de deuses, feiticeiros, de poluição pelos mortos (...) Contudo, o «médico negro» não é, no geral, um charlatão, actua consciente e confiante na sua ciência (Swalbach e Swalbach, 1970). Outro aspecto característico da medicina moderna é a sua fraca abertura em relação a outras possíveis formas de diagnóstico, que, por serem diferentes, não são reconhecidas em pé de igualdade enquanto meios auxiliares de detecção dos males. Há curandeiros que efectivamente curam com base em certos medicamentos obtidos a partir de raízes, plantas, etc., mas o curandeirismo espiritista é, sob todos os pontos de vista, negativo e obscurantista por excelência (Castanheira, 1979:12). [A medicina tradicional é] o conjunto de conhecimentos empíricos, desorganizados, deturpados do seu conteúdo pelo processo de transmissão oral e muitas vezes revestidos de práticas obscurantistas, tais como ritos, etc. [E função do GEMT 1- 1] depurar os conhecimentos existentes de todas as ideias obscurantistas de que geralmente se encontram impregnados e assim promovê-las a conhecimentos científicos, a fim de os utilizar em benefício de todo o Povo (Serviço de Nutrição, 1981: 3-5). Os dois últimos extractos, que reportam ao período pós-independência, ilustram bem a tentativa de imposição do saber moderno pela anulação das práticas que não actuavam de acordo c o m os ideais de desenvolvimento moderno preconizados pelo partido Frelimo (desde então no poder) e pelo Estado. 1 3 Gabinete de Estudos de Medicina Tradicional, fundado no Ministério da Saúde com o objectivo de promover a ligação com a medicina tradicional (Serviço de Nutrição, 1981). Em conversa rnantida, em Abril de 2000, com A. Agostinho (bioquímica), responsável pelo GEMT, ficou clara a continuidade da política do Estado em relação à medicina tradicional. 83 Finalmente, o extracto que se segue, e tentando fazer u m apreciação mais específica da diferença entre a medicina moderna e a medicina tradicional, reforça a ideia da dualidade das práticas, apoiando implicitamente a subordinação do tradicional ao moderno. Nas culturas tradicionais [da Africa Austral14], o processo de cura assenta no princípio de desequilíbrio, resultando em problemas mentais ou de natureza física. Pelo contrário, a ciência médica assenta num dualismo cartesiano, na separação da mente do corpo; (...) a ênfase é colocada no curar do corpo, na eliminação do sofrimento físico (Hewson, 1998: 1029).15 A o mediar entre a prática da acção e a intenção de quem selecciona o conteúdo das representações, é possível produzir fenómenos que constituem realidades distorcidas, o que justifica a preservação da oposição nós/outros, de cariz marcadamente geocêntrico (Goody, 1979; Barth, 1995; Santos, 2000). A força hegemónica da ciência moderna produz pois a localização de saberes, os quais tanto podem ser causa de discriminação, como fonte de resistência a essa globalização. Mas como se percebem a si mesmos os médicos tradicionais? O localismo surge como forma de segurança e afirmação de uma especificidade própria, de u m saber que lhes pertence e que por isso mesmo lhes permite negociar, e conquistar mesmo, espaços de poder. Para os médicos tradicionais, a sua «medicina» é a que acontece «nos lugares daqui».1 6 O s próprios pacientes estabelecem uma distinção muito clara entre os limites e a aplicação da biomedicina e da medicina tradicional, distinção feita em função do contexto de produção/reprodução de conhecimentos sobre o b e m e sobre o mal. 3. Os médicos tradicionais e a medicina tradicional - o conceito de s a ú d e 1 7 3.1. «Ter saúde é ter boa vida...» Para a maioria da população da cidade de Maputo , e mesmo no sul do País, o conceito de saúde é bastante amplo, referindo-se implicitamente à existência de u m balanço social, noção esta que não é exclusiva a Moçambique nem a África, pois que presente em várias culturas dando origem a distintos sistemas médicos. «Ter uma vida boa» é a expressão que melhor resume o que se entende por 1 4 A autora trabalhou sobre a África do Sul e Moçambique. 1 5 A tradução é minha. 1 6 Zimba, M.F., entrevista pessoal. Agosto de 2000. 1 7 Na perspectiva da biomedicina, a saúde deve ser compreendida no contexto mais amplo do desenvolvimento de um país, de uma região, deuma dada comunidade (WH0,1996) 84 ter boa saúde. V i d a boa traduz-se em «ter uma casa b e m construída, ter comida bastante, ter dinheiro para a roupa, para sabão, para as crianças i rem à escola, para o hospital»; «sentimos bem quando não há problemas, temos comida, a família está bem». 1 9 A expressão destes sentimentos sugere que para se estar bem de saúde é necessário realizar em si mesmo u m equilíbrio essencial, estar em paz c o m a família (incluindo os antepassados), c o m os vizinhos, c o m o próprio corpo (incluindo a higiene), estar convenientemente alimentado (o que na actualidade inclui ter emprego que garanta o sustento) e protegido de males, sejam estes naturais ou «enviados». A inveja suscitada pelo facto de alguém produzir bastante na machamba, de alguém ter u m b o m emprego, pode fazer c o m que u m familiar ou amigo recorra a u m terapeuta tradicional para, através de feitiços, procurar apoderar-se desses bens, desse «bem-estan>, molestando quem os possui: «As pessoas agora sofrem muito de azar e mor r em mesmo por causa de feitiços, sem ser o destino delas». 2 0 Estas concepções sobre o papel dos médicos tradicionais requerem uma análise mais complexa da chamada «medicina tradicional», uma reavaliação quer da ética, quer dos princípios éticos subjacentes às interpretações que projectaram a produção conceptual sobre esta medicina. 3.2. Medicina e feitiçaria U m a discussão sobre as delimitações éticas de u m sistema médico que se estende muito para lá dos limites estabelecidos para a biomedicina exige o alargamento da discussão ao campo da chamada feitiçaria. Conforme anteriormente mencionado, o processo de negação do saber da medicina tradicional passou pela identificação da imagem deste terapeuta à do feiticeiro. 2 1 Mas trata-se de actores bem distintos, como o afirmam quer pacientes, quer praticantes da medicina tradicional: Há diferença entre curandeiro e feiticeiro. O curandeiro cura e o feiticeiro mata. O feiticeiro conhece remédios para matar. Enquanto que nós, os curandeiros, curamos porque é essa nossa obrigação (...) os espíritos obrigam assim, senão castigam.22 Para acabar c o m esse azar, c o m a má sorte, é preciso a ajuda do médico tradicional, ponto de auxílio no restabelecimento do equilíbrio. Mas o médico 1 S Fabião, A., entrevista pessoal. Abril de 2000. 1 9 Boane, A., entrevista pessoal. Março de 2000. 2 0 Salomão, P., entrevista pessoal. Julho de 2000. 2 1 Outro fenómeno de desacreditação assenta no uso da palavra «curandeiro», palavra esta que, para muitos dos praticantes da medicina tradicional na cidade de Maputo, é sinónimo de feiticeiro. Assim, e para reivindicarem um espaço de representação e de poder semelhante ao dos praticantes da biomedicina, exigem para si a designação de «médico tradicional». 2 2 M. , Suzana, entrevista pessoal. Fevereiro de 2000. 85 tradicional também pode ser maliciosamente utilizado: As feitiçarias vêm da ambição e do ódio entre as pessoas. (...) Há plantas e animais venenosos que, mal orientados, podem causar o mal. (...) Há raízes malandras. (...) Há responsáveis que nos contactam para lhes ajudar a resolver problemas lá no governo, mesmo quando querem mais força para governar. Há plantas que ajudam a resolver problemas sociais e complicações no serviço.23 N o tempo presente, a procura constante do médico tradicional torna-se mais visível, pois que são inúmeras as pessoas em busca de sucesso - promoções, riqueza, negócios, etc. —, mas a quem os recursos quer da sociedade moderna, quer da tradicional não têm sorrido. A própria classificação e sistematização das doenças identificadas como possíveis de ser tratadas pelos terapeutas tradicionais entrevistados na cidade de Maputo é bem diferente da utilizada pela biomedicina. A o lado de epilepsias, sarnas, tuberculose, «dor-de-olhos», emergem outras patologias como «conflitos conjugais», «feitiçaria», «azan> e «espíritos maus». N o sector tradicional da sociedade, se as coisas não caminham bem, quando a produção não é boa, quando «há azan>, o médico tradicional é consultado para procurar localizar e explicar a fonte deste problema, para dar remédios para eliminar a fonte do mal (evitando-a mesmo de futuro), ou ainda para restaurar a ligação aos antepassados. Quanto à questão da feitiçaria, a sua face visível para análise assenta essencialmente nas acusações, nos boatos sobre a questão (Tique, 2000), o que coloca inúmeros problemas quanto à avaliação da sua permanência e eficácia. Já que crimes desta natureza as autoridades e os tribunais não atendem por falta de provas materiais (...), as pessoas morrem, caem doentes, ficam paralíticas por causa destas barbáries dantescas, por causa desses feiticeiros que reinam e proliferam nas nossas povoações. E a lei ignora isso, chegando ao ponto de defendê-los. Qual é a diferença que existe entre um assassinado pela feitiçaria e outro por uma punhalada ou baleado? Não é o mesmo crime? Só porque o primeiro é feito, sei lá em silêncio e espiritual? Ou existe um medo nos homens da lei ao se distanciarem desse problema sério da natureza tradicional com o receio de se descobrir que afinal de contas os feiticeiros «pululam» mesmo até nos órgãos da justiça? (Phaindanne, 2000). N u m primeiro momento urge observar a pertinência da oposição entre o saber científico e as representações locais no discurso sobre o «outro». E m b o r a nos dias de hoje esta ideia persista em muitos trabalhos, o que importa é identificar a quem estas situações beneficiam, como é que a feitiçaria está directamente relacionada c o m a reprodução ou ruptura da ordem sociaL A persistência do fenómeno de acusações de feitiçaria, ao transportar consigo uma enorme ambiguidade - porque ligada a qualquer forma de poder - demonstra ser 2 3 Extracto de uma entrevista a Arruda Safar Gina, médica tradicional. Jornal Domingo, de 13 de Janeiro de 1991. 86 essencial ao funcionamento social, fornecendo u m poder suplementar que pode mesmo servir para fins construtivos. Ass im, a feitiçaria deverá ser percebida como compondo a possibilidade de resistir às mudanças e às desigualdades continuamente emergentes, podendo suscitar também tentativas de apropriação de novos recursos. Há gente que fica mesmo rica, cheia de dinheiro de familiares, de colegas de trabalho. Para serem chefes, para desenrascar mais a vida, vão no curandeiro. O médico bate as pedras,24 chama os antepassados para ajudarem, para aumentar a força desse ambicioso, contra o <¿nimigo» dele. Ninguém depois pode mudar nada, se não encontrares um médico tradicional ainda mais forte ainda que esse que fez o remédio para a pessoa enriquecer e ter mais força no trabalho, ser um chefe maior (...). Eu vim aqui só porque quero estar bem com a minha família, fazer «vacina», senão tudo vai correr esquisito no serviço, há muita inveja...25 A tenacidade c o m que a feitiçaria i r rompe na sociedade moçambicana faz c o m que as concepções do poder e do seu exercício tenham implicações específicas, pois que estas situações são simétricas em termos de sentimentos de força (protecção — médico tradicional) e impotência (inveja — feitiçaria). A medicina tradicional oferece os meios para açambarcar o poder; ao mesmo tempo ela reflecte sentimentos de impotência, pois que parece servir para ocultar as fontes do poder. E m sociedades onde o papel das redes familiares é extremamente forte, a feitiçaria e o apelo ao médico tradicional para a promoção social demonstram quão ligados estão estes dois fenómenos, que serão adiante analisados em mais detalhe. O discurso sobre a feitiçaria não é exclusivo a Moçambique (Geschiere, 1995; Englund , 1996; Mappa , 1998; C o m a r o f f & Comaroff , 1999), nem tão pouco ao continente africano (Taussing, 1987; Escobar& Pardo, 2000). Porém, na região onde este estudo tem lugar, a feitiçaria actua c o m o u m espelho privilegiado que permite ampliar a manipulação do «tradicional» no jogo de construção de uma «outra modernidade». Os discursos sobre feitiçaria não exprimem uma resistência ao desenvolvimento moderno; outrossim, constituem reflexos de uma luta constante p o r uma vida melhor. Porque a medicina tradicional se constitui como u m sistema aberto, formalmente delimitada apenas a nível dos estatutos de uma associação conforme será adiante discutido, inúmeras são as possibilidades de explicação para os problemas e dilemas que a vida coloca. Isto torna possível uma interacção antropofágica de distintos elementos, os quais fazem parte do projecto de constituição de uma «outra modernidade» (Ong, 1996; Santos, 2003). Neste sentido, as acusações de feitiçaria, longe de reforçar uma alteridade radicalmente diferente decorrente de u m exotismo 2 4 I.e. os tinholo, os ossículos divinatórios usados como meio auxiliar de diagnóstico pelo médico tradicional. 2 5 Augusto, L , entrevista pessoaL Maio de 2000. 87 estranho, são u m discurso de luta sobre problemas que afectam a família, a comunidade, a sociedade. D o breve conjunto de opiniões acima apresentado, o que parece emergir de específico é o facto de, num contexto de procura de solução para u m mal, os conceitos de conflito e desequilíbrio social constituírem o eixo central em torno do qual se processa o tratamento e a cura da pessoa que está enferma. E neste espaço social que predomina a figura do médico tradicional. 3.3. Quem é o médico tradicional? E m b o r a existam várias designações para os terapeutas tradicionais, a designação mais comummente utilizada é a de «nyanga». 2 6 O nyanga é aquele que cura, o que conhece a força dos remédios e como curar c o m o auxílio do saber de espíritos ancestrais. N u m texto que procura dar voz e relevo a distintos actores, necessário é que os médicos tradicionais se apresentem a si mesmos, delimitando a sua especificidade e áreas de contacto c o m os terapeutas modernos. U m aspecto interessante é o facto de todos os médicos tradicionais se eferirem ao período inicial da sua «chamada» pelos espíritos dos antepassados Dara aprenderem a ser médicos, como u m período muito difícil, rodeado de dor e sofrimento: Eu estava na África do Sul a trabalhar nas minas, e depois fiquei muito doente, não conseguia trabalhar. (...) Depois vim para Moçambique, consultei um médico que me disse que eu tinha espíritos que queriam sair (...). Fiz o curso e fiquei médico tradicional. Aprendi muito, porque não é só espíritos, é saber tratar com plantas, ajudar as pessoas.27 Para eu ter estes espíritos que hoje me ajudam a ser curandeira, fiquei muito doente, mesmo muito doente, quase três anos que não fiz nada, não ia na machamba, nem comida aguentava tomar. Levaram-me ao hospital (...). Então disseram que tinha espíritos e mandaram-me para aprender a ser curandeira.28 A selecção do futuro médico tradicional acontece através de u m mecanismo de ruptura conturbada (física e espiritual 2 9) c o m a sua família e comunidade, mecanismo este que parece estar fora do controlo do candidato a terapeuta. Enquanto decorre o processo de percepção do seu novo papel social, o candidato sofre de inúmeros males físicos e psicológicos, emergentes sem uma 2 6 No sul de Moçambique o termo njanga é traduzido como curandeiro, ou médico tradicional (Galvão da Silva, [1790]1955, Simões Alberto, 1965, etc). O njangarume corresponderá ao ervanário, ou seja, o terapeuta que trata com a ajuda de plantas, não contando com a força dos espíritos para o ajudar a solucionar males (Temba, 1992). 2 7 Zimba, F.M., entrevista pessoaL Junho de 2000. 2 8 Macie, H., entrevista pessoaL Fevereiro de 2000. 2 9 Pois que durante o processo de formação a pessoa fica isolada da família, mantendo com esta poucos ou nenhuns contactos, mesmo se tiver filhos e/ou marido/esposa. 88 razão plausível (e por isso sem cura) dentro do paradigma da biomedicina. O mal estar que não é explicado actua como palavra-chave de acesso a u m universo distinto de sabedorias, as quais constituem o garante do poder de decisão do médico quanto ao desenlace de problemas críticos que terá de enfrentar na sua prática terapêutica. 3 0 Este ritual de ruptura acontecerá também sempre que u m problema de maior seriedade acontecer e requerer maior seriedade e conhecimento: «Depois, mesmo quando estamos a trabalhar e os espíritos saem, dói muito, fico c o m os braços e as pernas fechados, nem consigo me mexer, xeü, nada mesmo. Custa mesmo quando eles saem na gente». 3 1 Ta l c o m o referido por inúmeros médicos tradicionais, os espíritos ancestrais 3 2 apropriam-se momentaneamente do corpo do terapeuta para apoiarem o médico no diagnóstico da enfermidade, no detectar das suas origens, bem como na selecção dos remédios necessários para a debelar. O período de aprendizagem de u m «thwasana» 3 3 prolonga-se normalmente de dois a cinco anos, podendo ser mais longo. Sob orientação dos antepassados que o escolheram para dar continuidade aos seus saberes, o candidato selecciona o «b'ava» 3 4 c o m que vai aprender a tornar-se n u m terapeuta qualificado: E duro estudar para ser curandeiro. Temos de aprender muita coisa. Temos que aprender a saber o que é que causa o problema, saber as plantas que curam, saber as diferentes doenças, e como curá-las, com que plantas, animais, muitas coisas. E preciso ter muito cuidado para não cometer erros. Aprendemos a conhecer e depois nas reuniões conversamos com os colegas.35 Não é simples aprender a ser-se médico tradicional: os princípios éticos com a pessoa humana estão patentes no cuidado em se evitarem erros e no segredo profissional sobre os males de que padecem as pessoas, entre outros aspectos. A doença é algo fora do normal que se instala no corpo e que por isso se faz sentir. O incómodo, a dor, são sinónimos de uma alteração profunda do equilíbrio. 3 6 É , pois, preciso tratar, localizar a origem do problema (física ou 30 y e r também Honwana, 1996 e Temba, 2000, esta última avaliando a questão dos médicos tradicionais na perspectiva de género. 3 1 Tamele, C , entrevista pessoal. Maio de 2000. 3 2 Uma das características mais reafirmadas em vários dos textos em relação ao «conhecimento tradicional» parece residir no carácter ancestral deste saber, reconhecido e mantido através de gerações, através do apoio dos «antepassados» (Florez, 2000; Xaba, 2000). 3 3 Estudante de medicina tradicional. 3 4 Trata-se de um termo respeitoso que se utiliza para fazer referência a alguém muito estimado e com grande sabedoria, em suma, um notável da comunidade. No contexto presente, refere-se a um médico tradicional experiente (homem ou mulher), que ministra cursos. 3 5 Cossa, P., entrevista pessoal. Junho de 2000. 3 6 Por isso o facto de muitas doenças serem explicadas como «sente a cabeça», «dói a perna». 89 espiritual) e restabelecer a normalidade. O mal pode ser derivado de não se cumprirem as regras sociais (caso das «timhamba» 3 7), de os mortos não terem sido correctamente enterrados, do contágio c o m objectos impuros, e ainda fruto da acção dos espíritos maus (os «valoyi» 3 8). Muitas vezes as pessoas vêm aqui ter comigo, me consultar, porque fizeram maldades e porque as coisas estão a correr mal, porque há azar na sua vida. Depois, há muitos homens com doenças que apanham das mulheres, agora há muito problema desse aqui no Maputo, mesmo SIDA [embora se escuse a responder se pode tratar o SIDA]. Eu depois bato as pedras. As vezes sai logo a resposta, às vezes não. Cada vez é cada vez. Mas só assim consigo saber bem mesmo o que a pessoa tem. (...) Outros casos é preciso«kufemba»39, para ver os espíritos que o doente tem. Eles vão dizer o que é que eles querem. São problemas que aconteceram e não resolveram. Quando houve a guerra, lá na zona de Gaza morreu muita gente, mesmos dos nossos mataram. Então agora, a pessoa está a passar e ele sai, o espírito, e fica dentro de ti, a precisar de resolver o problema dele. A pessoa fica doente mesmo, vai emagrecendo, emagrecendo, e ninguém no hospital pode ajudar. Só o médico tradicional pode, tem de fazer tratamento para deixar esses espíritos saírem e dar a eles o que eles querem para ficarem felizes.40 A causa do mal define-se, pois, através da localização, palpável ou não, visível ou não, olfactiva o u não, de u m objecto estranho, que se introduziu no corpo de uma pessoa. Para aliviar o mal é preciso recorrer a remédios — aos «mirhri» 4 1 - o que permite atingir de novo o estado de saúde. O remédio pretende sarar a carne, a dor que faz sentir esse pedaço da pessoa, e ao mesmo tempo restaura a confiança do indivíduo em si mesmo. O nyanga cuida do corpo, sara as feridas, elimina os padecimentos do organismo utilizando os conhecimentos que tem sobre a natureza e, e m simultâneo, trata as perturbações da cabeça e do espírito, causadas pelos desajustes socioeconómicos, por traumas profissionais. 3 7 Missas para assegurar a manutenção de uma ligação aos antepassados. 3 8 Plural de nqyi. O noyí é um espírito com poder para fazer mal, podendo mesmo provocar problemas à distância por interposta pessoa, através da qual actua. Normalmente os valoyi actuam à noite, introduzindo corpos estranhos no corpo de uma pessoa, a qual vai definhando até morrer, de dia o espírito pode actuar através de elementos que «contaminou». O noyi pode ainda utilizar alguém que ele «abriu» e em cujo corpo se meteu, tornando-o seu escravo. Podem as pessoas ser transformadas em animais, como leopardos, hienas, serpentes, ou serem forçadas a trabalhar nos campos para o espírito, ou ainda a roubarem as coisas para o espírito (Muthemba, 1970; Polanah, 1987; Honwana, 1996). 3 9 I.e., «farejao> os espíritos maus, para os agarrar, já que são a origem do mal, do problema. O espírito só pode ser localizado pelo odor, por isso se «fareja» a alma dos antepassados insatisfeitos, ou a dos valoyi. 4 0 Tamele, C , entrevista pessoal Março de 2000. 4 1 Plural de murbi, que significa plantas, e num sentido mais lato se refe aos medicamentos. 90 3.4. Sobre as doenças O s médicos tradicionais são os terapeutas que melhor parecem saber lidar c o m as doenças ditas «tradicionais», i.e., doenças c o m uma pesada carga emocional, pois que trabalham c o m o corpo e c o m os espíritos, espíritos esses que «ocupam o corpo» e causam diversos problemas aos pacientes. O nyanga desempenha, assim, uma tarefa dupla: divinatória e curativa, assente numa concepção mais ampla da doença, percebida a dois níveis: como fenómeno social — como uma alteração profunda da vida quotidiana — e enquanto fenómeno físico — c o m o manifestação de acontecimentos no corpo de uma pessoa. A função divinatória procura tratar as causas que originaram o mal, prescrevendo meios para a solucionar. A função curativa procura eliminar os sintomas físicos. Estas duas funções são complementares, pois concorrem para o restabelecimento pleno do doente. Para o médico tradicional, curar significa remover todas as impurezas o u desequilíbrios da vida do paciente, pelo que cada tratamento termina normalmente c o m uma cerimónia de purificação, prevenindo contra situações semelhantes de futuro. N a sociedade moçambicana, tal c o m o noutras sociedades, a feitiçaria actua como elemento regulador das pressões sociais dissonantes (Meneses, 2000; Santos, 2003). Q u e m tem muito dinheiro, poder, é porque o t omou de outra pessoa, apoiado por alguém. Q u e m morre, quem sofre «azares», é porque está «doente», tem problemas c o m o sucesso, há alguém que não quer que ele se diferencie; pode também tratar-se de alguém tentando romper a ligação ao micro-universo de pertença social. P o r exemplo, a infertilidade é por vezes interpretada como sendo causada por alguém que não quer que a mulher «prenda» o marido, o que em última instância implica a anulação de u m casamento, do reforço dos laços familiares e comunitários. Para a resolução deste problema há que recorrer a todos os meios, incluindo o recurso a outras medicinas que não «tradicionais»: Quando uma mulher não concebe, nós tratamos e quando passa um mês, aconselhamos a ir ao hospital para fazer o controle. Depois volta e fazemos um tratamento para «segurar» a gravidez, o bebé na barriga da mãe. Tudo é importante, o hospital, os nossos remédios. Aí não há problemas.42 O s médicos tradicionais reconhecem a sua incapacidade para resolver a totalidade dos casos que se lhes apresentam e, frequentemente, após várias tentativas frustradas de sarar o problema, sugerem que o doente vá consultar terapeutas praticando outras medicinas, incluindo a biomedicina, simbolizada pelo hospital. A pluralidade de sistemas médicos produz pois esta possibilidade de recurso simultâneo a várias formas de «tratamento», permitindo a 4 2 Yussufo, M. , entrevista pessoal. Dezembro de 1999. 91 delimitação de u m problema c o m expressão física. E m paralelo actua igualmente o sistema de punição e de regulamentação do mal. São duas faces de uma mesma moeda — o mal físico e o mal sociaL as tensões, os conflitos individuais e os comunitários, n u m sistema ainda em transição (e frequentemente em ruptura) para uma sociedade de acumulação capitalista individual. A percepção sobre a doença, as tentativas para a curar ou para a evitar, têm de ser entendidas e discutidas em função de cada u m dos sistemas de conhecimento presentes — o da biomedicina e os das medicinas tradicionais existentes — pois que as noções de causalidade (etiologia) por vezes não são coincidentes. O médico tradicional, tal como os seus pacientes, não distingue necessariamente entre curar e tratar, entre sintomas objectivos e subjectivos, entre dados clínicos mensuráveis ou não mensuráveis, questões essenciais à prática da biomedicina. O médico tradicional está interessado em resolver o problema, em controlar os sintomas, em restaurar as funções físicas e as relações sociais afectadas. C o m o diz M . F. Zimba, «quando a cabeça não trabalha, o corpo é que sofre», resumindo o pressuposto principal do seu trabalho como médico tradicional. E m b o r a muitas outras formas de medicina advoguem igualmente o princípio de que a causa da doença está na ruptura do equilíbrio e da harmonia da pessoa, para a biomedicina quando o corpo está bom, a desordem foi debelada. Entre os médicos tradicionais entrevistados, a questão que surgiu sempre foi a de que a harmonia ou o bem-estar da pessoa é reflexo do bem estar do seu grupo, da sua rede de amizades e familiar, e que a doença altera a relação entre as pessoas. Neste sentido, ao estudar um determinado caso, o nyanga promove a reintegração do indivíduo num jogo de interesses solidários com o grupo, procurando manter a pressão dos conflitos emergentes, sendo detentor de um conhecimento que cria e desenvolve continuamente, para assegurar a manutenção do grupo. C o m o diria Lewis Carroll (1977), temos de manter-nos em contínuo movimento para que o grupo se mantenha como está. Outro facto a ter em atenção é o da contaminação, no sentido em que frequentemente a doença (se resultante de contágio de espíritos «insatisfeitos») caso não seja bem curada, poder afectar outras pessoas do grupo. O não cumprimento das obrigações para com os antepassados pode resultar na anulação da protecção destes à pessoa, ao grupo familiar e mesmo à comunidade, uma vez que os espíritos dos antepassados permanecem parte integrante da estrutura familiar. O retornoda ligação interrompida é reclamado através da erupção do mal provocado pela ausência de defesa por parte dos guardiães ancestrais, facto que de novo remete para a feitiçaria como sistema regulador dos desequilíbrios sociais. 92 A forte dinâmica de actuação do médico tradicional contrasta c o m o projecto do Ministério da Saúde 4 3 sobre a colaboração c o m os praticantes da medicina tradicional, como parte da sua política de saúde (Jurg et al., 1991; Frelimo, 1999). O quadro da saúde pública desenvolvido pelo Estado após a independência, coloca ênfase especial no sector preventivo. Pretende-se, assim, alcançar a maioria da população do país, rural ou peri-urbana, através do estabelecimento de urna vasta rede de unidades e de agentes sanitarios de base capazes de prestar cuidados de saúde elementares, bem como de promover a saúde pela educação e pela melhoria das condições de higiene. O resultado de tais políticas depende, em primeiro lugar, da participação das populações a quem se destina tal política.4 4 E por isso que a Organização Mundial de Saúde ( W H O , 1978) tem vindo a recomendar a inclusão dos «praticantes tradicionais de saúde» nos sistemas nacionais de saúde. U m a vez que esta política concebe as populações como parceiros desta campanha, e não apenas como receptores passivos, torna-se necessária a recuperação dos elementos que desde há muito se encontram directamente ligados a tais práticas dentro das comunidades — os terapeutas locais. Esta justificação tem vindo a ser utilizada pelo Estado para legitimar o seu interesse pela medicina dita tradicional, embora não seja suficiente para esclarecer as ambiguidades subjacentes que pesam quer sobre a noção de valorização da «medicina tradicional», quer sobre as experiências práticas que são recomendadas. A o promover um discurso que defende a integração da medicina tradicional dentro da medicina moderna, o Estado e a própria O M S (Jurg, 1992; Monekoso, 1994; Wor ld Bank, 1994; Aregbeyen, 1996; W H O , 1996; Friedman, 1996) pretendem retirar aos terapeutas tradicionais o controlo sobre o tratamento — nos seus varios matizes — da maioria da população. A o defender a formalização da «medicina tradicional» em função da medicina moderna, a primeira é circunscrita a um conjunto de conhecimentos empíricos — plantas medicinais, farmacopeias, e «savoir-faires» — técnicas corporais, epidemiologías (Tomé, 1979; Marrato, 1995; Lambert, 1997). O saber do médico tradicional só é válido como complementar à biomedicina; o terapeuta tradicional é visto como aquele que precisa de ser treinado, mas que não participa no treino dos biomédicos (Nordstrom, 1991; Cunningham, 1995). Este facto tem produzido u m certo ressentimento condescendente entre os médicos tradicionais: «não guardamos rancor a eles [í.e., praticantes da medicina moderna] mas queremos também reconhecimento, tem 4 1 Entidade do Estado que mais directamente se relaciona com a medicina tradicional. 4 4 Sendo aqui de referir que em Maputo, em termos de assistência hospitalar no quadro da medicina moderna, a relação é de 1 médico por cada 48-50 mil habitantes, enquanto a relação médico tradicional/paciente é de 1 para cada 1000 a 1500 pacientes, situação bastante semelhante à de outros países da região. 93 que respeitar a nós [...] queremos trabalhar c o m eles, mas também ensinar aquilo que a gente sabe, não é só as plantas».45 Todos estes aspectos sugerem que se deve avaliar mais profundamente as importâncias e as legitimidades dos saberes. 4. A importância da medicina tradicional 4.1. Entre a legitimação e a legitimidade Impõe-se uma análise rápida do papel do actor privilegiado que é o Estado, árbitro que se atribui u m estatuto especial, ao elaborar as regras e, em simultâneo, participar no jogo. A o estudar quem são os actores autorizados e /ou favorecidos pelo Estado, que saberes são tolerados ou reprimidos, que actuações reconhecidas, ou, mesmo, o que se ignora, é possível obter uma noção mais forte e profunda das lógicas de acção do Estado. Isto implica ir mais longe, requerendo a análise dos campos de força em função do reconhecimento social das diferentes categorias de praticantes de saúde, num jogo complexo entre a concorrência e a complementaridade (Fassin & Fassin, 1988). Para o Estado, hoje, tal como ontem, a delimitação do que é saber e magia, do que é considerado oficial e do que não o é, é feita em função de práticas normalizadas que este mesmo Estado controla. N u m a perspectiva de legitimação racional que se impõe c o m o sistema colonial, só quem estudou nos centros formalizados de saber é que está autorizado a praticar medicina. Terá sido esta uma das razões de fundo que levou, no início da década de 1990, muitos dos médicos tradicionais a constituírem-se em associação — a A M E T R A M O —, facto que será discutido na secção seguinte deste texto. O s utentes legitimam os praticantes de cuidados de saúde que consultam, sejam eles treinados na biomedicina ou na chamada medicina tradicional. Normalmente associa-se espontaneamente a legitimidade tradicional ao nyanga, e a racional ao médico moderno, este último em função dos seus diplomas. A aceitação relativamente a estes terapeutas depende e é garantida pela lealdade de quem os reconhece e os valoriza como herdeiros de sabedoria. A permanente procura destes terapeutas assegura a sua legitimidade, o reconhecimento da sua competência neste campo de conhecimento. Entre os próprios terapeutas, a legitimidade é reforçada pela pertença e partilha de u m saber ancestral, recuperado nas «visitas» dos espíritos. O compromisso de procurar curar o paciente, bem como a conduta moral do médico tradicional, acabam tendo reflexo no seu sucesso como terapeuta; «Quando tem trabalho bom, tem que ser conhecido. A s pessoas sabem que eu 4 5 Zimba, M.F., Tamele, C , Cossa P., entrevista colectiva. Setembro de 2000. 94 posso curar doenças, vêm de longe [...]. Ouviram falar que existe u m curandeiro no Maputo que cura esta e aquela doença. E assim que se sabe que eu sei curar bem, porque curei a muita gente». 4 6 U m a das formas mais notórias de desclassificação da medicina tradicional pela medicina moderna passa pela caracterização da anterior como prática ilegal de saber, da sua negação pela ausência de procedimentos «científicos» como a experimentação, ou de noções sobre epidemias e contágios (Polanah, 1967-68, 1987; Junod , [1917] 1996). Todos estes factores confi rmam a caracterização «local» da medicina tradicional, a partir de uma visão «científica» moderna. E m contraste, o trabalho c o m os médicos tradicionais tem demonstrado que há u m aturado processo de pesquisa e busca de novos remédios e soluções, bem c o m o a troca de informações entre estes terapeutas, onde não é estranha a experimentação, fenómeno que nem sequer é recente: O meu avô, que foi um médico afamado no seu tempo, ensinou-me a curar desde pequenino. (...) Quando o meu avô faleceu, eu, dedicando-me ao estudo que ele legara, fui fazendo várias experiências e (...) convencido da utilidade desses remédios, fiz tratamentos de doenças que surgiram dentro da nossa família. Assim fui sendo conhecido desde há muitos anos como doutor (...) e fui salvando muitas pessoas de uma morte certa, adquirindo mais prática do meu trabalho e, devido à minha paciência e tenacidade, granjeei bastante fama (Madão, [1921] 1971: 9). Desta breve análise histórica ressalta que a medicina tradicional, sem que o Estado actual saiba bem o que esta faz, parece deter a capacidade de se ir ajustando, n u m complexo jogo de aceitação e rejeição, a novos sistemas terapêuticos, procurando negociar posições e manter o seu reconhecimento, enquanto a biomedicina busca ainda vias e meios para impor as suas competências. 4.2. A vitalidadeda medicina tradicional A s várias tentativas de supressão da medicina tradicional, ou pelo menos de delimitação da sua prática aos «sujeitos» indígenas, não civilizados, implicaram redimensionamentos da actuação destes praticantes, acções estas que constituem u m exemplo da extraordinária capacidade desta medicina em se adaptar e se apropriar dos mecanismos criados pelo Estado e m benefício dela (Meneses, 2000). Este tipo de interferência tem provocado crises periódicas de vulnerabilidade. C o m a implantação do sistema colonial, o Estado português tentaria eliminar estes terapeutas, desclassificando a sua actividade como se tratando de casos de superstição, de magia, etc. (di Celerina, 1846; Cunha, 1883; Junod , 4 6 Zimba, M.F., entrevista pessoal. Abril de 2000. 95 [1917] 1996; Silva Tavares, 1948). C o m o consequência, e c o m especial incidência durante os anos 1920 e 1930, vários «curandeiros» foram presos e condenados ao degredo. Todavia, rapidamente, mercê da ausência de médicos e enfermeiros nos territórios, o Estado colonial aceitou a presença de curandeiros, po r não ter alternativa ao sistema de cuidados de saúde presente no terreno: A medicina indígena tem sido tolerada e deverá continuar a sê-lo, enquanto a assistência médica não puder chegar plenamente a todos os povoados do interior (...). Se a medicina gentílica deve ser tolerada em determinados pontos da Colónia, não será lógico usar do máximo rigor punitivo para os infortúnios clínicos dos ngangas não reincidentes. Além disso eles, de certo modo, devem ser considerados pessoas úteis no seu meio social, porque, à falta de melhor medicina, a que exercem não é de todo abominável (Gonçalves Cota, 1946: art. 68). Fruto da fragilidade do sistema colonial português, os médicos tradicionais vão mesmo solicitar e obter autorização formal (por parte do Estado) para actuar como terapeutas em locais onde não existiam praticantes da medicina moderna o u onde a confiança nestes não era grande. N o período imediatamente posterior à independência (anos 70-80), o primeiro movimento dos terapeutas tradicionais em Moçambique foi no sentido de obterem mais espaço público de actuação. D e entre os objectivos solicitados po r u m grupo de médicos tradicionais à Comissão de reestruturação dos serviços de saúde do Gove rno de Transição, 4 8 referia-se a necessidade de criar uma Esco la de Medic ina Tropica l , para formar mais terapeutas tradicionais. Es te pedido foi recusado, já no período pós-independência, [PJorque as práticas médicas tradicionais resumem-se a conhecimentos empíricos mesclados de obscurantismo. O reconhecimento oficial de uma organização de curandeiros 4 7 Mais censurada e perseguida era a prática da ordália, que passou a ser proibida em função dos ditames da justiça portuguesa. Vários dos artigos do projecto do Código Penal dos Indígenas propunham a punição de práticas consideradas de feitiçaria/magia: «O mágico ingénuo, sincero na sua arte, pratica um verdadeiro crime de envenenamento, mas consentido pela vítima, pois esta presta-se espontaneamente à prova da ordália, convencida de que a sua inocência triunfará de qualquer prova (...) a actuação do adivinho assume uma natureza de julgamento. Ele supõe-se o investigador dos feitiços que atingem os seus clientes e o juiz criminal dos feiticeiros. Ora, qualquer indígena sabe que não há hoje na Colónia outra justiça senão a exercida pelas autoridades portuguesas. (...) O respeito pelos costumes dos indígenas (...) é estabelecido nas nossas leis como um princípio fundamental da nossa política colonial, mas restrito a usos e costumes que não sejam contrários nem à moral, nem as ditames da humanidade, nem aos direitos de soberania do Estado» (Gonçalves Cota, 1946, art. 21). Ao banir o julgamento pela ordália, o Estado colonial reforçou a posição dos feiticeiros, cuja actuação não poderia mais ser identificada e julgada por este tipo de provas. Assim, ao sancionar a prática de feitiçaria, o Estado colonial abria também legalmente a possibilidade do feiticeiro acusar o seu ex-acusador, i.e., a sua vítima, de tentativa de assassinato (ver sobre o assunto Fisiy e Geschiere, 1990). 4 8 Agradeço a informação a L. Meneses. 96 significava a institucionalização do obscurantismo. (...) Isto implicava a prática de medicina privada, que então não era legal.49 Porque importava «recuperar o conhecimento, mas não o H o m e m , pois que a atitude deste é obscurantista», 5 0 e fruto da pressão exercida por vários praticantes da medicina tradicional junto a órgãos do G o v e r n o e do partido Frel imo, a Direcção Nac iona l de Medic ina Preventiva no Ministério da Saúde foi encarregada de criar os instrumentos necessários para se proceder à recolha e pesquisa de plantas utilizadas pelos praticantes de medicina tradicional (Castanheira, 1979; T o m é , 1979). N u m a altura em que o campo de actuação dos curandeiros era severamente limitado, a recolha de plantas e a discussão sobre a sua utilidade juntamente c o m o G E M T e o I N I A 5 1 constituíam uma das poucas possibilidades para a continuação da sua prática c o m u m carácter de semi-legalidade. E m b o r a tivessem esperado maior abertura em relação às suas actividades, «já que o país agora era nosso», 5 2 quer os médicos quer os magistrados do período pós-independência, em função da sua educação ocidental e dos objectivos políticos da altura, olhavam a feitiçaria e as práticas dos curandeiros como u m fenómeno vergonhoso, que deveria ser abandonado como condição para a construção de u m conhecimento novo, livre de misticismo e de obscurantismo. D e novo, no pós-independência, o Estado surgiu como aliado dos feiticeiros, ao manter a proibição da prática da ordália e a legitimação da sua aplicação pelas autoridades e instituições tradicionais. 5 3 Se no período colonial ainda algumas formas de actuação dos médicos tradicionais eram permitidas, agora a sua proibição instaurou-se, perseguindo-se todos os que eram considerados curandeiros (i.e., mesmo os que curavam pessoas e resolviam casos de feitiçaria). Neste ambiente abertamente hostil , os «terapeutas tradicionais» passaram a ser apelidados de obscurantistas, de detentores de mentalidades retrógradas (Castanheira, 1979; Tomé, 1979; Machel , 1981; Serviços de Nutrição, 1981), sendo punidos e mesmo condenados. 5 4 Nas palavras de M . F . Z i m b a , este foi realmente u m período muito difícil, e só a formação de u m grupo de médicos tradicionais poderia alterar tal situação: 4 9 Martins, H. (primeiro ministro da saúde de Moçambique), entrevista pessoal Março de 2000. 50 Ibidem. 5 1 Instituto Nacional de Investigação Agronómica. 5 2 Zimba, M E , entrevista pessoal, Abril de 2000. 5 3 Isto equivalia à proibição da detecção e punição de personagens considerados como detentores de um conhecimento mau, fonte de instabilidade social, e por isso nocivos à comunidade (ver nota 53). 5 4 Muitos teriam sido enviados para campos de trabalho, situados em locais longínquos, os chamados «Campos de reeducação». 97 Eu desde há muito tempo que fui falar com Machel [primeiro presidente de Moçambique], para ele ajudar a organizar-nos. Era preciso organizar, para poder trabalhar bem, não ser perseguido. (...) Depois ele mandou-me falar com Hélder Martins [então Ministro da Saúde]. Este não queria (...), ameaçou fuzilar, mas eu continuei (...). Depois conseguiu-se e fez-se o Gabinete de Apoio à Medicina Tradicional. Eu trabalhei muito com Leonardo Simão [médico, actual ministro dos Negócios Estrangeiros] lá no Ministério, no gabinete. Depois deixei de trabalhar lá. Agora estou em casa a trabalhar.55 N o final da década de 80, e c o m a introdução das políticas neo-liberais, a abertura em relação à medicina tradicional alargou-seaté que, em 1991, foi liberalizada a prática de toda a medicina privada. Isto tornou possível a constituição da A M E T R A M O — a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique. 5. A A M E T R A M O 5.1 A formação da Associação Depois da independência nacional, ao mesmo tempo que os médicos tradicionais viam a sua prática severamente cerceada, começam a ser contactados pelos juízes populares 5 6 para resolverem questões de feitiçaria, azares, etc. Isto sempre foi assim, mesmo no tempo colonial. Logo no tempo da Frelimo [i.e., no período imediato do pós-independência], quando havia problemas com feitiçaria, o tribunal fazia guia de marcha para os curandeiros resolverem os problemas de azar, feitiçaria. Agora já mandam menos [casos], não sabemos porquê. Agora são as próprias pessoas que vêm nos solicitar para desmascarar os feiticeiros.57 Seria a capacidade do médico tradicional (reconhecida a nível da comunidade) de actuar como medianeiro na resolução de problemas que terá levado, em grande medida, o Estado a tentar controlar estes terapeutas, usando como mecanismo a formação de uma Associação. A A M E T R A M O é, pois, u m encontro de vontades centrífugas, simultaneamente uma tentativa de controlo por parte do Estado (e mesmo de alguns partidos políticos) e u m espaço de reivindicação plural dos médicos tradicionais. Neste sentido, para os tinyanga, a Associação é imprescindível como espaço de legitimação racional, ao sentirem o risco constante presente na sua área de actuação profissional, reprimida po r um Estado que defende e promove a biomedicina, discriminando a medicina tradicional: 5 5 Zimba, M . F., entrevista pessoal Junho de 2000. 5 6 Instância básica então existente para a resolução de questões conflituais a nível da comunidade. 5 7 Zimba, M.F. e Cossa, P., entrevista colectiva. Agosto de 2000. 98 Temos o problema das detenções dos nossos médicos, quando morre um paciente em tratamento tradicional. Isso não se verifica quando o paciente morre no hospital, o médico não fica detido.53 [Queremos a] legalização da prática da medicina tradicional para que possa ser exercida abertamente e deixar de ser encarada apenas como objecto de negócio. (...) O que nós queremos é sermos autorizados a trabalhar dentro da lei, em paralelo com a medicina moderna. O curandeiro deve deixar de ser venenoso (...), por isso a nossa preocupação maior de momento é vencer a velha mentalidade sobre as actividades dos curandeiros. Escangalhar o passado para modernizar o nosso trabalho.59 E m paralelo, a Associação é necessária para a certificação da sua actividade, onde os seus dirigentes, através do formalismos burocrático-legais (emissão de cartões, diplomas, etc.) «reconhecem os verdadeiros curandeiros», separándo- os dos charlatães. Ta l como defendem os seus estatutos, a A M E T R A M O pretende estender o método de certificação e oficialização dos médicos tradicionais ao país inteiro, 6 0 para que possam trabalhar c o m mais segurança, participando na luta pela melhoria da saúde do povo moçambicano. Conforme a A M E T R A M O tem vindo a declarar repetidas vezes, «gostaríamos de trabalhar mais estreitamente c o m o Gabinete de Estudos da Medic ina Tradicional do Ministério da Saúde, no Instituto Nac iona l de Saúde, b e m como com outras instituições que se dediquem a actividade de prevenção e cura de doenças». 6 1 Finalmente, e como defendem os membros da A M E T R A M O , a formalização desta associação prende-se c o m a necessidade de reforço da capacidade organizativa dos médicos tradicionais, por forma a granjear mais 5 8 Entrevista de João Silva Zitha, da direcção da AM ETRAMO ao MediaFax de 19 de Abril de 2000. Em caso de morte de um seu paciente, o médico tradicional é julgado pelo código penal por crime de assassínio. Em princípio os médicos não são culpados da morte dos seus pacientes, se esta ocorrer fruto da incapacidade do hospital e/ou do conhecimento e meios disponíveis. 5 9 Palavras de Banú Idrisse (Presidente da A M E T R A M O até Abril de 2000), em entrevista ao jornal Domingo em 13 de Janeiro de 1991. 60 pelos estatutos, pode candidatar-se a membro efectivo da AMETRAMO qualquer pessoa que «venha exercendo a profissão de praticante de médico tradicional há mais de dois anos, com qualidade e idoneidade comprovada por duas testemunhas que sejam maiores de trinta e cinco anos e membros efectivos da Associação [...]. Caberá a estas testemunhas, que devem habitar na mesma zona onde o candidato a membro trabalha como médico tradicional, e que deverão ser capazes de avaliar o seu desempenho e testemunhar das suas aptidões e saberes terapêuticos, a partir da avaliação de vários casos comprovados de curas, comprovação esta que é legitimada pelos próprios pacientes». Uma vez demonstrada a sua aptidão, o médico tradicional recebe um cartão de membro, e passa a pagar as suas quotas anualmente. Todavia, quando os inquiri sobre a possibilidade de um praticante de acupunctura poder ingressar na AMETRAMO, a pergunta provocou surpresa, pois que o conceito de «medicina tradicional» se aplica num sentido muito restrito e específico — é o que é prática corrente valorizada e legitimada pelos locais... 6 1 Extracto de uma mensagem da direcção da A M E T R A M O , por altura da comemoração do segundo aniversário da celebração da escritura jurídica da Associação (01 de Setembro de 2000). 99 apoio e assegurar o seu estatuto social e profissional, limitando a concorrência por parte de outros terapeutas. D e facto, para além da competição e o não reconhecimento pela medicina oficial, surge agora u m outro dado novo — a competição po r parte de médicos tradicionais estrangeiros. 6 2 «Vamos pedir explicação sobre a entrada de médicos tradicionais estrangeiros no país. E se bem que esses médicos tenham autorização, vamos exigir ao G o v e r n o para os tais, antes de se apresentarem ao executivo, que tenham o parecer da Associação». 6 3 Para os médicos tradicionais, quanto mais ameaçado está o seu espaço de actuação, quanto mais enfraquecida está a sua legitimidade tradicional, mais forte é a necessidade de recorrer a u m reconhecimento oficial, recorrendo-se a estruturas «legais» para reprimir o «tradicional dos outros». Para grande parte dos seus membros porém, o objectivo central da A M E T R A M O - a constituição de u m espaço de reivindicação social pelo reconhecimento e promoção da medicina tradicional — não tinha sido alcançado durante a primeira década da sua existência.6 4 Isto explica a realização, em A b r i l de 2000, em ambiente bastante conturbado, da primeira Assembleia Geral desta Associação. A actual direcção da A M E T R A M O , agora encabeçada por M . F. Z i m b a — uma das pessoas que afirma mais ter lutado pela constituição desta associação - ganhou as eleições realizadas durante esta Assembleia. 6 5 Se bem que, no discurso oficial, as críticas mais severas à anterior direcção se prendam com a sua inoperância face aos objectivos de luta da Associação, outras razões existem para explicar os desentendimentos no interior da A M E T R A M O . A s lutas pelo poder são mais profundas, surgindo por vezes à superfície a questão do prestígio e do poder que a detenção destes saberes confere. Outro dos problemas prende- se com a manipulação de fundos, pois que a anterior direcção foi várias vezes acusada por membros da A M E T R A M O de não conseguir justificar a utilização do montante que recolheu durante o seu mandato (Manjate, 2000). Finalmente, Z imba clama ter liderado desde cedo a luta pela constituição desta associação, justificando assim a sua posição de destaque no seu seio. Para este dirigente, a grande crítica apontada à anterior direcção da associação assenta na falta de empenho na promoção da medicina tradicional: «A Banú[antiga presidente] não fez nada, nem sede de A M E T R A M O tínhamos...». 6 6 Para Z imba está claro que a definição do campo de acção da medicina tradicional tem de ocorrer c o m 6 2 Incluindo os praticantes da medicina tradicional chinesa e de tratamentos ayurvédicos a actuar em Maputo, embora não sejam considerados pela A M E T R A M O «verdadeiros» médicos tradicionais. Assim, esta mensagem dirige-se especialmente a terapeutas tradicionais oriundos de outros países africanos. 6 3 Zitha,J.S., em entrevista dada ao MeãaFax de 19 de Abril de 2000. 6 4 A AMETRAMO foi fundada em 1982 e obteve reconhecimento legal em 1998. 6 5 E M . Zimba é agora Presidente da Assembleia Geral da A M E T R A M O . 6 6 Zimba, M.F., entrevista pessoal Maio de 2000. 100 apoios em instâncias de legitimação exteriores ao seu campo de acção, incluindo o regime judicial moderno e as outras medicinas, principalmente a biomedicina: A AMETRAMO tem que ficar bem organizada, e todas as pessoas têm que saber que [a organização] existe. Temos de trabalhar com os outros médicos [biomedicina] para resolver problemas, para ajudar, para fazer essa ligação. Se não não funciona. Nós quando vemos que não resolve o problema, quando a doença não sai, tem casos que manda no hospital Eles [médicos modernos] não fazem isso.67 Embora sujeitos a algumas regras burocráticas (como a necessidade de ter cartão de membro, o pagamento de quotas, etc), os membros da A M E T R A M O estão ainda livres para responderem às dinâmicas alterações que continuam ocorrendo. Até onde poderá a A M E T R A M O ir c o m a burocratização da organização? Importa, pois, avaliar as rupturas e continuidades existente entre as intenções do discurso e a prática quotidiana. P o r exemplo, os estatutos da A M E T R A M O asseguram 6 8 a figura de «Conselho Fiscal» c o m o u m dos órgãos directivos c o m funções de controlo administrativo; 6 9 na prática, e como foi repetidas vezes reafirmado por membros da actual direcção, a principal função do Conselho Fiscal é a de «fiscalizar a actuação dos seus membros», 7 0 i.e., velar pela aplicação dos princípios éticos da medicina tradicional. N o plano formal, o reconhecimento dos médicos tradicionais parece passar pela anulação da sua legitimidade tradicional, ao reduzir a sua acção terapêutica a u m conhecimento «puro», de onde se ausenta a sua dimensão social. N a prática porém, a legitimidade tradicional permanece, se bem que à primeira vista menos visível. A o recorrer continuamente a estes terapeutas para resolver os males de que são alvo, os pacientes reafirmam a legitimidade, o poder e a confiança no saber do médico tradicional. O s próprios praticantes estão conscientes do seu papel neste processo de controlo social, conforme já foi referido anteriormente. A organização dos médicos tradicionais é importante para a conquista de novos espaços de reconhecimento oficial, num jogo duplo entre a legitimidade tradicional e a racional, espelhando o aproveitamento, por parte da medicina tradicional, dos espaços de poder criados pelo Estado. Z imba não necessita de 6 7 Zimba, M.F., entrevista pessoal, Março e Abril de 2000. 6 8 Por decalque de estatutos de outras associações a funcionar em Moçambique. 6 9 Artigo 25 dos Estatutos da AMETRAMO: «O Conselho Fiscal é um órgão independente de todos os órgãos da associação, com funções de controlo do documento dos estatutos, programa regulamento, deliberações de todos os órgãos da associação e observância da lei, pela mesma». Artigo 26: «E da competência do Conselho Fiscal fiscalizar todos os actos administrativos da associação, examinar as contas e escrituração dos livros de tesouraria; apresentar na Assembleia Geral ordinária o relatório de contas». 7 0 Zimba, M.F., entrevista pessoal, Março de 2000. Cossa, P., entrevista pessoal, Abril de 2000. 101 cartão da A M E T R A M O para garantir a sua condição de médico tradicional: o número de pacientes e o respeito demonstrado ilustram melhor do que estes documentos «legais» a realidade do seu reconhecimento social, assente na legitimidade tradicional. Contrariamente ao que alguns autores parecem sugerir (Nathan & Strengers, 1995; Honwana, 1996; Xaba, 1999), a realidade aqui descrita indica que é a ausência de legitimidade que faz o charlatão. A q u i tanta falta de legitimidade tem u m médico tradicional sem clientes como u m centro de saúde sem meios ou um advogado que não consegue defender as suas causas. O s discursos sobre a medicina tradicional e mesmo sobre a feitiçaria contêm u m subtexto que oferece explicações sobre as mudanças modernas e m presença. A reafirmação, por parte de muitos, do carácter tradicional da feitiçaria, ao actuar como obstáculo à mudança, também tem fundamento. U m exemplo será o da explicação sobre a origem de uma doença. Quem detém o saber e cura alguém, possui ligações ou conivências com as instâncias que regem as relações sociais. Assim, interpretar e curar uma «doença» pode significar exactamente o seu oposto (por exemplo, apoio em caso de roubos e seu encobrimento). Dependendo da perspectiva que se tem sobre a «cura», o terapeuta tradicional tanto pode curar, como pode também causar problemas a outrem (impedir promoções, por exemplo), ao concentrar todo o reforço ancestral apenas numa das partes em litígio. Por isso é que é necessária força e protecção para não se ser vítima de instâncias ancestrais que podem resultar em «azares», «má sorte», enfim, em ausência de saúde. U m mesmo discurso pode assim, num certo contexto, apresentar um conteúdo muito tradicionalizante, opondo-se ao desenvolvimento e à mudança. Noutros contextos, o mesmo discurso parece ligar-se muito bem com os novos elementos de desenvolvimento, do que resultam situações ambivalentes. 5.2. O Estado e a AMETRAMO A avaliação do tradicional não deve ser vista apenas a partir do campo do formalismo legal exercido pelo Estado. Diversos terapeutas tradicionais referiram ser prática c o m u m o encontro c o m os seus mab'ava para avaliarem males sobre os quais t inham dúvidas, prática que hoje está a ser reforçada c o m a constituição da A M E T R A M O . 7 1 A A M E T R A M O não veio, pois, preencher um espaço totalmente vazio nas relações entre os terapeutas tradicionais. Durante as «mavandla»72 para a graduação dos «mathwasana» é frequente os terapeutas encontrarem-se para 7 1 Tamele, C , entrevista pessoaL Abril de 2001. 7 2 Vandla — assembleia, reunião (tít). Aqui refere-se a um grupo de terapeutas tradicionais que teve ou tem ainda o mesmo b'ava ou ainda a grupos mais alargados constituídos para a discussão de assuntos relativos à «saúde» de uma dada comunidade. 102 debater questões que os afectam. A A M E T R A M O tem contribuído para reforçar e ampliar estas ligações. Outro aspecto distinto é a constituição da A M E T R A M O como u m espaço de reivindicação social pelo reconhecimento da medicina tradicional. Neste caso, os membros da associação demonstram estar, não em posição de fraqueza, mas de poder, investidos do peso social que representam. O interesse da actual direcção em finalizar a legalização da A M E T R A M O , 7 ' ' bem como ao actuar como representante dos interesses dos tinyanga do país na reabilitação da medicina tradicional, contribui para a sua própria legitimação; o poder que acompanha esta representação actua como garante do interesse e como veículo para alcançar tal objectivo. O paradoxo que muitos asseguram constituir u m impedimento ao desenvolvimento — a persistência de valores «tradicionais» — não pode ser visto como uma antinomia. A tradicionalidade apenas o é na medida em que se distingue da modernidade pela diferença, mas alimentando-se continuamente desta. Os encontros de múltiplas personagens dão-se
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