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Da Fala das Roupas: Guardiões de Armários e Gavetas e a Encenação da Modernidade em Belo Horizonte Adriana de Castro Dias Bicalho I - Da fala das roupas Uma incessante torrente de objetos vestíveis, cada vez mais veloz, atravessa nossas vidas: quantos casacos, camisas e camisetas, calças, saias, cintos e gravatas, a proferir seus códigos óbvios ou ambíguos, mediaram até agora o nosso existir físico e social? Quantos vestidos, capas, pijamas, meias, bolsas e óculos ainda serão nossos breves coadjuvantes? Quão longa será a trilha de pares de sapatos que cada um deixará atrás de si? Tende o número de vestíveis a superar o das outras categorias de objetos que fazemos, compramos e usamos e é exatamente nessa abundância que reside sua invisibilidade e silêncio – uma profusão em movimento facilmente solapa nossos sentidos. Esse movimento ininterrupto é uma precondição dos modos lícitos de vestir-se e de viver porque represar os objetos no armário ou pelos cômodos da casa é uma espécie de pecado social. Uma das fábulas contemporâneas mais aterradoras conta que o apego aos objetos implica no risco de perdermos o controle sobre eles e de desaparecermos sob um oceano de guardados – esgotadas as possibilidades de uso, os objetos assumem uma inquietante autonomia e podem ameaçar a sanidade de seus possuidores. Portanto, ainda que muitas de nossas roupas venham a durar mais que nossos corpos, mesmo que o tempo seja particularmente cruel com os têxteis, sua existência socialmente autorizada condiciona-se ao uso, que encontra seus limites muito mais na cultura do que na sua materialidade. E para além da fragilidade da matéria e da virulência da obsolescência programada, pesa também sobre os objetos vestíveis a sua promiscuidade com a moda, que é entendida ainda como produção cultural menor e marginal, especialmente no que tange a seus elementos femininos, domésticos e artesanais. Não obstante, há aqueles que insistem em guardar roupas para as quais não há mais serventia: as próprias, de parentes, de vizinhos, de amigos e até de desconhecidos. É dessa maneira que uma roupa guardada, sem perspectivas de retornar ao circuito dos usáveis, está finalmente liberta para se tornar documento, para se tornar narrativa, para significar o tempo - a partir desse momento, é possível ouvir sua fala silente. A roupa antiga opera como um evento histórico contínuo, posto que sua existência no presente permite aos nossos sentidos de fato alcançar e tocar outros contextos. Mas com frequência nossa percepção é administrada muito mais pelos documentos, alinhavados até se tornarem História, que pelas impressões oriundas da experiência sensível. Esses documentos são, portanto, princípios ordenadores e interpretativos, que estabelecem o que deve ou não ser visto, o que se pode saber, o que se deve ou não investigar. Mas há dimensões nos objetos que escapam à competência dos documentos. Em Caderno de Notas sobre Roupas e Cidades, documentário dirigido por Win Wenders em 1989, o designer Yohji Yamamoto, em uma pesquisa que parece contradizer o sistema no qual se insere seu ofício, mostra-se mesmerizado por um livro de fotografias que retrata pessoas em suas vestimentas de trabalho. Ali ele parece detectar uma aura, um elemento intrigante e indizível que transcende a vestimenta e mesmo as páginas do livro. Yamamoto conta que quando o material era caro e escasso, os artigos de vestuário eram usados e reformados até o limite da matéria ou da adequação. Assim, já foi comum que uma peça de roupa atravessasse algumas gerações e fosse objeto de veneração, como se adquirisse uma dimensão espiritual, na qual se inscrevessem tanto o intervalo de existência das pessoas como suas práticas laborais. Essa aura ou dimensão espiritual dos objetos vestíveis dificilmente encontra lugar na historiografia do vestuário. Isso acontece porque os objetos, particularmente as roupas, são amiúde entendidas como espelhos ou reflexos passivos de determinada ordem social e cultural, como se ocupassem uma região externa a seus contextos. No campo ampliado da Cultura Material, porém, os objetos são tanto construídos como também construtores, isto é, são ativos formadores de seu contexto – mesmo sob o peso do tempo é possível ouvir suas vozes - logo são também documentos. Pensar os objetos como prelúdio e observá-los em sua individualidade é considerar que são inevitavelmente habitados pelas particularidades de sua matéria, pelas peculiaridades das crenças, ideias e ofícios que orquestraram sua forma, pelas relações sociais e experiências profundamente pessoais daqueles que os usaram, pela versão de mundo que autorizou sua existência. Não que se deva prescindir dos documentos tradicionais – documentos e objetos-documentos não constituem uma antinomia - mas antes, deve-se imbricar uns e outros de modo a dilatar o que sobre eles se pode apreender. Assim, para apresentar a coleção de vestuário que principia a se formar no Museu Histórico Abílio Barreto, optou-se por privilegiar as vozes dos objetos e não cristalizá-los e adequá-los aos discursos da História do Vestuário ou do Sistema da Moda que, ainda que didáticos e essenciais, tendem em sua assepsia ao enrijecimento e exclusão. Mas não se trata de um monólogo: os objetos vestíveis interpelam e encontram resposta nos documentos históricos e a aproximação dessa fala silente se dá tanto no plano coletivo, quando se investiga a (encenação da) modernidade na cidade, quanto na esfera subjetiva, ao serem examinadas as práticas de guarda e as narrativas daqueles que, contrariando severas determinações sociais, guardaram roupas velhas. Na primeira parte da exposição, Encenação da Modernidade, o objetivo é sublinhar os aspectos dos objetos que alimentam os mitos da moda e da modernidade: a multiplicação dos objetos de consumo, a performance nos espaços públicos, o terno como uniforme moderno, as revistas de moda como instrumentos didáticos na divulgação dos ideais de civilização. Na segunda parte, Guardiões de Armários e Gavetas, o objetivo é convidar a dimensão oculta e geralmente excluída da posse e guarda dos objetos vestíveis para figurar como protagonista e explicitar narrativas íntimas capazes de, como agentes mnemônicos, evocar nos observadores seus próprios objetos e suas próprias narrativas. Os objetos expostos, em sua maioria, encontram-se em um momento incomum e delicado: partiram há pouco dos armários e gavetas de seus guardiões em direção ao museu. Nessas roupas, o ruído do tempo causou fraturas e feridas que o processo de museificação tende a apagar ou pelo menos a não deixar tão evidentes. Mas ao optar por exibir essas máculas, salienta-se em primeiro lugar a relevância do trabalho e da pesquisa do conservador e restaurador têxtil, profissional ainda raríssimo no Brasil, que tem sua importância amplificada com a inserção recente dos estudos sobre o vestuário e a moda na academia e com o interesse dos museus nos objetos vestíveis. Em segundo lugar, pretende-se explorar as potencialidades estéticas das roupas como ruínas: a presença-ausência daqueles que as usaram, o repertório de formas e gestos já inscritos na nossa experiência, a confusão entre ser e ter, a poética do declínio e o trabalho inexorável do tempo. II - Encenação da Modernidade Antes de mais nada, é preciso que se faça uma importante observação: são distintos a roupa e a moda. A roupa é palpável e vestível,ou seja, é uma produção material; é impossível vestir a moda, posto que é uma produção cultural intangível estruturada como uma crença, que se constitui e se legitima por meio de mitos e rituais. O conceito de moda, dentro de uma acepção aproximada da contemporânea, parece surgir no início da Era Moderna, e tem portanto afinidade com o ressurgimento das cidades e com a mobilidade social. Desde meados do século XIX, a moda se organiza como um Sistema, que está empenhado em atribuir valores simbólicos aos objetos tangíveis (KAWAMURA, 2006:44). A crescente relação entre moda e cidade foi primeiramente analisada por Georg Simmel (2008), no início do século XX, que viu como força motriz da moda os conflitantes desejos de integração e diferenciação, próprios dos grandes centros urbanos. Sob Belo Horizonte, já quase ao fim de sua terceira encarnação, iniciada nos anos 80 do século passado, jazem outras duas versões, inumadas sob depósitos de ruídos do tempo: de 1897 até 1950 e de 1950 a 1980 (MONTE-MÓR; PAULA, 2005:9). Teriam os objetos vestíveis potência para, através de suas falas, permitir que experimentemos essas outras cidades? Talvez as circunstâncias de Belo Horizonte não possibilitem contar uma história do vestuário que em princípio seria a esperada: como cidade de passagem, jovem, de precário e intermitente processo de industrialização, o que os objetos vestíveis locais narram é uma história repleta de lacunas, que só eventualmente são preenchidas em relatos e documentos históricos. Desde que emergiu das montanhas, ao final do século XIX, planejada para encarnar os ideais da modernidade, a exemplo de Paris e Washington, Belo Horizonte espera pacientemente que por aqui aportem as maravilhas da razão manifestas em avenidas largas, edifícios altos e espaços democráticos - e estar na moda é ser ternamente abraçado pela civilização. Na medida em que se pavimentaram os caminhos que levam à Pampulha, as aparências foram didaticamente mitificadas nas publicações e a moda, a emanar das roupas, principiou a ser adorada nas vitrines da Sibéria ou da Casa Guanabara - os objetos vestíveis, cada vez mais imprescindíveis aos rituais de socialização, estavam então irremediavelmente cooptados pelo Sistema da Moda, que se configurava como realidade inescapável. Na sua segunda encarnação, a outrora "cidade das costureiras", já plenamente devota da moda e da modernidade, a ambas prestava os seus tributos. Mas moda e modernidade não são jogos criados pelos belo- horizontinos, sequer pelos brasileiros. Os objetos vestíveis recentemente doados nos contam do abismo que se instalou entre a realidade e o mito, mas não pelo viés da inadequação aos modelos propostos, mas no sentido exatamente contrário:para além da moda, há nessas roupas a densidade dos desejos e das idiossincrasias da cidade. III - Guardiões de armários e gavetas Obscuras, tênues e limitadas costumam ser as definições de coleção e colecionador. Impossível dizer quando começa uma coleção, tanto quanto o que faz de alguém um colecionador. Mas é possível apontar alguns denominadores. A narrativa bíblica faz de Noé o primeiro modelo de colecionador e de sua Arca o primeiro modelo de coleção: nela estão presentes os princípios norteadores que são frequentemente subjacentes às coleções - “desejo e nostalgia, salvação e perda, criação de um sistema completo que preserva os objetos da destruição causada pelo tempo” (ELSNER; CARDINAL, 1994:01). Walter Benjamin (2000:228), encarnado na figura do colecionador de livros, conta que a relação entre colecionador e sua coleção é das mais misteriosas: o valor funcional do objeto é apagado e ele torna-se parte de uma narrativa peculiar e mágica. Detalha essa noção Jean Baudrillard (2000:94) para quem só existem dois destinos possíveis para os objetos: ou são utilizados ou são possuídos, e estas práticas se dão em razão inversa. No mundo, os objetos são definidos por sua função. Ao se distanciarem de seu papel, ao deixar de serem definidos por seu uso, os objetos sublinham a sua pertença, são qualificados pela posse em um outro sistema, que é coleção. Nesse sistema operado pela subjetividade “a prosa cotidiana do objeto se torna poesia, discurso inconsciente e triunfal” (BAUDRILLARD, 2000:95). É persistente ainda a noção de que é a coleção o passatempo dos ociosos e solitários, um pequeno desvio de comportamento, um capricho ou excentricidade inócua. A coleção particular seria portanto uma espécie de loucura gentil e tolerável, mas ainda assim loucura. Benjamin (2000:288) assume que “tudo o que se diz do ponto de vista de um colecionador autêntico é esquisito”. Para os colecionadores locais de artigos de vestuário o epíteto de extravagante é ainda mais saliente: são limitados os modelos reconhecidos e permitidos de colecionismo, as práticas sociais de consumo desencorajam o acúmulo do que é perceptiva e funcionalmente obsoleto e a própria fragilidade dos materiais de que são confeccionados os objetos desencoraja a sua guarda, aquisição e manutenção. Em seu ensaio sobre imagens da intimidade, Gaston Bachelard (2003:92) conta que Num armário, só um pobre de espírito poderia guardar uma coisa qualquer. Guardar uma coisa qualquer, de qualquer maneira, em um móvel qualquer, indica uma enorme fraqueza da função de habitar. No armário vive um centro de ordem que protege toda a casa contra uma desordem sem limite. Nele reina a ordem, ou antes, nele a ordem é um reino. A ordem não é simplesmente geométrica. A ordem recorda nele a história da família. Esta é a imagem que melhor traduz uma coleção afetiva: seu objetivo é ordenar e preservar memórias e cada um dos seus objetos é capaz de infindavelmente se desdobrar em narrativas – são os agentes da reminiscência que a qualquer momento podem encarnar como texto. Sua existência assim jamais é solitária porque a todo momento evocam os outros objetos da coleção com o fim de constituir o tecido da história familiar. Da mesma forma, os sistemas de seleção e organização nunca deixam de remeter a essa história e, portanto, são notadamente subjetivos. Existe um parentesco claro entre essas coleções e os álbuns fotográficos. Frequentemente, os objetos dessas coleções são vestimentas rituais como vestidos de casamento, de batizado ou então as que representam eventos específicos no curso da vida dos colecionadores e de seus familiares. Eventualmente, alguns desses objetos podem até mesmo representar as pessoas da família, são assim estratégias biográficas e autobiográficas de permanência, como ilustra Peter Stallybrass (2008: 10- 11; 14): Quando nossos pais, nossos amigos e nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos. […] A roupa tende pois a estar poderosamente associada com a memória, ou para dizer de forma mais forte, a roupa é um tipo de memória. Quando a pessoa está ausente ou morre, a roupa absorve a sua presença ausente. Nas primeiras visitas a coleções particulares de objetos vestíveis em Belo Horizonte mais surpreendente que o encontro com as roupas, foi a inesperada proximidade de práticas, afetos, narrativas e taxonomias antes insuspeitas, ou seja, a vizinhança de todo um entorno subjetivo caprichosa e virtuosamente tecido por seus guardiões. Mas ao elencar, categorizar e higienizara dimensão subjetiva da guarda e apresentação dos objetos, claramente rompia-se o vínculo da posse e consequentemente eles proferiam então o impessoal discurso das categorias tradicionais. Não se trata obviamente de negar a importância dessas ferramentas tradicionais dentro da tarefa de estabelecer um foco de ação no trabalho de localização, registro e inserção dos artigos de vestuário em um contexto histórico específico, mas há que se elaborar estratégias para convidar essas outras dimensões a tomar lugar nas reflexões sobre esses objetos. Dispensar a figura do colecionador-guardião e privar o objeto de seu entorno subjetivo é promover o pastiche de modelos total ou parcialmente inadequados e, em muitos casos, é também apagar ou mesmo eliminar definitivamente este ou aquele objeto, especialmente os que estabelecem uma intensa relação de dependência com as práticas de guarda e coleção, nas quais estão inseridos e cuja importância tende a esvair fora de sua narrativa ou de seu sistema de origem. Assim, a partir destas constatações iniciais, é possível delinear algumas aproximações: além do trabalho com as práticas investigativas tradicionais, é necessário criar estratégias de inserção e legitimação dos colecionadores e coleções locais bem como de suas práticas subjetivas de colecionismo e, por outro lado, também convidar as narrativas dos observadores a tomar lugar na construção de sentidos dos objetos. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARNARD, Malcolm. 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