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Moçambique e a Reinvenção 
da Emancipação Social 
Boaventura de Sousa Santos 
Teresa Cruz e Silva 
organização 
Moçambique e a Reinvenção 
da Emancipação Social 
Boaventura de Sousa Santos 
Teresa Cru^ e Silva 
(organizadores) 
Centro de Formação Jurídica e Judiciária 
Maputo , 2004 
Ficha T é c n i c a 
título: Moçambique e a Reinvenção da Emancipação 
Social 
organizadores: Boaventura de Sousa Santos 
Teresa Cruz e Silva 
editor: Centro de Formação Jurídica e Judiciária 
n° de registo: 4 3 6 5 / R L I N L D / 2 0 0 4 
arranjo gráfico e impressão: C I E D I M A , Sari 
tiragem: 1000 exemplares 
Maputo, 2004 
«Quando não há problemas, estamos 
de boa saúde, sem azar nem nada»: 
para uma concepção emancipatória 
da saúde e das medicinas1 
Maria Paula G. Meneses 
Introdução 
E m vários trabalhos produzidos no continente africano, o acto de localização 
de saberes dos «outros» é o momento crucial na produção de uma relação de 
desigualdade, pois que a partir de então as formas de protecção e recuperação da 
saúde pré-medicina moderna passam a ser caracterizadas como terapias 
tradicionais, de âmbito local (Ngubane, 1981; Hewson, 1998). Quando as 
parteiras tradicionais, os curandeiros e a medicina verde são concebidos como os 
principais componentes da «medicina tradicional» ( W H O , 1996), na realidade o 
que está em curso é uma simplificação extrema do conceito de saúde, onde não 
são tidas em atenção as especificidades históricas, económicas, políticas e culturais 
por detrás do desenvolver dos conhecimentos sobre saúde (Meneses, 2000). 
E m Moçambique, na maioria dos trabalhos abordando a temática da 
«medicina tradicional», o discurso predominante confere à ciência moderna u m 
1
 Este capítulo nunca poderia ter aparecido sem a colaboração inestimável de vários terapeutas 
tradicionais em Moçambique, que pacientemente me introduziram em vários universos de saber. 
Gostaria de agradecer em especial o apoio de Maciane F. Zimba, Carolina Tamele e Pedro Cossa, 
que sempre encontraram tempo e disposição para falar comigo, oferecendo conselhos e 
apreciando uma versão preliminar deste trabalho. O texto beneficiou enormemente das discussões 
com Boaventura de Sousa Santos. A Teresa Cruz e Silva o meu obrigada pela apresentação a vários 
terapeutas tradicionais; agradeço a Nanette Barkey pelas discussões tidas sobre o tema; aos meus 
«camaradas» de grupo, um agradecimento pelos comentários feitos ao texto. O meu obrigado 
igualmente a colegas de várias instituições moçambicanas que me ajudaram na realização da 
pesquisa (Universidade Eduardo Mondlane, Ministério da Saúde, Ministério da Agricultura e 
Desenvolvimento Rural, de entre muitos), bem como a Zefanias Matsimbe e António Langa, cuja 
ajuda se revelou preciosa em vários momentos deste trabalho. A Félix Khosa, o meu 
agradecimento pelo auxilio na correcção de expressões em xirhonga; a ajuda de Bento Sitói, meu 
colega de Faculdade, foi imprescindível na tradução de vários termos médicos e de doenças para e 
de xichangane. Finalmente, gostaria de referir que parte da informação discutida neste texto 
proveio de projectos paralelos e/ou anteriores, contando com financiamento da SAREC e da 
Fundação Ford. 
77 
estatuto hegemónico de conhecimento, protegido e definido pelo Estado na 
qualidade de «saber oficial».2 Pelo contrário, às formas de conhecimento nativas é 
atribuído u m carácter secundariamente situacional (Marrato, 1995; Tsenane, 1999; 
Instituto Nacional de Estatística, 1999). A procura de uma definição de «medicina 
tradicional», que vá para além da diversidade e da heterogeneidade das práticas e 
saberes terapêuticos, está inscrita na ordem social resultante do processo de 
colonização do próprio conhecimento; o que constitui estas práticas em objecto é 
simplesmente a negação do seu reconhecimento pelo Estado (Santos, 1995). 
A hipótese alternativa que gostaria de discutir neste trabalho está centrada no 
argumento de que as formas e as práticas de saber ditas «tradicionais» detêm 
realmente u m estatuto de saber legítimo, o qual é reafirmado pela grande 
afluência de pacientes a estes terapeutas. Apesar das repetidas tentativas de 
epistemicídio3 de que estas formas de saber sobre saúde têm sido alvo, tal facto 
poderá ajudar a explicar a enorme vitalidade e persistência dessas práticas, quer no 
período colonial, quer nos dias de hoje. Mas muitos outros aspectos têm de ser 
explorados. O que será uma medicina alternativa? Alternativa em função de quê e 
de quem? O que deverá ser considerado conhecimento legítimo? E legítimo na 
óptica de quem? Para que o saber se transforme em solidariedade, que garanta a 
libertação e a igualdade de cada cultura, é preciso dar a essa cultura, ao «outro», o 
estatuto de sujeito.4 
O tema central deste capítulo — a interrogação sobre a relação dicotômica 
entre saberes locais e globais, vista através do prisma da evolução da medicina 
«tradicional» — está ainda pouco explorado enquanto objecto de pesquisa. A s 
reflexões aqui apresentadas são fruto de u m projecto de pesquisa a decorrer há 
mais de 18 meses na cidade de Maputo , especialmente no Bairro da Polana-
Caniço (parte da chamada zona suburbana da cidade). 
Trata-se de uma região extraordinariamente complexa e de grande riqueza 
cultural, onde estão presentes vários sistemas de saúde, que frequentemente se 
cruzam e interpenetram. Esta pluralidade de sistemas médicos (MacCormack, 
1986) não é fácil de avaliar, pois que diferentes percepções individuais e de 
distintos grupos sociais sobre a saúde, b e m estar, sobre o mal, estão presentes, 
resultando numa trama imensamente rica que se traduz em formas de 
intermedicina. 5 
2
 Assunto que será analisado ao longo do texto na perspectiva sugerida por Boaventura de Sousa 
Santos (2000), que se refere a este fenómeno como um «Iocalismo globalizado». 
3
 A morte de um conhecimento local perpetrada por uma ciência alienígena (Santos, 1998:208). 
4
 Esta temática é abordada igualmente por T. Xaba (2000), num texto que discute criticamente o 
impacto negativo da medicina científica moderna sobre os conhecimentos médicos indígenas sul-
africanos. 
5
 Aqui sigo a proposta teórica de Boaventura de Sousa Santos sobre a interlegalidade (Santos, 1987; 
Santos, 2003), ampliando-a e projectando-a, para além do espaço da justiça, ao espaço da saúde. 
78 
N u m mundo onde a produção de diferenças culturais é permanente, este 
processo actua como catalisador de espaços atravessados por relações políticas 
e económicas de desigualdade. P o r isso, neste trabalho, o aspecto inicial da 
discussão centra-se no questionamento das razões da construção desta 
diferença. Q u e m é o «outro», aquele que produz e preserva outras formas de 
saber? 
Para avaliar as percepções existentes em relação aos distintos sistemas médicos 
presentes foram realizadas entrevistas a praticantes da medicina tradicional, a seus 
pacientes e elementos envolvidos na elaboração das políticas de saúde no País (a 
nível do Governo e de várias organizações não-governamentais), entre outros. 6 
Este estudo incluiu entrevistas abertas e em profundidade a cerca de 30 pessoas, 
cujas idades variam entre os 22 anos e mais de 60 anos. N a maioria dos casos as 
pessoas foram entrevistadas separadamente. Grande parte das informações aqui 
apresentadas e discutidas provêm de entrevistas realizadas a «médicos 
tradicionais» da nova direcção da A M E T R A M O , os quais partilharam comigo 
quase numa rotina quotidiana, reflexões sobre as suas práticas e sabedorias, os 
seus problemas, dúvidas e incertezas. 
1. Medicina, medicinas... 
E m várias das conversas c o m uma das terapeutas tradicionais, esta afirmou 
que «tem doença nossa, tradicional, mas lá na escola [Faculdade de Medicina] 
não sabe o que é isto. Mas nosso quando tem problemas que não saberesolver, 
manda no hospital». 7 Estas palavras sublinham a afirmação de vários autores 
sobre como a doença, o mal, são explicados: as etiologias são a expressão 
directa de normas e representações que sustentam os edifícios sociais (as 
transgressões a proibições, as manifestações de espíritos ancestrais, as 
agressões de feiticeiros, etc. ( D o z o n , 1987, Hess, 1994). 
N u m país c o m o Moçambique, c o m uma matriz sociocultural extremamente 
complexa, é inquestionável a existência de uma amálgama de subculturas 
médicas, cada uma c o m as suas próprias características e estruturas, embora 
para a biomedicina estas sejam descritas como uma entidade homogénea, 
resultando, por ignorância, na referência a uma medicina tradicional de carácter 
único e geral (Nords t rom, 1991; Jurg, 1992; Frel imo, 1999). Estes estereótipos, 
emergentes em situações coloniais, persistem ainda nos dias de hoje. 
6
 Por a investigação estar centrada no sul de Moçambique, a faixa de população envolvida é falante 
principalmente de xirhonga ou de xichangane. As palavras e expressões locais que surgem no texto 
assinaladas são destas línguas. De referir igualmente que em vários casos, quer com terapeutas 
tradicionais, quer com pacientes, as entrevistas foram conduzidas nestas línguas. 
7
 Tamele, G , entrevista pessoal. Junho-Julho, 2000. 
79 
T a l como se discutirá ao longo do texto, em Moçambique desde há muito 
que se detectam evidencias da germinação de sistemas médicos híbridos. Esta 
hibridização inclui mesmo o modelo médico moderno, criando espaço para a 
sua actuação. Vista desta perspectiva, a vitalidade das medicinas tradicionais é 
u m espelho das dificuldades de uma biomedicina que parece não conseguir 
alcançar os seus objectivos. A hibridização dos conhecimentos terapêuticos 
constitui uma diversidade entremeada de apropriações transformadas, e não 
cristalizadas no espaço e no tempo, como tantas vezes sugerem os «valores 
tradicionais».8 
C o m o ponto de partida, a análise desta pluralidade de sistemas médicos é 
feita utilizando cautelosamente as variáveis oficial/não-oficial, 
t radicional/moderno. Este cuidado aqui referido decorre da situação de 
intermedicina, da permanente mistura e cruzamento de decisões que originam 
uma multiplicidade de situações híbridas. 
A dicotomia oficial/não-oficial é definida pelo Estado, sendo este quem 
estabelece, pelo direito, no seio da multiplicidade do pluralismo terapêutico 
presente em Moçambique, uma distinção mais ou menos explícita entre o que é 
legal e o que é ilícito, senão mesmo ilegal. N o caso da medicina, tudo o que é 
reconhecido como medicina oficial é alvo de apoio por parte do Estado. Toda a 
medicina que não é reconhecida como «estatal» é tolerada, mas continua sendo 
mais frequentemente ignorada, porque pouco permeável a imposições e controlo 
por parte da biomedicina. 
A formalização, em curso, da medicina tradicional, é a causa da sua fragilidade, 
sendo esta tentativa de normativização reflexo da natureza do próprio Estado em 
Moçambique. Vista da perspectiva da medicina moderna, a medicina tradicional 
surge como abrangendo vários saberes, como a biologia e a química (i.e., as 
plantas usadas como remédios e os extractos/compostos activos que delas é 
possível extrair), a biomedicina (o tratar, o curar do corpo), a justiça (o resolver de 
problemas, de conflitos que encontram no corpo doente a sua expressão), e a 
religião (as explicações para as crenças descritas em função de um aparato 
conceptual mágico-religioso). A redução da complexidade dos saberes a uma lista 
de áreas científicas, através da compartimentação e da normativização do 
conhecimento, é a expressão mais visível da formalização do Estado. 
E por isso que, no campo «tradicional», as instituições que tomam conta da 
doença, que estão encarregues de curar, são simultaneamente políticas, 
8
 Relativamente a Africa, muito tem sido escrito sobre o lugar do «tradicional» nas actuais 
discussões epistemológicas. Como referências sugere-se: Hobsbawm, 1988; Copans, 1990; Gentili, 
1999; O'Laughlin, 2000; Santos, 2003. Noutros contextos políticos, o debate entre o «moderno» e 
o «tradicional» tanto é visto como um espaço conflitual que pode resultar no germinar de novas 
realidades (caso da índia — Vlsvanathan, 2000), como é visto como constituindo o elemento que 
forma espaços de diferença e de contraste (Florez, 2000, Xaba, 2000). 
80 
terapêuticas, jurídicas e religiosas; neste sentido, abarcam uma extensa área de 
competências e funções que submetem a eficácia do tratamento a uma eficácia 
mais envolvente, colocando em jogo os poderes tutelares, as estruturas 
normativas e simbólicas, as relações de força, de saberes e de poderes (Fisiy e 
Geschiere, 1990 e 1996; Geschiere, 1995; Fisiy e Goheen , 1998; C o m a r o f f e 
Comaroff, 1999). 
Este ponto requer uma avaliação cuidadosa da variável 
tradicional/moderno, na perspectiva da origem c do desenvolver das medicinas 
em Moçambique. Para uma modernidade assente em experiências 
eurocêntricas, o apelo ao qualificativo «tradicional» nas práticas médicas é feito 
para referir valores colectivos existentes desde «sempre», reforçando o estatuto 
de objecto de quem os produz. E m Moçambique, a tradicionalização dos 
saberes locais surge assim em paralelo e em oposição à emergência, a partir de 
finais do século X I X , do paradigma biomédico. E m função dos anseios sociais 
dos pilares desta dicotomia, tanto pode ser o tradicional uma invenção do 
moderno, como o moderno uma criação do tradicional. Nas palavras de C . 
Tamele, «a medicina tradicional é esta nossa, não escrevemos, não é como lá na 
universidade. M a s nós estudamos muito para saber curar, sabemos coisas que 
na escola não ensinam». 9 
A medicina moderna aparece apenas como mais uma prática terapêutica 
nesta região, sem constituir, ainda hoje, u m concorrente verdadeiro às restantes 
medicinas, 1 0 que mantêm a sua vitalidade. O denominador c o m u m reside na 
vantagem que estas medicinas «tradicionais» paradoxalmente possuem, por não 
constituírem u m domínio autónomo, fechado n u m corpo de regras, saberes, 
práticas e especialistas. D e facto, as chamadas «medicinas tradicionais» estão 
imbricadas em muitos outros sectores da vida social — neste sentido, elas 
obrigam ao redimensionamento dos conceitos de «doença» e «mal», que 
ultrapassam a categoria de infelicidade, e que se traduzem em aspectos de 
ordem cognitiva, simbólica e institucional próprios à sociedade. 
A questão pr imordial que se coloca, conforme já referido, é a de 
compreender c o m o se desenvolveram as dinâmicas de hibridização destas 
medicinas. Este universo traduz a coexistência, no campo social, entre as 
instituições terapêuticas que tratam a doença e o mal em geral enquanto, em 
9
 Tamele, C , entrevista pessoal. Maio de 2000. 
1 0
 Verifica-se ainda que as religiões importadas (cristã, muçulmana) têm vindo a gerar 
movimentos sincréticos, cuja especificidade reside no facto de o seu trabalho religioso incluir 
funções terapêuticas. Este facto contribui assim para aumentar a gama de recursos terapêuticos 
disponíveis. Entre as «medicinas tradicionais» e estes movimentos sincréticos não há uma 
resolução de continuidade; outrossim, constituem exemplo de uma enorme diversidade de 
recursos terapêuticos que mantêm a sua actualidade na manutenção das ordens e na resolução 
das crises (Schoffeleers, 1991; Honwana, 1996; Cruz e Silva, 2000). 
81 
simultâneo, tratam a sociedade. O s «tratamentos» visam garantir quer a 
reprodução e a manutenção da ordem - normas e representações — quer a sua 
perturbação (tensões, conflitos, infelicidades colectivas). Neste processo reside 
o cerne da autovalorização das medicinas tradicionais e m Moçambique. 
2. A invenção da medicina tradicional 
A doença, como símbolo de desajuste, de desequilíbrioindividual e social, é 
pois, como qualquer outro símbolo, alvo de representações ambíguas e fluidas, 
construídas como práticas de conhecimento e exercício de poder (Appadurai, 
1999; Santos, 1995 e 2000). N u m mundo onde a imposição hegemónica de 
conhecimento-ciência está em todo o lado, canibalizando outras formas de 
conhecimento, uma das batalhas principais incide sobre o que se quer saber (ou 
ignorar), como representar este saber, e para quem. 
E m Moçambique, a procura de uma definição de «medicina tradicional», para 
além da diversidade e da heterogeneidade das práticas terapêuticas, está inscrita na 
ordem social resultante do processo de colonização do próprio saber — o que 
constitui estas práticas em objecto é simplesmente a negação do reconhecimento 
peló Estado 1 1 e seus organismos. 1 2 Esta abordagem implica a criação do «outro» 
pelo não saber, pela sua inclusão no mundo natural, e exclusão do mundo 
civilizado (Liengme, 1844-1894; Maugham, 1906; Pina, 1940; Silva Tavares, 1948; 
Santos Reis, 1952). Os conhecimentos sobre saberes e práticas terapêuticas vão 
sendo decompostos em função da sistemática classificatória da ciência moderna. 
Esta compartimentação de saberes vai permitir a apropriação, por parte do 
sistema colonial, dos princípios farmacológicos de produtos conhecidos pelos 
terapeutas locais, conforme atestam vários comentários de sábios portugueses em 
missão de serviço em Moçambique: «Os remédios empregados pelos doutores 
indígenas são numerosos, por eles largamente utilizados em múltiplas doenças e, 
às vezes, com assinalado êxito. N a flora indígena muito há a estudar e, 
possivelmente, algumas coisas a aproveitar» (Santos Júnior e Barros, 1952: 615). 
E m simultâneo, ao se localizar o saber e posteriormente restringir o 
conhecimento apenas ao seu conteúdo simbólico, as comunidades ganham uma 
aura de exotismo, possuindo interesse como mercadoria para o turismo étnico, 
bem como para o estudo antropológico desta diferença (Meneses, 2000). A o 
identificar o saber local com o «sagrado» desvia-se o foco da acção para longe dos 
autores, ao mesmo tempo que se reinscrevem continuamente as barreiras entre o 
1 1
 Inicialmente pelo Estado colonial, mas mantendo-se a prática no periodo pós-independência, 
i.e., após 1975. 
1 2
 Ministérios, Faculdade de Medicina, de Direito, etc. 
82 
mesmo e o outro, barreiras estas que sustentam o conhecimento como 
colonização. 
Os extractos de trabalhos que apresento em seguida são exemplo da 
continuidade subterrânea de u m discurso onde a oposição entre medicina e magia 
é reinscrita através da divisão entre biomedicina e medicina tradicional. Ontem, 
tal como hoje, a «medicina tradicional» surge associada ao saber localizado, 
nativo, indígena (Batalha, 1985; Green, 1996; Green et aí., 1999). 
O feiticeiro não oferece nada de extraordinário. E um preto como os outros (...) tendo apenas 
a esperteza bastante para se impor à sua consideração incurindo-lhes um respeito misterioso 
por seus processos clínicos, faculdades divinatórias e recursos para resolver várias dificuldades 
da vida. (...) Mas no geral não passa de um intrujão (Cruz, 1910:140). 
Neste extracto é ainda exemplar o modo hostil como o sistema colonial avalia 
negativamente as práticas médicas, ao tentar estabelecer uma equivalência entre o 
feiticeiro e médico tradicional. 
Feito o diagnóstico em que se desprezam sempre os simptomas físicos, os doentes são 
encaminhados [pelos «médicos negros»] assim se trate de males causados por espíritos de 
deuses, feiticeiros, de poluição pelos mortos (...) Contudo, o «médico negro» não é, no geral, 
um charlatão, actua consciente e confiante na sua ciência (Swalbach e Swalbach, 1970). 
Outro aspecto característico da medicina moderna é a sua fraca abertura em 
relação a outras possíveis formas de diagnóstico, que, por serem diferentes, não 
são reconhecidas em pé de igualdade enquanto meios auxiliares de detecção dos 
males. 
Há curandeiros que efectivamente curam com base em certos medicamentos obtidos a partir 
de raízes, plantas, etc., mas o curandeirismo espiritista é, sob todos os pontos de vista, negativo 
e obscurantista por excelência (Castanheira, 1979:12). 
[A medicina tradicional é] o conjunto de conhecimentos empíricos, desorganizados, 
deturpados do seu conteúdo pelo processo de transmissão oral e muitas vezes revestidos de 
práticas obscurantistas, tais como ritos, etc. [E função do GEMT 1- 1] depurar os conhecimentos 
existentes de todas as ideias obscurantistas de que geralmente se encontram impregnados e 
assim promovê-las a conhecimentos científicos, a fim de os utilizar em benefício de todo o 
Povo (Serviço de Nutrição, 1981: 3-5). 
Os dois últimos extractos, que reportam ao período pós-independência, 
ilustram bem a tentativa de imposição do saber moderno pela anulação das 
práticas que não actuavam de acordo c o m os ideais de desenvolvimento moderno 
preconizados pelo partido Frelimo (desde então no poder) e pelo Estado. 
1 3
 Gabinete de Estudos de Medicina Tradicional, fundado no Ministério da Saúde com o objectivo 
de promover a ligação com a medicina tradicional (Serviço de Nutrição, 1981). Em conversa 
rnantida, em Abril de 2000, com A. Agostinho (bioquímica), responsável pelo GEMT, ficou clara a 
continuidade da política do Estado em relação à medicina tradicional. 
83 
Finalmente, o extracto que se segue, e tentando fazer u m apreciação mais 
específica da diferença entre a medicina moderna e a medicina tradicional, reforça 
a ideia da dualidade das práticas, apoiando implicitamente a subordinação do 
tradicional ao moderno. 
Nas culturas tradicionais [da Africa Austral14], o processo de cura assenta no princípio de 
desequilíbrio, resultando em problemas mentais ou de natureza física. Pelo contrário, a 
ciência médica assenta num dualismo cartesiano, na separação da mente do corpo; (...) a 
ênfase é colocada no curar do corpo, na eliminação do sofrimento físico (Hewson, 1998: 
1029).15 
A o mediar entre a prática da acção e a intenção de quem selecciona o 
conteúdo das representações, é possível produzir fenómenos que constituem 
realidades distorcidas, o que justifica a preservação da oposição nós/outros, de 
cariz marcadamente geocêntrico (Goody, 1979; Barth, 1995; Santos, 2000). A 
força hegemónica da ciência moderna produz pois a localização de saberes, os 
quais tanto podem ser causa de discriminação, como fonte de resistência a essa 
globalização. Mas como se percebem a si mesmos os médicos tradicionais? O 
localismo surge como forma de segurança e afirmação de uma especificidade 
própria, de u m saber que lhes pertence e que por isso mesmo lhes permite 
negociar, e conquistar mesmo, espaços de poder. 
Para os médicos tradicionais, a sua «medicina» é a que acontece «nos lugares 
daqui».1 6 O s próprios pacientes estabelecem uma distinção muito clara entre os 
limites e a aplicação da biomedicina e da medicina tradicional, distinção feita 
em função do contexto de produção/reprodução de conhecimentos sobre o 
b e m e sobre o mal. 
3. Os médicos tradicionais e a medicina tradicional - o conceito de 
s a ú d e 1 7 
3.1. «Ter saúde é ter boa vida...» 
Para a maioria da população da cidade de Maputo , e mesmo no sul do País, 
o conceito de saúde é bastante amplo, referindo-se implicitamente à existência 
de u m balanço social, noção esta que não é exclusiva a Moçambique nem a 
África, pois que presente em várias culturas dando origem a distintos sistemas 
médicos. 
«Ter uma vida boa» é a expressão que melhor resume o que se entende por 
1 4
 A autora trabalhou sobre a África do Sul e Moçambique. 
1 5
 A tradução é minha. 
1 6
 Zimba, M.F., entrevista pessoal. Agosto de 2000. 
1 7
 Na perspectiva da biomedicina, a saúde deve ser compreendida no contexto mais amplo do 
desenvolvimento de um país, de uma região, deuma dada comunidade (WH0,1996) 
84 
ter boa saúde. V i d a boa traduz-se em «ter uma casa b e m construída, ter comida 
bastante, ter dinheiro para a roupa, para sabão, para as crianças i rem à escola, 
para o hospital»; «sentimos bem quando não há problemas, temos comida, a 
família está bem». 1 9 A expressão destes sentimentos sugere que para se estar 
bem de saúde é necessário realizar em si mesmo u m equilíbrio essencial, estar 
em paz c o m a família (incluindo os antepassados), c o m os vizinhos, c o m o 
próprio corpo (incluindo a higiene), estar convenientemente alimentado (o que 
na actualidade inclui ter emprego que garanta o sustento) e protegido de males, 
sejam estes naturais ou «enviados». A inveja suscitada pelo facto de alguém 
produzir bastante na machamba, de alguém ter u m b o m emprego, pode fazer 
c o m que u m familiar ou amigo recorra a u m terapeuta tradicional para, através 
de feitiços, procurar apoderar-se desses bens, desse «bem-estan>, molestando 
quem os possui: «As pessoas agora sofrem muito de azar e mor r em mesmo por 
causa de feitiços, sem ser o destino delas». 2 0 
Estas concepções sobre o papel dos médicos tradicionais requerem uma 
análise mais complexa da chamada «medicina tradicional», uma reavaliação 
quer da ética, quer dos princípios éticos subjacentes às interpretações que 
projectaram a produção conceptual sobre esta medicina. 
3.2. Medicina e feitiçaria 
U m a discussão sobre as delimitações éticas de u m sistema médico que se 
estende muito para lá dos limites estabelecidos para a biomedicina exige o 
alargamento da discussão ao campo da chamada feitiçaria. 
Conforme anteriormente mencionado, o processo de negação do saber da 
medicina tradicional passou pela identificação da imagem deste terapeuta à do 
feiticeiro. 2 1 Mas trata-se de actores bem distintos, como o afirmam quer 
pacientes, quer praticantes da medicina tradicional: 
Há diferença entre curandeiro e feiticeiro. O curandeiro cura e o feiticeiro mata. O 
feiticeiro conhece remédios para matar. Enquanto que nós, os curandeiros, curamos 
porque é essa nossa obrigação (...) os espíritos obrigam assim, senão castigam.22 
Para acabar c o m esse azar, c o m a má sorte, é preciso a ajuda do médico 
tradicional, ponto de auxílio no restabelecimento do equilíbrio. Mas o médico 
1 S
 Fabião, A., entrevista pessoal. Abril de 2000. 
1 9
 Boane, A., entrevista pessoal. Março de 2000. 
2 0
 Salomão, P., entrevista pessoal. Julho de 2000. 
2 1
 Outro fenómeno de desacreditação assenta no uso da palavra «curandeiro», palavra esta que, 
para muitos dos praticantes da medicina tradicional na cidade de Maputo, é sinónimo de feiticeiro. 
Assim, e para reivindicarem um espaço de representação e de poder semelhante ao dos praticantes 
da biomedicina, exigem para si a designação de «médico tradicional». 
2 2
 M. , Suzana, entrevista pessoal. Fevereiro de 2000. 
85 
tradicional também pode ser maliciosamente utilizado: 
As feitiçarias vêm da ambição e do ódio entre as pessoas. (...) Há plantas e animais 
venenosos que, mal orientados, podem causar o mal. (...) Há raízes malandras. (...) Há 
responsáveis que nos contactam para lhes ajudar a resolver problemas lá no governo, 
mesmo quando querem mais força para governar. Há plantas que ajudam a resolver 
problemas sociais e complicações no serviço.23 
N o tempo presente, a procura constante do médico tradicional torna-se 
mais visível, pois que são inúmeras as pessoas em busca de sucesso -
promoções, riqueza, negócios, etc. —, mas a quem os recursos quer da 
sociedade moderna, quer da tradicional não têm sorrido. 
A própria classificação e sistematização das doenças identificadas como 
possíveis de ser tratadas pelos terapeutas tradicionais entrevistados na cidade 
de Maputo é bem diferente da utilizada pela biomedicina. A o lado de 
epilepsias, sarnas, tuberculose, «dor-de-olhos», emergem outras patologias 
como «conflitos conjugais», «feitiçaria», «azan> e «espíritos maus». N o sector 
tradicional da sociedade, se as coisas não caminham bem, quando a produção 
não é boa, quando «há azan>, o médico tradicional é consultado para procurar 
localizar e explicar a fonte deste problema, para dar remédios para eliminar a 
fonte do mal (evitando-a mesmo de futuro), ou ainda para restaurar a ligação 
aos antepassados. 
Quanto à questão da feitiçaria, a sua face visível para análise assenta 
essencialmente nas acusações, nos boatos sobre a questão (Tique, 2000), o que 
coloca inúmeros problemas quanto à avaliação da sua permanência e eficácia. 
Já que crimes desta natureza as autoridades e os tribunais não atendem por falta de provas 
materiais (...), as pessoas morrem, caem doentes, ficam paralíticas por causa destas barbáries 
dantescas, por causa desses feiticeiros que reinam e proliferam nas nossas povoações. E a lei 
ignora isso, chegando ao ponto de defendê-los. Qual é a diferença que existe entre um 
assassinado pela feitiçaria e outro por uma punhalada ou baleado? Não é o mesmo crime? Só 
porque o primeiro é feito, sei lá em silêncio e espiritual? Ou existe um medo nos homens da lei 
ao se distanciarem desse problema sério da natureza tradicional com o receio de se descobrir 
que afinal de contas os feiticeiros «pululam» mesmo até nos órgãos da justiça? (Phaindanne, 
2000). 
N u m primeiro momento urge observar a pertinência da oposição entre o 
saber científico e as representações locais no discurso sobre o «outro». E m b o r a 
nos dias de hoje esta ideia persista em muitos trabalhos, o que importa é 
identificar a quem estas situações beneficiam, como é que a feitiçaria está 
directamente relacionada c o m a reprodução ou ruptura da ordem sociaL A 
persistência do fenómeno de acusações de feitiçaria, ao transportar consigo uma 
enorme ambiguidade - porque ligada a qualquer forma de poder - demonstra ser 
2 3
 Extracto de uma entrevista a Arruda Safar Gina, médica tradicional. Jornal Domingo, de 13 de 
Janeiro de 1991. 
86 
essencial ao funcionamento social, fornecendo u m poder suplementar que pode 
mesmo servir para fins construtivos. Ass im, a feitiçaria deverá ser percebida como 
compondo a possibilidade de resistir às mudanças e às desigualdades 
continuamente emergentes, podendo suscitar também tentativas de apropriação 
de novos recursos. 
Há gente que fica mesmo rica, cheia de dinheiro de familiares, de colegas de trabalho. Para 
serem chefes, para desenrascar mais a vida, vão no curandeiro. O médico bate as pedras,24 
chama os antepassados para ajudarem, para aumentar a força desse ambicioso, contra o 
<¿nimigo» dele. Ninguém depois pode mudar nada, se não encontrares um médico tradicional 
ainda mais forte ainda que esse que fez o remédio para a pessoa enriquecer e ter mais força no 
trabalho, ser um chefe maior (...). Eu vim aqui só porque quero estar bem com a minha 
família, fazer «vacina», senão tudo vai correr esquisito no serviço, há muita inveja...25 
A tenacidade c o m que a feitiçaria i r rompe na sociedade moçambicana faz 
c o m que as concepções do poder e do seu exercício tenham implicações 
específicas, pois que estas situações são simétricas em termos de sentimentos 
de força (protecção — médico tradicional) e impotência (inveja — feitiçaria). A 
medicina tradicional oferece os meios para açambarcar o poder; ao mesmo 
tempo ela reflecte sentimentos de impotência, pois que parece servir para 
ocultar as fontes do poder. E m sociedades onde o papel das redes familiares é 
extremamente forte, a feitiçaria e o apelo ao médico tradicional para a 
promoção social demonstram quão ligados estão estes dois fenómenos, que 
serão adiante analisados em mais detalhe. 
O discurso sobre a feitiçaria não é exclusivo a Moçambique (Geschiere, 
1995; Englund , 1996; Mappa , 1998; C o m a r o f f & Comaroff , 1999), nem tão 
pouco ao continente africano (Taussing, 1987; Escobar& Pardo, 2000). 
Porém, na região onde este estudo tem lugar, a feitiçaria actua c o m o u m 
espelho privilegiado que permite ampliar a manipulação do «tradicional» no 
jogo de construção de uma «outra modernidade». 
Os discursos sobre feitiçaria não exprimem uma resistência ao 
desenvolvimento moderno; outrossim, constituem reflexos de uma luta 
constante p o r uma vida melhor. Porque a medicina tradicional se constitui 
como u m sistema aberto, formalmente delimitada apenas a nível dos estatutos 
de uma associação conforme será adiante discutido, inúmeras são as 
possibilidades de explicação para os problemas e dilemas que a vida coloca. 
Isto torna possível uma interacção antropofágica de distintos elementos, os 
quais fazem parte do projecto de constituição de uma «outra modernidade» 
(Ong, 1996; Santos, 2003). Neste sentido, as acusações de feitiçaria, longe de 
reforçar uma alteridade radicalmente diferente decorrente de u m exotismo 
2 4
 I.e. os tinholo, os ossículos divinatórios usados como meio auxiliar de diagnóstico pelo médico 
tradicional. 
2 5
 Augusto, L , entrevista pessoaL Maio de 2000. 
87 
estranho, são u m discurso de luta sobre problemas que afectam a família, a 
comunidade, a sociedade. 
D o breve conjunto de opiniões acima apresentado, o que parece emergir de 
específico é o facto de, num contexto de procura de solução para u m mal, os 
conceitos de conflito e desequilíbrio social constituírem o eixo central em 
torno do qual se processa o tratamento e a cura da pessoa que está enferma. E 
neste espaço social que predomina a figura do médico tradicional. 
3.3. Quem é o médico tradicional? 
E m b o r a existam várias designações para os terapeutas tradicionais, a 
designação mais comummente utilizada é a de «nyanga». 2 6 O nyanga é aquele 
que cura, o que conhece a força dos remédios e como curar c o m o auxílio do 
saber de espíritos ancestrais. 
N u m texto que procura dar voz e relevo a distintos actores, necessário é que 
os médicos tradicionais se apresentem a si mesmos, delimitando a sua 
especificidade e áreas de contacto c o m os terapeutas modernos. 
U m aspecto interessante é o facto de todos os médicos tradicionais se 
eferirem ao período inicial da sua «chamada» pelos espíritos dos antepassados 
Dara aprenderem a ser médicos, como u m período muito difícil, rodeado de 
dor e sofrimento: 
Eu estava na África do Sul a trabalhar nas minas, e depois fiquei muito doente, não 
conseguia trabalhar. (...) Depois vim para Moçambique, consultei um médico que me disse 
que eu tinha espíritos que queriam sair (...). Fiz o curso e fiquei médico tradicional. 
Aprendi muito, porque não é só espíritos, é saber tratar com plantas, ajudar as pessoas.27 
Para eu ter estes espíritos que hoje me ajudam a ser curandeira, fiquei muito doente, 
mesmo muito doente, quase três anos que não fiz nada, não ia na machamba, nem comida 
aguentava tomar. Levaram-me ao hospital (...). Então disseram que tinha espíritos e 
mandaram-me para aprender a ser curandeira.28 
A selecção do futuro médico tradicional acontece através de u m mecanismo 
de ruptura conturbada (física e espiritual 2 9) c o m a sua família e comunidade, 
mecanismo este que parece estar fora do controlo do candidato a terapeuta. 
Enquanto decorre o processo de percepção do seu novo papel social, o 
candidato sofre de inúmeros males físicos e psicológicos, emergentes sem uma 
2 6
 No sul de Moçambique o termo njanga é traduzido como curandeiro, ou médico tradicional 
(Galvão da Silva, [1790]1955, Simões Alberto, 1965, etc). O njangarume corresponderá ao 
ervanário, ou seja, o terapeuta que trata com a ajuda de plantas, não contando com a força dos 
espíritos para o ajudar a solucionar males (Temba, 1992). 
2 7
 Zimba, F.M., entrevista pessoaL Junho de 2000. 
2 8
 Macie, H., entrevista pessoaL Fevereiro de 2000. 
2 9
 Pois que durante o processo de formação a pessoa fica isolada da família, mantendo com esta 
poucos ou nenhuns contactos, mesmo se tiver filhos e/ou marido/esposa. 
88 
razão plausível (e por isso sem cura) dentro do paradigma da biomedicina. O 
mal estar que não é explicado actua como palavra-chave de acesso a u m 
universo distinto de sabedorias, as quais constituem o garante do poder de 
decisão do médico quanto ao desenlace de problemas críticos que terá de 
enfrentar na sua prática terapêutica. 3 0 Este ritual de ruptura acontecerá também 
sempre que u m problema de maior seriedade acontecer e requerer maior 
seriedade e conhecimento: «Depois, mesmo quando estamos a trabalhar e os 
espíritos saem, dói muito, fico c o m os braços e as pernas fechados, nem 
consigo me mexer, xeü, nada mesmo. Custa mesmo quando eles saem na 
gente». 3 1 Ta l c o m o referido por inúmeros médicos tradicionais, os espíritos 
ancestrais 3 2 apropriam-se momentaneamente do corpo do terapeuta para 
apoiarem o médico no diagnóstico da enfermidade, no detectar das suas 
origens, bem como na selecção dos remédios necessários para a debelar. 
O período de aprendizagem de u m «thwasana» 3 3 prolonga-se normalmente 
de dois a cinco anos, podendo ser mais longo. Sob orientação dos 
antepassados que o escolheram para dar continuidade aos seus saberes, o 
candidato selecciona o «b'ava» 3 4 c o m que vai aprender a tornar-se n u m 
terapeuta qualificado: 
E duro estudar para ser curandeiro. Temos de aprender muita coisa. Temos que aprender a 
saber o que é que causa o problema, saber as plantas que curam, saber as diferentes 
doenças, e como curá-las, com que plantas, animais, muitas coisas. E preciso ter muito 
cuidado para não cometer erros. Aprendemos a conhecer e depois nas reuniões 
conversamos com os colegas.35 
Não é simples aprender a ser-se médico tradicional: os princípios éticos 
com a pessoa humana estão patentes no cuidado em se evitarem erros e no 
segredo profissional sobre os males de que padecem as pessoas, entre outros 
aspectos. 
A doença é algo fora do normal que se instala no corpo e que por isso se faz 
sentir. O incómodo, a dor, são sinónimos de uma alteração profunda do 
equilíbrio. 3 6 É , pois, preciso tratar, localizar a origem do problema (física ou 
30 y e r também Honwana, 1996 e Temba, 2000, esta última avaliando a questão dos médicos 
tradicionais na perspectiva de género. 
3 1
 Tamele, C , entrevista pessoal. Maio de 2000. 
3 2
 Uma das características mais reafirmadas em vários dos textos em relação ao «conhecimento 
tradicional» parece residir no carácter ancestral deste saber, reconhecido e mantido através de 
gerações, através do apoio dos «antepassados» (Florez, 2000; Xaba, 2000). 
3 3
 Estudante de medicina tradicional. 
3 4
 Trata-se de um termo respeitoso que se utiliza para fazer referência a alguém muito estimado e 
com grande sabedoria, em suma, um notável da comunidade. No contexto presente, refere-se a 
um médico tradicional experiente (homem ou mulher), que ministra cursos. 
3 5
 Cossa, P., entrevista pessoal. Junho de 2000. 
3 6
 Por isso o facto de muitas doenças serem explicadas como «sente a cabeça», «dói a perna». 
89 
espiritual) e restabelecer a normalidade. O mal pode ser derivado de não se 
cumprirem as regras sociais (caso das «timhamba» 3 7), de os mortos não terem 
sido correctamente enterrados, do contágio c o m objectos impuros, e ainda 
fruto da acção dos espíritos maus (os «valoyi» 3 8). 
Muitas vezes as pessoas vêm aqui ter comigo, me consultar, porque fizeram maldades e 
porque as coisas estão a correr mal, porque há azar na sua vida. Depois, há muitos homens 
com doenças que apanham das mulheres, agora há muito problema desse aqui no Maputo, 
mesmo SIDA [embora se escuse a responder se pode tratar o SIDA]. Eu depois bato as 
pedras. As vezes sai logo a resposta, às vezes não. Cada vez é cada vez. Mas só assim 
consigo saber bem mesmo o que a pessoa tem. (...) Outros casos é preciso«kufemba»39, 
para ver os espíritos que o doente tem. Eles vão dizer o que é que eles querem. São 
problemas que aconteceram e não resolveram. Quando houve a guerra, lá na zona de Gaza 
morreu muita gente, mesmos dos nossos mataram. Então agora, a pessoa está a passar e ele 
sai, o espírito, e fica dentro de ti, a precisar de resolver o problema dele. A pessoa fica 
doente mesmo, vai emagrecendo, emagrecendo, e ninguém no hospital pode ajudar. Só o 
médico tradicional pode, tem de fazer tratamento para deixar esses espíritos saírem e dar a 
eles o que eles querem para ficarem felizes.40 
A causa do mal define-se, pois, através da localização, palpável ou não, 
visível ou não, olfactiva o u não, de u m objecto estranho, que se introduziu no 
corpo de uma pessoa. Para aliviar o mal é preciso recorrer a remédios — aos 
«mirhri» 4 1 - o que permite atingir de novo o estado de saúde. O remédio 
pretende sarar a carne, a dor que faz sentir esse pedaço da pessoa, e ao mesmo 
tempo restaura a confiança do indivíduo em si mesmo. O nyanga cuida do 
corpo, sara as feridas, elimina os padecimentos do organismo utilizando os 
conhecimentos que tem sobre a natureza e, e m simultâneo, trata as 
perturbações da cabeça e do espírito, causadas pelos desajustes 
socioeconómicos, por traumas profissionais. 
3 7
 Missas para assegurar a manutenção de uma ligação aos antepassados. 
3 8
 Plural de nqyi. O noyí é um espírito com poder para fazer mal, podendo mesmo provocar 
problemas à distância por interposta pessoa, através da qual actua. Normalmente os valoyi actuam 
à noite, introduzindo corpos estranhos no corpo de uma pessoa, a qual vai definhando até morrer, 
de dia o espírito pode actuar através de elementos que «contaminou». O noyi pode ainda utilizar 
alguém que ele «abriu» e em cujo corpo se meteu, tornando-o seu escravo. Podem as pessoas ser 
transformadas em animais, como leopardos, hienas, serpentes, ou serem forçadas a trabalhar nos 
campos para o espírito, ou ainda a roubarem as coisas para o espírito (Muthemba, 1970; Polanah, 
1987; Honwana, 1996). 
3 9
 I.e., «farejao> os espíritos maus, para os agarrar, já que são a origem do mal, do problema. O 
espírito só pode ser localizado pelo odor, por isso se «fareja» a alma dos antepassados 
insatisfeitos, ou a dos valoyi. 
4 0
 Tamele, C , entrevista pessoal Março de 2000. 
4 1
 Plural de murbi, que significa plantas, e num sentido mais lato se refe aos medicamentos. 
90 
3.4. Sobre as doenças 
O s médicos tradicionais são os terapeutas que melhor parecem saber lidar 
c o m as doenças ditas «tradicionais», i.e., doenças c o m uma pesada carga 
emocional, pois que trabalham c o m o corpo e c o m os espíritos, espíritos esses 
que «ocupam o corpo» e causam diversos problemas aos pacientes. O nyanga 
desempenha, assim, uma tarefa dupla: divinatória e curativa, assente numa 
concepção mais ampla da doença, percebida a dois níveis: como fenómeno 
social — como uma alteração profunda da vida quotidiana — e enquanto 
fenómeno físico — c o m o manifestação de acontecimentos no corpo de uma 
pessoa. A função divinatória procura tratar as causas que originaram o mal, 
prescrevendo meios para a solucionar. A função curativa procura eliminar os 
sintomas físicos. Estas duas funções são complementares, pois concorrem para 
o restabelecimento pleno do doente. Para o médico tradicional, curar significa 
remover todas as impurezas o u desequilíbrios da vida do paciente, pelo que 
cada tratamento termina normalmente c o m uma cerimónia de purificação, 
prevenindo contra situações semelhantes de futuro. 
N a sociedade moçambicana, tal c o m o noutras sociedades, a feitiçaria actua 
como elemento regulador das pressões sociais dissonantes (Meneses, 2000; 
Santos, 2003). Q u e m tem muito dinheiro, poder, é porque o t omou de outra 
pessoa, apoiado por alguém. Q u e m morre, quem sofre «azares», é porque está 
«doente», tem problemas c o m o sucesso, há alguém que não quer que ele se 
diferencie; pode também tratar-se de alguém tentando romper a ligação ao 
micro-universo de pertença social. P o r exemplo, a infertilidade é por vezes 
interpretada como sendo causada por alguém que não quer que a mulher 
«prenda» o marido, o que em última instância implica a anulação de u m 
casamento, do reforço dos laços familiares e comunitários. Para a resolução 
deste problema há que recorrer a todos os meios, incluindo o recurso a outras 
medicinas que não «tradicionais»: 
Quando uma mulher não concebe, nós tratamos e quando passa um mês, aconselhamos a 
ir ao hospital para fazer o controle. Depois volta e fazemos um tratamento para «segurar» a 
gravidez, o bebé na barriga da mãe. Tudo é importante, o hospital, os nossos remédios. Aí 
não há problemas.42 
O s médicos tradicionais reconhecem a sua incapacidade para resolver a 
totalidade dos casos que se lhes apresentam e, frequentemente, após várias 
tentativas frustradas de sarar o problema, sugerem que o doente vá consultar 
terapeutas praticando outras medicinas, incluindo a biomedicina, simbolizada 
pelo hospital. A pluralidade de sistemas médicos produz pois esta possibilidade 
de recurso simultâneo a várias formas de «tratamento», permitindo a 
4 2
 Yussufo, M. , entrevista pessoal. Dezembro de 1999. 
91 
delimitação de u m problema c o m expressão física. E m paralelo actua 
igualmente o sistema de punição e de regulamentação do mal. São duas faces 
de uma mesma moeda — o mal físico e o mal sociaL as tensões, os conflitos 
individuais e os comunitários, n u m sistema ainda em transição (e 
frequentemente em ruptura) para uma sociedade de acumulação capitalista 
individual. 
A percepção sobre a doença, as tentativas para a curar ou para a evitar, têm de 
ser entendidas e discutidas em função de cada u m dos sistemas de conhecimento 
presentes — o da biomedicina e os das medicinas tradicionais existentes — pois que 
as noções de causalidade (etiologia) por vezes não são coincidentes. O médico 
tradicional, tal como os seus pacientes, não distingue necessariamente entre curar 
e tratar, entre sintomas objectivos e subjectivos, entre dados clínicos mensuráveis 
ou não mensuráveis, questões essenciais à prática da biomedicina. O médico 
tradicional está interessado em resolver o problema, em controlar os sintomas, 
em restaurar as funções físicas e as relações sociais afectadas. C o m o diz M . F. 
Zimba, «quando a cabeça não trabalha, o corpo é que sofre», resumindo o 
pressuposto principal do seu trabalho como médico tradicional. E m b o r a muitas 
outras formas de medicina advoguem igualmente o princípio de que a causa da 
doença está na ruptura do equilíbrio e da harmonia da pessoa, para a biomedicina 
quando o corpo está bom, a desordem foi debelada. Entre os médicos 
tradicionais entrevistados, a questão que surgiu sempre foi a de que a harmonia 
ou o bem-estar da pessoa é reflexo do bem estar do seu grupo, da sua rede de 
amizades e familiar, e que a doença altera a relação entre as pessoas. Neste 
sentido, ao estudar um determinado caso, o nyanga promove a reintegração do 
indivíduo num jogo de interesses solidários com o grupo, procurando manter a 
pressão dos conflitos emergentes, sendo detentor de um conhecimento que cria e 
desenvolve continuamente, para assegurar a manutenção do grupo. C o m o diria 
Lewis Carroll (1977), temos de manter-nos em contínuo movimento para que o 
grupo se mantenha como está. 
Outro facto a ter em atenção é o da contaminação, no sentido em que 
frequentemente a doença (se resultante de contágio de espíritos «insatisfeitos») 
caso não seja bem curada, poder afectar outras pessoas do grupo. O não 
cumprimento das obrigações para com os antepassados pode resultar na anulação 
da protecção destes à pessoa, ao grupo familiar e mesmo à comunidade, uma vez 
que os espíritos dos antepassados permanecem parte integrante da estrutura 
familiar. O retornoda ligação interrompida é reclamado através da erupção do 
mal provocado pela ausência de defesa por parte dos guardiães ancestrais, facto 
que de novo remete para a feitiçaria como sistema regulador dos desequilíbrios 
sociais. 
92 
A forte dinâmica de actuação do médico tradicional contrasta c o m o projecto 
do Ministério da Saúde 4 3 sobre a colaboração c o m os praticantes da medicina 
tradicional, como parte da sua política de saúde (Jurg et al., 1991; Frelimo, 1999). 
O quadro da saúde pública desenvolvido pelo Estado após a independência, 
coloca ênfase especial no sector preventivo. Pretende-se, assim, alcançar a maioria 
da população do país, rural ou peri-urbana, através do estabelecimento de urna 
vasta rede de unidades e de agentes sanitarios de base capazes de prestar cuidados 
de saúde elementares, bem como de promover a saúde pela educação e pela 
melhoria das condições de higiene. O resultado de tais políticas depende, em 
primeiro lugar, da participação das populações a quem se destina tal política.4 4 E 
por isso que a Organização Mundial de Saúde ( W H O , 1978) tem vindo a 
recomendar a inclusão dos «praticantes tradicionais de saúde» nos sistemas 
nacionais de saúde. U m a vez que esta política concebe as populações como 
parceiros desta campanha, e não apenas como receptores passivos, torna-se 
necessária a recuperação dos elementos que desde há muito se encontram 
directamente ligados a tais práticas dentro das comunidades — os terapeutas locais. 
Esta justificação tem vindo a ser utilizada pelo Estado para legitimar o seu 
interesse pela medicina dita tradicional, embora não seja suficiente para esclarecer 
as ambiguidades subjacentes que pesam quer sobre a noção de valorização da 
«medicina tradicional», quer sobre as experiências práticas que são recomendadas. 
A o promover um discurso que defende a integração da medicina tradicional 
dentro da medicina moderna, o Estado e a própria O M S (Jurg, 1992; Monekoso, 
1994; Wor ld Bank, 1994; Aregbeyen, 1996; W H O , 1996; Friedman, 1996) 
pretendem retirar aos terapeutas tradicionais o controlo sobre o tratamento — nos 
seus varios matizes — da maioria da população. A o defender a formalização da 
«medicina tradicional» em função da medicina moderna, a primeira é circunscrita 
a um conjunto de conhecimentos empíricos — plantas medicinais, farmacopeias, e 
«savoir-faires» — técnicas corporais, epidemiologías (Tomé, 1979; Marrato, 1995; 
Lambert, 1997). O saber do médico tradicional só é válido como complementar à 
biomedicina; o terapeuta tradicional é visto como aquele que precisa de ser 
treinado, mas que não participa no treino dos biomédicos (Nordstrom, 1991; 
Cunningham, 1995). Este facto tem produzido u m certo ressentimento 
condescendente entre os médicos tradicionais: «não guardamos rancor a eles [í.e., 
praticantes da medicina moderna] mas queremos também reconhecimento, tem 
4 1
 Entidade do Estado que mais directamente se relaciona com a medicina tradicional. 
4 4
 Sendo aqui de referir que em Maputo, em termos de assistência hospitalar no quadro da 
medicina moderna, a relação é de 1 médico por cada 48-50 mil habitantes, enquanto a relação 
médico tradicional/paciente é de 1 para cada 1000 a 1500 pacientes, situação bastante semelhante à 
de outros países da região. 
93 
que respeitar a nós [...] queremos trabalhar c o m eles, mas também ensinar aquilo 
que a gente sabe, não é só as plantas».45 
Todos estes aspectos sugerem que se deve avaliar mais profundamente as 
importâncias e as legitimidades dos saberes. 
4. A importância da medicina tradicional 
4.1. Entre a legitimação e a legitimidade 
Impõe-se uma análise rápida do papel do actor privilegiado que é o Estado, 
árbitro que se atribui u m estatuto especial, ao elaborar as regras e, em simultâneo, 
participar no jogo. A o estudar quem são os actores autorizados e /ou favorecidos 
pelo Estado, que saberes são tolerados ou reprimidos, que actuações 
reconhecidas, ou, mesmo, o que se ignora, é possível obter uma noção mais forte 
e profunda das lógicas de acção do Estado. Isto implica ir mais longe, requerendo 
a análise dos campos de força em função do reconhecimento social das diferentes 
categorias de praticantes de saúde, num jogo complexo entre a concorrência e a 
complementaridade (Fassin & Fassin, 1988). 
Para o Estado, hoje, tal como ontem, a delimitação do que é saber e magia, do 
que é considerado oficial e do que não o é, é feita em função de práticas 
normalizadas que este mesmo Estado controla. N u m a perspectiva de legitimação 
racional que se impõe c o m o sistema colonial, só quem estudou nos centros 
formalizados de saber é que está autorizado a praticar medicina. Terá sido esta 
uma das razões de fundo que levou, no início da década de 1990, muitos dos 
médicos tradicionais a constituírem-se em associação — a A M E T R A M O —, facto 
que será discutido na secção seguinte deste texto. 
O s utentes legitimam os praticantes de cuidados de saúde que consultam, 
sejam eles treinados na biomedicina ou na chamada medicina tradicional. 
Normalmente associa-se espontaneamente a legitimidade tradicional ao nyanga, e 
a racional ao médico moderno, este último em função dos seus diplomas. A 
aceitação relativamente a estes terapeutas depende e é garantida pela lealdade de 
quem os reconhece e os valoriza como herdeiros de sabedoria. A permanente 
procura destes terapeutas assegura a sua legitimidade, o reconhecimento da sua 
competência neste campo de conhecimento. Entre os próprios terapeutas, a 
legitimidade é reforçada pela pertença e partilha de u m saber ancestral, 
recuperado nas «visitas» dos espíritos. 
O compromisso de procurar curar o paciente, bem como a conduta moral do 
médico tradicional, acabam tendo reflexo no seu sucesso como terapeuta; 
«Quando tem trabalho bom, tem que ser conhecido. A s pessoas sabem que eu 
4 5
 Zimba, M.F., Tamele, C , Cossa P., entrevista colectiva. Setembro de 2000. 
94 
posso curar doenças, vêm de longe [...]. Ouviram falar que existe u m curandeiro 
no Maputo que cura esta e aquela doença. E assim que se sabe que eu sei curar 
bem, porque curei a muita gente». 4 6 
U m a das formas mais notórias de desclassificação da medicina tradicional 
pela medicina moderna passa pela caracterização da anterior como prática 
ilegal de saber, da sua negação pela ausência de procedimentos «científicos» 
como a experimentação, ou de noções sobre epidemias e contágios (Polanah, 
1967-68, 1987; Junod , [1917] 1996). Todos estes factores confi rmam a 
caracterização «local» da medicina tradicional, a partir de uma visão «científica» 
moderna. E m contraste, o trabalho c o m os médicos tradicionais tem 
demonstrado que há u m aturado processo de pesquisa e busca de novos 
remédios e soluções, bem c o m o a troca de informações entre estes terapeutas, 
onde não é estranha a experimentação, fenómeno que nem sequer é recente: 
O meu avô, que foi um médico afamado no seu tempo, ensinou-me a curar desde 
pequenino. (...) Quando o meu avô faleceu, eu, dedicando-me ao estudo que ele legara, fui 
fazendo várias experiências e (...) convencido da utilidade desses remédios, fiz tratamentos 
de doenças que surgiram dentro da nossa família. Assim fui sendo conhecido desde há 
muitos anos como doutor (...) e fui salvando muitas pessoas de uma morte certa, 
adquirindo mais prática do meu trabalho e, devido à minha paciência e tenacidade, granjeei 
bastante fama (Madão, [1921] 1971: 9). 
Desta breve análise histórica ressalta que a medicina tradicional, sem que o 
Estado actual saiba bem o que esta faz, parece deter a capacidade de se ir 
ajustando, n u m complexo jogo de aceitação e rejeição, a novos sistemas 
terapêuticos, procurando negociar posições e manter o seu reconhecimento, 
enquanto a biomedicina busca ainda vias e meios para impor as suas 
competências. 
4.2. A vitalidadeda medicina tradicional 
A s várias tentativas de supressão da medicina tradicional, ou pelo menos de 
delimitação da sua prática aos «sujeitos» indígenas, não civilizados, implicaram 
redimensionamentos da actuação destes praticantes, acções estas que 
constituem u m exemplo da extraordinária capacidade desta medicina em se 
adaptar e se apropriar dos mecanismos criados pelo Estado e m benefício dela 
(Meneses, 2000). Este tipo de interferência tem provocado crises periódicas de 
vulnerabilidade. 
C o m a implantação do sistema colonial, o Estado português tentaria 
eliminar estes terapeutas, desclassificando a sua actividade como se tratando de 
casos de superstição, de magia, etc. (di Celerina, 1846; Cunha, 1883; Junod , 
4 6
 Zimba, M.F., entrevista pessoal. Abril de 2000. 
95 
[1917] 1996; Silva Tavares, 1948). C o m o consequência, e c o m especial 
incidência durante os anos 1920 e 1930, vários «curandeiros» foram presos e 
condenados ao degredo. Todavia, rapidamente, mercê da ausência de médicos 
e enfermeiros nos territórios, o Estado colonial aceitou a presença de 
curandeiros, po r não ter alternativa ao sistema de cuidados de saúde presente 
no terreno: 
A medicina indígena tem sido tolerada e deverá continuar a sê-lo, enquanto a assistência 
médica não puder chegar plenamente a todos os povoados do interior (...). Se a medicina 
gentílica deve ser tolerada em determinados pontos da Colónia, não será lógico usar do 
máximo rigor punitivo para os infortúnios clínicos dos ngangas não reincidentes. Além 
disso eles, de certo modo, devem ser considerados pessoas úteis no seu meio social, 
porque, à falta de melhor medicina, a que exercem não é de todo abominável (Gonçalves 
Cota, 1946: art. 68). 
Fruto da fragilidade do sistema colonial português, os médicos tradicionais 
vão mesmo solicitar e obter autorização formal (por parte do Estado) para 
actuar como terapeutas em locais onde não existiam praticantes da medicina 
moderna o u onde a confiança nestes não era grande. 
N o período imediatamente posterior à independência (anos 70-80), o 
primeiro movimento dos terapeutas tradicionais em Moçambique foi no 
sentido de obterem mais espaço público de actuação. D e entre os objectivos 
solicitados po r u m grupo de médicos tradicionais à Comissão de reestruturação 
dos serviços de saúde do Gove rno de Transição, 4 8 referia-se a necessidade de 
criar uma Esco la de Medic ina Tropica l , para formar mais terapeutas 
tradicionais. Es te pedido foi recusado, já no período pós-independência, 
[PJorque as práticas médicas tradicionais resumem-se a conhecimentos empíricos 
mesclados de obscurantismo. O reconhecimento oficial de uma organização de curandeiros 
4 7
 Mais censurada e perseguida era a prática da ordália, que passou a ser proibida em função dos 
ditames da justiça portuguesa. Vários dos artigos do projecto do Código Penal dos Indígenas 
propunham a punição de práticas consideradas de feitiçaria/magia: «O mágico ingénuo, sincero na 
sua arte, pratica um verdadeiro crime de envenenamento, mas consentido pela vítima, pois esta 
presta-se espontaneamente à prova da ordália, convencida de que a sua inocência triunfará de 
qualquer prova (...) a actuação do adivinho assume uma natureza de julgamento. Ele supõe-se o 
investigador dos feitiços que atingem os seus clientes e o juiz criminal dos feiticeiros. Ora, qualquer 
indígena sabe que não há hoje na Colónia outra justiça senão a exercida pelas autoridades 
portuguesas. (...) O respeito pelos costumes dos indígenas (...) é estabelecido nas nossas leis 
como um princípio fundamental da nossa política colonial, mas restrito a usos e costumes que não 
sejam contrários nem à moral, nem as ditames da humanidade, nem aos direitos de soberania do 
Estado» (Gonçalves Cota, 1946, art. 21). Ao banir o julgamento pela ordália, o Estado colonial 
reforçou a posição dos feiticeiros, cuja actuação não poderia mais ser identificada e julgada por este 
tipo de provas. Assim, ao sancionar a prática de feitiçaria, o Estado colonial abria também 
legalmente a possibilidade do feiticeiro acusar o seu ex-acusador, i.e., a sua vítima, de tentativa de 
assassinato (ver sobre o assunto Fisiy e Geschiere, 1990). 
4 8
 Agradeço a informação a L. Meneses. 
96 
significava a institucionalização do obscurantismo. (...) Isto implicava a prática de medicina 
privada, que então não era legal.49 
Porque importava «recuperar o conhecimento, mas não o H o m e m , pois que 
a atitude deste é obscurantista», 5 0 e fruto da pressão exercida por vários 
praticantes da medicina tradicional junto a órgãos do G o v e r n o e do partido 
Frel imo, a Direcção Nac iona l de Medic ina Preventiva no Ministério da Saúde 
foi encarregada de criar os instrumentos necessários para se proceder à recolha 
e pesquisa de plantas utilizadas pelos praticantes de medicina tradicional 
(Castanheira, 1979; T o m é , 1979). N u m a altura em que o campo de actuação 
dos curandeiros era severamente limitado, a recolha de plantas e a discussão 
sobre a sua utilidade juntamente c o m o G E M T e o I N I A 5 1 constituíam uma 
das poucas possibilidades para a continuação da sua prática c o m u m carácter 
de semi-legalidade. 
E m b o r a tivessem esperado maior abertura em relação às suas actividades, 
«já que o país agora era nosso», 5 2 quer os médicos quer os magistrados do 
período pós-independência, em função da sua educação ocidental e dos 
objectivos políticos da altura, olhavam a feitiçaria e as práticas dos curandeiros 
como u m fenómeno vergonhoso, que deveria ser abandonado como condição 
para a construção de u m conhecimento novo, livre de misticismo e de 
obscurantismo. D e novo, no pós-independência, o Estado surgiu como aliado 
dos feiticeiros, ao manter a proibição da prática da ordália e a legitimação da 
sua aplicação pelas autoridades e instituições tradicionais. 5 3 Se no período 
colonial ainda algumas formas de actuação dos médicos tradicionais eram 
permitidas, agora a sua proibição instaurou-se, perseguindo-se todos os que 
eram considerados curandeiros (i.e., mesmo os que curavam pessoas e 
resolviam casos de feitiçaria). Neste ambiente abertamente hostil , os 
«terapeutas tradicionais» passaram a ser apelidados de obscurantistas, de 
detentores de mentalidades retrógradas (Castanheira, 1979; Tomé, 1979; 
Machel , 1981; Serviços de Nutrição, 1981), sendo punidos e mesmo 
condenados. 5 4 
Nas palavras de M . F . Z i m b a , este foi realmente u m período muito difícil, e 
só a formação de u m grupo de médicos tradicionais poderia alterar tal situação: 
4 9
 Martins, H. (primeiro ministro da saúde de Moçambique), entrevista pessoal Março de 2000. 
50
 Ibidem. 
5 1
 Instituto Nacional de Investigação Agronómica. 
5 2
 Zimba, M E , entrevista pessoal, Abril de 2000. 
5 3
 Isto equivalia à proibição da detecção e punição de personagens considerados como detentores 
de um conhecimento mau, fonte de instabilidade social, e por isso nocivos à comunidade (ver nota 
53). 
5 4
 Muitos teriam sido enviados para campos de trabalho, situados em locais longínquos, os 
chamados «Campos de reeducação». 
97 
Eu desde há muito tempo que fui falar com Machel [primeiro presidente de Moçambique], 
para ele ajudar a organizar-nos. Era preciso organizar, para poder trabalhar bem, não ser 
perseguido. (...) Depois ele mandou-me falar com Hélder Martins [então Ministro da Saúde]. 
Este não queria (...), ameaçou fuzilar, mas eu continuei (...). Depois conseguiu-se e fez-se o 
Gabinete de Apoio à Medicina Tradicional. Eu trabalhei muito com Leonardo Simão [médico, 
actual ministro dos Negócios Estrangeiros] lá no Ministério, no gabinete. Depois deixei de 
trabalhar lá. Agora estou em casa a trabalhar.55 
N o final da década de 80, e c o m a introdução das políticas neo-liberais, a 
abertura em relação à medicina tradicional alargou-seaté que, em 1991, foi 
liberalizada a prática de toda a medicina privada. Isto tornou possível a 
constituição da A M E T R A M O — a Associação dos Médicos Tradicionais de 
Moçambique. 
5. A A M E T R A M O 
5.1 A formação da Associação 
Depois da independência nacional, ao mesmo tempo que os médicos 
tradicionais viam a sua prática severamente cerceada, começam a ser 
contactados pelos juízes populares 5 6 para resolverem questões de feitiçaria, 
azares, etc. 
Isto sempre foi assim, mesmo no tempo colonial. Logo no tempo da Frelimo [i.e., no 
período imediato do pós-independência], quando havia problemas com feitiçaria, o tribunal 
fazia guia de marcha para os curandeiros resolverem os problemas de azar, feitiçaria. Agora 
já mandam menos [casos], não sabemos porquê. Agora são as próprias pessoas que vêm 
nos solicitar para desmascarar os feiticeiros.57 
Seria a capacidade do médico tradicional (reconhecida a nível da 
comunidade) de actuar como medianeiro na resolução de problemas que terá 
levado, em grande medida, o Estado a tentar controlar estes terapeutas, usando 
como mecanismo a formação de uma Associação. 
A A M E T R A M O é, pois, u m encontro de vontades centrífugas, 
simultaneamente uma tentativa de controlo por parte do Estado (e mesmo de 
alguns partidos políticos) e u m espaço de reivindicação plural dos médicos 
tradicionais. Neste sentido, para os tinyanga, a Associação é imprescindível 
como espaço de legitimação racional, ao sentirem o risco constante presente na 
sua área de actuação profissional, reprimida po r um Estado que defende e 
promove a biomedicina, discriminando a medicina tradicional: 
5 5
 Zimba, M . F., entrevista pessoal Junho de 2000. 
5 6
 Instância básica então existente para a resolução de questões conflituais a nível da comunidade. 
5 7
 Zimba, M.F. e Cossa, P., entrevista colectiva. Agosto de 2000. 
98 
Temos o problema das detenções dos nossos médicos, quando morre um paciente em 
tratamento tradicional. Isso não se verifica quando o paciente morre no hospital, o médico 
não fica detido.53 
[Queremos a] legalização da prática da medicina tradicional para que possa ser exercida 
abertamente e deixar de ser encarada apenas como objecto de negócio. (...) O que nós 
queremos é sermos autorizados a trabalhar dentro da lei, em paralelo com a medicina 
moderna. O curandeiro deve deixar de ser venenoso (...), por isso a nossa preocupação 
maior de momento é vencer a velha mentalidade sobre as actividades dos curandeiros. 
Escangalhar o passado para modernizar o nosso trabalho.59 
E m paralelo, a Associação é necessária para a certificação da sua actividade, 
onde os seus dirigentes, através do formalismos burocrático-legais (emissão de 
cartões, diplomas, etc.) «reconhecem os verdadeiros curandeiros», separándo-
os dos charlatães. Ta l como defendem os seus estatutos, a A M E T R A M O 
pretende estender o método de certificação e oficialização dos médicos 
tradicionais ao país inteiro, 6 0 para que possam trabalhar c o m mais segurança, 
participando na luta pela melhoria da saúde do povo moçambicano. Conforme 
a A M E T R A M O tem vindo a declarar repetidas vezes, «gostaríamos de 
trabalhar mais estreitamente c o m o Gabinete de Estudos da Medic ina 
Tradicional do Ministério da Saúde, no Instituto Nac iona l de Saúde, b e m como 
com outras instituições que se dediquem a actividade de prevenção e cura de 
doenças». 6 1 
Finalmente, e como defendem os membros da A M E T R A M O , a 
formalização desta associação prende-se c o m a necessidade de reforço da 
capacidade organizativa dos médicos tradicionais, por forma a granjear mais 
5 8
 Entrevista de João Silva Zitha, da direcção da AM ETRAMO ao MediaFax de 19 de Abril de 
2000. Em caso de morte de um seu paciente, o médico tradicional é julgado pelo código penal por 
crime de assassínio. Em princípio os médicos não são culpados da morte dos seus pacientes, se 
esta ocorrer fruto da incapacidade do hospital e/ou do conhecimento e meios disponíveis. 
5 9
 Palavras de Banú Idrisse (Presidente da A M E T R A M O até Abril de 2000), em entrevista ao 
jornal Domingo em 13 de Janeiro de 1991. 
60 pelos estatutos, pode candidatar-se a membro efectivo da AMETRAMO qualquer pessoa que 
«venha exercendo a profissão de praticante de médico tradicional há mais de dois anos, com 
qualidade e idoneidade comprovada por duas testemunhas que sejam maiores de trinta e cinco 
anos e membros efectivos da Associação [...]. Caberá a estas testemunhas, que devem habitar na 
mesma zona onde o candidato a membro trabalha como médico tradicional, e que deverão ser 
capazes de avaliar o seu desempenho e testemunhar das suas aptidões e saberes terapêuticos, a 
partir da avaliação de vários casos comprovados de curas, comprovação esta que é legitimada pelos 
próprios pacientes». Uma vez demonstrada a sua aptidão, o médico tradicional recebe um cartão 
de membro, e passa a pagar as suas quotas anualmente. Todavia, quando os inquiri sobre a 
possibilidade de um praticante de acupunctura poder ingressar na AMETRAMO, a pergunta 
provocou surpresa, pois que o conceito de «medicina tradicional» se aplica num sentido muito 
restrito e específico — é o que é prática corrente valorizada e legitimada pelos locais... 
6 1
 Extracto de uma mensagem da direcção da A M E T R A M O , por altura da comemoração do 
segundo aniversário da celebração da escritura jurídica da Associação (01 de Setembro de 2000). 
99 
apoio e assegurar o seu estatuto social e profissional, limitando a concorrência 
por parte de outros terapeutas. D e facto, para além da competição e o não 
reconhecimento pela medicina oficial, surge agora u m outro dado novo — a 
competição po r parte de médicos tradicionais estrangeiros. 6 2 «Vamos pedir 
explicação sobre a entrada de médicos tradicionais estrangeiros no país. E se 
bem que esses médicos tenham autorização, vamos exigir ao G o v e r n o para os 
tais, antes de se apresentarem ao executivo, que tenham o parecer da 
Associação». 6 3 Para os médicos tradicionais, quanto mais ameaçado está o seu 
espaço de actuação, quanto mais enfraquecida está a sua legitimidade 
tradicional, mais forte é a necessidade de recorrer a u m reconhecimento oficial, 
recorrendo-se a estruturas «legais» para reprimir o «tradicional dos outros». 
Para grande parte dos seus membros porém, o objectivo central da 
A M E T R A M O - a constituição de u m espaço de reivindicação social pelo 
reconhecimento e promoção da medicina tradicional — não tinha sido alcançado 
durante a primeira década da sua existência.6 4 Isto explica a realização, em A b r i l 
de 2000, em ambiente bastante conturbado, da primeira Assembleia Geral desta 
Associação. A actual direcção da A M E T R A M O , agora encabeçada por M . F. 
Z i m b a — uma das pessoas que afirma mais ter lutado pela constituição desta 
associação - ganhou as eleições realizadas durante esta Assembleia. 6 5 Se bem que, 
no discurso oficial, as críticas mais severas à anterior direcção se prendam com a 
sua inoperância face aos objectivos de luta da Associação, outras razões existem 
para explicar os desentendimentos no interior da A M E T R A M O . A s lutas pelo 
poder são mais profundas, surgindo por vezes à superfície a questão do prestígio 
e do poder que a detenção destes saberes confere. Outro dos problemas prende-
se com a manipulação de fundos, pois que a anterior direcção foi várias vezes 
acusada por membros da A M E T R A M O de não conseguir justificar a utilização 
do montante que recolheu durante o seu mandato (Manjate, 2000). Finalmente, 
Z imba clama ter liderado desde cedo a luta pela constituição desta associação, 
justificando assim a sua posição de destaque no seu seio. Para este dirigente, a 
grande crítica apontada à anterior direcção da associação assenta na falta de 
empenho na promoção da medicina tradicional: «A Banú[antiga presidente] não 
fez nada, nem sede de A M E T R A M O tínhamos...». 6 6 Para Z imba está claro que 
a definição do campo de acção da medicina tradicional tem de ocorrer c o m 
6 2
 Incluindo os praticantes da medicina tradicional chinesa e de tratamentos ayurvédicos a actuar 
em Maputo, embora não sejam considerados pela A M E T R A M O «verdadeiros» médicos 
tradicionais. Assim, esta mensagem dirige-se especialmente a terapeutas tradicionais oriundos de 
outros países africanos. 
6 3
 Zitha,J.S., em entrevista dada ao MeãaFax de 19 de Abril de 2000. 
6 4
 A AMETRAMO foi fundada em 1982 e obteve reconhecimento legal em 1998. 
6 5
 E M . Zimba é agora Presidente da Assembleia Geral da A M E T R A M O . 
6 6
 Zimba, M.F., entrevista pessoal Maio de 2000. 
100 
apoios em instâncias de legitimação exteriores ao seu campo de acção, incluindo o 
regime judicial moderno e as outras medicinas, principalmente a biomedicina: 
A AMETRAMO tem que ficar bem organizada, e todas as pessoas têm que saber que [a 
organização] existe. Temos de trabalhar com os outros médicos [biomedicina] para resolver 
problemas, para ajudar, para fazer essa ligação. Se não não funciona. Nós quando vemos que 
não resolve o problema, quando a doença não sai, tem casos que manda no hospital Eles 
[médicos modernos] não fazem isso.67 
Embora sujeitos a algumas regras burocráticas (como a necessidade de ter 
cartão de membro, o pagamento de quotas, etc), os membros da A M E T R A M O 
estão ainda livres para responderem às dinâmicas alterações que continuam 
ocorrendo. Até onde poderá a A M E T R A M O ir c o m a burocratização da 
organização? Importa, pois, avaliar as rupturas e continuidades existente entre as 
intenções do discurso e a prática quotidiana. 
P o r exemplo, os estatutos da A M E T R A M O asseguram 6 8 a figura de 
«Conselho Fiscal» c o m o u m dos órgãos directivos c o m funções de controlo 
administrativo; 6 9 na prática, e como foi repetidas vezes reafirmado por 
membros da actual direcção, a principal função do Conselho Fiscal é a de 
«fiscalizar a actuação dos seus membros», 7 0 i.e., velar pela aplicação dos 
princípios éticos da medicina tradicional. 
N o plano formal, o reconhecimento dos médicos tradicionais parece passar 
pela anulação da sua legitimidade tradicional, ao reduzir a sua acção terapêutica 
a u m conhecimento «puro», de onde se ausenta a sua dimensão social. N a 
prática porém, a legitimidade tradicional permanece, se bem que à primeira 
vista menos visível. A o recorrer continuamente a estes terapeutas para resolver 
os males de que são alvo, os pacientes reafirmam a legitimidade, o poder e a 
confiança no saber do médico tradicional. O s próprios praticantes estão 
conscientes do seu papel neste processo de controlo social, conforme já foi 
referido anteriormente. 
A organização dos médicos tradicionais é importante para a conquista de 
novos espaços de reconhecimento oficial, num jogo duplo entre a legitimidade 
tradicional e a racional, espelhando o aproveitamento, por parte da medicina 
tradicional, dos espaços de poder criados pelo Estado. Z imba não necessita de 
6 7
 Zimba, M.F., entrevista pessoal, Março e Abril de 2000. 
6 8
 Por decalque de estatutos de outras associações a funcionar em Moçambique. 
6 9
 Artigo 25 dos Estatutos da AMETRAMO: «O Conselho Fiscal é um órgão independente de 
todos os órgãos da associação, com funções de controlo do documento dos estatutos, programa 
regulamento, deliberações de todos os órgãos da associação e observância da lei, pela mesma». 
Artigo 26: «E da competência do Conselho Fiscal fiscalizar todos os actos administrativos da 
associação, examinar as contas e escrituração dos livros de tesouraria; apresentar na Assembleia 
Geral ordinária o relatório de contas». 
7 0
 Zimba, M.F., entrevista pessoal, Março de 2000. Cossa, P., entrevista pessoal, Abril de 2000. 
101 
cartão da A M E T R A M O para garantir a sua condição de médico tradicional: o 
número de pacientes e o respeito demonstrado ilustram melhor do que estes 
documentos «legais» a realidade do seu reconhecimento social, assente na 
legitimidade tradicional. Contrariamente ao que alguns autores parecem sugerir 
(Nathan & Strengers, 1995; Honwana, 1996; Xaba, 1999), a realidade aqui descrita 
indica que é a ausência de legitimidade que faz o charlatão. A q u i tanta falta de 
legitimidade tem u m médico tradicional sem clientes como u m centro de saúde 
sem meios ou um advogado que não consegue defender as suas causas. 
O s discursos sobre a medicina tradicional e mesmo sobre a feitiçaria contêm 
u m subtexto que oferece explicações sobre as mudanças modernas e m presença. 
A reafirmação, por parte de muitos, do carácter tradicional da feitiçaria, ao actuar 
como obstáculo à mudança, também tem fundamento. U m exemplo será o da 
explicação sobre a origem de uma doença. Quem detém o saber e cura alguém, 
possui ligações ou conivências com as instâncias que regem as relações sociais. 
Assim, interpretar e curar uma «doença» pode significar exactamente o seu oposto 
(por exemplo, apoio em caso de roubos e seu encobrimento). Dependendo da 
perspectiva que se tem sobre a «cura», o terapeuta tradicional tanto pode curar, 
como pode também causar problemas a outrem (impedir promoções, por 
exemplo), ao concentrar todo o reforço ancestral apenas numa das partes em 
litígio. Por isso é que é necessária força e protecção para não se ser vítima de 
instâncias ancestrais que podem resultar em «azares», «má sorte», enfim, em 
ausência de saúde. U m mesmo discurso pode assim, num certo contexto, 
apresentar um conteúdo muito tradicionalizante, opondo-se ao desenvolvimento 
e à mudança. Noutros contextos, o mesmo discurso parece ligar-se muito bem 
com os novos elementos de desenvolvimento, do que resultam situações 
ambivalentes. 
5.2. O Estado e a AMETRAMO 
A avaliação do tradicional não deve ser vista apenas a partir do campo do 
formalismo legal exercido pelo Estado. Diversos terapeutas tradicionais 
referiram ser prática c o m u m o encontro c o m os seus mab'ava para avaliarem 
males sobre os quais t inham dúvidas, prática que hoje está a ser reforçada c o m 
a constituição da A M E T R A M O . 7 1 
A A M E T R A M O não veio, pois, preencher um espaço totalmente vazio nas 
relações entre os terapeutas tradicionais. Durante as «mavandla»72 para a 
graduação dos «mathwasana» é frequente os terapeutas encontrarem-se para 
7 1
 Tamele, C , entrevista pessoaL Abril de 2001. 
7 2
 Vandla — assembleia, reunião (tít). Aqui refere-se a um grupo de terapeutas tradicionais que teve 
ou tem ainda o mesmo b'ava ou ainda a grupos mais alargados constituídos para a discussão de 
assuntos relativos à «saúde» de uma dada comunidade. 
102 
debater questões que os afectam. A A M E T R A M O tem contribuído para reforçar 
e ampliar estas ligações. Outro aspecto distinto é a constituição da A M E T R A M O 
como u m espaço de reivindicação social pelo reconhecimento da medicina 
tradicional. Neste caso, os membros da associação demonstram estar, não em 
posição de fraqueza, mas de poder, investidos do peso social que representam. O 
interesse da actual direcção em finalizar a legalização da A M E T R A M O , 7 ' ' bem 
como ao actuar como representante dos interesses dos tinyanga do país na 
reabilitação da medicina tradicional, contribui para a sua própria legitimação; o 
poder que acompanha esta representação actua como garante do interesse e 
como veículo para alcançar tal objectivo. 
O paradoxo que muitos asseguram constituir u m impedimento ao 
desenvolvimento — a persistência de valores «tradicionais» — não pode ser visto 
como uma antinomia. A tradicionalidade apenas o é na medida em que se 
distingue da modernidade pela diferença, mas alimentando-se continuamente 
desta. Os encontros de múltiplas personagens dão-se

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