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CAPÍTULO UM QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS A teoria do conhecimento, ou epistemologia, é o ramo da filosofia que trata das questões filosóficas sobre o conhecimento e a racionalidade. Os epistemólogos estão pri- mariamente interessados nas questões sobre a natureza do conhecimento e nos princípios que governam a crença racional. Eles estão menos focados em decidir se há conhecimento ou crença racional em casos reais, específicos. Assim, por exemplo, não é tarefa do epis- temólogo determinar se é agora razoável crer que exista vida em outros planetas. Este é primariamente o trabalho de astrônomos e cosmólogos. A tarefa dos epistemólgos é tentar desenvolver uma teoria geral estabelecendo as condições sob as quais as pessoas têm co- nhecimento e crenças racionais. Pode-se então aplicar essa teoria mais geral ao caso espe- cífico da crença em vida em outros planetas, mas fazê-lo é ir além das questões epistemo- lógicas centrais. Embora no curso do exame das questões filosóficas seja costumeiro pen- sar sobre muitos exemplos específicos, isso serve principalmente para ilustrar as questões gerais. O objetivo deste capítulo é identificar algumas das questões teóricas centrais de que trata a epistemologia. Uma boa maneira de começar é olhar para as coisas que ordinariamente dizemos e pensamos acerca do conhecimento e da racionalidade. Sistematizando-as e refletindo sobre elas chegaremos a um conjunto de questões e enigmas. Assim, começaremos expondo de uma maneira sistemática algumas idéias comumente (mas não universalmente) sustentadas acerca do que nós conhecemos e de como nós conhecemos essas coisas. Chamaremos a essa coleção de idéias de Perspectiva Standard. Neste capítulo identificaremos algumas das alegações centrais da Perspectiva Standard. Dos capítulos 2 até 5 tentaremos descrever em detalhe as implicações da Perspectiva Standard e expor suas respostas a algumas das questões centrais. Então, dos capítulos 6 até 9 nos voltaremos para diversos desafios e ob- jeções à Perspectiva Standard. Assim, o objetivo geral deste livro é proporcionar um me- lhor entendimento das perspectivas do senso comum acerca do conhecimento e da raciona- lidade e ver em que extensão aquelas perspectivas podem suportar a crítica. I. A PERSPECTIVA STANDARD No curso comum dos eventos, as pessoas alegam conhecer muitas coisas, e elas a- tribuem aos outros numa variedade de casos. Daremos exemplos abaixo. As alegações de conhecimento com as quais nós estamos preocupados não são irrefletidas ou esquisitas. Antes, elas são juízos sensatos e ponderados. Assim, a lista que segue reflete um conjunto de pensamentos acerca do conhecimento e da racionalidade ao qual muitas pessoas prova- velmente chegariam se elas refletissem honesta e cuidadosamente acerca do tópico. Você pode não concordar com cada detalhe da perspectiva a ser descrita, mas é justo dizer que ela captura acuradamente o senso comum reflexivo. A. O Que Nós Conhecemos A maioria de nós pensa que conhecemos muitas coisas. A lista seguinte identifica algumas categorias gerais dessas coisas e dá exemplos de cada uma. As categorias podem se sobrepor e elas estão longe de serem precisas. Ainda assim, elas nos dão uma boa idéia dos tipos de coisas que nós podemos conhecer. a. Nosso meio-ambiente imediato: “Há uma cadeira aqui.” “O rádio está ligado.” b. Nossos próprios pensamentos e sentimentos: “Estou animado com o novo semestre.” “Eu não estou ansioso para preencher meus formulários de imposto.” c. Fatos do senso comum acerca do mundo: “A França é um país da Europa.” “Muitas árvores deixam cair suas folhas no outono.” d. Fatos científicos: “Fumar cigarros causa câncer de pulmão.” “A terra gira em torno do sol.” e. Estados mentais dos outros: “Meu vizinho quer que sua casa seja pintada.” “Aquela pessoa ali que está rindo muito achou a piada que ela recém ouviu engraçada.” f. O passado: “George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.” “O presidente Kennedy foi assassinado.” g. Matemática: “2 + 2 = 4” “5 . 3 = 15” h. Verdades conceituais: “Todos os solteiros são não-casados.” “Vermelho é uma cor.” i. Moralidade: “A tortura gratuita de crianças é errada.” “Não há nada de errado em tirar uma folga do trabalho de vez em quando.” j. O futuro: “O sol nascerá amanhã.” “Os Chicago Cubs não ganharão a World Series no próximo ano.”1 k. Religião: “Deus existe.” “Deus me ama.” Existem, naturalmente, muitas coisas destas categorias que nós não conhecemos. Alguns fatos acerca do passado distante estão irrecuperavelmente perdidos. Alguns fatos acerca do futuro estão, ao menos por enquanto, além de nós. Algumas das áreas de conhe- cimento da lista são controversas. Você pode ter dúvidas acerca de nosso conhecimento nas áreas da moralidade e da religião. Ainda assim, a lista proporciona uma exemplificação adequada dos tipos de coisas que nós tipicamente alegamos conhecer. Assim, a primeira tese da Perspectiva Standard é PS1. Nós conhecemos uma grande variedade de coisas das categorias (a) – (k). B. Fontes de Conhecimento Se (PS1) está correta, então existem algumas maneira pelas quais nós chegamos a conhecer as coisas que ela diz que conhecemos; existem algumas fontes para o nosso co- 1 Os fãs dos Cubs podem não gostar deste exemplo. Mas aqueles que acompanham beisebol sabem que, não importa o que aconteça, os Cubs nunca vencem. Nem o Boston Red Sox. nhecimento. Por exemplo, se nós conhecemos alguma coisa acerca do nosso meio- ambiente imediato, então a percepção e a sensação jogam um papel central na aquisição desse conhecimento. A memória obviamente é crucial para o nosso conhecimento do pas- sado e também para certos aspectos do nosso conhecimento de fatos correntes. Por exem- plo, meu conhecimento de que a árvore que vejo através de minha janela é um bordo de- pende de minha percepção da árvore e de minha lembrança de como os bordos se parecem. Outra fonte de boa parte de nosso conhecimento é o testemunho das outras pessoas. O tes- temunho não se restringe aqui às declarações feitas por testemunhas sob juramento. Ele é muito mais amplo do que isso. Ele inclui o que as outras pessoas dizem a você, incluindo o que eles dizem a você na televisão ou em livros e jornais. Três outras fontes de conhecimento merecem também uma breve menção aqui. Se a percepção é a nossa consciência das coisas externas através da visão, da audição e dos ou- tros sentido, então a percepção não dá conta do nosso conhecimento de nossos próprios estados internos. Você pode agora saber que se sente sonolento, ou que está agora pensan- do acerca do que irá fazer no final de semana. Mas isso não ocorre por meio da percepção no sentido recém estabelecido. Ocorre, antes, por meio da introspecção. Assim, está é outra potencial fonte de conhecimento. Além disso, algumas vezes nós conhecemos coisas por raciocínio ou inferência. Quando nós conhecemos alguns fatos e vemos que aqueles fatos sustentam algum outro fato, nós chegamos a conhecer esse outro fato. O conhecimento científico, por exemplo, parece surgir de inferências a partir de dados observacionais. Finalmente, parece que conhecemos algumas coisas simplesmente porque nós po- demos “ver” que elas são verdadeiras. Isto é, nós temos a habilidade de pensar acerca das coisas e de discernir algumas verdades simples. Embora isso seja matéria de alguma con- trovérsia, nosso conhecimento de aritmética elementar, de lógica simples e de verdades conceituais parece cair nessa categoria. Por falta de um termomelhor, nós iremos dizer que conhecemos essas coisas por meio de insight racional. Nossa lista das fontes de conhecimento, então, se parece com isto: a. Percepção b. Memória c. Testemunho d. Introspecção e. Raciocínio f. Insight racional Sem dúvida, em muitos casos nosso conhecimento depende de alguma combinação dessas fontes. A Perspectiva Standard sustenta que nós podemos ganhar conhecimento dessas fontes. Ela não diz que essas fontes são perfeitas. Sem dúvida, elas não são. Algumas vezes nossas lembranças estão equivocadas. Algumas vezes nossos sentidos nos enganam. Al- gumas vezes nós raciocinamos mal. Ainda assim, de acordo com a Perspectiva Standard, nós podemos obter conhecimento usando essas fontes. Se a lista de fontes de conhecimento deveria ser expandida é matéria de alguma controvérsia. Talvez algumas pessoas acrescentassem insight religioso ou místico à lista. Talvez outras pensassem que existissem formas de percepção extra-sensorial que devêsse- mos acrescentar. Entretanto, estas são questões sobre as quais há maior desacordo. Acres- centá-las à lista, assim, pode fazer a lista parecer menos com alguma coisa que mereça o nome de “Perspectiva Standard”. Assim, nós não as acrescentaremos aqui. Outros podem querer acrescentar a ciência à lista das fontes de conhecimento. Embora possa não ser obje- tável fazê-lo, a ciência é provavelmente melhor vista como uma combinação de percepção, memória, testemunho e raciocínio. Assim, pode não ser necessário acrescentá-la à lista. Assim, a segunda tese da Perspectiva Standard é PS2. Nosso fontes de conhecimento primárias são (a) – (f). A Perspectiva Standard, então, é a conjunção de (PS1) e de (PS2). II. DESENVOLVENDO A PERSPECTIVA STANDARD Numerosas questões surgem quando refletimos acerca da Perspectiva Standard. Essas questões constituem o objeto primeiro da epistemologia. Esta seção identifica algu- mas dessas questões. Se alguns casos caem na categoria de conhecimento e outros são dela excluída, en- tão deve haver alguma coisa que diferencie esses dois grupos de coisas. O que é que dis- tingue o conhecimento da falta de conhecimento? O que é preciso para conhecer alguma coisa? Isto leva à primeira questão: Q1. Sob que condições uma pessoa sabe que alguma coisa é verdadeira? Pode-se pensar que é uma questão de quão segura uma pessoa se sente sobre algu- ma coisa ou de se existe um acordo geral sobre o assunto. Como veremos, estas não são boas respostas para (Q1). Alguma coisa mais distingue o conhecimento de seu oposto. (Q1), afinal de contas, é surpreendentemente difícil, controversa e interessante. Produzir uma resposta para ela envolve pensar em algumas questões difíceis. Esse será o foco dos capítulos 2 e 3. De acordo com muitos filósofos, uma condição importante para o conhecimento é a crença racional ou justificada. Conhecer alguma coisa requer algo como ter uma boa razão para crer nela, ou chegar a crer nela da maneira correta, ou alguma coisa do tipo. Você não conhece uma coisa se está apenas adivinhando, por exemplo. Isto nos leva a uma segunda questão, uma que tem sido central para a epistemologia por muitos anos: Q2. Sob que condições uma crença é justificada (ou razoável ou racional)? E isto nos levará a questões adicionais acerca das fontes de conhecimento alegadas. Como essas faculdades nos tornam aptos a satisfazer as condições para o conhecimento? Como elas podem produzir a justificação epistêmica? Esse será o foco dos capítulos 4 e 5, bem como de partes dos capítulos 7-9. Nossas crenças obviamente jogam um papel central na determinação de nosso comportamento. Você irá se comportar de maneira muito diferente em relação ao seu vizi- nho se acreditar que ele seja um amigo confiável ao invés de um inimigo desonesto. Dada a habilidades das crenças de afetar o nosso comportamento, parece claro que as suas cren- ças podem afetar a sua vida e a vida dos demais. Dependendo da sua carreira e da extensão na qual os outros dependem de você, você pode ter a obrigação de conhecer certas coisas. Por exemplo, um médico deve conhecer os últimos desenvolvimentos em sua especialida- de. Algumas vezes, entretanto, o conhecimento pode ser uma coisa ruim, como quando al- guém fica sabendo da deslealdade de um aparente amigo. Estas considerações sugerem que questões práticas e morais interagem com questões epistemológicas de maneiras que mere- cem exame. Assim, Q3. De que maneiras, se alguma há, as questões epistemológicas, práticas e morais afetam umas às outras? Trataremos dessa questão no capítulo 4. III. DESAFIOS Á PERSPECTIVA STANDARD A cuidadosa reflexão filosófica sobre as questões até agora listadas, a ser desenvol- vida nos capítulos 2-5, resultará na exposição detalhada daquilo a que conduz a Perspecti- va Standard. Entretanto, como se evidenciará ao prosseguirmos, há razões para perguntar- mos se essa perspectiva do senso comum é realmente correta. Nós daremos a essas razões e às visões alternativas sobre o conhecimento e a racionalidade associadas com elas a devida atenção nos capítulos 6-9. As idéias centrais por detrás dessas dúvidas são as bases para as questões restantes acerca da Perspectiva Standard. A. A Perspectiva Cética Os advogados da Perspectiva Standard sustentam que nós conhecemos muito me- nos do que a Perspectiva Standard diz que nós conhecemos. O ceticismo constitui um tra- dicional e poderoso desafio filosófico à Perspectiva Standard. Os céticos pensam que a Perspectiva Standard é demasiado caridosa e auto-indulgente. Eles pensam que a nossa asserção confiante de que conhecemos muitas coisas resulta de uma autoconfiança presun- çosa que é inteiramente injustificada. Como nós veremos, alguns argumentos céticos re- pousam sobre possibilidades aparentemente bizarras: talvez você esteja apenas sonhando que vê e ouve as coisas que você está vendo e ouvindo; talvez a sua vida seja algum tipo de realidade artificial gerada por computador. Outros argumentos céticos não repousam sobre hipóteses estranhas como essas. Mas todas elas desafiam as nossas confortáveis visões do senso comum. Estas considerações conduzem a um novo conjunto de questões epistemoló- gicas: Q4. Nós realmente temos algum conhecimento? Há alguma boa resposta aos argu- mentos dos céticos? (Q4) questiona se, com efeito, as condições formuladas em resposta a (Q1) são de fato satisfeitas. Os advogados da Perspectiva Cética sustentam que a resposta para cada uma das questões de (Q4) é “Não.” Eles estão inclinados a negar tanto (SV1) quanto (SV2). B. A Perspectiva Naturalista A metodologia tradicionalmente utilizada pelos epistemólogos é primariamente a análise conceitual ou filosófica: pensar rigorosamente acerca de como são o conhecimento e a racionalidade, freqüentemente utilizando exemplos hipotéticos para ilustrar as questões. Entretanto, pode-se perguntar se não faríamos melhor estudando alguma dessas questões cientificamente. Muitos filósofos recentes têm dito que faríamos. Chamaremos a essa pers- pectiva de Perspectiva Naturalista porque ela enfatiza o papel da ciência natural (ou empí- rica ou experimental). Assim, uma maneira pela qual a Perspectiva Naturalista desafia a Perspectiva Standard tem a ver com a metodologia utilizada para sustentar as teses (SV1) e (SV2) da Perspectiva Standard. A Perspectiva Naturalista conduz a um segundo tipo de desafio à Perspectiva Standard. Há um corpo de pesquisa acerca das maneiras pelas quais as pessoas pensam e raciocinam que é perturbador. Ele mostra, ou ao menos parece mostrar, erros e confusõessistemáticos e generalizados na maneira como nós pensamos e raciocinamos. Quando con- frontadas com os resultados dessas pesquisa, algumas pessoas se perguntam se algo como a Perspectiva Standard pode estar correta. Estas considerações conduzem ao nosso próximo conjunto de questões: Q5. De que maneiras, se alguma há, os resultados em ciência natural, especialmente na psicologia cognitiva, influenciam nas questões epistemológicas? Os recentes resultados empíricos solapam a Perspectiva Standard? C. A Perspectiva Relativista Outro desafio à Perspectiva Standard emerge de considerações de relativismo e di- versidade cognitiva. Para ver as questões envolvidas aqui, note que as crenças das pessoas e suas políticas de formação de crenças diferem amplamente. Por exemplo, algumas pesso- as estão dispostas a crer na base de pouca evidência. Algumas parecem demandar muita evidência. As pessoas diferem também em suas atitudes em relação à ciência. Algumas pessoas crêem fortemente no poder da ciência. Elas pensam que os métodos da ciência proporcionam a única maneira razoável de aprender acerca do mundo que nos cerca. Elas ás vezes consideram aos demais como irracionais por crer em coisas tais como astrologia, reencarnação, PES, e outros fenômenos ocultos. Defensores destas crenças ás vezes acu- sam seus críticos de fé cega e irracional na ciência. As pessoas também diferem ampla- mente sobre questões políticas, morais e religiosas. Pessoas aparentemente inteligentes po- dem se encontrar em sério desacordo umas com as outras sobre essas questões. Não há dú- vida, então, de que as pessoas discordam, com freqüência veementemente, acerca de um grande número de coisas. O fato de que haja todo esse desacordo leva algumas pessoas a perguntar se em ca- da caso (ao menos) uma das partes da disputa deva estar sendo desarrazoada. Um pensa- mento confortador para muitos é o de que há lugar para um desacordo razoável, ao menos sobre certos tópicos. Isto é, duas pessoas podem ter diferentes pontos de vista e ainda as- sim serem razoáveis ao manter suas próprias perspectivas. Defensores da Perspectiva Rela- tivista estão inclinados a conceder espaço para muito desacordo razoável, enquanto que os defensores da Perspectiva Standard parecem estar mais inclinados a pensar que uma das partes (ao menos) deve estar errada em toda disputa. Estas considerações sobre a diversidade cognitiva e a possibilidade de desacordos razoáveis provocam as seguintes questões que têm a ver com o relativismo epistemológico: Q6. Quais são as implicações epistemológicas da diversidade cognitiva? Existem standards universais de racionalidade, aplicáveis a todas as pessoas (ou a todos os pensa- dores) todas as vezes? Sob que circunstâncias as pessoas racionais podem discordar entre si? As questões levantadas de (Q1) até (Q6) estão entre os problemas centrais da epis- temologia. Os capítulos que seguem tratam delas. CAPÍTULO DOIS A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO O objetivo dos capítulos imediatamente seguintes é tentar esclarecer o que exata- mente diz e quais as implicações da Visão Standard. Ao fazer isso não colocaremos em questão a verdade da Visão Standard. Assumiremos que ela está basicamente correta, re- servando a discussão dos desafios à nossa visão do senso comum para mais tarde. I. TIPOS DE CONHECIMENTO A Visão Standard diz que nós temos uma boa quantidade de conhecimento e diz al- guma coisa sobre as fontes desse conhecimento. Um aspecto central de esclarecer exata- mente aonde leva a Visão Standard é esclarecer exatamente o que ela toma como conheci- mento. A Visão Standard diz que nós temos conhecimento, mas o que é conhecimento? A. Alguns dos Principais Tipos de Conhecimento Nós usamos as palavras “conhece”/”sabe” e “conhecia”/”sabia” em uma variedade de tipos de sentenças diferentes de maneiras importantes. Eis aqui alguns exemplos: 1 a. Conhecer um indivíduo: S conhece x. “O professor conhece J. D. Salinger.” b. Saber quem: S sabe que é x. “O estudante sabem quem é J. D. Salinger.” c. Saber se: S sabe se p. “O bibliotecário sabe ser há um livro de J. D. Salinger na biblioteca.” d. Saber quando: S sabe quando A irá acontecer (ou aconteceu). 1 Os exemplos seguintes mostram padrões gerais de vários tipos de enunciados, com um exemplo mostrando como cada padrão poderia ser preenchido. Os padrões fazem uso de variáveis que podem ser substituídas por termos específicos. Seguindo as práticas standard, “S” é usada como uma variável a ser substituída por um “O editor sabe quando o livro de J. D. Salinger será publicado.” e. Saber como: S sabe como A. “J. D. Salinger sabe como escrever.” f. Saber fatos: S sabe p. “O estudante sabe que J. D. Salinger escreveu O Apanhador no Campo de Centeio.” Esta lista está longe de ser completa. Nós poderíamos acrescentar sentenças usando expressões tais como “sabe qual”, “sabe porque”, e assim por diante. Mas a lista que temos já será suficiente para destacar as principais questões a serem feitas aqui. B. Todo Conhecimento é Conhecimento Proposicional? Sentenças “sabe que” descrevem que uma pessoa conhece um certo fato ou propo- sição. Essas sentenças são ditas expressar conhecimento proposicional. 2 Uma idéia inici- almente plausível sobre a conexão entre essas várias maneiras em que a palavra “sabe” é usada é que “sabe que” é fundamental e que as outras podem ser definidas em termos dela. Para ver porque o conhecimento proposicional é mais fundamental dos que os outros, con- sidere como alguns dos outros tipos poderiam ser explicados em termos dele. Considere (c), “saber se.” Suponha que seja verdadeiro que 1. O bibliotecário sabe se há um livro de J. D. Salinger na biblioteca. Se (1) é verdadeiro, então, se há um livro de J. D. Salinger na biblioteca, o bibliote- cário sabe que há. Se, por outro lado, não há um livro dele na biblioteca, então o bibliote- cário sabe que não há. Qualquer que seja a proposição efetivamente verdadeira – a propo- sição de que há um livro ou a proposição de que não há – o bibliotecário a conhece. Assim, dizer (1) é uma maneira resumida de dizer nome ou a descrição de uma pessoa, “x” é usada como a variável a ser substituída por uma sentença completa que expresse um fato ou o significado de um fato (uma proposição), e “A” por uma descrição de uma ação. 2 Para uma discussão de qual é exatamente o significado da palavra “proposição,” veja a seção III, parte A1 deste capítulo. 2. Ou o bibliotecário sabe que há um livro de J. D. Salinger na biblioteca ou o bi- bliotecário sabe que não há um livro de J. D. Salinger na biblioteca. 3 Nesse aspecto, o bibliotecário difere de um cliente que não sabe se há um livro de Salinger ali. O cliente não sabe que há um livro ali e ele não sabe que não há um livro ali. A questão recém destacada sobre (1) pode ser generalizada. Para qualquer pessoa e para qualquer proposição, a pessoa sabe se a proposição é verdadeira apenas no caso da pessoa saber que ela é verdadeira ou da pessoa saber que ela não é verdadeira. Uma pessoa que não sabe se ela é verdadeira não sabe nem que ela é verdadeira nem que ela não o é. Nós podemos expressar a questão sobre a conexão entre (1) e (2) em termos de uma definição geral, usando a letra “S” para representar um sujeito epistêmico em potencial e “p” para representar uma proposição: D1. S sabe se p = df. Ou S sabep ou S sabe p.4 A definição (D1) ilustra uma importante ferramenta metodológica: definições. Uma definição é correta apenas se os dois lados são equivalentes. Para verificar se os dois lados são equivalentes, você considera os resultados de preencher com instâncias específicas as variáveis ou guardadores de lugar. No caso de (D1), você preenche S com o nome de uma pessoa e substitui p por uma sentença expressando alguma proposição. Se a definição é correta, em todos os casos assim os dois lados concordarão: se o lado esquerdo é verdadei- ro – se a pessoa sabe se a proposição é verdadeira – então o lado direito também será ver- dadeiro – ou a pessoa sabe que ela é verdadeira ou a pessoa sabe que ela não é verdadeira; se, por outro lado, o lado esquerdo não é verdadeiro – se a pessoa não sabe se a proposição é verdadeira – então o lado direito também não será verdadeiro. (D1) parece passar por es- se teste: os dois lados da definição coincidem. Assim, nós podemos explicar “saber se” em termos de “saber que.” 3 É importante entender a diferença entre (2) e 2a. O bibliotecário sabe que ou há um livro de Salinger na biblioteca ou não há um livro de Salinger na biblioteca. (2a) é verdadeira; (2a) descreve o conhecimento de uma disjunção (um enunciado “ou”) e qualquer um pode ter este conhecimento. Mas o bibliotecário precisa possuir um conhecimento especial se (2) é verdadeira. Ele deve saber qual dos disjuntos (as partes do enunciado “ou”) é verdadeiro. Também é possível definir alguns dos outros tipos de conhecimento em termos de conhecimento proposicional. As definições são mais complicadas, mas as idéias são ainda bastante claras. Considere “saber quando.” Se você sabe quando algo aconteceu (ou irá a- contecer), então há alguma proposição expressando o momento em que aquilo aconteceu (ou irá acontecer) tal que você sabe que essa proposição é verdadeira. Assim, dizer 3. O editor sabia quando o livro de J. D. Salinger seria publicado. é dizer que o editor sabia, com respeito a um momento do tempo em particular, que o livro de J. D. Salinger seria publicado nesse momento, e.g., ele sabia que seria publicado em 1950 ou que seria publicado em 1951, etc. Aqueles que sabiam menos que o editor não estavam nessa posição. Para eles, não havia um momento tal que eles conhecessem a pro- posição de que o livro seria publicado naquele momento. Novamente, nós podemos generalizar a idéia e expressá-la como uma definição: D2. S sabe quando x acontece = df. Há alguma proposição dizendo que x acontece em algum momento em particular e S conhece essa proposição. (Há alguma proposição, p, onde p é da forma “x acontece em t” e S conhece p.) Mais uma vez, nós temos uma maneira de explicar um tipo de conhecimento – sa- ber quando – em termos de conhecimento proposicional. É provável que abordagens simi- lares irão funcionar para saber qual, saber porque, e numerosas outras sentenças sobre o conhecimento. O caso em favor do conhecimento proposicional ser fundamental parece muito forte. Entretanto, é improvável que todas as coisas que nós digamos usando a palavra “sabe”/”conhece” possam ser expressas em termos de conhecimento proposicional. Con- sidere o primeiro item de nossa lista: “S conhece x.” Você pode pensar que conhecer al- guém ou alguma coisa é ter conhecimento proposicional de alguns fatos sobre essa pessoa ou coisa. Assim, nós podemos propor 4 “p” significa “não-p”, ou a negação de p. A negação de “Há um livro de Salinger na biblioteca” é “Não é o caso de que haja um livro de Salinger na biblioteca.” D3. S conhece x = df. S tem conhecimento proposicional de alguns fatos sobre x (i.e., para alguma proposição p, p é sobre x, e S conhece p). É provável que alguém que você conheça seja alguém sobre quem você conheça alguns fatos. Mas conhecer alguns fatos sobre uma pessoa não é suficiente para conhecer a pessoa. J. D. Salinger é um autor recluso, mas bem conhecido. Muitas pessoas sabem al- guns fatos sobre ele: elas sabem que ele escreveu O Apanhador no Campo de Centeio. Elas podem saber que ele não interage com uma grande quantidade de pessoas. Desse modo e- las conhecem fatos sobre ele, mas elas não o conhecem. Assim, conhecer uma pessoa não é o mesmo que conhecer alguns fatos sobre a pessoa. Isso mostra que a definição (D3) não é correta. Isso também ilustra outra questão metodológica importante. O exemplo mostra que (D3) não é correta porque ela é um con- tra-exemplo para (D3): um exemplo mostrando que os lados da definição nem sempre con- cordam – um lado pode ser verdadeiro enquanto o outro é falso. Um contra-exemplo bas- tante claro refuta a definição proposta. Ao revisar uma definição em resposta aos contra- exemplos, é possível obter um melhor entendimento dos conceitos sob discussão. 5 O contra-exemplo a (D3) mostra, não apenas que (D3) é falsa, mas também que não está sequer no caminho correto. Nós não podemos fazer algumas pequenas mudanças a fim de consertar as coisas. Não irá ajudar que S conhecesse muitos fatos sobre x, ou que S co- nhecesse fatos importantes sobre x. Você pode ter esse tipo de conhecimento proposicional e ainda assim não conhecer a pessoas. Conhecer x não é uma questão de conhecer fatos sobre x. Ao invés, é uma questão de estar familiarizado com x – ter encontrado x e talvez recordar esse encontro. Não importa quantos fatos você conheça sobre uma pessoa, não se segue daí que você conheça essa pessoa. Conhecer uma pessoa ou uma coisa é estar famili- arizado com essa pessoa ou coisa, ao invés de ter conhecimento proposicional sobre a pes- soa ou coisa. Desse modo, nem todo saber é saber proposicional. Considere a seguir “saber como.” Suponha que exista um hábil esquiador que, após um sério acidente que o deixa inapto para esquiar, se torna um treinador de esqui de suces- so. Seu sucesso como esquiador é em larga medida o resultado do fato de que ele é anor- malmente bom em explicar as técnicas de esqui aos estudantes. O treinador sabe como es- 5 A metodologia usada aqui será importante na seqüência. Um teste importante de uma definição proposta é que não hajam contra-exemplos para ela. quiar? A resposta parece ser “Sim.” Uma explicação plausível disso apela para a seguinte definição: D4a. S sabe como A = df. Se a é um passo importante para fazer A, então S sabe que a é um passo importante para fazer A. 6 Isso parece mostrar que “saber como” pode ser definido em termos de conhecimen- to proposicional. Entretanto, outros exemplos sugerem uma idéia diferente. Considere uma criança jovem que começa a esquiar e o faz com sucesso, sem qualquer treinamento ou entendi- mento intelectual do que ela está fazendo. Ela também sabe como esquiar, mas ela parece carecer do conhecimento proposicional relevante. Ela não tem qualquer entendimento consciente explícito dos vários passos. Ela simplesmente é apta para fazê-lo. Este exemplo sugere que há um segundo significado da expressão “sabe como.” A seguinte definição captura esse segundo significado: D4b. S sabe como A = df. S está apto para A. O ex-esquiador sabe como esquiar no sentido (D4a), mas não no sentido (D4b). Exatamente o inverso é verdadeiro do jovem prodígio. Desse modo um tipo de conheci- mento prático [knowhow] é conhecimento proposicional, mas não o outro tipo. C. Conclusão A tentativa de explicar todos os diferentes tipos de conhecimento emtermos de co- nhecimento proposicional fracassa. A conclusão mais razoável parece ser a de que há (ao menos) três tipos básicos de conhecimento: (1) conhecimento proposicional, (2) conheci- mento por intimidade [acquaintance] ou familiaridade, e (3) conhecimento de habilidade (ou conhecimento de procedimento). Ainda que não possamos explicar todo conhecimento em termos de conhecimento proposicional, o conhecimento proposicional tem um status especial. Nós podemos expli- car vários outros tipos de conhecimento nos seus termos. Além do mais, muitas de nossas mais intrigantes questões sobre o conhecimento se revelam questões sobre o conhecimento proposicional. Será ele o foco deste livro. E o objetivo desta seção é principalmente escla- recer qual é o tipo de conhecimento que é o tópico de nosso estudo. É o conhecimento pro- posicional ou conhecimento de fatos. II. CONHECIMENTO E CRENÇA VERDADEIRA O que é necessário para conhecer um fato? O que é conhecimento proposicional? Estas são as questões levantadas por (Q1) no Capítulo 1. Começaremos nosso exame des- sas questões com uma resposta simples e inadequada. Tentaremos então desenvolver essa resposta. A. Duas Condições para o Conhecimento É fácil aparecer com duas condições para o conhecimento: a verdade e a crença. É claro que o conhecimento requer a verdade. Isto é, você não pode conhecer alguma coisa a menos que ela seja verdadeira. Jamais pode estar correto dizer “Ele sabe isso, mas isso é falso.” Você não pode saber que Thomas Jefferson foi o primeiro presidente dos Estados Unidos. A razão pela qual você não pode saber isto é que ele não foi o primeiro presidente norte-americano. As pessoas podem estar seguras sobre coisas que não são verdadeiras. Você pode estar seguro de que Jefferson foi o primeiro presidente norte-americano. Você pode até mesmo pensar que se lembra de ter aprendido isso no colégio. Mas você está enganado a esse respeito. (Ou o seu professor cometeu um grande engano.) Você pode até mesmo ale- gar saber que Jefferson foi o primeiro presidente norte-americano. Mas ele não foi, e você não sabe que ele foi. Isto é assim porque o conhecimento requer a verdade. Você conhece uma proposição apenas se ela é verdadeira. Há uma objeção possível à alegação de que o conhecimento requer a verdade. Ela é ilustrada pelo seguinte exemplo: Exemplo 2.1: A História de Suspense 6 Esta definição pode necessitar de algum refinamento Você estava lendo uma história de suspense. Todas as pistas apresentadas até o úl- timo capítulo indicavam que o mordomo era o culpado. Você estava seguro de que o mor- domo cometera o crime é ficou surpreso quando foi revelado na cena final que o contador era o culpado. Após terminar o livro você diz: 4. Eu sabia o tempo todo que o mordomo havia cometido o crime, mas resultou que ele não o havia cometido. Se você está certo quando diz (4), então é possível conhecer coisas que não são verdadeiras. Você pode saber que o mordomo cometeu o crime, mas não é verdade que o mordomo o cometeu. Entretanto, ainda que as pessoas algumas vezes digam coisas tais como (4), é claro que tais coisas não são literalmente verdadeiras. Você não pode saber o tempo todo que o mordomo cometeu o crime. O que era verdade o tempo todo era que vo- cê estava seguro que o mordomo o havia cometido, ou algo assim. Ao dizer (4) você ex- pressa, de uma maneira levemente enfeitada, que foi surpreendido pelo final. Mas (4) não é verdadeira, e não mostra que pode haver conhecimento sem verdade. Uma segunda condição para o conhecimento é a crença. Se você conhece alguma coisa, então você deve acreditar nela ou aceitá-la. Se você nem mesmo pensa que alguma coisa é verdadeira, então você não a conhece. Nós estamos usando “crença” em um sentido amplo aqui: toda vez que você assume alguma coisa como verdadeira, você acredita nela. Assim, acreditar inclui tanto a aceitação hesitante quanto a aceitação inteiramente confian- te. Uma boa maneira de pensar nisto é notar que quando você considera um enunciado, vo- cê pode adotar quaisquer de três atitudes diante dele: crer, descrer ou suspender o juízo. Como uma analogia, imagine-se forçado a dizer uma de três coisas sobre um enunciado: “sim”, “não” ou “sem opinião.” Você dirá “sim” em uma variedade de casos, incluindo a- queles nos quais você está inteiramente confiante em um enunciado e aqueles nos quais você simplesmente pensar que o enuncia é provavelmente verdadeiro. Você dirá “não” quando pensar que o enunciado é definitiva ou provavelmente falso. E usará “sem opinião” nos casos restantes. Da mesma forma, tal como nós estamos usando o termo aqui, “crença” se aplica a uma variedade de atitudes. Ela é contrastada com a descrença, a qual envolve uma variedade semelhante, e com a suspensão de juízo. É claro, então, que o conhecimento requer a crença. Se você nem mesmo pensa que um enunciado é verdadeiro, então você não sabe que ele é verdadeiro. Há, entretanto, uma objeção a esta alegação que merece consideração. Nós falamos algumas vezes de maneiras que contrastam conhecimento e crença, sugerindo que quando você conhece alguma coisa você não acredita nela. Para ver isto, considere o seguinte exemplo: Exemplo 2.2: Saber o seu nome Você tem um amigo chamado “John” e pergunta a ele: “Você acredita que seu no- me seja „John‟?” Ele responde: 5. Eu não acredito que meu nome seja “John”; eu sei que ele é. Ao dizer (5), John parece estar dizendo que esse é um caso de conhecimento e não um caso de crença. A sugestão é que se ela é uma crença, então não é conhecimento. Se ele está certo, então a crença não é uma condição para o conhecimento. Entretanto, mais uma vez, essa aparência é enganadora. John seguramente aceita o enunciado de que o nome dele é “John.” Ele não rejeita o enunciado ou não tem opinião sobre ele. Quando ele diz (5), a questão é que ele não acredita simplesmente que o nome dele é “John”; ele pode dizer alguma coisa mais forte – que ele sabe disto. E uma das ma- neiras pelas quais nós tipicamente procedemos em conversações é evitando dizer uma coi- sa mais fraca ou modesta quando a mais forte é também verdadeira. Se seu amigo dissesse a você, “Eu acredito que meu nome seja „John,‟” isto sugeriria, mas não diria literalmente, que ele não sabe disto. Há muitos outros exemplos do mesmo fenômeno. Suponha que vo- cê esteja extremamente cansado, tendo trabalhado duro por muito tempo. Alguém pergunta se você está cansado. Você pode responder dizendo alguma coisa como: 6. Eu não estou cansado; estou exausto. Tomado literalmente, o que você diz é falso. Você está cansado. A questão do seu proferimento é enfatizar que você não está meramente cansado; você está exausto. A mesma coisa ocorre em (5). Ao dizer (5), John não está realmente dizendo que ele não a- credita no enunciado. Assim esse exemplo não é um contra-exemplo à tese de que o co- nhecimento requer a crença. Nós encontramos agora duas condições para o conhecimento. Para conhecer algu- ma coisa, você precisa acreditar nela e ela precisa ser verdadeira. B. Conhecimento como Crença Verdadeira As idéias recém apresentadas podem sugerir que o conhecimento seja crença ver- dadeira; isto é, Tb. S sabe p = df. (i) S crê p, e (ii) p é verdadeira. Uma breve reflexão deveria tornar claro que (TB) é um equívoco. São muitas as vezes em que uma pessoa tem uma crença verdadeira mas não tem conhecimento. Eis aqui um contra-exemplo simples para (TB):Exemplo 2.3: Predições corretas Nova York está jogando contra Denver em um próximo Superbowl. Os especialis- tas estão divididos sobre quem irá vencer, e os times estão igualmente ranqueados. Você tem um palpite de que Denver irá vencer. Quando o jogo é finalmente realizado, seu palpi- te se revela correto. Assim, você acreditou que Denver venceria e sua crença era verdadei- ra. No exemplo 2.3 você acredita que Denver vencerá e isto é verdadeiro. Mas você não sabia que Denver iria vencer. Você simplesmente teve um palpite que se revelou corre- to. Alguns irão dizer que o fato da crença do exemplo 2.3 ser sobre o futuro arruína o exemplo. Mas nós podemos facilmente eliminar esta característica sem eliminar a questão. Suponha que você não assista ao jogo mas, ao invés, vá assistir a um filme longo. Quando você sai do cinema, você sabe que o jogo acabou. Você tem agora uma crença sobre o pas- sado, a saber, que Denver venceu. E você está certo. Mas agora não há complicações que tenham a ver com crenças sobre o futuro. As objeções a (TB) não estão limitadas aos casos de palpites felizes. Outro tipo de exemplo ilustrará o coração do problema com (TB). Exemplo 2.4: O Planejador de Piqueniques Pessimista Você tem um piquenique marcado para sábado e ouve uma previsão do tempo que diz que as chances de chova no sábado são de pouco mais de 50%. Você é um pessimista, e com base nesse boletim você acredita confiantemente que irá chover. E então chove. As- sim, você teve uma crença verdadeira de que choveria. Você teve uma crença verdadeira de que choveria, mas carecia de conhecimento. (Quando a chuva começa, você pode dizer “Eu sabia que ia chover,” mas você não sabia disto realmente.) A razão pela qual você não sabia nesse caso não é que você estava adivi- nhando. Sua crença está baseada em alguma evidência – o boletim do tempo – e assim não é simplesmente um palpite. Mas esta base não é boa o suficiente para o conhecimento. O que você precisa para o conhecimento é alguma coisa como razões muito boas ou uma ba- se mais confiável, não apenas um boletim do tempo potencialmente inexato. Os filósofos freqüentemente dizem que o que é necessário para o conhecimento, a- lém da crença verdadeira, é a justificação para a crença. Exatamente o que vem a ser justi- ficação é uma questão de considerável controvérsia. Nós passaremos um bom tempo mais tarde neste livro examinado essa idéia. Mas, por enquanto, será suficiente notar que nos exemplos de conhecimento que nós apresentamos no Capítulo 1 os crentes tinham razões extremamente boas para suas crenças. Em contraste, nos contra-exemplos para (TB) você não tinha razões muito boas e poderia facilmente ter estado errado. O que está faltando, então, nos contra-exemplos para (TB) e está presente nos exemplos de conhecimento que nós descrevemos é a justificação. Isto nos leva à Análise Tradicional do Conhecimento. III. A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO A Análise Tradicional do Conhecimento (a ATC) é formulada na seguinte defini- ção: ATC. Se sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em crer p. Algo nessa linha pode ser encontrado em várias fontes, talvez tão antigas quanto Sócrates. No diálogo Mênon de Platão, Sócrates diz: Pois estas (as opiniões certas), da mesma forma, enquanto permanecem, valem um tesouro e só produzem o que é bom; mas não consentem em permane- cer muito tempo na alma do homem, e não demoram muito a escapar, a fugir, o que faz com que não tenham muito valor até o instante em que o homem as a- marra, as encadeia por um raciocínio de causalidade.(...) E assim, quando as opi- niões certas são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência, e, como ciência, permanecem estáveis.. 7 De acordo com uma interpretação possível dessa passagem, estar apto a dar “uma explicação” de uma opinião é ter uma razão ou justificação para essa opinião. E uma idéia na passagem é que isto é necessário a fim de haver conhecimento. 8 Nós iremos ignorar a alegação adicional de que o conhecimento é menos propenso a “escapar” da mente de al- guém do que outras crenças. Idéias semelhantes podem ser encontradas na obra de muitos outros filósofos con- temporâneos. Por exemplo, Roderick Chisholm propôs uma vez que uma pessoa conhece uma proposição apenas no caso de acreditar nesta, de ser esta verdadeira, e de ser a propo- sição “evidente” para a pessoa. E esta última condição é entendia em termo de quão razoá- vel é para a pessoa crer na proposição. 9 Nos voltamos agora para um exame mais completo dos três elementos da ATC. A. Crença Crer em alguma coisa é aceitá-la como verdadeira. Quando você considera qual- quer enunciado, você se enfrenta com um conjunto de alternativas: você pode acreditar nele, pode descrer dele, ou pode suspender o juízo sobre ele. Recorde que nós estamos to- mando a crença como incluindo uma variedade de atitudes mais específicas, incluindo a aceitação hesitante e a convicção total. A descrença inclui uma variedade correspondente de atitudes negativas em relação a uma proposição. A qualquer momento, se você conside- rar uma proposição, irá terminar adotando uma dessas três atitudes. 10 7 Em Mênon-Banquete-Fedro, tradução de Jorge Paleikat (Rio de Janeiro: Ediouro), p. 72. 8 Uma idéia semelhante é apresentada em outro diálogo, o Teeteto, em Teeteto-Crátilo, tradução de Carlos Alberto Nunes (Belém: Universidade Federal do Pará, 1988). 9 Roderick Chisholm, Theory of Knowledge (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1966), p. 23. 10 Há uma maneira alternativa de pensar nestas questões. Ao invés de dizer que há três opções, você pode dizer que pode crer numa proposição num grau maior ou menor. Você pode pensar nesses três graus de cren- ça como arranjados ao longo de uma escala. Quando você aceita uma proposição com absoluta convicção, você crê nela no mais alto grau. Quando você rejeita total e completamente uma proposição, você tem o me- Para os presentes propósitos, pense em descrer de uma proposição como sendo a mesma coisa que crer na negação (ou recusa) dessa proposição. Assim, Descrer que Geor- ge Washington foi o primeiro presidente norte-americano é o mesmo que crer que não é o caso que George Washington foi o primeiro presidente norte-americano. Suspender o juízo sobre a proposição é nem crer nem descrer dela. 11 Uma questão adicional sobre a crença merece menção aqui. Suponha que a uma criança francesa seja ensinado que George Washington foi o primeiro presidente dos Esta- dos Unidos. Então, se torna verdadeiro que 7. Pierre acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos. A coisa notável aqui é que (7) pode ser verdadeira mesmo que Pierre não fale uma palavra de português. Ele não tem de entender a sentença portuguesa “George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.” Presumivelmente, ele expressaria sua cren- ça usando o equivalente francês dessa sentença. A contraparte brasileira de Pierre, Pedro, pode acreditar no que Pierre acredita. Então, 8. Pedro acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos. Pedro, podemos supor, não fala uma palavra de francês. Assim Pedro e Pierre acre- ditam na mesma coisa, ainda que não haja uma sentença que ambos aceitem. Como pode ser isto? Uma maneira de entender essas questões é como segue. Sentenças são usadas para expressar certos pensamentos ou idéias. Os filósofos usam a palavra proposição para se referir a esses itens. A sentença portuguesa que Pedro usa e a sentençafrancesa que Pierre usa expressam a mesma proposição. A crença é fundamentalmente uma relação com uma proposição. Assim, (7) pode ser verdadeira porque Pierre acredita na proposição relevante nor grau possível de crença nela. E, nos casos usuais, o seu grau de crença fica em algum lugar intermediário. A suspensão de juízo fica exatamente no meio. 11 Se você nunca sequer considerou uma proposição, então você nem crê nem descrê dela, mas tampouco suspende o juízo. Talvez a suspensão do juízo seja mais bem caracterizada como considerar uma proposição sem nem crer nem descrer dela. sobre George Washington; (8) é verdadeira porque Pedro acredita na mesma proposição. Mas eles usariam diferentes sentenças para expressar essa proposição. Existem, então, duas questões importantes a extrair disto: as sentenças diferem das proposições que são usadas para expressá-las e a crença é fundamentalmente uma atitude que se toma em relação a proposições. 12 B. Verdade O segundo elemento da ATC é a verdade. As pessoas dizem coisas muito complica- das e obscuras sobre a verdade, mas a idéia fundamental é muito simples. A questão aqui não é sobre que coisas são de fato verdadeiras. Antes, a questão agora é sobre o que é para alguma coisa ser verdadeira. Uma resposta simples e amplamente aceita está contida na teoria da correspondência da verdade. A questão central da teoria da correspondência é expressa no seguinte princípio: TC. Uma proposição é verdadeira se e somente se ela corresponde aos fatos (sse o mundo é da maneira que a proposição diz que ele é). Uma proposição é falsa sse ela fracas- sa em corresponder aos fatos. 13 A idéia aqui é extraordinariamente simples. Ela se aplica ao nosso exemplo sobre George Washington da seguinte maneira. A proposição de que George Washington foi o primeiro presidente norte-americano é verdadeira apenas no caso dela corresponder aos fatos tais como eles efetivamente são. Em outras palavras, ela é verdadeira apenas se Ge- orge Washington foi o primeiro presidente norte-americano. A proposição é falsa se ele não foi o primeiro presidente norte-americano. O princípio se aplica de maneira análoga às outras proposições. Será útil descrever algumas conseqüências da TC e mencionar algumas coisas que não são conseqüências da TC. 12 Há questões difíceis sobre exatamente que tipos de objetos são as proposições. Nós podemos ignorar com segurança tais questões aqui. 13 O termo “sse” abrevia “se e somente se.” Sentenças da forma “p sse q” são verdadeiras apenas no caso dos valores de verdade de p e de q concordarem, isto é, apenas se ambos forem verdadeiros ou se ambos forem falsos. 1) Se uma proposição é verdadeira ou falsa não depende de maneira alguma do que alguém crê sobre ela. Por exemplo, nossas crenças sobre George Washington não têm rela- ção com o valor de verdade (i.e., a verdade ou a falsidade) da proposição de que George Washington foi o primeiro presidente norte-americano. Os fatos reais do caso determinam seu valor de verdade. 2) A verdade não é “relativa.” Nem uma única proposição pode ser “verdadeira pa- ra mim mas não verdadeira para você.” Eu posso crer numa proposição na qual você des- crê. De fato, isto é quase certamente o caso. Quaisquer duas pessoas irão quase certamente discordar sobre alguma coisa. Entretanto, se há uma proposição sobre a qual elas discor- dam, então o valor de verdade dessa proposição é determinado pelos fatos. 3) A (TC) não legitima qualquer tipo de dogmatismo ou atitude intolerante em rela- ção às pessoas que discordam de você. Algumas pessoas dispensam sem consideração qualquer um que discorde delas. Esta é uma maneira vil e desarrazoada detratar os outros. Entretanto, se você discorda sobre alguma coisa, então, trivialmente, penso que eu estou certo e você errado. Se, por exemplo, você pensa que Thomas Jefferson foi o primeiro pre- sidente e eu penso que foi, ao invés, George Washington, então penso que você está errado sobre isto e você pensa que eu estou errado sobre isto. Seria precipitado de minha parte ge- neralizar deste caso e tirar quaisquer conclusões sobre suas outras crenças. Mas quando você discorda de mim, eu penso que você está errado. Se você não é dogmático, reconhece sua própria falibilidade. Você está aberto a mudar de idéia se nova informação vem à tona. Existem circunstâncias nas quais pode ser rude dizer aos outros que você pensa que eles estão errados. E possivelmente o mero fato de os outros discordarem proporciona alguma razão para que você reconsidere seus pontos de vista. 14 4) A (TC) não implica que as coisas não possam mudar. Considere a proposição de que George Washington é o presidente dos Estados Unidos. Esta proposição é falsa. Mas, parece, ela costumava ser verdadeira. O que a (TC) diz sobre isto? Há algumas coisas para pensar sobre isso, e um exame completo delas entraria em tecnicidades que não são importantes para os nossos presentes propósitos. Uma boa abor- dagem diz que uma sentença tal como “George Washington é o presidente dos Estados U- nidos” expressa uma proposição diferente em momentos diferentes. A proposição expressa lá em 1789 é verdadeira. A proposição que ela expressa em 2005 – a proposição de que George Washington é o presidente dos Estados Unidos em 2005 – é falsa. Nós podemos dizer que a sentença pode ser usada para expressar uma série de proposições acerca de momentos específicos. Nós podemos pensar numa proposição que diz que uma certa coisa tem uma certa propriedade em um momento como uma predecessora de uma proposição que diz que essa mesma coisa tem essa mesma propriedade num momento ligeiramente posterior. Assim, quando as coisas mudam, por exemplo, quando nós temos um novo pre- sidente, uma proposição datada é verdadeira e sua proposição sucessora é falsa. Não há problema para a (TC), desde que sejamos cuidadosos acerca das proposições em questão. 5) Algo semelhante se aplica à considerações sobre localização. Suponha que al- guém no Maine esteja falando ao telefone com alguém na Flórida. A pessoa no Maine diz: 9. Está nevando. A pessoa na Flórida diz: 10. Não está nevando. Esses falantes não discordam sobre nada. Mas o que deveríamos dizer, então, sobre o valor de verdade da proposição de que está nevando? Ela é verdadeira ou falsa? Mais uma vez, há uma variedade de maneiras de pensar sobre isso. Para os presen- tes propósitos, uma boa abordagem será dizer que com uma sentença como (9) a pessoa expressa uma proposição que pode ser mais claramente mostrada pela sentença 9a. Está nevando aqui (no Maine). Da mesma forma, a pessoa na Flórida que diz (10) diz alguma coisa que é mais cla- ramente mostrada em 10a. Não está nevando aqui (na Flórida). 14 Este tópico será discutido em detalhe no capítulo 9. Nós podemos assumir que ambas as proposições são verdadeiras. Sua verdade é ob- jetiva, pois ela depende das condições climáticas dos dois lugares. 6) Existem enigmas sobre as sentenças tais como 11. O iogurte tem bom sabor. Exatamente o que a (TC) diz sobre elas depende em larga medida do que essas sen- tenças significam. Uma possibilidade é a de que cada falante usa (11) para dizer “Eu gosto do sabor do iogurte.” Se este é o caso, então pessoasdiferentes usam (11) para expressar proposições diferentes, cada proposição sendo sobre aquilo de que o falante gosta. Se uma pessoa que gosta do sabor do iogurte diz (11), então a proposição que a pessoa expressa é verdadeira. Se a pessoa não gosta de iogurte, então a pessoa expressa uma proposição que não é verdadeira. Não é óbvio que (11) diga alguma coisa sobre as preferências individuais. Pode ser que ela diga alguma coisa como “A maioria das pessoas gosta do sabor do iogurte.” Se isto é o que ela diz, então ela não expressa diferentes proposições quando dita por diferentes pessoas. Ela expressa uma proposição sobre o gosto da maioria, e essa proposição é verda- deira se a maioria das pessoas gosta de iogurte e não verdadeira se ela não gosta. De acordo com outra interpretação, (11) diz que o iogurte satisfaz algum standard de sabor que é independente do que as pessoas gostam ou não gostam. Isto supõe algum tipo de “objetividade” sobre o sabor. Nesta perspectiva, (11) poderia ser verdadeira mesmo que dificilmente alguém de fato goste do sabor do iogurte. Você pode achar essa perspecti- va estranha; é difícil entender aonde leva o bom sabor objetivo. O que é crucial para os presentes propósitos é notar que, qualquer que seja a inter- pretação correta de (11), não há problema para a (TC). A proposição expressa por (11) irá variar de um falante para outro se a primeira opção é correta, mas não nos outros casos. Em todo os casos, entretanto, o valor de verdade que a(s) proposição(ões) expressa(m) de- pende dos fatos relevantes. Neste caso, os fatos relevantes são ou aquilo de que o falante ou a maioria das pessoas gosta ou não gosta, ou os fatos objetivos sobre o bom sabor. Não há necessidade para nós de resolver as disputas sobre a interpretação correta das sentenças tais como (11). Essa questão complicada pode ser deixada para aqueles que estudam estética. A questão crucial para os presentes propósitos é que, qualquer que seja a interpretação correta, não há aqui uma boa objeção para a (TC). 7) A (TC) não implica que nós não possamos saber o que é “realmente” verdadeiro. Algumas pessoas reagem à (TC) dizendo alguma coisa como isto: De acordo com a (TC), a verdade é “absoluta” e o que é verdadeiro de- pende de como as coisas são no mundo objetivo. Uma vez que este mundo é ex- terno a nós, nunca podemos realmente saber o que é verdadeiro. No máximo, nós podemos saber o que é “subjetivamente” verdadeiro. Esta verdade subjetiva de- pende de nossas próprias perspectivas sobre o mundo. A verdade absoluta deve estar sempre além de nossa compreensão. Nós discutiremos amplamente o ceticismo nos Capítulos 6 e 7. Boa parte da epis- temologia é um esforço para responder a ele. Por enquanto é suficiente notar duas ques- tões. Primeiro, do mero fato de que o que é verdadeiro é dependente de um mundo objetivo que existe independentemente de nós, não se segue que nós não possamos saber como é esse mundo. Logo, se há aí algum argumento forte para o ceticismo, ele repousa numa premissa situada além de qualquer coisa dita no parágrafo precedente. Mais tarde nós ire- mos considerar como um tal argumento poderia ser formulado. Segundo, através de vários dos próximos capítulos nós assumiremos, assim como a Perspectiva Standard o faz,que nós conhecemos coisas. Esta não é uma questão de prejul- gar as questões associadas ao ceticismo. Ao invés, nós estamos examinando quais são a natureza e as conseqüências da Perspectiva Standard. A Perspectiva Cética receberá uma consideração justa nos Capítulos 6 e 7. 8) Há uma questão muito enigmática associada com a teoria da correspondência da verdade. Considere uma sentença tal como 12. Michael é alto. Suponha que alguém afirme (12) em um contexto conversacional normal tal como o seguinte: você está a ponto de pegar Michael no aeroporto. Você sabe que ele é um ho- mem adulto, mas não sabe como ele se parece. Foi dada a você uma descrição da qual (12) é uma parte. Nestas circunstâncias, se Michael tem de fato 6‟4”, então (12) expressa uma verdade. Se Michael tem 4‟10”, então (12) diz alguma coisa falsa. Se Michael tem cerca de 5‟10”, então será difícil dizer ser (12) expressa uma verdade ou uma falsidade. Essa altura parece ser um caso caso-limite de ser alto (para um homem adulto). De acordo com uma perspectiva amplamente aceita sobre estas questões, a palavra “alto” simplesmente não tem um significado preciso. O problema que nós temos na situa- ção final, quando Michael tem 5‟10”, não é que não sabemos o suficiente sobre a situação. Nós podemos saber tudo que há para saber sobre a altura de Michael, a altura média de homens adultos, e tudo mais o que seja relevante. Nesta perspectiva, (12) simplesmente é um caso-limite. Simplesmente não há limites exatos para a altura à qual a palavra “alto” se aplica. Em outras palavras, “alto” é uma palavra vaga. Muitas outras palavras são vagas, incluindo “saudável”, “rico”, e “sábio”. A vagui- dade causa numerosos problemas para a compreensão de como exatamente funciona a lin- guagem. Afortunadamente, nós podemos ignorar em larga medida aquelas questões en- quanto seguimos as questões epistemológicas que são o nosso foco. Entretanto, questões concernentes à vaguidade surgirão de tempos em tempos, e assim é importante ter alguma compreensão da idéia. Além do mais, a existência de sentenças vagas pode ter alguma implicação na ade- quação da (TC). Recorde a distinção entre as sentenças e as proposições que elas expres- sam. Como foi recém notado, a vaguidade é uma característica das sentenças. A sentença (12), parece, é vaga. Mas considere agora a proposição que (12) expressa numa ocasião em particular, tal como a recém descrita. Se essa proposição é vaga, ou indefinida em seu valor de verdade, então a (TC) precisa de revisão. A (TC) diz que toda proposição é ou verdadei- ra ou falsa, dependendo de se ela corresponde à maneira como é o mundo. Porém, se há proposições vagas, então há proposições que correspondem parcialmente à maneira como é mundo. Poder-se-ia dizer que há um terceiro valor de verdade – o indeterminado – em adi- ção aos dois originais – o verdadeiro e o falso. Poder-se-ia mesmo dizer que há uma ampla variedade de valores de verdade, que a verdade vem em graus. Estas são questões comple- xas que não podem ser resolvidas facilmente. Não tentaremos resolvê-las aqui. É suficiente compreender que a (TC) requer modificação a fim de lidar com a vaguidade. C. Justificação O terceiro e último elemento da ATC é a justificação. A justificação (ou racionali- dade ou razoabilidade) será o foco de uma grade parte deste livro. Esta seção introduzirá algumas idéias preliminares. A justificação é algo que vem em graus – você pode ter mais ou menos dela. Con- sidere de novo o exemplo 2.4, no qual você de maneira pessimista acreditava que ia chover no dia de seu piquenique com base em uma previsão que dizia que as chances de chover eram levemente maiores do que a metade. Aqui você tem alguma justificação para pensar que irá chover. Não é como se você simplesmente tivesse inventado sem nenhuma razão. Mas as suas razões estão longe de serem boas o suficiente para dar conhecimento a você. Assim, o que a cláusula (iii) da ATC requer é uma justificação muito forte. Nas circunstân- cias descritas, você não a tem para a crença de que irá chover. Se chega o dia do piqueni- que e você olha pela janela e vê chuva, então você tem uma justificação forte o suficiente para a crença de que choverá. Sob aquelas circunstâncias você satisfará a cláusula (iii) da ATC. Assim a clausulo (iii) deveria ser lida como requerendo justificação forte ou justifi- caçãoadequada. Isto pode ser um pouco impreciso, mas servirá por enquanto. Você pode estar justificado em crer nalguma coisa sem de fato acreditar nela. A cláusula (iii) da ATC não implica (i). Para ver como isto funciona, considere o seguinte exemplo: Exemplo 2.5: O Exame do Sr. Inseguro O Sr. Inseguro acabou de fazer um exame. O professor olha rapidamente para suas respostas e diz que elas parecem boas e que as notas estarão disponíveis no dia seguinte. O Sr. Inseguro estudou muito, fez e se deu bem nos exercícios, achou as questões do exame semelhantes aos exercícios que ele havia estudado, e assim por diante. Ele tem excelentes razões para pensar que ele passou no exame. Mas o Sr. Inseguro é inseguro. Ele nunca a- credita que se deu bem e não acredita que se deu bem neste exame. Ainda que o Sr. Inseguro não acredite ter passado no exame, ele está justificado em crer que passou no exame. Assim a condição (iii) da ATC está satisfeita, mas não a condi- ção (i). Estar justificado em crer numa proposição é, grosso modo, ter o que é requerido para ser altamente razoável acreditar nela, quer de fato se acredite nela ou não. O que está justificado para uma pessoa pode não estar justificado para outra. Você tem muitas crenças justificadas sobre a sua vida privada. Seus amigos e conhecidos podem ter pouca ou nenhuma justificação para crenças sobre tais questões. E o que está justificado para um indivíduo muda ao longo do tempo. Uma modificação do exemplo 2.4 ilustrará isto. Uma semana antes do piquenique você pode não ter justificação para crer na proposi- ção de que irá chover no sábado. Mas na manhã de sábado você pode adquirir ampla justi- ficação para essa proposição. É importante não confundir estar justificado em crer nalguma coisa com estar apto a mostrar que se está justificado em crer nessa proposição. Em muitos casos nós podemos explicar porque uma crença está justificada; nós podemos formular nossas razões. Entre- tanto, há exceções para isto. Por exemplo, uma criança pode ter muitas crenças justificadas mas ser inapta para articular uma justificação para elas. IV. CONHECIMENTO VERDADEIRO E CONHECIMENTO APARENTE Uma questão adicional sobre a Perspectiva Standard merece especial atenção. As coisas que as pessoas consideram como conhecimento diferem numa variedade de manei- ras. Para tomar alguns exemplos simples, talvez as pessoas de tempos antigos dissessem que, entre as coisas que elas sabiam, estivesse o fato de que a Terra fosse plana. Talvez e- les tivessem dito saber que a terra era o centro do universo (com todas as coisas em órbita em torno dela). Pode ter havido uma ampla concordância em tempos antigos de que eles tinham conhecimento nestes casos. Nós podemos conceder, para o bem do argumento, que os antigos pensavam que eles sabiam que a terra fosse o centro do universo. (Se você não gosta deste exemplo em particular, substitua-o por outro que ilustre a mesma idéia.) Nós podemos mesmo conceder que eles estavam muito bem justificados em crer que eles tivessem conhecimento deste fa- to. Nós podemos dizer que eles tinham conhecimento aparente. Não obstante, eles careci- am de conhecimento verdadeiro. Ainda que as proposições em questão pudessem muito razoavelmente ter aparecido na lista das coisas conhecidas no primeiro capítulo de um dis- tante ancestral deste livro, as proposições seriam falsas. A Terra não é e nunca foi plana. Ela não é e nunca foi o centro do universo. Eles pensaram, talvez com justificação, que e- les tinham conhecimento, mas eles estavam enganados. 15 15 Neste ponto você pode observar que nós podemos estar numa situação com a dos antigos, na qual nossas alegações estão equivocadas. Nós iremos tratar desta questão quando considerarmos a Perspectiva Cética. Outra questão merece atenção aqui. Pode ser que as alegações daqueles que fossem mais falantes, mais carismáticos, ou mais poderosos fossem mais freqüente e amplamente consideradas como itens de conhecimento. Isto pode ser aflitivo para aqueles que estão longe do poder, especialmente quando eles têm uma justificação para perspectivas compe- tidoras. Entretanto, questões sobre o que determina o que será contado como conhecimen- to, e como os poderosos fazem para impor suas perspectivas sobre os outros não estão no foco deste livro. Nosso tópico é o conhecimento verdadeiro, não o conhecimento aparen- te. 16 V. CONCLUSÃO A (Q1) do capítulo 1 perguntou o que é preciso para se ter conhecimento. Este capí- tulo introduziu uma resposta a essa questão baseada na Análise Tradicional do Conheci- mento de acordo com a qual o conhecimento é crença verdadeira justificada. Esta análise tem uma longa história. Ela parece se encaixar bem na Perspectiva Standard. Os exemplos de conhecimento endossados pela Perspectiva Standard parecem ser casos de crença ver- dadeira justificada. E casos nos quais nós carecemos de conhecimento parecem ser caso nos quais nós carecemos de um destes três fatores. Há, entretanto, uma objeção significativa a ATC. Nos voltaremos em seguida a ela. 16 É possível que algo da atratividade da Perspectiva Relativista, mencionada no capítulo 1, resulte da confu- são entre o conhecimento aparente e o conhecimento verdadeiro. CAPÍTULO TRÊS MODIFICANDO A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO I. UMA OBJEÇÃO À ANÁLISE TRADICIONAL Recorde que a Análise Tradicional do Conhecimento, a ATC, diz que o conheci- mento é crença verdadeira justificada. Esta análise é correta apenas no caso de que em todos os exemplos possíveis, se uma pessoa conhece alguma proposição, então a pessoa tem uma crença verdadeira justifi- cada nessa proposição, e, se a pessoa tem uma crença verdadeira justificada, então a pessoa tem conhecimento. Desafortunadamente para a ATC, há contra-exemplos provocantes dos segundo tipo – casos de crença justificada verdadeira que claramente não são casos de co- nhecimento. O primeiro filósofo a argumentar explicitamente contra a ATC da maneira a ser dis- cutida aqui foi Edmund Gettier. Seu breve ensaio “Is Justified True Belief Knowledge?” talvez seja o mais amplamente discutido e freqüentemente citado texto de epistemologia em muitos anos. 1 Gettier apresentou dois exemplos, cada um deles mostrando que alguém poderia ter uma crença justificada verdadeira que não é conhecimento. Outros filósofos têm descrito casos adicionais estabelecendo o mesmo ponto. A. Os Contra-exemplos Nesta seção examinaremos três exemplos, todos desenhados para ilustrar um pro- blema na ATC. A ponto por trás de todas as objeções é a mesma, mas os diferentes exem- plos ajudam a tornar a questão mais clara. O primeiro exemplo é uma versão modificada de um dos exemplos originalmente apresentados por Gettier. Exemplo 3.1: O Caso das Dez Moedas Smith está justificado em crer: 1. Jones é o homem que ficará com o emprego e Jones tem dez moedas em seu bol- so. A razão para Smith estar justificado em crer em (1) é que ele acabou de ver Jones esvaziar seus bolsos, contar cuidadosamente suas moedas, e então colocá-las novamente no bolso. Smith também sabe que Jones é extremamente bem qualificado para o emprego e ouviu o chefe dizer à secretária que Jones havia sido selecionado. Com base em (1), Smith deduz corretamente e crê noutra proposição: 2. O homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso. Smith está justificado em crer em (2) ainda que (1) seja falsa. A despeito da evi- dência de Smith, (1) não é verdadeira no final das contas.O chefe falou errado quando dis- se que Jones ficaria com o emprego. De fato, o emprego está indo para o sobrinho do vice- presidente da companhia, Robinson. Coincidentemente, Robinson acontece de Robinson também ter dez moedas em seu bolso. Neste exemplo (2) é verdadeira ainda que (1) seja falsa. Smith estava justificado em crer em (1), deduziu corretamente (2) a partir de (1) e, como resultado, acreditou nela. As- sim, Smith também estava justificado em crer em (2). E (2) é verdadeira. Assim, a crença de Smith em (2) está justificada e é verdadeira. Mas claramente Smith não sabe (2). É ape- nas uma coincidência que ele esteja correto sobre (2). Exemplo 3.2: O Caso Nogot/Havit 2 Smith sabe que Nogot, que trabalha em seu escritório, estava dirigindo um Ford, tem documentos de propriedade de um Ford, é geralmente honesto, etc. Nesta base ele crê: 3. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, possui um Ford. 1 Analysis 23 (1963): 121-3. Smith ouve no rádio que um concessionário Ford local está promovendo um con- curso. Qualquer um que trabalhe no mesmo escritório que o dono de um Ford é elegível para entrar numa loteria cujo ganhador receberá um Ford. Smith decide se inscrever, pen- sando ser elegível. Afinal de contas, ele pensa que (3) é verdadeira, e assim ele conclui que: 4. Há alguém que trabalha no (meu) escritório de Smith que possui um Ford. (Há ao menos um dono de Ford no escritório de Smith.) Resulta que Nogot finge ter um Ford e (3) é falsa. Entretanto, (4) é verdadeira por- que uma outra pessoa ignorada por Smith, Havit, trabalha em seu escritório e possui um Ford. Assim, Smith tem uma crença justificada verdadeira em (4), mas não sabe (4). É apenas uma feliz coincidência, resultante de Havit tê-lo, que o torna correto sobre (4). Exemplo 3.3: A Ovelha no Campo 3 Tendo ganhado um Ford em um concurso, Smith sai para um passeio no interior. Ele olha para um campo próximo e vê o que se parece exatamente como uma ovelha. As- sim, ele crê justificadamente: 5. Esse animal no campo é uma ovelha. O filho de Smith está no banco traseiro lendo um livro e não está olhando a paisa- gem. O filho pergunta se há alguma ovelha no campo em que estão passando. Smith diz “Sim,” acrescentando: 6. Há uma ovelha no campo. 2 Este exemplo está baseado em um apresentado por Keith Lehrer em “A Quarta Condição para o Conheci- mento: Uma Defesa,” The Review of Methaphysics 24 (1970): 122-8. Veja p. 125. 3 Um exemplo como este foi apresentado por Roderck Chisholm em Theory of Knowledge, 2ª. Ed. (Englewo- od Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1977), p. 105. Smith está justificado pelo que ele vê em pensar que (5) é verdadeira. (6) se segue de (5), assim ele também está justificado em crer em (6). Resulta que (5) é falsa. O que Smith vê é um cão sheep dog (ou a estátua de uma ovelha, ou qualquer outra coisa que se pareça perfeitamente com uma ovelha). Mas ocorre que (6) é verdadeira de qualquer maneira. Adiante no campo, mas fora de vista, há uma ovelha. Assim, Smith tem uma crença justificada em (6), e ela é verdadeira. Mas ele não a sabe. É apenas por sorte que ele está correto sobre (6) Deveria ser observado que os detalhes dos exemplos podem ser modificados para fortalecer a sustentação da crença de Smith na proposição falsa em cada caso. Por exem- plo, você pode acrescentar o que queira para sustentar a crença dele de que Nogot possui um Ford. Nogot pode mostrar a ele suas chaves com a insígnia de um Ford e vestir uma camiseta da Ford, etc. Não importa o quanto você acrescente ao caso, permanece possível que Nogot esteja fingindo ser o proprietário de um Ford. E uma vez que isto é possível, permanece possível construir um caso no qual seja coincidentemente verdadeiro que al- guém no escritório possua um Ford. Observações semelhantes se aplicam aos outros e- xemplos. Meramente requerer razões mais fortes para uma crença estar justificada não evi- tará as objeções. B. A Estrutura dos Contra-exemplos Os exemplos 3.1-3.3 partilham de uma estrutura comum. Em cada caso, Smith tem alguma evidência básica que sustenta fortemente alguma proposição. É o tipo de evidência que a Perspectiva Standard conta como boa o suficiente para o conhecimento. Ele crê nes- sa proposição e então tira uma outra conclusão dela. Em cada exemplo, a sentença nume- rada em ímpar descreve a proposição na qual Smith acredita: 1. Jones é o homem que ficará com o emprego e Jones tem dez moedas em seu bol- so. 3. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, possui um Ford. 5. Esse animal no campo é uma ovelha. As sentenças numeradas em par descrevem as conclusões que Smith tira do primei- ro passo: 2. O homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso. 4. Há alguém que trabalha no (meu) escritório de Smith que possui um Ford. (Há ao menos um dono de Ford no escritório de Smith.) 6. Há uma ovelha no campo. A proposição numerada em ímpar é falsa em cada caso. Ainda assim, dada a evi- dência, é extremamente razoável para Smith acreditar nela. Ela é uma crença justificada. E a conclusão final se segue logicamente do passo anterior. A conclusão final é, em cada ca- so, verdadeira. Com efeito, a conclusão final é verdadeira “por coincidência.” Simplesmen- te acontece que a pessoa que ficará com o emprego tem dez moedas, que há um dono de Ford no escritório, e que há uma ovelha no campo.Assim Smith tem razões muito boas pa- ra crer no primeiro passo e segue princípios lógicos perfeitamente bons ao derivar o segun- do passo. Logo, ele tem uma crença justificada verdadeira em cada uma das conclusões finais. Mas em cada caso a verdade dessa conclusão está desconectada da evidência origi- nal. Smith não tem conhecimento, ainda que ele tenha crenças verdadeiras justificadas. Estabelecer a estrutura dos exemplos ajuda a destacar dois princípios importantes sobre os quais eles repousam. Um princípio permite que a pessoa possa estar justificada em crer nas proposições numeradas em ímpar ainda que elas sejam falsas. Nós podemos for- mular este como o Princípio da Falsidade Justificada, ou (FJ): FJ. É possível para uma pessoa estar justificada em crer numa proposição falsa. O segundo princípio importante é o que diz que a segunda proposição está justifi- cada porque ela é deduzida da primeira. Este é o Princípio da Dedução Justificada, ou (DJ): DJ. Se S está justificado em crer em p, e p acarreta q, e S deduz q de p e aceita q como um resultado desta dedução, então S está justificado em crer em q. Se os três exemplos recém descritos são possíveis e estes dois princípios são verda- deiros, então a ATC está errada. Os exemplos podem ser estranhos, mas eles são claramen- te possíveis. Coisas como esta podem acontecer e acontecem. Os dois princípios parecem corretos. Logo, parece que nós temos um caso forte contra a ATC. Como nós veremos, en- tretanto, algumas pessoas têm tentado defender a ATC rejeitando os princípios. Para formular um exemplo no estilo-Gettier, então, primeiro se tem de encontrar um caso de crença falsa justificada. Se a (FJ) é correta, existem tais casos. Identifica-se en- tão alguma verdade que se segue logicamente dessa falsidade. Sempre haverá tais verda- des. O exemplo prossegue com o crente tendo deduzido esta verdade da crença falsa justi-
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