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Prisma Jurídico Centro Universitario Nove de Julho prismajuridico@uninove.br ISSN (Versión impresa): 1677-4760 BRASIL 2007 Pádua Fernandes O MANIFESTO FILOSÓFICO DA ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO, DE KARL MARX Prisma Jurídico, año/vol. 6 Centro Universitario Nove de Julho São Paulo, Brasil pp. 265-273 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007. 265 O Manifesto filosófico da Escola Histórica do Direito, de Karl Marx 1 Tradução de Pádua Fernandes Doutor em Direito – USP. São Paulo – SP [Brasil] paduafernandes@uninove.br A opinião vulgar considera a “Escola Histórica” uma reação contra o espírito “frívolo” do século “XVIII”. A difusão dessa opinião é proporcio- nalmente inversa à sua verdade. O século XVIII, ao contrário, gerou apenas “um” produto cujo “caráter essencial” é a frivolidade, e esse “único” produto “frívolo” é a “Escola Histórica”. A Escola Histórica fez do estudo das fontes seu chibolete2. Ela levou seu amor pelas fontes até o extremo de induzir o navegante a não seguir a corrente, e sim viajar para a nascente. Ela achará razoável que nós, até a fonte dessa Escola, regressemos até o “direito natural de Hugo”. “A filosofia da Escola Histórica antecipa” seu próprio desenvolvimento; por isso, inutil- mente, buscar-se-ia a filosofia nesse mesmo desenvolvimento. Uma ficção corrente do século XVIII considerou a condição natu- ral como a verdadeira natureza humana. Queria-se ver com os próprios olhos a idéia do Homem e foram criados “homens em estado de natureza, Papagenos”3, cuja ingenuidade estende-se até a pele coberta de plumas. Nos últimos decênios do século XVIII, pressentia-se que os “povos em estado de natureza” teriam uma sabedoria original, e em todos os lugares ouvi- mos caçadores de pássaros imitarem o gorjeio dos iroqueses e índios com a idéia de, por meio dessas artes, prender os próprios pássaros em armadilha. Todas essas excentricidades estão baseadas no correto pensamento de que as condições “brutas” correspondem a uma ingênua pintura holandesa das verdadeiras condições. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007.266 O “homem em estado de natureza da Escola Histórica”, que nenhuma cultura romântica amadurece, é “Hugo”. Seu manual de “Direito Natural” é o “Velho Testamento” da Escola Histórica. A opinião de Herder, segundo a qual os homens em estado de natureza são “poetas”, e os livros “sagrados” dos povos nesse estado, “poéticos”, não vem de encontro ao que dizemos, apesar da prosa totalmente trivial e sóbria de Hugo, pois, como cada século possui natureza própria, da mesma forma cada século testemunha seu pró- prio homem em estado de natureza. Se Hugo, por isso, não “escreve poesia”, ele, pelo menos, “finge”, e a “ficção” é a “poesia da prosa”, que corresponde à prosaica natureza do século XVIII. Porém, enquanto designamos o senhor Hugo como patriarca e criador da Escola Histórica, fazemo-lo no seu “sentido próprio”, como prova o “Programa do Festival” de jubileu do famoso jurista histórico. Compreendendo o senhor Hugo como um filho do século XVIII, segui- mos até o “espírito” desse senhor, conforme ele mesmo atesta, na medida em que se apresenta como um “discípulo” de Kant e afirma que seu di- reito natural descende da “filosofia kantiana”. Analisemos seu Manifesto nesse ponto. Hugo “entendeu mal” o mestre “Kant” e conclui que, porque não podemos conhecer o “verdadeiro”, por conseguinte o “falso”, caso exista, deve ser considerado “válido”. Hugo é um “cético” diante da “essência ne- cessária” das coisas, para ter “esperança” de que elas não “apareçam aci- dentalmente”. Por isso, ele não busca, de forma alguma, provar que o “po- sitivo é o racional”, e sim provar que o “positivo não é racional”. De todas as partes ele se arrasta, com sua fábrica de razões autocomplacentes, para levantar evidências de que nenhuma necessidade racional anima as insti- tuições positivas, tais como a propriedade, a Constituição e o casamento. Elas até se “oporiam” à razão, que, no máximo, “tagaleraria” indiferente- mente tanto contra quanto a favor das instituições. De forma alguma se deve acusar esse “método” por sua acidental individualidade; ele é muito mais o “método do seu princípio”, é o “cândido, ingênuo”, o “inconside- Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007. 267 rado” método da Escola Histórica. Se o “positivo” deve “valer porque é positivo”, então devo provar que o “positivo não” vale “porque é racional”, e como eu poderia deixar isso mais evidente senão com a prova de que o irracional é positivo e que o positivo não é racional? Que o positivo existe não “por meio” da razão, e sim apesar dela? Se a “razão” fosse a “medida do positivo”, então o “positivo” não seria a “medida da razão”. “Isto já é loucu- ra, mas tem método!”4 Hugo “profana” tudo que é legal, moral e político para os homens, porém esmaga essas coisas sagradas apenas para poder tratá-las como relíquias históricas. Ele as viola diante dos “olhos da razão” para, depois, honrá-las diante dos “olhos da história”, e também, simulta- neamente, para “honrar o olhar histórico”. Da mesma forma que o seu “princípio”, a “argumentação de Hugo tem caráter positivo”, isto é, “acrítico”. Ele não conhece “nenhuma diferença”. “Cada existência” vale, para ele, como uma “autoridade”, e cada autoridade, como justificativa. São citados, assim, no parágrafo 80, Moisés e Voltaire, Richardson e Homero, Montaigne e Amnon, o Contrat social, de Rousseau, e De civitate Dei, de Santo Agostinho. Em seu proceder, ele iguala os povos. O “siamês”5, que considera como uma eterna ordem natural que o rei costure a boca de um tagarela e corte até as orelhas de um orador deselegante, é tão positivo para Hugo quanto o “inglês”, que tem como paradoxo político seu rei a subscrever, sem autorização, a emissão de um penning. O despudorado “concani”, que corre nu e se cobre de lama, é tão positivo quanto o “francês”, que não apenas se veste, mas o faz elegantemente. O “alemão”, cuja filha é criada como o tesouro da família, não é mais positivo que o “rasbuto”6, que a mata para não ter de cuidar de alimentá-la. Em uma frase: “o eczema é tão positivo quanto a pele”. Em um lugar, isto é positivo; em outro, aquilo, e um é tão irracional quanto os demais, que são positivos dentro de suas fronteiras. “Hugo” é, portanto, o “completo cético”. O ceticismo do século XVIII, diante da “razão da existência”, mostra-se, nele, como ceticismo contra a “existência da razão”. Ele adota o “Iluminismo, ele não vê mais Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007.268 nada racional no positivo, para que, no racional, não possa ver nada mais que seja positivo”. Ele quer dizer que o brilho da razão se extinguiu no positivo, para reconhecer o positivo sem o brilho da razão; e que foram espalhadas “f lores falsas” nas correntes, para que fossem usadas “corren- tes genuínas” sem f lores. Hugo reage ao “Iluminismo remanescente” do século XVIII, mais ou menos como se reagisse contra a “dissolução do Estado francês” na “as- sembléia nacional”, com a descuidada “esperança de um Rei” que dissol- vesse o Estado. De ambos os lados, dissolução! Ela aparece aí como uma “descuidada frivolidade”, que compreende e escarnece da oca falta de ideo- logia das condições de existência, mas somente para, quite com todos os aspectos racionais e morais, dirigir “seu jogo” com podres destroços, aca- bar sendo dirigida pelo próprio jogo e perder-se: é o “apodrecimento do autocomplacente mundo de então”. Contra isso, na “assembléia nacional”, aparece a “dissolução” como o “novo espírito desprendendo-se das velhas formas”, quenão tinham mais “valor” nem “eficácia”, para tomá-las. Isso é o sentimento de si da “nova vida”, que “destroça os destroços”, que faz a “decadência decair”. Por essa razão, se é correto considerar a “filosofia de Kant” como a “teoria alemã” da revolução francesa, assim é o “direito natural de Hugo” à “teoria alemã” do ancien régime7 francês. Encontramos nele, de novo, a completa “frivolidade” dos libertinos, o “ceticismo vul- gar”, que, arrogante contra as idéias e completamente devoto àquilo que é palpável, somente percebe sua inteligência se ela matou o “espírito” do positivo, para então usar o puro positivo como resíduo e, nessas condições “selvagens”, ficar confortável. Até quando Hugo pensa ser difícil justificar essas posições, com instinto seguramente infalível, ele julga os aspectos ra- cionais e os costumeiros nas instituições “perigosos” para a razão. Apenas o aspecto animal mostra-se “à razão dele” como “sem perigo”. Ouçamos, então, nosso iluminista do ponto de vista do ancien régime! Deve-se ouvir a opinião de Hugo acerca do próprio Hugo. Todas suas combinações têm algo em comum: ele mesmo o disse8. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007. 269 Introdução A ‘única marca jurídica que distingue o homem’ é a sua natu- reza ‘animal’. O capítulo da liberdade Até isto é uma ‘limitação da liberdade’” (sc. da essência ‘racio- nal’), ‘que não se possa, quando se queira, deixar de ser uma essência racional’, isto é, uma essência que pode e deve racio- nalmente agir. A ‘escravidão’ não muda segundo a natureza animal e racional do ‘escravo’ e dos ‘outros homens’. ‘Todos os deveres da cons- ciência’ permanecem. A ‘escravidão’ não é apenas ‘fisicamen- te’ possível, mas também possível ‘segundo a razão’. Em toda pesquisa que demonstra o oposto houve um engano. Ela, com certeza, não é ‘peremptoriamente jurídica’, isto é, não decorre da natureza animal, nem da racional, nem da civil. Mas porque ela pode ser um ‘direito provisório tão bom’ quanto qualquer coisa que pode ser admitida por seus adversários, é que se pode compará-la com o ‘Direito Privado’ e o ‘Direito Público’. Prova: Considerando a natureza ‘animal’, está evidentemente mais se- guro do que a média aquele que ‘pertence’ a um rico, que perde alguma coisa com ele e toma precauções contra suas desven- turas do que o pobre, que é usado por seus compatriotas, en- quanto houver algo nele a ser usado etc. O direito a ‘maltratar’ e ‘mutilar’ servi 9 não é essencial, e ‘se ele também é exercido, não é muito pior’ do que o sofrimento que os pobres permitem af ligir ao próprio ‘corpo’; não é tão ruim quanto a ‘guerra’, por meio da qual servi, em toda parte, devem libertar-se. A ‘beleza’ Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007.270 até se acha antes em uma ‘escrava circassiana’ do que em uma ‘ jovem mendiga’. (Ouça os antigos!) Para a natureza ‘racional’, a servitus10 tem sobre a pobreza a van- tagem de que o proprietário pode, até por uma ‘boa compreensão da economia’, mudar em algo a sorte de um servo que mostre ter capacidades, como é o caso de uma criança mendiga. Em uma ‘constituição’, a classificação do servo não recebe muitos artigos. É o escravo mais infeliz do que o prisioneiro de guerra, cuja es- colta não mais lhe concerne, enquanto ela é responsável por ele, mais infeliz do que o preso condenado a trabalhos forçados de construção, para quem o governo designou um capataz? Ainda se discute se a escravidão é em si favorável ou não à ‘reprodução’. O capítulo da educação Logo somos informados de: [...] que a arte da educação (sc.11 educação na família) não tem menos a opor contra as relações jurídicas concernentes do que a ‘arte de amar’ contra o ‘casamento’. A dificuldade de que somente numa tal relação seja permitido educar, neste caso, já não é de fato tão perigosa quanto no da satisfação do instinto sexual, também porque a educação, por meio de contrato, pode ser assumida por um terceiro, pois quem sente um instinto tão intenso muito facilmente poderia satisfa- zê-lo com outra pessoa que não ‘aquela determinada’ que se de- seja. Contudo, é também contrário à razão que alguém a quem nunca se confiaria uma criança deva, por causa de uma ‘relação desse tipo’, educar e excluir outros da educação. Por fim, entra Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007. 271 aqui também uma obrigação a esse respeito: de um lado, que o educador segundo o direito positivo não será freqüentemente autorizado a abandonar essa relação; de outro, que o educado é compelido a deixar-se educar justamente por aquele. A verdade dessa relação se fundamenta principalmente no ‘simples acaso’ do nascimento, o qual, devido ao casamento, deve ser relacionado ao ‘pai’. Esse tipo de origem, evidentemente, não é muito racional também porque, nesse caso, é costume aparecer uma predileção, que basta para dificultar o caminho de uma boa educação, e que não é de forma alguma necessária, pode-se notar, porque crian- ças cujos pais já estão mortos também são educadas. O capítulo do Direito Privado No § 107, somos instruídos de que “[...] a necessidade do Direito Privado é, com efeito, uma suposição.” O capítulo do Direito Público É um ‘dever sagrado da consciência’ obedecer à ‘autoridade’ que detém nas mãos o poder.” “De fato, nenhuma constituição, no tocante à ‘distribuição dos poderes do governo’, é jurídica de forma peremptória. Porém, é jurídico, de forma provisória, que cada uma distribua ‘como quiser’ o ‘poder governamental’. Hugo não provou que o homem pode romper a “última algema da liberdade”, isto é, a de ser uma “essência racional”? Esses poucos excertos do Manifesto filosófico da Escola Histórica são suficientes, acreditamos, para pôr um julgamento histórico sobre essa escola Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007.272 no lugar das fantasias anistóricas e das ficções deliberadas. São suficientes para decidir se os “seguidores de Hugo” devem ter a profissão de “legislado- res de nosso tempo”. Contudo, foi coberta pela névoa dos “trabalhos esfumaçados da mís- tica”, no curso do tempo e da cultura, a “rude árvore genealógica” da Escola Histórica. Foi recortada fantasticamente pelo Romantismo, inoculada pela “especulação”, e os muitos frutos “eruditos” sacudidos da árvore foram guar- dados ressecados, soberbos, no grande armazém da erudição alemã. A esse respeito, é necessário, de fato, ter somente um pouco de “crítica” para re- conhecer, por trás de todas as perfumadas frases modernas, as imundas e velhas idéias de nossos iluministas do ancien régime e, por trás de toda exuberante unção, a negligente trivialidade. Se Hugo diz que “A natureza ‘animal’ é a marca ‘ jurídica’ que distingue ‘o homem’”, conseqüentemente o direito é o direito animal. Afirmam-no os eruditos “modernos” sobre o direito em estado bruto, “animal”, como sendo algo “orgânico”. Contudo, quem se recorda, em relação ao organismo, que ele é igual ao “organismo animal”? Quando Hugo assevera que, no casamento e em outras instituições “ jurídico-morais, não há razão alguma”, da mesma for- ma os “modernos” senhores escrevem que essas instituições, com efeito, “não constituem a razão humana”, e sim “copiam” uma mais alta razão “positiva”, por meio de todos os artigos restantes. Sem diferença alguma, “todos” pro- nunciam brutalmente “um” só resultado: “o direito do poder arbitrário”. As teorias jurídicas e históricas de Haller, Sthal, Leo e outras con- gêneres devem ser consideradas somente como codices rescripti12 do “direito natural de Hugo”. Elas, após algumas operações da “arte crítica do recorte”, deixam novamente aparecer, legível, o velho “texto original”,como quere- mos provar, mais adiante, em momento adequado13. Ficam tanto mais inúteis todas essas “artes de embelezamento”, pois ainda temos o velho Manifesto, que, embora não seja “inteligente”, é, pelo menos, bastante “inteligível”. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007. 273 Notas 1 O texto seguiu a versão publicada na Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), de 9 de agosto de 1842. Os diversos termos entre aspas ou aspas simples correspondem aos grifos do original. Tradução de Pádua Fernandes. Fonte: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke. Berlin: Karl Dietz Verlag, 2006. p. 78-87, Band 1. 2 Referência à senha na luta entre gileaditas e efraimitas em Israel. Os efraimitas não eram capazes de pronunciar corretamente a palavra e, com isso, eram reconhecidos e degola- dos. Ver o Livro dos Juízes, 12:5-6. 3 Personagem da ópera A flauta mágica, de Mozart. 4 Referência a uma frase da tragédia Hamlet, de Shakespeare. 5 Sião é o antigo nome da Tailândia. 6 Casta de guerreiros na Índia. 7 Antigo regime, ou seja, o absolutismo. Em francês, no original. 8 A partir deste ponto, Marx passa a citar, com breves comentários, passagens do Manifesto de Hugo, tentando fazer com que o absurdo se mostre por si mesmo. A forma de citar no original foi mantida. 9 Marx emprega o termo latino para escravos. 10 Marx emprega o termo latino para escravidão. 11 Scilicet (isto é). 12 Papiros ou pergaminhos reutilizados, em que se escreve um novo texto por cima do antigo (palimpsestos). 13 Karl Marx não chegou a escrever a continuação desta análise da Escola Histórica do Direito. Para referenciar este texto: MARX, K. O Manifesto filosófico da Escola Histórica do Direito. Texto extraído de Gazeta Renana, 9 ago. 1842. Tradução de Pádua Fernandes. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 265-273, 2007. The philosophic manifesto of the Historical School of Law, of Karl Marx
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