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O papel da publicidade no costume brasileiro de remediar. 1 Gabriella Carvalho Silva 2 Rachel Barbosa Guerrante 3 Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ Resumo Pretende-se apoiar-se nas teorias de ética e na legislação vigente para analisar a publicidade de medicamentos no Brasil, assim como seus modos de consumo. Para isso foi necessária a leitura de artigos sobre o assunto e a análise de campanhas em todos os meios online e offline, além de visitas a PDVs (pontos de venda) e análise do comportamento do consumidor em relação ao uso de medicamentos, principalmente em situações de automedicação. Palavras-Chave: Publicidade; Medicamentos; Consumo; Legislação. Introdução “O tripé formado pela indústria farmacêutica, agências de publicidade e empresas de comunicação tem implementado intensa estratégia de marketing para elevar o consumo de medicamentos pela população.” (NASCIMENTO, 2005, p. 305) A cultura de remediar existe há muitos anos. Dados do Conselho Nacional de Saúde indicam que, no Brasil, há uma farmácia ou drogaria para cada 3.300 habitantes, farmácias essas que, em sua maioria, estão cheias de opções e totalmente voltadas para mercado de consumo. O Brasil se encontra entre os dez países que mais consomem medicamentos, esse dado é do Conselho Federal de Farmácia, um número alto e que é mantido em manutenção pela publicidade. Em um dia de consumo midiático, o consumidor entra em contato com vários tipos de medicamentos e laboratórios, conhece os usos e as motivações de cada um desses remédios, tendo livre acesso a eles nas tantas farmácias que ele encontra perto de sua casa, a consequência desse conjunto pode ser um uso desenfreado de substâncias que deveriam ser usadas somente em casos extremos e com a indicação de um especialista. 1 Trabalho desenvolvido durante o primeiro semestre de 2017 para a disciplina de Ética e Legislação Publicitária, da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a orientação da professora Ana Paula Bragaglia. 2 Estudante do 5º período do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: gabriellacs@id.uff.br 3 Estudante do 5º período do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: halfrachel@gmail.com 1 A legislação para essas campanhas é feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e possui regras bem específicas, graças ao grau de complexidade do produto. A partir dessa legislação é possível procurar alternativas menos prejudiciais para falar sobre medicamentos na mídia, mas a alternativa ética, se for se levar em consideração o modo de uso ideal, seria a não existência de publicidade para medicamentos, já que a automedicação é uma prática com grandes perigos. “Primeira causa de intoxicação humana no Brasil desde 1995 (quando se excluem as tentativas de suicídio, passa a ser a segunda causa), todo medicamento possui significativo potencial de risco e as reações adversas multiplicam-se com o uso incorreto e irracional. Idosos, crianças e portadores de doenças crônicas formam um enorme contingente exposto à propaganda de medicamentos, sem que ela traga nenhum tipo de advertência quanto ao uso de determinadas substâncias nocivas a esses grupos.” (NASCIMENTO, 2005, p. 306) A indústria farmacêutica no Brasil. A indústria farmacêutica é considerada o segundo maior negócio do planeta e, segundo pesquisas, o mercado mundial deverá atingir cerca de US$ 1,4 trilhão em 2020. Em apenas cinco anos (2010 -2015), o Brasil foi de 10º para 7º lugar no ranking mundial e atualmente, das dez empresas farmacêuticas que mais lucram, cinco são brasileiras. Logo, percebe-se a importância desses dados no assunto publicidade e medicamento. “O Brasil é considerado em fase de desenvolvimento, mas que faz parte do primeiro mundo em consumo de medicamentos” (JESUS, Paula Renata Camargo). A autora resume o que vemos nos dados apresentados abaixo. Esses índices de crescimento são uma demonstração do crescimento ininterrupto do consumo de medicamentos dentro do país. Não existe crise no setor, pelo contrário, ele parece se alimentar da crise econômica. “Entre 2007 e 2013, o Brasil saltou da décima para sexta colocação no mercado farmacêutico mundial e a estimativa é de que em 2017 o país chegue ao quarto lugar ficando atrás somente de Estados Unidos, China e Japão. Em 2013, o faturamento do setor farmacêutico brasileiro foi da ordem de R$ 58 bilhões, um portentoso aumento de 140% em uma década.” (NOVATO, 2015) 2 Os números não param por aí e não afetam somente o poder privado, segundo o vice-presidente da Fenafar (Federação Nacional dos Farmacêuticos) os investimentos do setor público também estão cada vez maiores, com o abastecimento das farmácias das unidades de saúde. Novato diz que "a evolução dos investimentos em medicamentos feitos pelo Ministério da Saúde aponta que em 2003 foram investidos 1,8 bilhões de reais e em 2013 esse valor saltou para R$11,88 bilhões." Como apresentado anteriormente, outro número alto dentro desse contexto é o de farmácias espalhadas pelos país."O Brasil possui cerca de 80 mil farmácias, distribuídas sem critérios geográficos, demográficos ou epidemiológicos, com forte apelo mercantil.", afima Novato. Esse ponto será discutido mais aprofundadamente no tópico sobre pontos de venda. 3 Como o brasileiro consome medicamentos. "O sintoma patológico leva pessoas a pedirem ajuda aos profissionais de saúde e recorrerem ao medicamento em busca de alívio ao sofrimento. É reconhecida a importância do medicamento na vida das pessoas. O problema é quando essa importância passa a ser uma dependência" (JESUS, 2014) Nos dias atuais, a primeira reação a sintomas é a automedicação. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), “automedicação é o uso de medicamento sem a prescrição, orientação e ou o acompanhamento do médico ou dentista.” (http://www.anvisa.gov.br). Essa atitude é perpetuada, dentro da publicidade, por uma advertência de uso obrigatório na veiculação: "SE PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO". O médico deveria ser consultado antes do uso do medicamento, já que o uso equivocado de algumas substâncias pode ter consequências ruins para a saúde do paciente, porém não é assim que funciona. A automedicação no Brasil acontece por várias influências: indicação de remédios por familiares e amigos, facilidade de acesso, posicionamento de remédios de alto consumo nos PDVs, propaganda na TV e outras formas de publicidade. Alguns autores, incluindo a Paula Renata Camargo de Jesus, citada acima, afirmam também sobre a falta de qualidade no serviço de atendimento de saúde no país. As pessoas não querem perder horas em um consultório ou emergência, pagando ou não. Elas querem uma solução simples, rápida e imediata, para que continuem suas rotinassem interrupção. É assim que surge esse consumo sem controle, há um incômodo físico que deve ser encerrado o mais rápido possível, antes que possa atrapalhar os afazeres diários do indivíduo, ele remedia esse incômodo. A causa da dor não é investigada ou tratada, o tratamento é apenas adiado com o uso de medicamentos que prometem, cada vez em menos tempo, resolver o problema. A publicidade tem se baseado muito nisso nos últimos tempos. Tem que ser agora. Ao pensarmos no que mais atrai esse público analisado acima, entendemos que para essa sociedade do imediato não há tempo para tratar, apenas para remediar. Mas como a publicidade usa isso ao seu favor? Com palavras como Rápido, Já, Agora, sempre com a ideia de praticidade, como pode ser visto nas campanhas abaixo: 4 As três campanhas fazem uso do imediatismo para venderem seus produtos, a segunda quase viola uma das regulamentações da ANVISA que afirma que na propaganda ou publicidade de medicamentos isentos de prescrição é vedado: "apresentar nome, imagem e/ou voz de pessoa leiga em medicina ou farmácia, cujas características sejam facilmente reconhecidas pelo público em razão de sua celebridade, afirmando ou sugerindo que utiliza o medicamento ou recomendando o seu uso" (Art. 26º da RESOLUÇÃO-RDC Nº 5 96, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2008). Comparar o medicamento ao esportista conhecido como mais rápido do mundo, além de reafirmar esse conceito da rapidez da ação do remédio, traz a ideia de saudabilidade, que em nada se atrela ao uso de medicamentos como o ibuprofeno, que mascara a dor com sua fórmula forte, pode-se considerar então, que esta é uma campanha antiética. A publicidade de medicamentos. A venda e propaganda de medicamentos no Brasil, por muito tempo, funcionou sem nenhum controle ou regulamentação. As evidências da necessidade de se pensar sobre isso foram ficando claras à medida que o consumo cresceu consideravelmente. Normas para a veiculação de publicidade acerca de medicamentos foram criadas para tentar controlar a exposição do público consumidor a mais incentivos desenfreados desse modo de consumo observado, a principal delas é a Resolução da RDC Nº 96, de 17 de Dezembro de 2008, da ANVISA, que dispõe sobre propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos; e também a Lei 9294, de 15 de Julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal. Essas leis trazem modificações importantes para regulamentar a publicidade de medicamentos, mas ainda não são o bastante. O Art. 8º da resolução criada pela Anvisa diz que: “É vedado na propaganda ou publicidade de medicamentos: I - estimular e/ou induzir o uso indiscriminado de medicamentos;”, porém quando propagandas usam atividades do dia a dia para reafirmar a eficácia e rapidez do remédio, pode-se deduzir que o uso daquele medicamento pode ser feito sempre que uma dorzinha de cabeça, coluna, estômago te atrapalhar com suas atividades (aqui destacando) diárias. Abaixo, a campanha “Buscopan, o especialista em dores abdominais.” apresenta seu personagens somente em atividades diárias comuns: transporte, trabalho, mercado. 6 A marca se mantém sempre com esse mesmo posicionamento, reforçando o uso 7 comum, no dia a dia, do medicamento. O maior exemplo que temos de incentivo ao uso desenfreado de um medicamento é uma outra campanha que apresenta a atriz Grazi Massafera como personagem principal que segue seguinte diálogo com uma colega de trabalho: Colega: “Vou esperar, não tá muito forte.” Grazi: “Não, boba. Atroveran age nos primeiros sintomas pra cólica nem começar.” Se a cólica nem começou, não há porque medicar. Medicamentos e família. Com o maior uso de genéricos, a publicidade associada aos laboratórios está cada vez mais presente no dia a dia do consumidor. Com um posicionamento problemático, a campanha de 2017 da empresa NeoQuímica decidiu falar de família, apresentando como embaixador o ator Márcio Garcia, que atualmente apresenta um programa sobre família na Rede Globo, programa esse que também é patrocinado por um medicamento. Outra regulamentação para propaganda afirma ser vedado “apresentar nome, imagem e/ou voz de pessoa leiga em medicina ou farmácia, cujas características sejam facilmente reconhecidas pelo público em razão de sua celebridade, afirmando ou sugerindo que utiliza o medicamento ou recomendando o seu uso”, esse regulamento é violado nessa campanha, além das questões éticas, já que além do uso da celebridade, temos a família com crianças, cachorro, momentos felizes, apelo emocional na sua natureza menos disfarçada. O slogan é “É mais do que remédio, é o remédio da família brasileira.”, o que traz o questionamento: a família brasileira precisa ter um remédio? Quando se fala em família e medicamentos, existem vários exemplos no mundo da publicidade da união desses conceitos, a mãe indicando um remédio para a cólica da filha, a família toda utilizando remédios para a gripe, o carinho da mãe ao passar um Vick nas costas do filho. O apelo emocional dessas campanhas as tornam não éticas. O papel da posição dos medicamentos nos pontos de venda. Ao chegar ao caixa de qualquer farmácia, olhando a volta, é possível avistar facilmente pelo menos dois tipos de remédios para dor e mais dois tipo de remédios para questões digestivas. Ao passar uma hora dentro de três farmácias (Tamoio e Raia e Pacheco) 8 observando o comportamento do consumidor , é possível afirmar que mais de a metade do 4 público que compra em farmácias acaba levando esse tipo de medicamento apenas pelo modo como ele está disposto na loja. As pessoas não procuram pelo remédio, na maior parte das vezes elas nem vão com a intenção de levá-lo, mas ele está lá, perto da fila ou do caixa, o que ativa lembrança do consumidor de que ele pode sentir uma dor de cabeça no trabalho ou desconforto depois de comer, e para facilitar, é bom já ter o remédio que vai trazer alívio rápido. Conclusão. Apesar das propagandas de remédios apresentarem avisos premeditados pela regulamentação, continuam repletas de promessas e linguagem com indução. A própria regulamentação é falha e não abrangente o suficiente. A publicidade se apoia nas questões emocionais, enquanto as farmácias utilizam técnicas mercadológicas para vender mais. Além de todas essas influências, o consumidor encontra nas pessoas em que confia mais incentivos para os usos de medicamentos e, na cultura do seu país, a normalização da automedicação sem nenhum freio. Os riscos são grandes e não estão sendo medidos ou considerados pelo mercado.Não há alternativa ética para publicizar medicamentos, a alternativa ética é que não haja influência das mídias nesse âmbito, para que os médicos possam fazer seus papéis e para que os consumidores de remédios possam procurar por alternativas que resolvam a base de suas dores e não apenas remediem rapidamente e por tempo determinado o incômodo. “Um enfrentamento da questão não pode deixar de considerar o aspecto cultural que a permeia, que através do tempo se arraigou entre prescritores, pacientes e no conjunto da sociedade, segundo o qual o medicamento é fator essencial em qualquer terapêutica. Por isso, uma reforma no sistema de ensino e de assistência - que acople uma visão crítica da prática médica e da educação sanitária da população - se faz necessária, com vistas a alterar os atuais padrões de comportamento e formar uma consciência que estimule novos hábitos relativos ao consumo de produtos feitos para promover a saúde, prevenir e curar doenças, mas que trazem em si o componente da ineficácia terapêutica e, pior, das reações adversas.” (NASCIMENTO, 2005, pág. 320) 4 Teste feito por Gabriella Carvalho Silva, uma das autoras deste presente artigo, em 16/06/2017. 9 Referências: CAMARGO DE JESUS, Paula Renata. Propaganda de Medicamentos - pra você ficar legal! VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Universidade IMES/São Caetano do Sul/SP e UNISANTA/Santos/SP. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: <http://www.cit.sc.gov.br/propaganda/pdfs/artigos/propaganda_pra_%20ficar_legal.pdf> CAMARGO DE JESUS, Paula Renata. Uma história de frases e efeitos – a configuração do slogan publicitário na indústria farmacêutica no Brasil. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001, p 71. CAMPANHA BUSCOPAN: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TOFzbYeIohY>. Acesso em 23 jul. 2017 CAMPANHA NEOQUIMICA: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HtBrI2obY60>. Acesso em 23 jul. 2017 CAMPANHA VICK: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oli3K0G8zHM>. Acesso em 23 jul. 2017 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE: Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2005/medicamentos.htm>. Acesso em 23 jul. 2017 CRFRJ - AUTOMEDICAÇÃO NO BRASIL: Disponível em: <https://crf-rj.org.br/noticias/434-automedicacao-no-brasil.html>. Acesso em 23 jul. 2017 NASCIMENTO, Álvaro César; DUTRA, Jane. Ao Persistirem os Sintomas, o Médico Deverá Ser Consultado: Isto é Regulação? PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):305-328, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/physis/v15n2/v15n2a07.pdf> NOVATO, Rilke. O Consumo de Medicamentos no Brasil - a tênue linha entre o remédio e o veneno. Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2005/medicamentos.htm>. Acesso em 23 jul. 2017 Resolução-RDC Nº 96, de 17 de dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/propaganda/rdc/rdc_96_2008_consolidada.pdf> SITE NEOQUIMICA: Disponível em: <http://www.neoquimica.com.br/>. Acesso em 23 jul. 2017 10
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