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Moda: o inútil e a sua servidão
Por Carlos Alberto Dória
Uma máquina de inclusão/exclusão com vínculos fortemente simbólicos e fracamente utilitários
“...isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela”
Machado de Assis
A mercadoria­frisson
Há muito que a moda deixou de ser uma simples medida estatística usada para indicar as ocorrências mais 
freqüentes num dado conjunto de indivíduos. O mundo do trabalho se fragmentou em múltiplos processos 
organizados em rede, uma infinidade de nichos de produção e consumo, e por isso não apresenta um ponto de 
convergência que possa ser detectado e medido, nem a moda que o perpassa se restringe à vestimenta, como à 
época da confluência entre o conceito estatístico e o seu objeto.
Hoje a moda está mais próxima daquilo que o velho Marx apontava como o papel do delinqüente no mundo 
burguês:
“O filósofo produz idéias; o poeta, versos; o pastor, sermões; o professor, manuais etc. O delinqüente produz 
delitos  (...)  produz  também um direito penal,  produz o professor  que dá  cursos  de direito  penal  e  até  o 
inevitável  manual   no   qual   o   professor   condensa   as   suas   aulas   com   vistas   ao   comércio.  A   atuação  do 
delinqüente se traduz, pois, no aumento da riqueza nacional (...). O delinqüente produz, além disso, toda a 
organização da polícia e da justiça penal, produz os agentes de polícia, os juízes, os jurados, os carrascos, etc. 
(...). O delinqüente produz uma impressão de caráter moral, e às vezes trágica, estimulando dessa forma a 
reação dos sentimentos morais e estéticos do público. Além dos manuais de direito penal, de códigos penais e 
de   leis,   produz   arte,   literatura,   novelas   e   inclusive   tragédias.  O   delinqüente   introduz   certa   diversão  na 
monotonia e na serena tranqüilidade da vida burguesa, defendendo­a contra o marasmo e provocando essa 
tensão inquieta, esse dinamismo do espírito sem o qual o próprio estímulo da concorrência acabaria por se 
embotar”1.
Além da fina ironia sobre o trabalho improdutivo, o que Marx registra é um tipo de atividade, cujo sentido 
último parece ser produzir frisson no mundo burguês. E não seria esta, hoje, a função da moda ­ao menos de 
como   ela   nos   é   oferecida   pelos  meios   de   comunicação,   ainda   que   esse  modo   expresse   o   oposto   da 
marginalidade à qual Marx atribuiu esse poder no século XIX? Que o frisson tenha tomado a dianteira, sendo 
mais emocionante do que o toque da lã do pulôver invernal, é verdadeiramente um sinal dos tempos.
Como o  delinqüente,   que   aparentemente  nada  produz  e  no   entanto   enlaça   tantos   trabalhos  úteis  para   a 
manutenção da ordem, a moda surge como a culminância de uma cadeia produtiva que une o longínquo 
mundo rural e o guarda­roupa do mais ocioso membro do chamado beautiful people, alinhavando centenas de 
elos que ligam num só destino a indústria petrolífera, a química, a têxtil, as confecções, milhares e milhares 
de artesãos  (costureiros),   a  cadeia  do couro  e  calçados,  a   indústria  metalúrgica,  os   shopping centers,  os 
lojistas, as agências de publicidade e, claro, as companhias de aviação, as televisões, as modelos, os estilistas.
De fato, a moda só aparece para o grande público enquanto conjunto de objetos que produz agitação frenética 
no seu entorno, envolvendo modelos, estilistas, artistas e jornalistas em uma infinidade de acontecimentos dos 
quais estão excluídos os comuns dos mortais2.  Olhando mais de perto,  os modelos se assemelham a um 
exército anônimo de seres sem identidade ­quase coisas, exceto em algumas raras exceções, quando simulam 
pessoas cheias de vontades e que não devem ser contrariadas­, ao passo que o estilista se projeta como o 
sujeito único da história subjacente.
Estilista: o artista do descartável
Mas, afinal, quem é esse personagem: o estilista? Certamente não é o artista, no sentido de alguém que define 
um estilo como uma linguagem particular dentro da linguagem geral que possa ser reconhecida ao longo da 
história.   Pouquíssimos   são   os   que,   na   história   da   vestimenta,   alcançaram   esta   posição.  É   claro   que   a 
vestimenta é, hoje, apenas o nascedouro histórico do estilismo, e o que parece caracterizá­lo em todos os 
domínios da moda é o sentido efêmero e descartável da criação.
O estilista se define mais precisamente por sua função geral, próxima à do xamã que se posta em cada esquina 
para auscultar  o vento e adivinhar  a direção sempre errática do vôo do Belo,  esse deus ex­machina que 
contempla   a   história   como   um   pássaro   de   Minerva   que   alça   vôo   a   cada   nova   estação   parisiense. 
Aparentemente é a intuição do estilista que, como timoneira, move a máquina mercante, ora para o norte, ora 
para o sul, mas sempre adiante.
Às vezes,  por excesso de criação,  o mundo das mercadorias  que brotam da máquina mercante se satura, 
parece desmoronar e não consegue mais capturar o consumidor. É quando o estilista olha para a rua (para o 
street wear), observa como as pessoas se comportam espontaneamente e, inspirado nas massas, recria o desejo 
do exclusivo ao introduzir diferenças no gosto geral. Esta a grande habilidade de origem incerta que apresenta 
o “estilo” como uma espécie de dom natural ou um toque divino que abençoou algumas pessoas, outras não. 
Apesar da multiplicação das escolas e faculdades de moda, dificilmente essa habilidade se transmite pelo 
aprendizado formal3.
Esses heróis modernos ganham fortunas (US$ 100 milhões anuais, declara Tom Ford, ex­estilista da Gucci), 
quando movem a máquina. E esta se move como no caso do reflorescimento das peles silvestres. Depois de 
amplamente fustigadas pelos ambientalistas, elas estão de novo em Nova York, Milão, Paris e Moscou.
Os   criadores   de   visons   e   raposas   da   Dinamarca,   Suécia   e   Finlândia,   onde   existem   6.000   criadouros 
responsáveis por 65% da produção de vison e 80% das raposas (empregando 18 mil pessoas!), conseguiram 
dar a volta por cima, organizar um poderoso lobby ­liderado pela Saga Furs­ e ganhar para a “causa” Jean­
Paul Gaultier e Julien Macdonald. De quebra, na nova onda, a média de idade dos consumidores de peles 
baixou de 49 para 34 anos.
Estilistas também podem ajudar a arruinar indústrias: foi o caso do linho, devorado pelo boom dos tecidos 
japoneses de microfibras. Nesse sentido, as possibilidades criativas dos estilistas estão sempre dadas por um 
determinado nível tecnológico, por parâmetros férreos da indústria dentro de uma cadeia de causações que 
começa muito antes do momento da criação, quando, por exemplo, a indústria química e a indústria têxtil se 
entendem sobre a cartela de cores que vigorará muitas coleções depois4.
Desta perspectiva o estilista está longe de ser o ponto de origem do ciclo, como é vulgarmente considerado, e 
é  difícil  dizer  se é  causa ou conseqüência  dos movimentos vorazes  da competição capitalista,  se  origina 
impulsos ou aniquilações de processos produtivos, embora seja certo que está umbilicalmente ligado a eles.
A nova máquina mercante
Fenômenos assim, concretos e materiais, sugerem que a liberdade de criação talvez seja mais imaginária do 
que real. Mas a materialidade da mercadoria­moda é o seu aspecto menos importante, já que é cada vez mais 
do portão da fábrica para fora que se joga a sorte dos produtos da moda.
Design, marketing, shows e desfiles  promocionais,  colunas  sociais,  revistas  especializadas,  restaurantes  e 
casas noturnas ­tudo isso e muito mais forma o ambiente de afirmação do seu poder social em proporções 
sempre maiores do que o valor agregado às matérias­primas em longínquas oficinas no Bom Retiro ou em 
comunas  chinesas.  Desgraçadamente,  o   trabalho  dessa   imensa  mercadoria   impalpável  precisa  de  alguma 
materialidade, por menorque seja5, para se expressar e se aninhar como coisa no visual merchandising6.
Os  produtos   da   indústria   da  moda   representam,   assim,  de  maneira   radical,   uma   tendência  universal   da 
produção moderna: as mercadorias já não são apenas valores de uso e se convertem em “transportadoras”, 
para o mercado, de um sem número de serviços de natureza simbólica –estes, sim, em processo de crescente 
adensamento.  Por isso mesmo, pelo caráter residual da sua materialidade, é  que a mercadoria­signo pode 
transitar entre vários ramos da produção, reforçando a sua identidade em vez de perdê­la.
Marketing  cruzado ajuda  a vender,  simultaneamente,  carros  e   relógios.  Sonia Rykiel,  que  nasceu  para  o 
mundo fashion como crítica de uma publicação especializada, se metamorfoseia em estilista e assina roupas, 
livros, bolsas, perfumes, chocolates, além de integrar o júri do Festival de Cinema de Paris. Diante de seu 
enorme saber estético e da dimensão institucional do seu trabalho, todos parecemos incapazes de discriminar 
aquilo que realmente gostamos ou queremos. E, claro, ela mesma “lança a moda” de arremedos periféricos 
desse seu jeito particular de inserção no mundo dos negócios.
A nova modalidade de estilismo ­que transborda do mundo da vestimenta para o conjunto do mundo das 
mercadorias­ bem mostra o toque de Midas que parece cercar os novos serviços que compõem a competição 
mercantil. A camisa de força do valor de uso, cuja expressão era a funcionalidade do objeto, parece estar 
definitivamente rompida. Assim como um dia a engenharia se submeteu à arquitetura, hoje esta parece se 
submeter ao décor;  o chocolate,  em seus vários sabores  sutis, é  subsumido nas formas do bombom e da 
embalagem; e assim por diante.
A semi­ótica da imprensa e da semiótica
A imprensa não trata a moda como a poderosa indústria que é, com milhares de tentáculos, mas, sim, como 
um   “tema”   da   seção   de   comportamento   e   um   capítulo   da   sociedade   do   espetáculo.   De   fato,   há   nos 
consumidores de moda uma intrínseca rebeldia contra os padrões estabelecidos, uma frenética decretação de 
que tudo o que um dia foi sólido e não se desmanchou, deve ir para lata de lixo. A moda se move pelo 
descarte, antes que o valor de uso do bem tenha esgotado o seu ciclo.
Quem se aferra à função vestimenta da roupa fashion é, obviamente, demodé. De algum modo, sempre que a 
máquina se move para produzir novos estilos, suprime alguma sorte de identidade social do seu consumidor, o 
fashion victim.
O gigantismo que essa indústria de serviços de persuasão vem adquirindo, movendo bilhões de dólares no 
mundo a cada nova estação do ano, mesclando trabalhadores do Ocidente e do Oriente nos seus produtos, faz 
com que a reflexão sobre ela também se propague por inúmeras áreas de conhecimento. Como o modesto 
delito que faz acordar o direito, a literatura, a polícia e o bom burguês.
Dentre as abordagens sedutoras, a semiótica parece a mais rebuscada, pois confere à moda o estatuto de um 
departamento da linguagem geral dos signos. Mas a semiótica, no caso, é também de grande cumplicidade 
com os aspectos mais perversos do seu objeto, pois silencia sobre o mundo da produção.
Perversidade que vai das formas mais arcaicas de remuneração do trabalho (salário por peças, por exemplo, 
tão usual  nos  primórdios  da   revolução   industrial   e  que  permanece  na  cadeia  da  moda)  à   submissão do 
consumidor a essa modalidade de indexação de grupos sociais numa sociedade onde a individualidade há 
muito deixou de ser a dimensão subjetiva do sujeito. Perversidade que faz do usuário o objeto da roupa, pois o 
“estilo” é antes de tudo um discurso que se debruça sobre o corpo, tecendo uma pele cultural para o sujeito, 
desenvolvendo a sua segunda natureza táctil e visual7. Ao fazer isso vincula indivíduos dispersos, deixando 
entrever   um  mesmo   destino   social   através   de   um   discurso  mudo   do   tipo   “você   sabe   com   quem   está 
falando?”8.
O uniforme e o by appointment
De um relógio Bulgari a uma tatuagem, o que o seu possuidor busca é apresentar uma síntese de si aos olhos 
anônimos. Ora, ser reconhecido é o mesmo que não ser confundido e, assim, o inimigo número um da moda é  
a cópia. Vestidos iguais numa mesma festa já foram o horror da burguesia novidadeira. Modistas a tiracolo 
pareciam ser o antídoto deste mal.
O “período operário” da história moderna, que Chaplin tão bem caricaturou, foi sucedido pela segmentação 
da   produção,   pela  multiplicação   de   nichos   especializados   e   unificados   por   sistemas   e   tecnologias   de 
informação e conhecimento que se erigem como um novo espaço integrador no qual não “vejo” o que vem 
antes   nem depois.  Que  o   indivíduo   tenha   se   ampliado   e   se   convertido   em grupo,   tribo,   gangue   ­todos 
singulares,   “únicos”   na   sua  multiplicidade­   pouco  modifica   a   lógica   de   reconhecimento   social,   embora 
requeira a multiplicação dos estilistas como os elos capazes de produzir esta fugidia comunidade de sentido 
que a vestimenta cristaliza entre duas estações do ano. Mas a cópia, o fake, o falso, mais do que contrafação 
da moda expressa o triunfo de determinado estilo ao convertê­lo efetivamente em moda (agora no sentido 
estatístico e original do termo). A calça Lee talvez seja o exemplo histórico mais acabado dessa diretriz.
A realização máxima da moda é o uniforme, não o exclusivo, e o seu apelo aponta na direção do recrutamento 
via consumo mercantil. A contradição entre uniformização e diferenciação é que move o estilismo enquanto 
necessidade   sazonal   de   recomeço.   Passada   uma   estação,   a   midia   decreta   imediatamente   a   “crise   de 
superprodução”, a esterilização de valores, a reativação da economia, por obra da guerra entre o velho e o 
novo numa espécie de keynesianismo de shopping center.
Ao ter sucesso em descatar valores de uso, a moda afirma o poder social das marcas que impõem a renovação. 
Ou seja, o recomeço do processo evidencia a extraordinária acumulação de valor justamente nas marcas, que 
sintetizam os serviços que carecem de materialidade e que, portanto, são imunes à “crise de superprodução”.
O conceito de marca (trade mark) nesse segmento se opõe aos valores das marcas industriais, cuja qualidade 
estava na estabilidade e capacidade de repetir ao infinito um mesmo produto com as mesmas características. 
A marca industrial trazia consigo o resumo do processo de trabalho fordista, da produção seriada sempre 
igual, cuja qualidade básica era a duração do valor de uso.
Já as grifes de moda (e grife é termo que expressa a assinatura como acumulação de qualidades, e não o 
processo de produção) são tão mais fortes quanto mais demonstrem capacidade de se renovar, se diferenciar e 
se difundir por vários domínios mercantís. Em síntese, consome­se assinatura, além daquilo que ela “assina”. 
As marcas funcionam para os diferentes grupos sociais (ou nichos de mercado) como uma espécie de by 
appointment, um passaporte para o ingresso das mercadorias neles9.
Que o mundo da mercadoria tenha criado uma dinâmica nova de esterilização de valores de uso através da 
incessante   renovação   do   valor­signo   da   mercadoria   parece   ser   a   conquista   mais   sólida   do   moderno 
capitalismo. E talvez por isso mesmo é que o grande modelo precursor dessa novidade se aninha no mundo da 
vestimenta, onde o capital fixo é relativamente pequeno e a mobilidade do processo de trabalho relativamente 
grande.
Esta abstração crescente da materialidade dos produtos ligados à dinâmica do mercado da moda faz dela um 
setor   de   ponta   da   globalização   vista   como   fluxo   internacional   de  mercadorias.   Imagens   da   produção 
concentrada, como a Manchester fabril do século XIX, são tão arcaicas quando o delinqüente de Marx.
O desenvolvimentoda moda se dá em sistemas de significação muito versáteis, capazes de se apropriar de 
identidades nacionais, territoriais, regionais, étnicas, religiosas, de gênero ­e, em última instância, pessoais­, 
que podem ser descartadas com a mesma velocidade com que foram assimiladas. Trata­se, assim, de uma 
máquina de inclusão/exclusão sem precedentes na história, mas apoiada em vínculos de tipo novo dos sujeitos 
com as mercadorias ­vínculos fortemente simbólicos e fracamente utilitários. Esta sua força e fragilidade.
O universal anti­nacional
Diante  dessa  característica  nova  da  produção  mercantil,   esforços  de   construção  de  uma  moda  ou  estilo 
“nacional” aparecem como verdadeira quimera. Os serviços que caracterizam a moda valem justamente pelo 
seu caráter  universal,  pela capacidade de estar  em toda parte  e nenhuma, fazendo da diferença um valor 
planetário, e não apenas local.
Quando Paris é a capital da moda, Coco Chanel dita o estilo. Mas, quando Paris já conquistou o mundo e há  
guerra  no  Oriente,  é   a   estilização  da  burca  que  pode  levar  o   consumidor   a  participar  dessa   floresta  de 
símbolos sem que suas mãos estejam tintas de sangue. Mas para que a burca possa ganhar cidadania fashion 
não é necessário que deixe de ser uma vestimenta étnica, proibindo­se o seu uso nas escolas de Paris?
Há, nessa carnavalização, um moldar­se da vestimenta à sociedade que nos abraça e um emolduramento do 
corpo  pela  política.  O consumidor  que  se  posta  nesses  pontos  cegos  da  história  vive  o   frisson  na  vida 
burguesa de hoje. A moda é o seu guia, visto que ela instaura um relativismo pretensamente democrático 
diante do qual a etnicidade aparece como um fundamentalismo antitético.  Ao propor burca para todos, a 
ninguém é dado aferrar­se a ela por mais de uma estação.
Carlos Alberto Dória
É sociólogo e ensaísta, autor, entre outros livros, de "Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e o recém­
lançado "Os Federais da Cultura" (ed. Biruta).
Notas:
1 ­ Karl Marx, “El Trabajo Productivo y el Trabajo Improductivo”, em "Historia Critica de la Teoria de la 
Plusvalia", tomo 1, Ediciones Brumario, Buenos Aires, 1974, pág. 204
2 ­ Leia­se o que escreveu uma jornalista sobre o evento da moda em São Paulo: “A São Paulo Fashion Week 
movimenta os endereços mais elegantes e caros da cidade e reúne, em desfiles, jantares e badalações, gente 
bonita, importante, rica e famosa. Atrai, ainda, jornalistas estrangeiros e clientes endinheirados de todo o país 
para a capital paulista. A quem não cabe nenhuma das classificações acima, resta o fardo de ser um 'wannabe'.  
O apelido, criado no chamado mundinho da moda, vem do inglês 'want to be', que significa 'querer ser'. Trata­
se do pessoal que queria fazer parte do universo fashion, mas não está na lista de convidados” (Fernanda 
Mena, "Celebridades e 'wannabes' disputam holofotes da moda", "Folha de S. Paulo", 01/02/2004)
3 ­ Maria Cândida Sarmento, uma das principais estilistas brasileiras,  prematuramente desaparecida,  fazia 
uma distinção pedagógica entre “estilista” e “costumista”, querendo com isso mostrar a distância que separa a 
criação da mera divulgação através da habilidade para copiar
4 ­ É claro que a indústria química se cerca da consultoria de estilistas, mas é ela quem deflagra o processo. O 
ciclo da propagação da cartela cromática de uma dada estação por sucessivos ramos da indústria é um dos 
aspectos mais interessantes e menos estudados da moda. Começa nos fios, passa por automóveis e tantos 
outros produtos para acabar, muitas estações depois, na louça sanitária e material de construção
5 ­ O diretor de uma grande agência de publicidade paulista estima que o valor do plástico injetado de um 
dado modelo de sandália da moda não deva alcançar sequer 5% do valor final do produto que chega às mãos 
do consumidor
6 ­ Este conceito,  criado por uma revista  de moda, resume o complexo trabalho de identidade visual  no 
momento em que estão reunidos o produto, o consumidor e a “intenção de compra”.
7 ­ Não é por outra razão que valoriza tanto o corpo e suas formas, resvalando facilmente para a sexualidade 
coisificadora  que  tanto  irrita  as   feministas.  Recentemente  a  "Vogue"  francesa  “serviu  sushi  no corpo  da 
modelo que representava cenas de submissão oriental a um samurai dominador. A vítima fashion, uma coisa 
meio Amélia, meio gueisha, chegou a ganhar o conteúdo líquido de um copo bem no meio da cara, mas nem 
por isso deixou de exibir, totalmente subjugada, seu longo casaco vermelhésimo da Louis Vuitton” (conforme 
http://marcosabino.com/modatarada.htm)
8 ­ Não por acaso desenvolve­se mesmo um estilo “básico”: jeans, camiseta branca ou preta. Paulistanos se 
vestem com o  “preto  básico”,   como  se   seus   corpos   estivessem sempre   esperando  o  momento   social,   o 
momento da festa, da aparição pública que exige identidade clara; enfim, o momento da “carnavalização”.
9   ­  Neste   sentido,   funcionam  também como um serviço  de   feição  moderna,   como são  os  "sistemas  de 
certificação", com a diferença que não se dirigem à sociedade como um todo, mas apenas a um agrupamento 
delimitado de consumidores.

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