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POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DO TESTAMENTO BIOLÓGICO/GENÉTICO NO BRASIL E AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS QUE TAL INSTITUTO TRARIA PARA O DIREITO DE FILIAÇÃO André França Sumário: 1 Introdução; 2 O Testamento no sistema jurídico brasileiro: Dos primórdios a atualidade; 2.1 Autonomia da vontade privada e o testamento: Da capacidade pra testar; 3 Breves colocações acerca do biodireito e da bioética a luz do sistema constitucional brasileiro; 4 Da possibilidade da adoção do testamento genético no Brasil: As consequências jurídicas para o direito de filiação; Considerações finais; Referências RESUMO O presente trabalho de pesquisa tem por objetivo estudar o instituto do testamento no direito brasileiro compreendendo os requisitos necessários para sua validade. A partir disso, será pensada a possibilidade de adoção do testamento biológico para utilização de óvulos e sêmen post mortem, possibilidade esta que ainda não encontra disposição legal no Brasil. Desse modo, se propõe apresentar as possibilidades e desafios de promover o testamento biológico, levantando discussão no que se refere ao direito de filiação que poderia advir à criança fruto dessa suposta relação jurídica, no âmbito do direito das famílias, levando em consideração o princípio da não diferenciação dos filhos. PALAVRAS-CHAVE: Direito das Famílias. Testamento Genético. Sucessão testamentaria 1 INTRODUÇÃO Uma época se revela pelos seus costumes, regimentos, entretenimento, mas, sobretudo, pelas instituições, bem como pelos comandos destas. Ocorre que em virtude de um contexto contemporâneo de globalização, o Direito ocupa um importante lugar de destaque passando a ser protagonista nas relações sociais, o que tem de certo modo expandido o seu âmbito de atuação englobando a tutela de novos valores e interesses jurídicos a exemplo do campo do Direito das Famílias. Diante disso, sabendo que com a adoção dos ideais do Estado Democrático de Direito que representam em si a melhor forma de consagrar e efetivar direitos fundamentais, houve uma clara e significativa aproximação entre a Constituição e o Direito Civil. Nesses termos, coadunando com tais ideais, o Direito Civil deve estar de acordo com os anseios da nova estrutura constitucional. Foi por essa razão que a Constituição ampliou a visão do que é família, passando o direito de família a ser um direito privado constitucionalizado. No entanto, a sociedade continua evoluindo, novas relações (familiares) vão surgindo e tal matéria encontra-se defasada em muitos dispositivos, pois mesmo o sendo o Código Civil relativamente novo, a elaboração do seu projeto remonta a década de 70. Diante de tais colocações e sabendo que o Código é silente em diversas matérias referentes à composição familiar brasileira hodierna, se faz imprescindível desmitificar a visão reducionista das entidades familiares e ir além, é necessário enfrentar diversos paradigmas, para se romper o silêncio do legislador que muitas vezes se abstém de manifestar-se em questões polêmicas que envolvem principalmente discussões de âmbito moral e religioso. Sabendo ainda que não é o fato de não estar previsto em lei que tira do cidadão, ou da família, o direito de vê seu pleito apreciado, ou ter seu direito garantido é que este trabalho se põe, pois ao trabalhar a possibilidade de adoção do testamento genético no Brasil, em especial no referente aos efeitos sobre o direito de filiação estar-se, em verdade, questionando-se sobre a possibilidade de se criar medidas além daquelas estipuladas pelo Código Civil sendo que a partir dela a verdadeira composição familiar poderia ser melhor atendida que a composição atual. 2 O TESTAMENTO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: DOS PRIMÓRDIOS A ATUALIDADE É bem verdade que praticamente todos os ramos do Direito podem ser esmiuçados de forma mais elucidativa utilizando-se de um levantamento histórico. Pois bem, com o Direito de Família e das Sucessões não é diferente. Através desse capítulo, entenderemos um pouco da pré-história do testamento que serviu como base para as demais fases distribuídas de acordo com o tempo até que cheguem as manifestações hodiernas desta prática. No tocante a esse aparato histórico de desenvolvimento e evolução do testamento, começando pela antiguidade, pode-se utilizar das palavras de Carlos Roberto Gonçalves: O testamento, ao menos como ato de última vontade como compreendiam os romanos, no período clássico de seu direito, era desconhecido no direito primitivo. Nem sempre a lei e os costumes o admitiam, havendo legislações pelas quais eram punidos aqueles que pretendiam instituir herdeiros ao arrepio da lei (2014, p. [?]). Baseando-se, mais a frente, no período pré-clássico como uma vicissitude de melhor assimilação e de acordo com as colocações de Silvio Salvo Venosa (2006), sabe-se que na Lei das XII Tábuas e mesmo antes dela, o testamento não ocupava grande espaço entre as compilações, no entanto foram constituídas as primeiras noções acerca desse instituto, existindo duas formas normais de testamento, quais seja o testamentum colatis comittiis realizado duas vezes por ano durante comícios, onde cada pai de família tinha a oportunidade de manifestar sua última declaração de vontade perante o povo reunido que servia como testemunha. Por sua vez, existia também o testamento in procintum, realizado em tempos de guerra e perante o exército. Em um segundo momento, ainda a época pré-clássica, surgiu o testamento per aes et libram realizado mediante o cobre e a balança, vindo a por em desuso os dois instrumentos anteriores. Diante disso são esclarecedoras as seguintes colocações: A permissão para que qualquer pessoa pudesse dispor, por morte, de seus bens, sem a intervenção do povo, foi dada pela referida Lei das XII Tábuas, relegando ao desuso as primitivas formas de testamento. O modelo então criado era fundado na mancipação, denominava-se per aes librum (por dinheiro e peso) e era uma venda fictícia da sucessão feita pelo testador ao futuro herdeiro, perante o oficial público e com a participação de cinco testemunhas (GONÇALVES, 2014, p.[?]). Levando em consideração que o testamento possui relação direta com as relações familiares e com direito de propriedade e mantem ainda intrínseca relação com a autonomia da vontade, é possível perceber que a tendência desse instituto ao longo dos anos foi se solidificar no campo das sucessões e de reduzir as formalidades existentes acerca do mesmo, para permitir assim que qualquer indivíduo pudesse expressar sua última vontade. Nesse contexto, surgiu a figura dos pretores que passaram a aceitar a validade do testamento escrito mediante a apresentação de sete testemunhas, no intuito de tornar o testamento um negócio jurídico eminentemente simples. (Idem) (grifado). Como decorrência disso, percebe-se que os moldes concretizados no período clássico foram importantes para o desenvolvimento das demais formas testamentárias, observando a utilização da escrita na concretização do ato para manter a ordem dos negócios. Posteriormente, passado esse momento, agora já no período pós-clássico surgiram formas de testamentos mais semelhantes às manifestações hodiernas, foi nessa época que surgiram os testamentos particulares (nuncupativo, hológrafo), testamento militar, testamento rurícola, testamento em tempo de peste e os testamentos públicos. Acrescente ainda Entre os testamentos públicos, temos então o principi oblatum, pelo qual o testador apresentava ao príncipe seu ato de última vontade, que era confiado ao poder público para arquivá-lo, e o apud acta conditum, que nada mais erado que a declaração de última vontade do testador ao juiz ou autoridade municipal, que a reduzia a termo. Delineiam-se, pois, nessa fase, as formas de testamento utilizadas até hoje (VENOSA, 2006, p. 173). No tocante ao período extenso da Idade Média, onde a Igreja se encontrava em um dos seus auges históricos, o testamento não tinha grande importância e sua existência se resumia tão somente ao fato de deixar algo para a Igreja, mediante a presença de um clérigo e algumas testemunhas. Visto isso, no que se refere ao direito brasileiro, conforme assevera Carlos Roberto Gonçalves (2014), antes do Código Civil de 1916, foram dispostos os testamentos aberto ou público, cerrado ou místico, particular ou ológrafo, nuncupativo ou por palavras. Já com a efetiva disposição do Código, foram instituídos os testamentos público, cerrado, particular, marítimo, militar e nucunpativo quando se tratar de testamento militar. Analisando o referido diploma legal é possível perceber que fora permitida a coexistência das sucessões legítima e sucessão testamentária. O Código Civil de 2002, por sua vez, acrescentou a modalidade de testamento especial e incluiu o testamento aeronáutico, exigindo também um mínimo de formalidade para a elaboração do testamento em qualquer de suas formas. Entende-se, dessa maneira, que relatos históricos são de suma importância para o entendimento das situações ocorridas no direito civil. Importante ressaltar que a cultura constitui um importante aspecto no surgimento do testamento, haja vista, que as evoluções das organizações sociais propiciaram diversas mudanças em todos os segmentos do direito que se apresenta como um reflexo da própria sociedade sendo decorrência lógica da sociedade em que está inserido. 2.1 Autonomia da vontade privada e o testamento: Da capacidade para testar É sabido que o objetivo do testamento é assegurar a declaração de vontade de quem testou, nesse sentido é evidente que o testamento está intrinsicamente ligado a autonomia da vontade privada. Por essa razão é um dos instrumentos mais importantes do direito privado. O testamento, utilizando-se das palavras de Maria Helena Diniz Daniel (2013, p.11) “é ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, segundo norma de direito, dispõe, no todo ou em parte, de seu patrimônio para depois de sua morte, ou determina providências de caráter pessoal ou familiar”. Em síntese, pode se concluir que o testamento se trata de um negócio jurídico (que requer necessariamente agente capaz, objeto lícito e forma) unilateral, causa mortis, pois o seu efeito está condicionado a um evento que é a morte do declarante, para assim fazer valer a sua manifestação de vontade. Sabendo dessas informações introdutórias de acerca do testamento, é importante que se tenha em mente que esse instituto possui algumas características decorrentes da legislação e da doutrina que remontam aos princípios legais. Desse modo, é interessante que, desde logo, sejam apresentadas algumas das principais características do testamento no âmago da sociedade brasileira. Para isso, utilizar-se-á das colocações de Caio Mário da Silva Pereira: Segundo os elementos definidores, e na conformidade dos princípios legais e doutrinários, fixamos os seguintes caracteres: 1.Negócio jurídico. Tendo em vista que o testamento se constitui de uma declaração de vontade, destinada a produção dos efeitos jurídicos, queridos pelo disponente, inscreve-se como negócio jurídico; 2.Unilateral. O testamento perfaz-se com uma emissão de vontade. Trata-se de declaração não receptícia de vontade, uma vez que se não dirige a alguém, ainda quando seja nomeado testamenteiro; 3.Personalíssimo. No sentido de que há de ser feito pelo próprio testador, sem a interferência de quem quer que seja. Não permite a participação de outro agente, a qualquer título que seja; 4. Gratuito. Não comporta correspectivo. A disposição que o contenha é inválida. A gratuidade é da essência do ato; 5.Solene. Em todo o tempo, o testamento é ato formal. A manifestação de vontade do testador há de revestir a forma prescrita em lei; 6.Revogável. Para caracterizá-lo diz-se que a vontade testamentária é essencialmente revogável [...] conservando, pois, a ideia de sua plena revogabilidade, até a morte do testador (2013, p.177). Depois de observados esses pontos, é importante tecer informações acerca da capacidade para testar. A capacidade ativa diz respeito à legitimidade de quem pode testar que não compreende a mesma capacidade para os atos da vida civil. Nesta senda, de acordo com o Código Civil, em regra qualquer pessoa física pode testar. A exceção prevista a regra fica por conta dos incapazes (abarcando os menores de 16 anos, os mentalmente enfermos, surdos-mudos sem condições de manifestar sua vontade) e de pessoa que no ato de elaboração não tiver pleno discernimento conforme preceitua o artigo 1.860, CC. O que deve ser levado em consideração é o momento de elaboração do testamento, devem ser observadas as condições de quem vai testar. Nesses termos, é que um menor de 16 anos é totalmente excluído da capacidade ativa, já relativamente capaz maior de 16 anos pode perfeitamente elaborar um testamento, haja vista que o legislador quis levar em consideração a capacidade de discernimento do indivíduo. Assim, o relativamente capaz tem plena capacidade de testar. Trata-se, pois, de uma capacidade mais ampla do que a capacidade geral. Importa pensar que, para fazer testamento, a lei procura reconhecer do sujeito um certo grau de discernimento. Acertadamente, a lei entende que o maior de 16 anos tem esse discernimento (VENOSA, 2006, p. 184). No que diz respeito à capacidade passiva, é sabido que esta se refere à legitimidade de alguém para ser herdeiro (ou legatário se tratar de bens individualizados) e requer a existência do indivíduo levando em consideração o momento da sucessão. Aqui estão incluídas as pessoas jurídicas, mas assim como o fez na capacidade ativa o Código Civil no seu artigo 1.801 prevê um rol de exclusão e dispõe que “Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários: I- a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou seus ascendentes e irmãos; II- as testemunhas do testamento; III- o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos; IV- o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento”. Percebe-se, dessa maneira, que são não possuem capacidade passiva a pessoa que escreveu no lugar do testador (a rogo), as testemunhas constantes no testamento, o concubino impuro e as autoridades que vão receber ou arquivar meu testamento não podem ser beneficiadas. Cabe lembrar que só pessoas podem receber herança, animais não podem ser herdeiros nem legatários na sucessão testamentária, no entanto o declarante na hora de elaborar o ato pode estabelecer algum encargo ou condição no que se referir a estes. O testamento, portanto, apesar de não muito utilizado na prática, compõe e torna- se algo indispensável no que se refere a disposição do patrimônio do testador, sendo inteligente a sua disposição na legislação brasileira, haja vista que necessita de regularização, organização e legitimidade, para assim estabelecer parâmetros importantes para fazer valer a última vontade daquele que testa. 3 BREVES COLOCAÇÕES ACERCA DO BIODIREITO E DA BIOÉTICA A LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Tendo em vista que o ponto central desse estudo, qual seja a possibilidadeda adoção do testamento genético no direito brasileiro, está ligado, em uma espécie de relação simbiótica, com a concepção de biodireito é que este capítulo se debruça em uma análise do tema. Sabendo que, em uma aplicação do biodireito há que se estudar conjuntamente outro ramo social responsável por balizar as questões por ele geridas. É que se fará um estudo relacionado entre biodireito e aquilo que o legitima, ou o mitiga, qual seja, a bioética. 3.1 Conceitos de Biodireito e Bioética Não tão difundido quanto o conceito de ética, que possui algumas definições inclusive pode ter diversos viés a depender do filosofo que a defina. O conceito de bioética remonta a década de 1971, tendo sido empregado a primeira vez por Van Rensselaer Petter, biólogo estadunidense. Ele empregou tal neologismo “para destacar a importância das ciências biológicas como garantidoras da qualidade de vida e sobrevivência do planeta.”. (FERREIRA, 2009). Maria Helena Diniz (2002) ao destrinchar o pontuado por Petter explícita que “a bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humana, permitindo a participação do homem na evolução biológica”. Porém, essa participação do homem não poderia se dá de maneira a degradar, ou romper com a harmonia do universo. Em uma compreensão mais contemporânea poder-se-ia definir a bioética como a configuração de um paradigma. Tal paradigma teria como escopo a possibilidade ou o objetivo de fazer surgir um novo discurso sobre a vida, discurso esse que estabeleceria uma nova ética que viria como resposta ao anseio de um discurso da dogmática cientifica moderna e em decorrência lógica das mudanças de paradigmas ocorridas ao longo das últimas décadas e, em grande parte, resultado das inovações na área cientifica, o papel do homem, até então encarado como sujeito manipulador – em sentido amplo – de objetos, se tornou o próprio objeto de manipulação. Assim sendo, todas essas “questões relativas à Bioética vêm eivadas de complexidade, haja vista tratarem-se de questões científicas, filosóficas, econômicas e jurídicas, da qual a interdisciplinaridade é notória.”. (FERREIRA, 2009). Ora, ante essas questões, e principalmente, ante a necessidade de se tutelar relações de extrema importância pra sociedade – como a tecnologia atrelada ao melhoramento ou mitigação do direito a vida - e que, apesar de carecerem de proteção e de se entender que o Direito é decorrência lógica da sociedade em que está inserido. Essa transformação não estava e ainda, em grande medida, não esta, acompanhando as transformações sociais pelas quais a sociedade brasileira tem passado. Ora, tem-se que “em decorrência desse desenvolvimento biotecnológico [e da necessidade de se proteger esse ramo da ciência que interferia de forma direta nas relações humanas é que] nasceu o Biodireito como o ramo do Direito que estuda, analisa e cria parâmetros legais, acerca dos assuntos relacionados à Bioética, caracterizando- se como sendo o elo entre esta e o Direito.”. (FERREIRA, 2009). (Grifado). O biodireito pode ser conceituado, de forma bastante simples como “a produção doutrinária, legislativa e judicial acerca das questões que envolvem a bioética. Vai desde o direito a um meio-ambiente sadio, passando pelas tecnologias reprodutivas, envolvendo a autorização ou negação de clonagens e transplantes [...]”. (Idem). Ainda segundo Santos (2006) “Chega-se ao conceito de ‘Biodireito’, como sendo a positivação das normas bioéticas”. Em outras palavras, “biodireito é a positivação jurídica de permissões de comportamentos médicos-científicos e de sanções pelo descumprimento destas normas.”. Portanto, uma vez que se estar a tratar da possibilidade de adoção do testamento genético no Brasil, testamento esse que qualifica o gene humano como objeto, e como tal passível de doação, e ciente de que qualquer regulamentação, ou qualquer pretensão de se adotar o mesmo, deverá antes de tudo passar pelo crivo do Biodireito e da Bioética é que se passará a análise de alguns princípios que regem tal ramo jurídico. 3.1.1 Princípios constitucionais aplicáveis a Bioética a ao Biodireito A dignidade da pessoa humana, elencada a qualidade de fundamento da República Federativa do Brasil, fato que pode ser observado segundo a disposição do art. 1º, inciso III da Carta Magna de 1988 pode ser definida, segundo as lições de Alexandre de Morais como: Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar. (MORAIS, apud, FERREIRA, 2009). Logo, qualquer medida que mitigue ou esvazie o princípio da dignidade da pessoa humana será passível de ter a sua inconstitucionalidade decretada. Tal princípio possui força irradiante e por esse motivo a dignidade da pessoa humana é aplicável ao campo do Biodireito e da Bioética, porque, pelas razões acima expostas, não se pode conceber a aplicação de um método genético sem que o mesmo esteja de acordo com tal princípio. (FERREIRA, 2009). O Princípio da Igualdade, tal princípio é encarado hodiernamente, muito mais em viés isonômico que objetivo, ou seja, o mesmo só estaria satisfeito quando se se “mitigasse” a falácia de que todos são iguais perante a lei. Logo, sua satisfação viria pela diferenciação, em outros termos, tal igualdade só seria estaria satisfeita se se tratasse os diferentes na medida das suas diferenças. (FERNANDES, p. 155, 2013). Inviolabilidade da vida. Ora sabe-se que “a vida representa para o indivíduo, bem vital, de valor inestimável, deve guardar a mais absoluta proteção à integridade física ou moral do indivíduo, devendo o biodireito resguarda-la, ao máximo, referentemente, aos experimentos científicos que envolvam seres humanos.” Portanto, diante do até aqui explicitado, para que haja a aplicação do testamento genético no ordenamento brasileiro, só seria possível com a observação, dentre outras coisas, de um dialogo sócio-constitucional e do repeito pelos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito. (Idem). DA POSSIBILIDADE DA ADOÇÃO DO TESTAMENTO GENÉTICO NO BRASIL: AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS PARA O DIREITO DE FILIAÇÃO Antes de se adentrar diretamente ao cerne da questão que aqui se pretende desenvolver e, tendo ciência da novidade do assunto que está sendo trabalhado. Na verdade, pode-se falar, em termos doutrinários, de ineditismo, haja vista que nenhum trabalho, com semelhante teor, foi encontrado. Logo, diante dessa carência de referencias e, visando o desenvolvimento desse estudo da forma mais didática possível é que se estabelecerão alguns pontos. O primeiro deles é que apesar de se usar aqui, em determinados momentos, inclusive no tema do trabalho a palavra testamento biológico, esse termo também é utilizado para se designar a feitura do testamento vital, o qual não é o objeto desse estudo. Só a titulo de esclarecimento o testamento objeto desse trabalho é o testamento no qual o testador dispõe de seu material genético, por isso também chamado de testamento genético. Já o testamento vital, que também pode ser chamado de instrumento de "diretivas antecipadas de vontade". Ou seja, no testamento vital se institui diretivas de “vontade e instruções [que] devem ser aplicadas sobre uma condição terminal do testador ou em casos de impossibilidade dele dispor sobre sua vontade, no que diz respeito à dignificação do seu estado de paciente e/ou de sua morte,à recusa ou suspensão de tratamentos paliativos, (ortotanásia), etc.” (ALVES, 2014). O segundo é a de que, embora a legislação nada preveja, ou a jurisprudência ainda não tenha tido a possibilidade de se debruçar sobre um caso com tais peculiaridades, se ainda assim, seria possível a adoção, ou a feitura de um testamento que tivesse como objeto a disposição do material genético do(a) doador(a). Sabe-se, pela leitura do art. 1.857 § 2º, do Código Civil (2002) com a seguinte redação “São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.”. Nem só, disposições patrimoniais pode ser objeto de testamento, além disso, não parece haver qualquer obstrução a disposição de material genético por meio do testamento. Claro que observando os requisitos já trabalhados nesse estudo, como capacidade para testar, dentre outros. Logo, no referente ao tema, a questão estará muito mais voltada para um viés ético, e qualquer pretensão de adoção teria que superar debates abarcados pelo estudo da bioética e do biodireito, talvez até dos setores mais conservadores da sociedade que sempre estão a postos para levantar o dedo e dizer que não concordam, quando na verdade as questões estão muito além da sua concordância ou não. Direitos e liberdades não podem ser discutidos em virtude de “achismos”, as liberdades de uma coletividade devem estar além do pensamento individual. Enfim, como não há vedação no Código Civil ou em qualquer outro dispositivo legal e sabendo que no direito privado vige a lógica, devido ao princípio da legalidade, de o que não é proibido é que: No atinente aos "testamentos genéticos", inexiste previsão na legislação brasileira, dispondo, entretanto, a resolução 1.957/11, do Conselho Federal de Medicina, [diz] que "não constitui ilícito ético a reprodução assistida 'post mortem', desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente". Este normativo ético é premissa de base suficiente a sugerir a prática mais elaborada de testamentos da espécie. (ALVES, 2014). Portanto, estabelecida à premissa de que, rigor, não há qualquer óbice legal para a feitura de um testamento genético se passa agora a analise de algumas questões de ordem prática que poderiam advir caso o mesmo fosse adotado. A primeira delas é sobre quem poderia ser legatário desse testamento. Nesse caso vale consignar que aqui não se estar a tratar de pessoas que formam uma entidade familiar, porque nesse caso, ou seja, no caso de inseminação heteróloga o ordenamento não só permite como regula a questão – vide art. 1.597, inc. V, CC/02 –. Portanto, aqui se estar a falar de pessoas fora dessas relações. Em suma, pontua-se que qualquer pessoa que pode ser legatária de um testamento comum, a rigor, poderia ser legatária de um testamento genético, haja vista que o mesmo é ato unilateral e não receptício, logo, o legatário do mesmo poderia abrir mão do legado, haja vista ser bem individualizado, quando da abertura do testamento. Vale pontuar ainda, que o testamento genético como afirma a advogada israelense Irit Rosenblum, diretora da ONG Nova Família, e autora da ideia, representa "o desejo de dar continuidade à nossa vida [o que] é um desejo natural e essa vontade da pessoa deve ser respeitada mesmo após sua morte". Logo, quando alguém deixa o seu material genético para outra pessoa (sêmen ou óvulo) o intuito desse alguém é de que haja uma fertilização e consequentemente a prolongação da vida. Ainda a título de curiosidade, vale destacar que essa ideia foi primeiramente adotada em Israel onde filhos deixaram para os pais o material para que os mesmos, caso queiram, possam ter um neto. Isso de certa forma é justificável pelo contexto sócio-histórico daquele país, onde situações de guerra e ataques terroristas podem ceifar, a qualquer momento, a vida de uma pessoa. Pontuado que se poderia testar e que o material genético testado teria fins de inseminação. Surge a seguinte indagação, como se daria o reconhecimento da paternidade? Como aqui não se trata de uma doação anônima, nessas, a rigor, prevalece o anonimato do doador e sabendo que o material é de pessoa determinada, autora do testamento, não se pode chegar à outra conclusão a não ser a de que caberá sim a presunção de paternidade – inclusive como uma decorrência do direito a identidade genética da criança - e como a intenção da pessoa que doa o material, - ao menos nos casos narrados na reportagem da BBC – é a de que haja um prolongamento da sua relação parental, o natural é se concluir que o nome do doador poderá sim constar no registro da criança se essa for a sua vontade e se o legatário concordar, quando da aceitação do legado. Outra questão de ordem prática que poderia surgir é relacionada à possibilidade de se pedir alimentos gravídicos, em interpretação conforme as disposições da Lei 11.804/08 que regulamenta a possibilidade de se “obter” alimentos gravídicos, acredita-se, ser possível, até porque poderia ser um caso em que o testador deixou o legado para os pais e que seus pais escolheram a mãe do seu neto. Portanto, desde que necessário, a priori não haveria qualquer óbice. E se a criança – fruto do legado – tiver irmãos. Poderia haver pedido de alimentos para os mesmo? Em uma primeira análise – e, fazendo uma interpretação conforme o art. 1.697 do CC/02 – não parece haver óbice para isso sendo que poderia haver inclusive o inverso, o da pessoa fruto da inseminação desse material dado em testamento ter que pagar alimentos para os seus irmãos. Para finalizar, no que concerne ao direito de herança, com relação aos bens do/da pai/mãe doador do material genético, essa criança, não pode será herdeira na sucessão legitima, pois se o herdeiro ainda não existe há época da abertura da sucessão ele não poderá suceder, conforme dispõe o art. 1.798, CC/02. Porém, na sucessão testamentaria, o autor do testamento biológico poderia deixar algum legado para essa criança, ou crianças a depender da quantidade de filhos que seu material genético possa gerar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora, dentre os institutos responsáveis por reger a vida em sociedade o Direito de Família seja um dos que mais sofre pressão de grupos conservadores ansiosos pela manutenção do status quo justificado como uma proteção da “família tradicional” e dos seus valores, o mesmo não pode ficar estagnado. Em razão disso, as maiores inovações concernentes ao instituto tem ocorrido à margem do legislativo, tomadas por magistrados que ousaram ir além das disposições estritas da lei e a reconhecer direitos individuais que não podem ser mitigados por contas de pensamentos retrógrados. Certo que o testamento genético ainda é apenas uma possibilidade inovadora e como tal, com certeza, polarizador de ideias contrárias. Porém, há uma possibilidade, até porque o princípio da inafastabilidade jurisdicional é a regra em nosso ordenamento. É certo que ainda há muito que se construir a respeito do tema, mas tal construção só será possível quando houver pessoas dispostas a ultrapassar as barreiras do obvio e a lutar pela efetivação dos seus direitos, talvez esteja na hora de uma verdadeira autonomia da vontade privada se efetivar e de o Estado e “alguns cidadãos de bem”, deixarem de interferir quando o que está em jogo é algo que se refere tão somente às liberdades individuais e que não afetem sobremaneira direitos de terceiros. REFERENCIAS ALVES, Jones Figueirêdo. Testamento genético. Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI198083,41046-Testamento+genetico>Acesso em 19 de outubro de 2014. BBC Brasil. 'Testamento biológico' permite nascimento de filhos de pais mortos em Israel. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/02/140217 _testamento_ biologico_gf_ cc.shtml> Acesso em 19 de agosto de 2014. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 6: direito das sucessões / Maria Helena Diniz. – 27 ed. – São Paulo: Saraiva, 2013. _______________ O estado atual do biodireito. 2.ed. aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-01-2002). São Paulo: Saraiva, 2002. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Bioética e Biodireito. Disponível em: < http://www.josecaubidinizjunior.com.br/sol/imagens_clientes/imagens/4/145.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2014. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 7: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2014. PEREIRA, Anna Kleine Neves. Bioética, biodireito e o princípio da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 64, maio 2009. Disponível em: < http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6 210>. Acesso em out 2014. 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