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Memórias Quase Póstumas de Machado de Assis

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Memórias
quase póstumas
de Machado
de Assis
qollless
FTD
Copyright O Álvaro Cardoso Gotnes, 2014
Todos os direitos reservados à
EDITORA FTD S.A.
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iconográfica Célia Rosa • Pesquisa iconográfica Etoile Shaw • Escâner c tratamento
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Da:nasceno
Alvaro Cardoso Gomes é professor universitário,
ensaísta, romancista e escritor para crianças e jovens.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gomes, Alvaro Cardoso
Memórias quase pósturnas de Machado de Assis / Álvaro
Cardoso Gornes; ilustrações Alexandre Camanho. — 1. ed. —
Sio Paulo : FTD, 2014.
Bibliografia
ISBN 978-85-322-9284-1
l. Assis, Machado de, 1839-1908 2. Romance biográfico
— Literatura juvenil I. Catnanho, Alexandre. II. Título.
14-00934
índices para catálogo sistemático:
l. Biografia romanceada : Literatura juvenil ()28.5
O grande Machado, nosso igual
Apresentação
TJIII caderno de memórias
Ao leitor
Capitulo Saldo de duas vidas
Olhos de cigana oblíqua e dissimulada
Capítulo 11 0 filho da lavadeira
Incidente com Hermenegildo
À velha casa
Anica doente
Os arrufos de Carola
Capítulo Um ajudante muito especial
São os homens animais?
O bruxo do Cosme Velho
Capítulo IV Ganhei um secretário'
Por favor, senhor diretor,
lavre o parecer
Diálogo com um leitor curioso
Capítulo v O crente e o descrente
• 11
• 15
• 18
• 20
• 33
. 46
. 52
• 55
• 57
• 62
• 64
• 70
• 73
• 76
. 81
• 84
94
• 112
capítulo VI Uma noite de autógrafos
Infância e juventude
capítulo De médico e de IOUCO
As virtudes de Carola
Crendices
A cartomante
Capítulo Cartas de amor
A difícil corte
FaustO e Mefistófeles
capít,no A teoria do tijolinho
A teoria do tijolinho II
Vaidade das vaidades
Capítulo x Ao pé do leito derradeiro
A vida sem Carolina
Um epílogo escrito
por Outra mão
Fotocronologia da vida
e da obra de Machado de Assis
Créditos das imagens
Bibliografia
• 114
• 119
. 128
• 143
• 146
• 148
• 160
• 168
• 171
• 180
• 190
• 198
• 206
• 211
• 213
• 218
• 232
• 233
O grande 
Machado r
nosso igual
ao poucos os escritores contemporâneos, no
Brasil, que têm uma obra tão vasta e diver-
sa quanto a de Alvaro Cardoso Gomes. Nisso,
curiosalllente, ele se irmana a Machado de Assis. Am-
bos são autores de romances, ensaios críticos, cro-
nicas, volurnes de poesia, contos etc. Quase não há
oênero que não tenham tentado — e realizado bem.
Nunia época em que a especialização literária marca
carreiras e pune a ousadia de autores, Alvaro Cardoso
G01nes continua falando as várias línguas do espírito
po em que pratica sua imensa variedade de opções.
Mas há, tannbém, outra questão que os aproxima,
Os dois autores cultivam a rabula, adoram a ironia,
abraçanl a paródia, incorporam em sua ficção o diá-
logo conl obras de matrizes diversas e não evitam
os géneros populares. A ilnaginação alegórica — que,
aliás, define boa parte da contribuição de ambos
6
nos convida a ver o mundo, tão familiar, como algo
estranho. E não é estranho que nosso Realismo li-
terário comece, justamente, por um romance conta-
do a partir da perspectiva do além-túmulo? MemÓrias
póstuntas de Brás Cubas (1881) é a prova de que, se a
literatura de qualquer tempo quiser permanecer fiel à
sua capacidade de invenção, ela não pode abandonar
a ousadia: dela colhemos os melhores frutos de uma
fantasia crítica.
Pois as Menlórias quase pÓstumas de Macllado de
Assis, a despeito de sua aparente simplicidade, é obra
de ousadia. Alvaro Cardoso Gomes nos conduz a um
Machado de Assis outonal; ele está no auge de sua
carreira e quase no fim da vida. Mesmo assim, não
é um Machado impaciente para com aqueles que o
acompanham. Muito pelo contrário. Quando a histó-
ria que vocês estão prestes a ler começa, encontramos
Machado revisando trechos importantes de Dom Cas-
illtlrro (1899) em companhia de Carolina, sua esposa,
de quem ele recebe repelões de consciência e estilo.
Uma relação afetuosa, de imensa cumplicidade entre
marido e esposa, marca essas Memórias quase póstumas
do início ao fim. Carola — tal como Machado costuma
7
chamar a esposa — acompanha nosso herói-escritor
enquanto viva e ainda lhe sobrevive, após sua morte
na saudade. No início do livro, ambos vão ao morro
do Livramento, berço — por assim dizer — do próprio
Machado, onde encontram o jovem Hermenegildo,
que servirá de secretário e nova companhia ao escri-
tor. E Hermenegildo quem lê, passa a limpo e prefa-
cia essas memórias de Machado. Ao mesmo tempo,
Hermenegildo é também leitor curioso, uma espécie
de jovem Machado, que se dedica a desvendar o sen-
tido dos textos lidos. Hermenegildo foi Machado — e
somos nós. Além dele, também farão companhia ao
velho autor Joana e Raimundo, nos serviços da casa,
e o padre Siqueira, nas partidas de xadrez. Temos, en-
tão, um cenário íntimo completo. Porém, ninguém
duvide de que Carola seja mesmo a presença mais
fundamental em cena.
Essas Memórias quase póstumas não evitam o tema
do preconceito nem as dificuldades de se lidar com
os colegas de profissão. Detalhes biográficos de Ma-
chado de Assis são intercalados com grande sutileza a
trechos de sua própria ficção, fazendo homem e obra
comparecerem sem receio nem monumentalização.
8
Hermenegildo discute com Machado suas opiniões
sobre a leitura dos contos e dos romances do autor,
ao mesmo tempo em que também se familiariza com
outros escritores do século XIX. Alvaro Cardoso Go-
mes, inventor de Hermenegildo, casa com grande as-
túcia fragmentos dos textos do próprio Machado com
a recriação de episódios importantes da vida do autor.
Vemos, por exemplo, instantâneos da formação
do escritor em sua projeção no jovem Hermenegildo,
o dificil noivado com Carolina, os rituais de contato
e socialização com outros escritores, além dos grandes
temas da ficção machadiana, tais como a vaidade e as
determinações de várias ordens, que, supostamente,
explicariam o comportamento humano. E, ao lon-
go do livro, Carola cobra do marido uma visão mais
atenta à mulher e uma perspectiva menos cáustica da
condição humana.
O resultado é uma história na qual o grande Ma-
chado de Assis se humaniza imensamente. Ele convive
com seus acompanhantes e com as próprias memórias
sem exigir deles nenhuma "chave"; ele tem prazer nas
conversas com Hermenegildo e nas partidas de xa-
drez com o padre Siqueira sem, tampouco, perder a
9
Nach.•Ao Aaotn
oportunidade de transtortná-la« instantes de cs-
clarecttncnto de tetnas cruci.11K. Neqsas Alentórias (lilase
Machado «e torna no«o igual, ouvindo
aparvntc Itupacléncta a própria eqpo«a, cultivan-
do anugos c lidando cotil a frágil questão da
Alvaro Cardoso Gonies convida a considerar
.Machado dc ASSIS tnais pró.xitno a nós, leitores, e
para a Itnaglnaçio
de «ituações Inurnanas é, ao
mesmo tctnpo. prazerosa. útil e delicada.
Afonérias quase pósrtonas dc Macllado de Assis é tí-
tu20 espcctalis«inao da coleção Meu amigo escritor, por-
que ',.rrs.a sobre aquele que, talvez, seja nosso autor
maior — pela vida que viveu, pelas realizações que al-
cançou, pelas obras que escreveu. E essa importante
históna lemos com grande proveito e muita emoção.
José Luiz Passos
Professor titular de bteraturas brasileira e portuguesa na
Unnrrsidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA). Entre
outros livros, é autor do estudo Machado de Assis: o ropnance
com m soas (Edusp, e do romance O sonâmbulo amador
(Alfaguara, 2012), vencedor do Grande Prémio Portugal
Telecom de Literaturx
Apresentaçã0
tzcr que Machado de Assis é o tnaior
csctltor brasileiro dc todos os tempos
constitut lugar-cotnum. Há muito
tcnzpo. os ma:s Itnportantcs críticos do Brasil e do
CXtct20t vêm chamando a atenção para seu excep-
ctonal talento. Apesar disso, há quem tenha certo
prvconcctto contra ele, acusando-o de dificil, com-
plexo, por contar suas histórias de um modo
difervnte do usual. De fato: Machado, utilizando-se
da alusão e recusando-se a dizer diretamente as coi-
sas, procura, por meio de imagens sutis, sugerir algo
ao leitor que não poderia ser dito de outro modo.
Como é o caso da descrição que faz de Capitu, a
imortal figura feminina do romance Dom Casmurro.
Seu retrato é quase todo sintetizado nos olhos, ima-
ginados como "de cigana oblíqua e dissimulada"
e "de ressaca". Ora, isso nem sempre é assimilado
por um leitor pouco afeito a sutilezas e que, por
isso mesmo, prefere descrições pormenorizadas dos
11
Apresentação
izer que Machado de Assis é o maior
escritor brasileiro de todos os tempos
já constitui lugar-comum. Há muito
tempo, os mais importantes críticos do Brasil e do
exterior vêm chamando a atenção para seu excep-
cional talento. Apesar disso, há quem tenha certo
preconceito contra ele, acusando-o de dificil, com-
plexo, talvez por contar suas histórias de um modo
diferente do usual. De fato: Machado, utilizando-se
da alusão e recusando-se a dizer diretamente as coi-
sas, procura, por meio de imagens sutis, sugerir algo
ao leitor que não poderia ser dito de outro modo.
Como é o caso da descrição que faz de Capitu, a
imortal figura feminina do romance Dom Casmurro.
Seu retrato é quase todo sintetizado nos olhos, ima-
ginados como "de cigana oblíqua e dissimulada"
e "de ressaca". Ora, isso nem sempre é assimilado
por um leitor pouco afeito a sutilezas e que, por
isso mesmo, prefere descrições pormenorizadas dos
11
ila
(Ic Icv;ı
Maç cjii a (Icfij)iü ııjiı car;ltcv,
(Ic (s por Ilına gaııçl;lvcl ora
C Machaçlo
ji(i
LİZ (la vida para tornar Itıclhor ainçl;ı
cıc tcııjpcro cxUra na ıı;ırra-
lıvj' clıcga a Scr corrosivo,
por cxu'liiplo, A4('1116rias pöslıı„
nj(1S de İhlâs C CIII *CII coııto ' 'Ç) Alicnista”,
(Qııcıji Icınbr;ı da beni-hıınıorada frasc de
14r;1s Çiııl»a«, ao (Icfinir o G'i scvı caso amoroso
conı a anjantc: "Marccla anıoıı-ıjıc durantc
zc c onzc contos dc rû•is”. Mas tanıbûm
possİvcl ver cnj Maçlıado tom ıncnos âcido no
cıııc rcvcla a perda da İnocöııcia dc jovcns,
coıııo açontccc nos contos "Uns braços” c "Missa
do galo ş ', c ıııcsnjo no romancc Dom Casmurro. Mas,
tant() ınıııı caso coıjıo outro, Maclıado visa a fa-
zer ıınıa crİtica h ganância dos homcns, a um mundo
12
açao
onde os mais fracos são vítirnas dos ruais tortes. "Ao
vencido, ódio ou cotupai.xào; ao vencedor, as bata-
tas" é a verdade que enlana da filosofia do Flutua-
nitas de Quincas Borba, pertneando seus livros ruais
instigantes.
No entanto Machado de Assis nio nos charna
a atenção tão só por sua excelência como escritor.
Há um aspecto muito importante nele que tatu-
bém me levou a pensar em escrever esta biografia
romanceada: a sua vida. E bem verdade que nada há
nela de heroico, de grandioso. Muito pelo contrá-
rio: Machado foi um homem pacato, funcionário
público exemplar, bem casado, respeitável burguês.
Mas talvez, por isso mesmo, sua vida seja tão atra-
ente e possa servir de exemplo para qualquer jo-
vem. Machado de Assis era mulato (o pai negro e a
mãe branca), viveu numa sociedade escravocrata e
preconceituosa, era pobre e tinha a saúde frágil, so-
frendo de gagueira e epilepsia desde a infincia até a
velhice. Com a morte do pai, teve que ajudar a ma-
drasta (perdera a mãe bem cedo), vendendo doces
na rua. Apesar de todos esses problemas, tornou-se
um leitor voraz, aprendeu francês sem dificuldades
13
MezOrias quase póstumas de Machado de Assis
(entre 15 e 16 anos), e, não demorou muito, veio
a trabalhar na imprensa, começando a publicar seus
versos. Em alguns anos de frutuoso trabalho, produ-
ziu mais de duzentos contos, oito romances, livros
de poesia, peças de teatro, traduções, crónicas e ar-
tigos de crítica literária, tornando-se o escritor mais
famoso do seu tempo. Machado de Assis, por tudo o
que passou, é mesmo um verdadeiro fenómeno, um
milagre da natureza. Com seu talento invulgar e sua
vontade férrea, é um homem a ser seguido e imitado.
Tanto na obra, quanto na vida.
Alvaro Cardoso Gomes
14
Um caderno de
memórias
ra em setembro, na primavera. A charnado do Sr.
Machado, fui vê-lo em seu quarto, onde ele, rnuito
abatido, repousava. Tinha a pele macilenta, respira-
va com dificuldade, os olhos fundos, os lábios cheios de
feridas. Sentei-me num banquinho ao lado da carna, e
ele me disse:
— Meu caro Hermenegildo, queria lhe pedir urn gran-
de favor...
0 que eu não faria pelo Sr. Machado? Devo tudo o
que sou hoje ao fato de ele ter me acolhido quando eu
não tinha ninguém para cuidar de mim. Minha mãe havia
falecido, e meu padrasto era um homem cruel, que me
maltratava. Com sua natural bondade, o Sr. Machado e
dona Carolina — que Deus a tenha - adotararn-rne, corno
se eu fosse o filho que não puderam ter.
— Às ordens, Sr. Machado.
Apontou para algo sobre a cómoda.
— Faça a gentileza de pegar aquele caderno.
15
Era um caderno pautado, desses co-
muns, usados nas escolas.
- Meu caro, registrei nele as
nhas memórias. Como bem sabe, meu
cursivol não é dos melhores e piorou
mais nos últimos tempos. Temo que não
me entendam... — abriu um sorriso triste
e completou: - Quanto a você, já está
mais que habituado a decifrar meus
hieróglifos...
Fez uma pequena pausa e prosse-
guiu:
— 0 favor que lhe peço é que passe à
limpo minhas anotações. Sobre a escriva-
ninha do escritório, encontrará outro ca-
derno destes, ainda sem uso, que poderá
levar consigo.
— 0 Sr. Machado tem alguma pressa?
Algum prazo?
— Não sei se me cabe agora ter al-
guma pressa ou prazos. Portanto, não se
preocupe com isso. Redija devagar, 
com
1 Letra manuscrita. seu capricho usual.
16
Um caderno de morn6ria:g
Como ele se sentia muito cansado, deixei-o. Em
casa, acomodei-me e abri o caderno, cuja primeira pá-
gina apresentava o seguinte título: Memórias quase
póstumas de Machado de Assis. Pus-me, então, a ler as
memórias dele. E gostei tanto que deixei para depois a
tarefa de passá-las a limpo. Assim atravessei a noite, en-
tretido com a leitura do caderno.
Eis o que eu li.
17
Ao leitor
ou início a estas minhas memórias dizendo
que resolvi escrevê-las não só para tornar
suportável a minha solidão, acentuada desde
a morte de Carolina, mas também porque sinto que,
dentro em breve, irei morrer. A partir dos primeiros
meses deste ano de 1908, comecei a me sentir muito
mal, a ponto de ter que pedir mais uma licença no Mi-
nistério da Viação, onde trabalho. Com a saúde abalada,
tinha na boca
feridas que doíam muito, impedindo-
-me de comer alimentos sólidos, e uma grave infec-
ção intestinal. Sem contar que meus ataques epiléticos
vinham sendo cada vez mais frequentes. Fui consultar
o doutor Miguel Couto, e ele, com muito tato e deli-
cadeza, acabou por me desenganar. Pensei então que,
para esquecer os meus males, valeria a pena deixar re-
gistrados neste caderno alguns fatos relevantes, e outros
nem tanto, de minha vida.
Depois que tomei essa decisão, vim a descobrir
que, ao me propor a contar esta história, quando já
contava com 69 anos, chegava, em parte, a imitar o
18
personagem do meu romance AleniÓrias póstutnas de
Brás Cubas. Digo "em parte", porque ambos contamos
nossa história começando pelo fim, mas Brás Cubas, ao
fazer isso, estava morto, e eu, ainda que muito comba-
lido, estou vivo. Desse modo, narrando sua vida depois
de falecer, meu personagem acabou se tornando um
"defunto autor", e eu, de minha parte, acabarei por Ilie
tornar um "autor quase defunto", coisa mais ou menos
comum, em se tratando de literatura.
Devo confessar também que resolvi compor essa
história do modo mais prazeroso possível, escrevendo
só quando me apetecesse, sem ao menos pensar num
enredo ou numa possível ordem dos capítulos, deixan-
do que os acontecimentos viessem do fundo da me-
mória e se impusessem a mim quando e como bem
entendessem. Sendo assim, não se surpreenda quem se
mais espera da vida, com as idas e vindas que a histó-
ria oferecerá.A ordenação dela, portanto, deverá contar
com a benevolência de meus presumíveis leitores.
Antes, porém, de entrar em alguns fatos desta exis-
tência que vai se findando aos poucos, gostaria de com-
parar a minha futura morte com a de Brás Cubas. E o
que virá expresso no capítulo I destas minhas memórias.
19
Capítulo I
duas
vidas
caro leitor, que já deve
ter lido Ji/cntórias pÓstumas
de Brás Cubas, corn certe-
za se recordará do prirneiro capítulo:
Algum tempo hesitei ge devia
abrir «atag polo princípio
ou pelo tia, isto poria em pri-
moiro lugar 0 nagciacnto ou a mi-
nha morte. Suposto o ugo vulgar seja
começar pelo nasciaento, duas consi-
deraç0ee levaras a adotar diferen-
te aétodot a pri:neira é gae eu não sou
propriamente u.' aütor defunto, mas um
defunto autor, para quem a ca:npa foi
Outro berço; a segunda é gue o escrito
ficaria galante e mais 
novo.
Noi8égt que t.azbé:n contou a sua 
norte,
não a pôs no Introito, nas 
no cabo: di-
ferença radicai entre este livro 
e o
Pentateuco:.
Dito isto, expirei às duas 
horas da
tarde de una sexta-feira do mês 
de agosto
de 1869, na minha bela chácara de 
Catan-
bi. rinha uns sessenta e quatro 
anos, ri-
jos e prósperos, era solteiro, possuía
cerca de trezentos contos e fui acon-
panhado ao cemitério por onze amigos,
2 Cinco dos primeiros
livros do Antigo Testa-
mento Génesis, Exo-
do, Levítico, Números
e Deuteronómio.
21
O
o
'O
Undiscevered country:
em inglês, país desco-
nhecido, inexplorado; é
um eufemismo para a
morte. Hamlet é per-
sonagem da tragédia
do mesmo nome, da
autoria do dramaturgo
inglês William Shakes-
peare (1564-1616), au-
tor também de Ron:eu
e Julieta, Macbeth, entre
outras obras.
22
Onze amigos! Verdade é que não 
hou-
ve cartas nem anúncios. Acresce
que
chovia - peneirava - uma 
chuvinha
miúda, triste e constante, tão cons-
tante e tão triste, que levou 
da-
queles fiéis da última hora a interca-
lar esta engenhosa ideia no discurso
que proferiu à beira de minha cova:
"Vós, que o conhecestes, meus se-
nhores, vós podeis dizer comigo que
a natureza parece estar chorando a
perda irreparável de dos mais be-
10s caracteres que têm honrado a
manidade. Este ar sombrio, estas go-
tas do céu, aquelas nuvens escuras que
cobrem o azul como um crepe funéreo,
tudo isso é a dor crua e má que lhe rói
à natureza as mais íntimas entranhas;
ilustre finado" .
Bom e fiel amigo! Não, não me ar-
rependo das vinte apólices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei à
cláusula dos meus dias; foi assim 
que
me encaminhei para o 
undiscovered
country de Hamlet 3 , sem as 
ânsias nelll
as dúvidas do moço 
príncipe, nas pau-
sado e trôpego, como 
quem se retira
tarde do espetáculo. 
Tarde e aborre-
cido. Viram-me ir umas nove ou dez pes-
soas, entre elas três senhoras, minha
irmã Sabina, casada com 0 Cotrim, a fi-
lha - um lírio-do-vale, - e4 . Tenham
paciência! daqui a pouco lhes direi
quem era a terceira senhora. Conten-
tem-se de saber que essa anónima, ain-
da que não parenta, padeceu mais do que
as parentas. É verdade, padeceu mais .
Não digo que se carpisse, não digo que
se deixasse rolar pelo chão, convul-
sa. Nen o meu óbito era coisa altamente
dramática. • • Um solteirão que expira
aos sessenta e quatro anos, não pare-
ce gue reúna em si todos os elementos
de una tragédia. E dado que si.m, o que
menos convinha a essa anónima era apa-
rentá-lo. De pé, à cabeceira da cama,
com os olhos estúpidos, a boca entrea-
berta, a triste senhora mal podia crer
na minha extinção •
— Morto! morto! dizia consigo.
E a imaginação dela, corno as cego-
nhas que um ilustre viajante viu des-
ferirem o voo desde o Iliss0 5 às ribas
africanas, sen embargo das ruínas e dos
tempos - a imaginação dessa senhora tam-
bén voou por sobre os destroços presen-
tes até às ribas de uma África juvenil.. •
Saldo de dua:g vidas
4 Nas citações das obras
de Machado de Assis,
optou-se por atualizar
a ortografia e a pon-
tuação, quando tiradas
diretamente das publi-
cações originais.
5 Ilisso é um pequeno
rio da Ática, região da
Grécia antiga.
23
Memórias quase póstumas de Machado 
de Assis
ASSIS, Machado de.
Memórias póstutnas de
Brás Cubas. São Paulo:
24
Deixá-la ir; lá iremos rnais tarde;
lá iremos quando eu rae restituir aos
primeiros anos. Agora, quero morrer
tranquilamente, metodicamente, ou -
vindo os soluços das damas, as fa-
1as baixas dos homens, a chuva que
tamborila nas folhas de tinhorão da
chácara, e o som estrídulo de una
navalha que um amolador está afian-
do lá fora, à porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orquestra da mor-
te foi muito menos triste do que po-
dia parecer. De certo ponto em dian-
te chegou a ser deliciosa. A vida
estrebuchava-me no peito, com uns
ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-
-me a consciência, eu descia à imo-
bilidade física e moral, e o cor-
po fazia-se-me planta, e pedra, e
lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se
lhe disser que foi menos a pneumo-
nia, do que uma ideia grandiosa e
útil, a causa da minha morte, é 
pos-
sível que o leitor me não creia, 
e
todavia é verdade. Vou expor-lhe
sumariamente o caso. Julgue-o 
por
si mesmo
De maneira diversa de Brás Cubas, quando
morrer, de modo muito provável, com meus 69
anos, não diria que estes seria-n "rijos¯ e me-
nos "prósperos".
Cornojí disse, ando bem doente, e o maco- ao
me desenganar, deu-me um prazo de cinco ou seis
meses de vida, para que vá desta para a meLhor ou
para a pior, dependendo do ponto de vista.
Quanto à prosperidade, ela será muito rela:i-
va- Morrerei remediado, sem fortuna. Ao contrá-
rio de meu personagem, se não deixarei dinheiro
aos herdeiros, deixarei, porém, o legado de meus
escritos, o que não é coisa de pouca monta. Tam-
bém diferente do solteirão Brás Cubas, que era re-
fratário ao casamento, fui muito bem casado com
Carolina.
E, quando morrer, quase com certeza. serei
acompanhado até o cemitério nio pr apenas onze
pessoas, como ele, mas por um grande
numero de
amigos, alguns parentes e admiradores. Segundo
nhas determinações, enterrar-me-ão no jazigo per-
pétuo 1359, no cemitério São João Batista, onde já
repousa Carolina.
25
pp
O Mais ainda: Brás Cubas procurou
cd
o de forma extravagante, inculpar um
emplast07 como o responsável pela sua
morte, como disse nos capítulos II e V
de suas memórias:
Q)
Cora efeito, urn dia de manhã, estan-
do a passear na chácara, pendurou-se-
-me urna ideia no trapézio que eu tinha
no cérebro. Uma vez pendurada, entrou
a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arroj adas cabriolas de volatins, qtüe
é possível crer. Eu deixei-me estar a
contemplá-la. Súbito, deu um grande
salto, estendeu os braços e as pernas,
até tomar a forma de X: decifra-me
Ou devoro-te .
Essa ideia era nada menos que a in-
venção de um medicamento sublime,
emplasto anti-hipocondríaco, desti-
nado a aliviar a nossa melancólica hu-
manidade.
7 Medicamento que, ao
calor, amolece e adere
à pele.
8 Andarilho.
26
Senão quando, estando 
eu ocupado
em preparar e apurar a 
minha 
invenção,
recebi em cheio golpe do
logo, e aio tratei, Tinha o
to no cérebro; trazia eomiqo
fixa dos doidos e doe Via-mo,
ao longe, ascender do chão dag
e renontar ao como uma águia
tal, e não é diante do tao exeoloo
petáculo que u.' homem podo sentir a dor
que o punge. No outro dia egtava pior;
tratei-no enfim, nag incomplotamon•
te, gea sétodo, nem cuidado, nem por-
gietência; tal toi a origem do mal que
ae trouxe à eternidade. Sabem já que
morri sexta-feira, dia aziago, e
creio haver provado que foi a minha in•
vençáo que ne matou.
A minha morte, pelo contrário,
não se deverá a emplasto algurn, Mor-
rerei, como se sabe, em consequência
das feridas na boca e de infecção intes-
tinal, que vinha me afctando já há um
longo tempo.
Como estou sozinho, no fina da
vida e sofrendo muito, vejo a morte
agora, e creio também que a verei mais
ASSIS, op, cite,p
24,
27
Memórias quase póstumas 
de Machado de Assis
10 Em latim, "Cur non
ut plenus vitae conviva
recedis, / aequo animoque
capis securam, stulte, quie-
tem?", Lucrécio, poeta
latino (98 a.C-55 a.C.),
Da natureza, III, 938-9,
In: BARELLI, Ettore;
PENNACCHIETTI,
Sérgio. Dicionário das ci-
tações. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1 , p. 362.
28
tarde, como um bálsamo. Afinal, aos
mortos, só cabe o descanso, ou, como
melhor diria Lucrécio:
Por que não te retiras da vida cono
un conensa2 já satisfeito
ou te concedes serenamente, ó tolo
tranquilo repouso? 10
Assim, quando chegar o momen-
to azado, deixarei a vida sem muitas la-
mentações, ao contrário de Brás Cubas,
que queria continuar vivendo a todo
custo, como ele revela no seu delírio do
capítulo VII:
- Não, respondi; nem quero enten-
der-te; tu és absurda, tu és uma fábu-
Ia. Estou sonhando, decerto, ou, se é
verdade que enlouqueci, tu não passas
de una concepção de alienado, isto é,
una coisa vã, que a razão ausente não
pode reger nem palpar. Natureza, tu? a
Natureza que eu conheço é só mãe e não
inimiga; não faz da vida um flagelo,
nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o
sepulcro. E por que Pandora?
— Porque levo na ninha bolsa os bens e os males ,
o
e o maior de todos, a esperança, consolação dos ho-
nens. Trenes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— creio; eu não sou somente a vida; sou também
a norte, e til estás prestes a devolver-ne o gue te
enprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosi-
dade do nada .
Quando esta palavra ecoou, cono trovão, 2a-
guele inenso vale, afigurou-se-me gue era o último
son gue chegava a meus ouvidos; sentir a
decomposição súbita de min mesmo. Então, encarei-a
con olhos súplices, e pedi mais alguns anos .
— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu
mais alguns instantes de vida? Para devorar e se-
res devorado depois? Não estás farto do espetáculo
e da luta? Conheces de sobejo tudo o gue eu te de-
parei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do
dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite,
Os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior bene-
fício das ninhas mãos. Que mais queres tu, sublime
idiota?
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me
pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se
eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma,
matando-me ?
29
11 Alegre, feliz.
12 ASSIS, op. cit., p. 32-
33.
30
- Porque já não preciso de ti.
importa ao tempo o minuto que passa
mas o minuto gue vem. O minuto gue ven
é forte, jucundo", supõe trazer en
a eternidade, e traz a morte, e
ce como o outro, nas 0 tempo subsis-
te. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísno
não tenho outra lei. Egoísmo, conse:-
vação. A onça mata o novilho porque o
raciocínio da onça é que ela deve
ver, e se o novilho é tenro, tanto ne-
lhor: eis o estatuto universal . Sobe
e Olha 
12
Nunca tive desses delírios em
vida, a não ser os delírios que inven-
tei para meus contos e romances, e
espero que, ao fechar os olhos, possa
descansar, sem ser importunado por
fantasmagorias. E, caso tivesse opor-
tunidade de encontrar a figura da
Natureza, ao contrário de Brás Cubas,
não lhe imploraria nem mais um liii-
nuto de vida. Não, não faria isso
não ia querer ser chamado de "idiota"
Saldo de duas vidas
nenl receber a lição de que a vida, de acordo com
o estatuto universal, é uma luta em que alguém
devora o próxin10, para ser devorado depois... E
tnuito Inenos ia querer a consolação ofertada pela
mãe Natureza: "Conheces de sobejo tudo o que
eu te deparei Ilienos torpe ou menos aflitivo: o
alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da
noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior
beneficio das Illinhas mãos". Recusaria o consolo
e talvez lhe dissesse apenas: "Afasta-te de mim, ó
infausta criatura! Deixa-me, que nunca precisei de
ti e não será agora que irei implorar-te o que quer
que seja".
Queria só que meu corpo repousasse em paz,
ao lado de minha querida Carolina...
Quanto a estas minhas memórias, o leitor verá
que eu, apesar de pobre, de saúde frágil e, ainda por
cima, apesar de ser mulato, nascido numa sociedade
escravocrata, consegui dar rumo à vida. Fui sempre
um funcionário exemplar e um dedicado esposo
para Carolina. E, como legado, deixarei para a pos-
teridade romances, contos, crônicas, poesias e peças
de teatro, que os leitores não se cansarão de louvar.
31
Expressio itahana
que significa "ócio pra-
zeroso .
ASSIS, op. cit., p.
32
Mornado 'Io AaaJn
Já Brás Cuba«, apesar dc rico, saudável e
branco, diqsipou a existência num sem-
dolcefar nicnt('13, deixando, depois da
ele Ilic•stno chegou a confessar:
Este último capítulo é todo de
negativas. Não alcancei a celebri-
dade do emplasto, não fui :ninistzo
não fui califa, não conheci o casa-
mento. Verdade é que, ao lado dessac
faltas, coube-me a boa fortuna de
não comprar o pão com o suor do
rosto. Mais; não padeci a morte de
D. Plácida, nem a semidemência do
Quincas Borba. Somadas unas coisas
e outras, qualquer pessoa imagina-
rá que não houve míngua nen sobra,
e conseguintemente que saí quite
com a vida. E imaginará mal; por-
que ao chegar a este outro lado do
mistério, achei-me com um pequeno
saldo, que é a derradeira negativa
deste capítulo de negativas: - lüao
tive filhos, não transmiti a nenhu-
ma criatura o legado da nossa misé-
ria. 
14
Mas chega de delongas vamos à história. E dou
início a ela com uma cena que muito me apraz lembrar.
Nela, estava ainda bem de saúde, fazendo o que mais
aprecio, que é escrever. E junto a mim encontrava-se
Carolina, pronta a me assistir quando dela precisase.
Olhos de cigana oblíqua e dissimulada
Eu tinha os olhos postos na rua, entre os coqueiros
do meu jardim eram oito horas da manhã. Quem me
visse, à janela de minha casa em Cosme Velho, cuidaria
que estivesse olhando para o movimento dos veículos e
passantes; mas, em verdade, vos digo que pensava em ou-
tra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era eu,
muitos anos atrás? Um vendedor de balas e, depois, tipó-
grafo. Que sou agora? Funcionário de um ministério e
escritor. Voltei os olhos, contemplando o escritório. Os
livros nas estantes, a escrivaninha com seu tinteiro de pra-
ta -- presente de um amigo —, blocos de papel e canetas,
o abajur de bronze — cuja base era uma estátua de Dia-
na, tendo aos pés uma corça —, meu confortável canapé,
onde costumava me sentar para ler — tudo me dava a sen-
sação de sossego, comodidade, convidando ao trabalho.
33
Eu vestia uma mupa leve por conta do intenso
calor. As cigarras cantavalli enl coro, naquele sába-
s: do. Joana, a nossa cozinheira, costutnava dizer que
"cimrra cantando é sinal de chuva chegando". Seria
bom que chovesse, que urna canícula assilll não
fazia bem aos nervos. Para nneu alívio, unna prinla-
vera, debruçada sobre urna das janelas, dava sonibra,
refrescando o escritório. Deixei a janela e voltei a
me sentar diante da mesa, sobre a qual as folhas de
papel manuscritas e a pena mergulhada na tinta me
aguardavam.
Estava inspirado naquele dia e escrevia com ra-
pidez. Meu romance prometia, os personagens ga-
nhando um perfil definido, e os fatos do enredo se
concatenando com solidez. Assim, escrevi até me
doer a mão. Parei para descansar um pouco, tirei os
óculos e limpei as lentes com um lenço. Repondo-
frase, e reescrevi o parágrafo que começava por "Fui
devagar..." e não me parecia nada bem. Uma hora
depois, satisfeito com o resultado, passei todo a limpo
o capítulo XXXII, que intitulara "Olhos de ressaca"
tarefa que me exigiu umas duas horas de trabalho:
34
Tudo curIogJdades
ao Catoo houver porém, no qual
náo no ou ensinou, on
como É o
contarei no Olitro capítulo. dl-
roi somente pargoadors alguns diaa
do com o agregado, fui ver a mi-
nha amiqa; oram dez horas da manhã.
D. Fortunata, que otgeava no quintal,
nem esporou quo ou lhe perguntasse
pola filha.
- Fat3tá na sala penteando o cabe-
lot disse-mo; vá devagarzinho para lhe
pregar um susto.
Fui devaqar, mas ou o pé ou o es-
polho traiu-me. Este pode ger que não
fosse; era um espelhinho do pataca"
(perdoai a barateza), comprado a um
mascate italiano, moldura tosca, ar-
golinha de latão, pendente da pare-
det entre as duas janelas. Se não foi
ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade
é que, apenas entrei na gala, 
pente,
cabelos, toda ela voou pelos ares, e
só lhe ouvi esta pergunta:
- Há alguma coisa?
- Não há nada, respondi; vim ver
você antes que o Padre Cabral chegue P' Moeda de pouco valor.
para a lição. Como passou a noite?
35
thJIÇ;?
tala?
logo de
alto e por um
ria, primeiro 'dor go
- tem, tftm, interrompeu Câpit.v;,
tooso pteelao alguém para vencer j",
lho falaria, Eu nem Jog6
influir tanto; acho Cará todo,
você realmenve náo quer ser padre,
cangar? , , , Ele ó ôt«ndido; porém, . ,
loto! Você teimo com ele, Bentinho.
- Teimo; hoje mesmo de falar.
- Voc6 jura?
- Juro! Deixo ver on olhos, Capita,
Tinha-mo lembrado definição Jozé
dera doleot "01h00 do cigana oblíqua e digai:tuiada".
Eu não gabia o quo era oblíqua, diggi.nalad¿r
bio, e queria ver ge podiam chanar asgi:n.
doixou-oo fitar e examinar, perguntava o
era, oe nunca os vira; eu nada achei eztraordinárro;
a cor o a doçura eram minhas conhecidas. h dezora da
contemplação creio que lhe den outra ideia do
intento; imaginou quo era um pretexto para mirá-lo:
mais do perto, com 03 mous Olhotl longos, constantes,
36
enfiados neles, e a isto atribuo gue
entrassem a ficar crescidos, cres-
cidos e sombrios, com tal expressão
que.
Retórica dos namorados, dá-me uma
conparação exata e poética para dizer
o que fora:n aqueles olhos de Capitu.
Não me acode imagem capaz de dizer,
sen quebra da dignidade do estilo, 0
que eles foran e me fizeram. Olhos de
ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá
ideia daquela feição nova. Traziam não
sei gue fluido misterioso e enérgico,
'.=a força gue arrastava para dentro,
cozo a vaga gue se retira da praia,
nos dias de ressaca. Para não ser ar-
rastado, agarrei-me às outras partes
vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros; mas
tão depressa buscava as pupilas, a
onda gue saía delas vinha crescendo,
cava e escura, ameaçando envolver-me 
,
puxar-me e tragar-me. Quantos minu-
tos gastan0s naquele jogo? Só os re-
16gios do céu terão marcado esse tempo
infinito e breve. A eternidade tern as
suas pêndulas 16 ; nem por não acabar
nunca deixa de querer saber a dura-
ção das felicidades e dos suplícios.
00
O
16 0 mesmo que o pên-
dulo de um relógio.
37
o,
l)ante Alighieri (1265-
1321), poeta Italiano,
autor de A divina co-
média.
ASSIS, Machado de.
Dom Casmurro. 5. ed.
São Paulo: FTD, 1999,
P. 63-65.
8
Há de dobrar 
o gozo aos bem-aventura-
dos do céu conhecer 
a soma dos tormon-
tos que já terão 
padecido no infor-
no os seus inimigos; 
assim também a
quantidade das delícias que terão
zado no céu os seus desafetos aumen-
tará as dores aos condenados do in-
ferno. Este outro suplício escapou ao
divino Dantet7; nas eu não estou aqui
para e:nendar poetas. Estou para con-
tar que, ao cabo de um tempo não mar-
cado, agarrei-me definitivamente aos
cabelos de Capitu, nas então con as
nãos, e disse-lhe — para dizer alguma
coisa - que era capaz de os pentear,
se quisesse.
- Você?
- Eu mesmo.
- Vai embaraçar-me o cabelo todo,
isso sim.
-- Se embaraçar, você desembaraça
depois .
- Vamos ver.
Voltei a ler o texto. Estava tão entre-
tido com a leitura que não me dei conta
da entrada de Carolina no escritório.
Ca Ido
De maneira que estremeci, quando ela pôs o braço em
torno a meus ombros e disse:
— Então, como vai este Dom Casnturro?
—Vai bem, ao que parece respondi, erguendo o
rosto. --- Estava escrevendo sobre a atração que Capitu
exerce sobre Bentinho...
— Posso ver? — perguntou-me ela, cheia de curio-
sidade.
— Por que não, Carola?
Passei-lhe o manuscrito. Ela foi sentar-se numa
cadeira em frente à mesa e começou a ler as folhas
de papel que ainda cheiravam à tinta. Como era seu
costume, enrolava uma mecha de seus cabelos cotil
um dedo.
Depois de algum tempo, não podendo conter a
curiosidade, perguntei:
E então?
Sempre tive em conta os juízos de Carolina. E, ou-
vir e acatar a opinião dela, como nunca deixara de fazer,
era fundamental para o progresso de Dom Casmurro.
— Um instantinho, meu caro...
Ao terminar de ler, ela pôs as folhas sobre o colo
e disse, fingindo que me admoestava:
39
•mórias quase póstumas de 
Machado de Agaio
19 Apelido pelo qual
Carolina tratava o es-
critor.
20 Personagem de Sha-
kespeare, da peça de
mesmo nome, que, in-
citado pela mulher,
mata seu benfeitor para
lhe roubar o trono.
40
Mas que ideia você teni (Ias
lheres, hein, Quincas 19
--- Como assine
"Olhos de cigana oblíqua c dis-
simulada"... Ora, então sorno«
dissimuladas, fingidas?
-- Como você deve ter percebi-
do j— comecei a retrucar —, não fui eu
quem disse isso. Quem o disse foi o
José Dias.
— Mas foi você queni criou o José
Dias. Portanto...
— Carola, não acredito que você
esteja falando sério. Fosse assim re-
fleti um pouco, para depois cornplctar:
— Shakespeare, por exemplo,
seria o cul-
pado pelos assassinatos que Macbetlf()
comete. Eu não assun10 tudo o que o
José Dias pensa a respeito de Capitu...
Carolina levantou-se, aproxirnou-
-se e disse, com um ar provocativo,
como se não estivesse de todo conven-
cida dos meus argumentos:
--- E você acha então (IVIC
I)élll tenho esses olhos dc cigana oblí-
qua e csqes olhos de res-
«aca que tentaria l)) para o
Não pucle resistir à graça dc Ca-
rolina. Tomei-a pela cintura e a fiz
aproxitnar-se njais de Disse-lhe
conl afeto:
De 1110do algujn, querida, jnuito
pelo contrário...
E, fechando os olhos, recitei
versoq que havia connposto:
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor.
21
Carolina deu Vilna risada e beijou-
-Ine a face:
Mas que horneln Inais galante!
Saiu-se jnuito bem, depois do que dis-
se das nmlheres...
Trecho do poctna
de Machado de Assis
"l,ivros e flores", pu-
blicado pela primeira
vez Falenas. Rio de
Janeiro: B. L. Garnier,
1870, Disponível Cin:
<www.brasiliana.u«p.
br/bbd/handle/ 1918/
njode/lup>. Acesso
coo.' 24 dez. 2013,
41
Carola. Por 
um lado, quem o diz é
Pias e, 
por 
outro, 
não se diz 
no texto que
todas as 
mulheres são 
desse modo. Quem é assim
Corno era 
uni pouco 
teirnosa, Carolina in-
sistiu:
Lembra-me de 
que, em Meniórias póstumas
você disse 
uma coisa 
engraçada, mas bastante provo_
cativa, sobre 
uma mulher...
Qual coisa?
— Que Marcela 
amou Brás Cubas durante .
ela hesitou, como 
que tentando se lembrar da pas-
sagem.
"quinze meses e onze contos de réis"
completei.
— Está aí! As mulheres, em seus romances, ora
são fingidas, ora interesseiras. Não é o que também
acontece com a mulher do Palha, a Sofia, que seduz
o pobre do Quincas Borba com seus lindos olhos,
braços e colo, só para explorá-lo?
Balancei a cabeça, e ela tornou a cair na risada:
--- Não dê importância, não, Quincas, estou amangar contigo.
v i 'lao
Carolina costutnava ser sisuda. Não no papel
de Carola, quando, Ilitlitas vezes, gostava Inestno de
manoar comigo. Mas nunca Ine tirava do sério por-
que tinha sua graça. Lancei os olhos para as folhas
de papel enl posse dela e perguntei, ainda cheio de
curiosidade:
NIas, fora essa censura aos olhos da tninha ciga-
na, o que achou do que escrevi, Carola?
Carolina voltou a olhar para as páginas. Depois
de se demorar refletindo uni pouco, respondeu da-
quele seu jeito circunspeto:
Está Inesmo ótimo o capítulo! Parece que es-
tou a ver a cena de tão viva. E que atraçào que a rapa-
riga exerce sobre ele. Urna atração fatal, que o arrasta
como uma onda... O melhor etn seu romance é que
ele, não sabendo como definir o que há nos olhos da
Capitu, usa de uma metáfora tão bonita... Digna de
um grande poeta.
Carolina buscou um trecho com o dedo e, en-
contrando-o, pôs-se a lê-lo enl voz alta:
Retórica dos namorados, dá-me uma compara-
ção exata e poética para dizer o que foram aqueles
olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer,
43
,uemórias quase 
póstumas do Machado do
sem quebra da dignidade do 
ogtüi.lo
que eles foralll e mo fizeram. 
Olhou
ressaca? Vá, do ressaca. o
ideia daquela feição nova. 
Traziam
sei que fluido lilisterioso o 
enérgico
uma força que arrastava para 
doutro
como a vaga que se retira da praia,
dias de ressaca. 22
Ela fez urna pausa e disse colho
para si mesnxa:
Há muito não lia coisa tão bonita.
E concluiu:
Sabe, Quincas, estou
curiosa por saber aonde isso vai dar,
Você tem uma ideia exata do que acon-
tecerá com eles?
— Sim, mas não diria exata, por-
que depende de con10 andará o ro-
mance, mas sei que não terniinará lá
fraco, e a Capitu é uma força da natu-
reza. Ele não resistirá a ela. E há entre
22 ASSIS, op. cit., p. 64.
ardiloso. O certo é que se casarão, mas o abisrno en-
tre eles... o
Carolina levou-me um dedo aos lábios, fazendo-
-me calar:
---- Não, não me conte mais nada. Não estrague a
surpresa. O romance lido, tenho certeza absoluta, será
bem mais saboroso que o romance resumido e conta-
do. Além disso, está na hora de nosso chá. Tinha vindo
até aqui para avisá-lo que a Joana fez aquele bolo de
fubá de que você tanto gosta.
45
Capitulo IT-
O filho da
1 av ade ir a
fly.
Igum tempo se passou depois da cena des-
crita anteriormente. Dom Castnurro fora
publicado e ganhara a estima dos críticos
e dos leitores. E minha vida corria com a placidez de
costume. Fazia meu trabalho no Ministério com o
escrúpulo de sempre, lia muito, escrevia para jornais
e revistas, reunia-me com os amigos. Pois, um dia, es-
tando entretido com a releitura de Hamlet, ouvi toca-
rem a sineta da entrada. Uma vez, duas vezes. Por que
o Raimundo ou a Joana não atendiam à porta? Ao
terceiro toque, lembrei-me de que eles haviam ido
comprar verduras e legumes numa chácara das pro-
ximidades. E Carolina não estava em casa. Tinha ido
visitar a amiga, dona Constança. Cabia a mim deixar
a leitura e ver quem era.
Ao portão, deparei-me com um rapazinho que
trazia uma grande trouxa na cabeça. Era mulato e
bem franzino. Como conseguia carregar tanto peso
com um fisico daquele?
— Pois não?
—A roupa lavada, senhor... — respondeu, num fio
de voz.
—Ah, sim, por favor, traga-a aqui para dentro.
47
Ele acotnpanhou-lne e, chegando à sala,
os nósculos para 
depositar, com dificuldade,
no chão. Perguntei-lhe 
quanto era e fui pegar
nheiro no quarto. Quando voltei, dei com ele
tado sobre a trouxa. Ao ver-me, assustou-se e f: .
logo de pé. Reparei que parecia extenuado.
estivesse no limite de suas forças. Quiçá estivesse
fome. Fiz-lhe um sinal com a mão e disse:
—Venha comigo até a cozinha.
Pedi que sentasse, fui ao armário e peguei
travessa com uma broa de fubá e um litro de le,.
Depositei tudo à sua frente, mas o rapazinho nio
atreveu a tocar no alimento.
— Ande, não faça cerimónia.
Como ainda hesitasse, eu mesmo cortei um
daço de broa e voltei a dizer:
— Coma, meu pequeno.
Começou a comer, a princípio, devagar, depo:s.
com voracidade. Cortei outro pedaço, que logo desa-
pareceu em sua boca. Quando pareceu saciado, ainda
lhe ofereci um copo de leite. Enquanto bebia deva:r,
como se economizasse cada gole, perguntei-lhe:
— Como você se chama?
O filho da lavadeira
Herrnenegildo de Souza Pereira.
Detl-rne vontade de rir do jeito ceritnonioso
conl que Ilie respondera, 111as não fiz isto. Apenas per-
guntei:
—Você é filho da Anica, não?
vinha nos servindo. Trabalhava corno poucos e, se-
gundo a Carolina, dava gosto ver como engonnava
lençol. O Hermenegildo apenas balançou a cabeça,
confirmando.
— E por que ela não veio trazer a roupa?
--- Mamãe está doente.
O que ela tem?
— Dor no peito. Disse que não dava para carregar
tanto peso.
— E onde vocês moram?
No morro do Livramento...
Quanta coincidência! Eu também nascera por lá.
Isso fez com que simpatizasse ainda mais com ele.
Insisti para que comesse outro pedaço de broa, acom-
panhado de leite. Não se fez de rogado. No final,
depois que o paguei, foi embora, levando, após muita
insistência, o que restara da broa.
49
Memórias quase póstumas de Machado de Assis
Quando Carolina voltou da rua, comentei o
episódio com ela, que me disse:
—A Anica, então, está doente? Pobre mulher. Há
tempo que vem se queixando de que não dorme
à noite, com tantas dores. Nem sei como consegue
trabalhar. E, se não bastasse isso, ainda é casada com
aquele mandrião do Fortunato.
— Fortunato?
— O homem com quem vive. O primeiro ma-
rido faleceu, deixando-a com o filho. Ela, então,
inventou de se amasiar com
esse indivíduo, que é
pedreiro. Mas, de acordo com que ouvi, não é boa
bisca. Não trabalha, vive bêbedo, bate nela, maltrata
o pobre do menino.
a— Não é à toa que o Hermenegildo é tão fran-
zino.
Contei-lhe o que havia feito, dando-lhe a broa
e uns poucos tostões a mais.
— Você fez muito bem, Quincas. Não me sur-
preenderia saber que estão passando fome. Ainda
mais com a notícia de que a Anica está de cama.
Voltei para a leitura de Shakespeare, mas nio
consegui mais me concentrar.
50
Volta e meia, era assombrado
pela visão daquele corpo franzino,
daqueles olhos fundos. Via-me no
rapazinho: de família pobre, nascera
também naquele morro, onde vivera
numa chácara, e meu pai era pintor
de paredes. O que nos diferenciava
era que eu tivera momentos felizes
na infincia, graças à proteção da mi-
nha madrinha, Dona Maria José de
Mendonça Barros0 23 , de quem éra-
mos agregados24 . E meu pai, ao con-
trário do padrasto de Hermenegildo,
sempre fora trabalhador e não tenho
a lembrança de ele ter tocado a mão
em minha mãe ou em mim.
Era por isso tudo que havia me
condoído da sorte do menino.
Mas a história daquele rapazi-
nho que, sem que eu esperasse, cru-
zava-se com a minha, haveria de ter
outros desdobramentos que relatarei
adiante.
Viúva do Bngade:ro
Bento Barroso Peretra,
que tinha «Ido senador
do Impérto, por duas
vezes foi Ministro da
Guerra e, unu
nistro da Ntarinha-
24 Pessoa que vi'tr com
uma família, sem ter
grau de parentesco com
ela.
51
Incidente cora Hermenegildo
De vez em quando, tinha eu 0 costume de
trabalho para casa. Mas isso só acontecia em 
situações
excepcionais, quando as coisas se atrasavam no Mi
tério, menos por minha culpa do que por culpa de
gum funcionário relapso. Era o caso: tinha que
com urgência alguns processos que estavam cheios de
erros. A tarefa consumia-me bastante do meu tempo
mas sabia que era meu dever cuidar dela. Quem mais
senão eu, diretor-geral da Contabilidade, podia fazer
esse trabalho com o rigor que dele se exigia?
sultava uma tabela, na qual os nÚmeros pareciam
maneira intempestiva. Disse com muita indignação:
— Não é possível! Desse jeito, não dá.
— O que não é possível, Carola? O que aconteceu
de tão grave? perguntei, preocupado.
Afinal, ela não andava com a saúde muito boa, o que
lhe provocava alterações constantes do humor. Pensava
eu que vinha se queixar de mais um de seus achaques.
— O Hermenegildo, Quincas! Apareceu hoje cá
em casa com uns hematomas pela cara.
52
O filho da lavadeira
Hematomas? Por acaso, de alguma queda?
Balançou a cabeça e disse, ainda com indignação:
—Antes fosse! Parece que o malandro do padrasto
bateu-lhe.
— Mas que absurdo! Onde se viu uma coisa dessas?
disse, levantando-me da cadeira.
— Pois é. Quando chegou com a roupa, o Rai-
mundo foi pagar-lhe e notou que o menino não pare-
cia bem. Contou-me a história, fui até ele e notei que
estava mesmo bastante machucado.
Ele já se foi?
Claro que não! Não o deixei ir-se. Calcule que
o Hermenegildo só me contou o que aconteceu de-
pois de muita insistência minha.
Ponderei sobre o caso. A mãe, pelo que eu sabia,
continuava mal, apesar de que ainda nos lavasse e passasse
a roupa. E vinha ainda aquele homem bater no menino.
— E o que acha que devemos fazer?
—Vim até aqui para combinar com você.
Carolina disse isso num tom que eu conhecia de
muito. Fingia querer aconselhar-se comigo, mas sabia
que já havia tomado uma decisão.
Então...? — eu disse.
53
as de Machado 
de Assis
rias 
quase
Acho que devemos 
ir até a casa dele para ver
que anda 
acontecendo de fato.
Até o morro do Livramento?
--- Isso mesmo 
respondeu, num tom que não ad_
mitia réplica. 
—Vamos até lá, levamos o Hermenegild
conosco e pomos em 
pratos limpos essa história toda
Não me restava outra coisa senão dobrar-me à
I tade 
de Carolina. Em todo 
caso, sabia que ela estava com
a razão.Tínhamos 
mesmo que tomar alguma providência
do contrário, o homem 
era capaz de dar cabo do menino.
E fui ter certeza disso quando me encontrei com
o rapazinho na sala. Parecia 
mais frágil do que antes,
talvez devido aos hematomas em sua face. Aquilo me
constrangeu demais e levou-me a decidir de vez pela
sugestão de Carolina. Chamamos um carro e fomos os
três ha direção do Livramento.
O cupê subia o morro bem devagar e com gran-
de esforço dos dois cavalos. Ao contemplar o casario,
o arvoredo e a gente que por ali passava, não pude
deixar de sentir nostalgia. Afinal, fora no Livramento
que passara toda minha infincia. E ainda estavam bem
impressas na memória as imagens da velha casa onde,
como agregada, minha famflia residira.
54
P, velha casa
Bentinho, tornado Casmurro, resolve reconstruir a
casa em que viveu, com o intuito de "restaurar na velhice
a adolescência", como, aliás, o leitor já bem sabe. Eu, mais
modesto em minhas intenções, naquele esforço de me-
mÓria, enquanto subia o morro do Livramento, recons-
Ú-uía também a minha casa, mas apenas recuperando a
imagem do lugar em que vivi até meus seis anos de idade.
Ficava numa grande chácara, no topo desse morro.
Creio que hoje ela não exista mais. Tinha entre o povo
o nome de Casa Velha, e o era realmente: datava dos
fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta,
gosto severo, sem adornos. Eu, desde criança, conhe-
cia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os
dois portões enormes, um para as pessoas da família. e
para as visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas
que iam e vinham, ao gado que saía a pastar. Além
dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava
a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da
vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos ou
rezar a ladainha aos sábados. Quanto ao espaço que
mais amava, a biblioteca, era uma vasta sala, dando para
55
o
z:
f 2" Diz-se do formato
que tem a folha de im-
pressão de um hvro ape-
i. nas dobrada em duas.
2' Este parágrafo é re-
produção quase Integral
de trechos dos capítulos
I e II de Relíquias da casa
trlha, In: Obra completa,
Machado dcAssis, vol. II. 'l
g' Rio de Janeiro: Nova
: Aguilar, 1994, p. 2, 5-6.
56
a chácara, por meio de seis janelas dgrade de ferro, abertas de um só ladTodo o lado oposto estava 
forrado destantes, carregadas de livros. Esses eramna maior parte, antigos, e havia muitosinfólios25; também livros de história dpolítica, de teologia, alguns de letras efilosofia, não raro em latim e italian026
Foi o que me ficou dela. Não me
lembro de adornos no teto ou nas pa-
redes, muito menos de retratos de ante-
passados. Recordá-la faz-me retornar ao
passado. Posso ver a criança que eu era,
descalça e sem camisa, brincando por
entre as árvores, caçando passarinhos ou
tentando pegar lagartixas.
Mas me lembra de que, acima de
tudo, o que mais me agradava mesmo
era enfiar-me entre os livros e ver, com
curiosidade, o que continham. Ainda
hoje, sinto no ar aquele cheiro de pó e
velharia da biblioteca da casa em que
passei a infincia.
O filho da lavadeira
A2ica doente
Chegamos, afinal, onde vivia o Hermenegildo,
sob os reclamos do condutor do carro, porque era
dificil subir por aquela senda tão esburacada. Era um
casebre de taipa, com uma janela à frente, ocupando
um pequeno terreno, onde se viam algumas flores e
pés de couve, alface e tomate. Pareciam malcuida-
dos, como se não conhecessem mãos que tomassem
conta deles.
Entramos numa saleta de chão de terra batida,
onde havia uma mesa de pinho com três cadeiras. Nas
paredes de barro, estavam dependuradas estampas de
santos. O menino foi para dentro, e logo o ouvimos
conversar em voz
baixa com alguém. Pouco depois,
uma mulher negra, magra como um pavio, veio se ar-
rastando com muita dificuldade. Ao dar com a gente
de pé na saleta, chamou a atenção do rapazinho. Fez
isso entre muitos acessos de tosse:
— Mas... mas adonde se viu, Menegildo? Deixar
as Incelências de pé?!
E só foi sentar-se quando viu que já estávamos
acomodados.
57
gmórias guase 
póstumas de Machado de Assis
Queria oferecer alguma coisa a nhô Machad
e nhá Carolina. Mas não tenho café. Serve um chá de
erva-cidreira?
— Não se incomode, Anica — disse Carolina.
Como ela se finara em tão pouco tempo! Lembro_
-me de que a Anica, quando começou a lavar a roupa
para nós, era uma mocinha cheia de corpo e toda
ridente. Agora, tornara-se um molambo, só osso e pele.
—Anica, estamos aqui por causa do seu menino.Você
pode nos contar o que houve? — continuou Carolina.
Ela nos fitou com os olhos cheios de tristeza. Pôs
a cabeça entre os braços sobre a mesa cambaia e come-
çou a chorar. Entre soluços, dizia:
—Além de não trabalhar... ele ainda bate no meni-
no... Ontem, chegou bêbedo... Não encontrando co-
mida, me xingou e... e... espancou o Menegildo. Meu
pobre filho que não tem pai e logo não terá a mãe...
— O que é isso, Anica? Como não terá mãe? — pro-
testei sem muita convicção. —Você logo estará boa. Va-
mos ver se conseguimos interná-la numa casa de saúde.
Isso mesmo — apoiou Carolina, para depois
completar: E vamos também resolver a situação do
seu menino.
58
Anica contou, então, que o Fortunato não só batia
no Hermenegildo, como também não o deixava mais
ir à capela de São José, onde costumava ajudar o padre
Sarnento com a missa- Alegava, sem motivo, que pre-
cisas.a dele em casa.
O Menegildo vinha aprendendo tanta coisa
com o padre... Estava inté começando a ler língua de
missa, nhá Carolina. Sempre aparecia em casa com um
livro. E o desgraçado do meu homem dizendo que ler
não enchia barriga de ninguém e que queria o Mene-
gfldo ajudando ele.
Deu um suspiro fundo.
E o pior é que começou a bater nele à toa, à
toa. Diz que o Menegildo é vagabundo, que não quer
trabalhar. Mas o Menegildo é menino trabalhador.
O que ele não pode é com coisa pesada, de tão fra-
quinho que está.
Deu outro suspiro e pôs-se a falar do finado mari-
do, que, segundo ela, era originário dos Açores.
Ele, sim, era homem trabalhador, não deixava
faltar nada em casa. E tinha um grande amor pelo Me-
negildo. Ah, por que Deus tinha de levar ele! E, agora,
estou vendo que eu mesma vou faltar...
59
— Não diga uma coisa dessas, Anica
cortou
Carolina. —Você vai ficar boa...
— Sei, não, nhá Carolina. Sinto uma gastura aqui
— ela passava a mão pelo ventre. — Parece inté
que
estou pegando fogo por dentro.
Olhou com intensidade para nós e continuou:
— Por isso, se eu for mesmo pro hospital, queria
pedir pra nhá Carolina cuidar do Menegildo. Se ele
ficar aqui em casa com o Fortunato, esse homem é
capaz de fazer alguma maldade pro menino.
— Pode ficar descansada — disse Carolina — que
cuidaremos dele. Você indo para o hospital, ficamos
com o Hermenegildo em casa.
"Como é que ela podia prometer uma coisa da-
quelas?", pensei. Nem lugar tínhamos. Sem contar
que andava com muito trabalho e não queria ficar
quebrando a cabeça com aquele tipo de problema.
Foi o que lhe disse quando voltamos.
— E qual é o problema? Lugar arranja-se. Quan-
to a seu trabalho, não custaria nada você dar uma
parada.
— Acha que é coisa assim tão simples? Você 
não
devia ter-se comprometido com isso — contestei.
60
O Ei lho da lavadeiro
Para que fui contestá-la?! Veio já
com pedras na mão:
--- Machado! Não entende a situa-
ção do menino? Caso a Anica lhe falte,
não terá onde ficar e nem quem cuide
dele!
— Entendo, mas... a— a minha co-
modidade parecia querer estar acima da
comiseração.
— Não, não entende — rebateu ela.
Se entendesse de fato, concordaria
comigo. Mas você é assim: não quer sair
do seu mundinho, do seu trabalho, e,
com isso, deixa de pensar nas coisas, nos
outros. Ora, tenha a santa paciência!
Notei que Carolina estava presa
de grande irritação, o que implicava
que, em consequência disso, ia perder o
meu sossego. O bom senso soprou-me
ao ouvido que o melhor era concor-
dar com ela o quanto antes para evi-
tar mais atritos. Afinal, conhecia muito
bem quando ela estava com arrufos 27
27 Zanga passageira en-
tre pessoas que se esti-
mam.
61
ao:nôriao quase pOatumas de Machado de
Ficava sorumbática, de cenho franzido, mal 
falava 
co
migo. Por que desafiá-la então?
Foi essa reflexão que me levou a acenarcabeça, dizendo:
Está betn, Carola, não precisa se exaltar.Vnos arranjar com o Hertnenegildo.
Os Car01a
-Bla-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá,
-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá--blá-blá-blá!
a.- Mas, Carola...
Blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá,
blá-blá-blá-blá-blá-blá.
Essa não entendi, eu...
Blá-blá-blá! Blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-
-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá!
Blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-
-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá-
-blá, blá-blá-blá-blá-blá.
62
Eu não disse isso! Eu...
Blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá !
— Carola! Você está sendo injusta!
—Blá-blá-blá?! Blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá, blá-
-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-
-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá,
blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-
-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-
-blá-blá... Blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-
-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-
-blá-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá-
-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá!
Assim costumavam ser os arrufos de Carola. Ti-
vesse eu razão ou não, ela sempre tinha razão. Mas,
para minha sorte, pouco duravam. Não demorava
muito, vinha ela até minha mesa com uma chávena de
chá. Sem dizer nada, punha o braço em meu ombro,
e eu, para o bem de nossa relação, procurava esquecer
tudo.
63
Capítulo 111
Um ajudante
muito especial
s fatos relativos ao Hermenegildo aca-
baram se complicando, porque a Anica,
poucas semanas depois de ingressar na
Santa Casa de Misericórdia, veio a falecer. E assim,
atendendo ao chamado de Carolina, o menino apa-
receu, um dia, em casa, com uma trouxinha conten-
do seus pertences. E o problema de sua acomodação
logo se nos ofereceu. Onde arrumar um lugar para
ele? Não havia como hospedá-lo em casa,já que não
tínhamos quartos disponíveis. Mas a Joana letnbrou-
-se de que a irmã solteira, que vivia num bairro
próximo, podia oferecer abrigo a ele. Essa questão
resolvida, cabia agora decidir que trabalho poderia
ele fazer para nós, a troco de alimentação e algum
dinheiro. Como a casa era pequena, e o jardim e
o quintal, exíguos, o Raimundo e a Joana dispensa-
ram qualquer ajuda.
Como sempre, foi a Carolina quem soube como
resolver a questão:
— Ora, Quincas, ele pode muito bem cuidar da
biblioteca. Assim, lhe damos comida, alguns tostÕes
e uma obrigação que o mantenha ocupado e longe
do padrasto.
65
Da biblioteca? --- disse, assu.stado 
composta, que talvez viesse a perturbar o meu
O que ele poderia fazer por lá?
--- Arrumar e espanejar os livros. Ao
do Raimundo, 0 Hermenegildo, pelo visto, sabe
Não pude deixar de rir com a lembrança deCarolina. De fato, quando, sob muita insistência dela
eu deixava o Raimundo "arrumar" a biblioteca, era
um deus nos acuda. Livros perdidos, fora de ordem
ou numa ordem que só ele entendia; livros de ponta
cabeça, papéis perdidos... Mas, mesmo que o Her-
menegildo soubesse ler, eu ainda estava meio reti-
cente. Gostava de ficar a sós quando lia e, ainda
mais,
quando escrevia.
---- Deixo-o fazer isso com uma condição — disse,
após alguns segundos de circunspecção. — Só se você
o fizer prometer que não mexerá em nada sem mi-
nha ordem e não fará bulha alguma enquanto estiver
no escritório.
--- Bulha, Quincas?! O Hermenegildo? Nunca vi
menino mais sisudo. Tenho certeza absoluta de que
ele não o incomodará de modo algum.
66
E assim, na manhã do dia seguinte,
lá veio o Hermenegildo. 
Tomado o café
na cozinha, apresentou-se à porta do cs-
critório, com um pano e um espanador,
murmurando de cabeça baixa:
-- Bom dia, Sr. Machado. Com sua
licença.
E ficaria ali, parado, se eu não o
convidasse a entrar:
— Entre, Hermenegildo, pode co-
meçar com aquela estante lá ao fundo.
Voltava eu a escrever. De fato, era ele
a mais discreta das criaturas, porque, nas
horas que se passaram, não ouvi ruído
das penas do espanador ou do pano to-
cando os livros. Contudo, num determi-
nado instante, ele interrompeu-me:
a— Desculpe, Sr. Machado...
Levantei a cabeça.
Encontrei este livro do... — e ele
leu com certa dificuldade —... Schope-
nhauer28 entre os livros do Shakespeare.
Qual o lugar certo dele?
2' Arthur Schopenhauer
(1788-1860), filósofo
alemão, autor de O
mundo como vontade e
representação, cuja obra
caracteriza-se pelo pes-
simismo. Exerceu gran-
de influência em Ma-
chado de Assis.
67
'mói' ias quase póstumas de Machado do Aza i a
29 Tristram Shandy (tí-
tulo completo etn in-
glês: Life opi-
i' nions ofTristram Shand)',
Gcntlcman) é um ro-
mance escrito pelo ir-
landês Laurence Ster-
ne (1713-1768), que
influenciou o estilo e
o humor de Machado
de Assis.
"Mais uma das artes dopensei.
-Tem razão, 
não é 0Schopenhauer. Por favor Kar d
os livros de filosofia ali entre
urna estante junto à janela.
e apontei
Para
Assim, foi ele se inteirando 
daganização da biblioteca e corrigindoarbitrariedades do Raimundo
deixavam meio doido. Pouco 
depoismuito esperto, sabia, sem me consultaronde deveriam ficar os livros de litera-tura brasileira, portuguesa e estrangei-
ra, os livros de filosofia, os dicionários
e gramáticas, e assim por diante. E tra-
balhava tão bem que eu, quando tinha
necessidade de alguma coisa, por como-
didade, pedia-lhe:
— O Hermenegildo, por favor, al-
cance-me o Tristram Shandy, do Sterne 29,
Sem perda de tempo, lá vinha ele
com o volume. E, no final do expe-
diente, pedindo licença, perguntava-me
quais os livros que eu não iria luais usar, para colocá-
-10s de novo nas estantes.
Fui Ilie acostumando àquela companhia silencio-
sa e tão prestativa. Algunnas vezes, quando levantava os
olhos da página que lia ou em que escrevia, dava com
o rapazinho, mesmo de pé, entretido com um livro
aberto na mão.
-— Sente-se, Hermenegildo — dizia, apontando
um canapé, pois sabia que aquela não era uma postura
decente para se ler.
A primeira vez em que disse isso, como se o ti-
vesse surpreendido numa má ação, ficou tão assustado
que deixou cair o livro ao chão.
— Oh, desculpe, Sr. Machado murmurou, tra-
tando de catar o volume.
— Não me deve desculpas, Hermenegildo.
Quando quiser ler, pegue o que quiser, mas leia sen-
tado.
Passadas algumas semanas, o rapaz, sob a dieta da
Joana, foi recuperando as forças. Dentro de alguns me-
ses, tinha energia suficiente para subir a escada portátil
de minha biblioteca, com alguns tomos em um dos
braços, e arrumá-los sem muita dificuldade nas estantes.
69
30 Do original em inglês:
Men are trry queer ani-
mals — a mixture ofhorse-
-nervousncss, ass-stubborn-
ness, and cantcl-malice", da
autoria de T. H. Huxley
(1825-1895), naturalista
inglês. In: BARELLI,
Ettore; PENNAC-
CHIETTI, Sérgio. Di-
cionário das citações, p. 54.
70
Mas a assistência de Hermenegildo
longo do tempo, não se restringiu
só a arrumar os livros ou a alcançar os
volumes que eu lhe solicitasse. 
Logo
logo, ele me prestaria um tipo de
balho que seria de muita valia.
São os homens animais?
Há certos homens que me fazem
lembrar um aforismo de Thomas Huxley,
que li não sei onde e que, se não me
falha a memória, é assim:
Os homens são animais muito es-
tranhos : uma mistura do nervosisno de
un cavalo, da teimosia de una nula e da
malícia de um camelo. 
30
Vim a descobrir que isso era bem
correto, na mais que desagradável con-
versa (e por que não dizer também ne-
gociação?) que tive com o padrasto do
Hermenegildo, o tal do Fortunato.
Utna tarde, (le novo sozinho
etn casa Carolina tinha ido
co, o I lerinenegildo fora atc o (Icspacljar
para cotnprar frutas e verduras ele apareceu
à porta, I Depois de se identificar, conjeçotl a cn-
grolar unva conversa, falando de dificuldadeq, c CII,
nmito itnpaciente para que terjninasqe tildo aquilo.
Cotuo não ia direto ao ponto, cortei-lhe rente a
fala:
Sr. Fortunato, diga logo o que quer, que tenho
luais o que fazer.
O que quero, Sr. Machado, é que o senhor
entenda a minha situação.
E continuou conn Inuitos rodeios:
O senhor tirou o Hermenegildo de casa, ago-
ra não tenho mais ninguém pra Ine ajudar. Uni ho-
mem na minha idade não pode carregar tanto peso.
Sendo assim...
-- Se deixasse o menino conl o senhor disse,
de mau humor —, com certeza o estaria espancando!
Deu um sorriso Inaroto e, pondo a mão no pei-
to, completou:
71
.Óm6rxas quase 
póstumas de 
Machado de Asais
Eu?! Por queru nxe t01AAa, senhor?
verdad
que, às vezes, lhe dava 
unAas tareias, só quando
queria trabalhar. Agora, não é justo que...
Interrompi-o mais unxa vez:
O senhor não teni noção do que seja justiça
E sei aonde quer chegar. Quanto Para deixar oHerrnenegildo em paz?
Ao ouvir o que lhe propunha, abriu bem os olhos
e voltou a sorrir daquela cínica:
NÃO estava pensando enx dinheiro, Sr. Machado.
Afinal, coin a 1110rte de minha querida Anica, me tornei
o respons.áwel por ele. Sempre tive amor pelo menino,
Mas já que quer conceder um pequeno ajutório...
E Inurmurou ulna quantia qualquer. Enfiei a mão
no bolso, peguei ulna cédula de quinhentos réis que
lhe dei, dizendo:
Por favor, não me venha mais à porta, se não
quiser se dar mal com as autoridades.
Enquanto ele, de chapéu na mão, engrolava outras
explicações, virei-lhe as costas e 
entrei em casa. De
fato, era, em parte, como o 
homem do aforismo de
Thomas Huxley: teimoso 
como uma mula e 
malicioso
como um camelo.
72
O bruxo do Coz:ne velho
Cosme Velho é a rua onde viemos morar, de-
pois de alguns anos vivendo na Rua das Laranjeiras.
Ocupávamos um sobrado de dois andares, tendo um
jardim com coqueiros à frente e um quintalzinho
aos fundos. O bairro era sossegado e não tão longe
assim do centro. Tudo seria bom, não fosse um dos
vizinhos, um tal de Sr. Teles, começar a se indispor
comigo. Dizia não gostar de mim, por ser eu pessoa
arrogante e de pouca conversa.
— Não custava nada, de vez em quando, tro-
car uns dedos de prosa com o homem dizia-me
a Carola, tentando conciliar. Talvez se ressinta
disso...
Trocar uns dedos de prosa? Conversar sobre
o que com ele? Negócios do comércio? — respondi,
mal-humorado.
Como Dom Casmurro, queria sossego, trocar
dedos de prosa só com quem me aprouvesse. Mas o
homem, irritado com a minha casmurrice, virou-
-me a cara e pôs-se a falar mal de mim na vizi-
nhança.
73
critório, dizendo que 0 vizinho desejava 
falarliiigo. Era a respeito das minhas árvores que drubavam folhas sobre 0 seu telhado. Mandei 
dizerque o Sr. Teles podia pedir a ele, Raimundo
podasse. Mas, para nneu desconforto, pouco depois
Nhô Machado, nhô Teles disse que só querfalar com o sinhô.
Para não prolongar mais
a história, fui até oportão para ver o que aquele sujeito queria. Nem
bem o cumprimentei, disse com grosseria:
— O senhor não devia mandar ordens pelo seu
criado. Não gosto de falar com subalternos, ainda
mais um preto.
Fechei o cenho:
E com um mulato, o senhor gosta?
Dei-lhe as costas, deixando-o plantado ali na
calçada. E mandei o Raimundo podar as árvores.
Isso serviu para piorar ainda mais as coisas. Não
contente em continuar com a maledicência pela vi-
zinhança, ainda apelidou de o "Bruxo do Cos-
me Velho".
74
ajudante espec2.a1
Essa alcunha, penso eu, nasceu do seguinte:
como era meu costume, gostava de queimar velhos
papéis num caldeirão. Aquilo levantava uma fuma-
rada por todo o meu quintal. E não é que o Teles,
vendo-me, em meio à fumaça, inclinado junto ao
caldeirão, associou minha figura à de um bruxo!
Vá lá que ficasse eu como o "Bruxo do Cosme
Velho". Tinha a sua graça. Enfim, que ele divulgasse
isso pela vizinhança e não viesse mais perturbar o
meu sossego.
75
Capitulo IV
Ganlxei un
secret. Ariot.
os últimos tempos, uma doença dos olhos
vinha me incomodando além da conta, de
maneira que ler se tornava muito dificil. E
tudo se agravava quando 
tinha que revisar meus textos,
pois, além dos problemas da vista, minha grafia se tor-
nava cada vez pior. Eram garranchos que eu mal podia
entender e que não ousava enviar para o Ministério ou
para os editores. Nos bons tempos, era Carolina, com
a paciência de sempre, quem me passava tudo a limpo,
mas, agora, com os males dela, não tinha coragem de
lhe pedir uma coisa dessas. Foi, então, que tive a ideia
de testar o Hermenegildo. Trepado numa escada, ele
arrumava os tomos de uma enciclopédia nas alturas de
uma estante.
— Hermenegildo, venha cá um instante.
Ele desceu, limpando as mãos no pano de espanar:
Pois não, Sr. Machado.
— Como é o seu cursivo?
— O meu cursivo? perguntou, coçando a cabeça.
— Sim, a sua letra — respondi, com impaciência, já
que tinha que enviar ao Ministério um documento
ainda naquela tarde.
Acredito que não seja ruim, Sr. Machado.
77
o
a,
Antárno de Castro
Alw:s (1847-1871 poe-
ta rornánuco brasileiro,
autor de Espumas nu-
tuantes.
78
Então, escreva alguma 
coisa
disse, estendendo-lhe um 
pedaço d
aí
papel e ulna pena, para avaliar o seu
Ele pensou uni pouco e redi
Peguei a folha de papel e vi que ele
giu.
via escrito versos de "Navio 
negreiro"
de Castro Alves 31 :
' Stanos em pleno mar • . • Doudo no 
espaço
Brinca o luar - dourada borboleta.
Ah, então, gosta de poesia? ad
mirei-nne, ao ver que ele reproduzia de
cor os versos.
— Gosto muito, Sr. Machado.
Vi que ele tinha um belo cursivo,
o que o tornava muito capaz de passar a
limpo o documento.
-- Tenho uma tarefa para você. Vá
até a sala de jantar, sente-se e copie isto
para mim. Faça com capricho, mas lem-
bre que tenho um pouco de pressa.
Ganh22 secrerá:io:
Meia hora depois, ele voltava com o documento,
copiado sem nenhum erro, em que tive apenas que
apor minha assinatura.
--- Meus parabéns, Hermenegildo!
Obrigado, Sr. Machado. Quando precisar, é só
falar --- disse, com satisfação.
Não tenha dúvidas, logo, logo, precisarei de
novo de seus préstimos.
De fato, vinha elaborando um romance, inti-
tulado Esaú e Jacó, e as dificuldades com a minha
letra impediam-me que trabalhasse a contento com
a revisão. As vezes, ficava empacado numa página,
por conta dos garranchos que rabiscara e que não
conseguia, de forma alguma, traduzir. Tomei uma
decisão: seria o Hermenegildo a passar a limpo as
páginas de Esaú eJacó. Foi o que lhe propus uns dias
depois:
— Queria que fosse passando a limpo este meu
romance— e completei com uma risada: — Como
poderá ver, está quase ilegível.
Ele pôs-se a trabalhar com afinco. No final da
tarde, já tinha copiado um bom punhado de páginas,
que me pus a revisar.
79
'Memórias quase 
póstumas de Machado de Assis
Antes de 0 Hermenegildo ir embora
interrompeu-me o trabalho, dizendo com a tiniid
1a
de sempre:
Sr. Machado, queria lhe pedir um favor.
— Diga lá, meu caro.
— Será que o senhor podia emprestar-me 
uns lisvros? — e acrescentou: — O senhor fique tranquilo
terei o maior cuidado com eles.
, que
— E que livros seriam?
Um é Espuynas Jlutuantes, que gostaria de ter-
minar de ler. E os outros são do Sr. José de Alencar.
Ante meu assentimento, levou para ler a poesia
do Castro Alves, além de Iracellla, O tronco do ipê e
Senhora. E isso se tornou um hábito. Todas as tardes,
quando se ia, levava consigo alguns livros. Trazia-os
de volta, colocava-os na estante. Satisfazendo minha
curiosidade, dizia o que achara de um, de outro:
— Para lhe ser sincero, Sr. Machado, preferi Senho-
ra aos outros do Sr. José de Alencar.
Perguntava-lhe a razão da escolha.
— São belos romances indianistas 
Iracema e Ogua-
rani, mas Senhora me diz 
muita coisa sobre o 
amor,
sobre princípios.
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Tarnbéna disse que gostara jnais
da poesia de Castro Alves do que da dc
Olavo Bilac 32
E posso saber o porquê?
Não que a poesia do Sr. Bilac não
seja bonita, mas, às vezes, ele Ine parece tão
frio cotnparado com o Sr. Caqtro Alves...
Um dia, Inanifestou vontade de ler
livros meus.
Ah, os meus livros. Quais?
Ah, podia ser Páginas recolhidas e
também Dom Casrnurro.
Fiz um gesto com a mão, abarcando
as estantes:
Sirva-se, esteja à vontade. E faça
bom proveito!
For favor, senhor di retor,
lavre o parecer
Embora o trabalho burocrático, por
vezes, aborrecesse além da conta, mesmo
assim procurava desempenhar minhas
32 Olavo Brás Martins
dos Guimarães Bilac
(1865-1918), poeta par-
nasiano, autor de Poe-
sias e Tarde.
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atividades conl o liláxltno dc zelo. Fora indicado
servir ao Estado e fazia isso conn o liláxill)o de
e escrúpulos. O dificil nneslno era suportar os im
nos, aquelas pessoas que acreditavam saber mais do
eu e que tinham a grosseria de querer
Lembra-me de que, quando ainda estava lotado na
cretaria da Agricultura, onde começara como primero
oficial e chegara, depois, a diretor, apareceu-me ali
cidadão para falar sobre um processo, que dependia
uma informação minha para seguir adiante. Era um su-
jeito com um bigode em pontas, muito bem-vestido e
que falava com afetação, exagerando nos "Vossas Exce-
lências". Chegou, inclusive, a dizer que viera recomen-
dado por um fulano qualquer, não me recordo se um
deputado ou um senador, entregando-nne um carüo
visita que deixei sobre a mesa, seni olhar. Um pedant4
em suma. Mas, como não nne cabia julgá-lo e, sim, a
processo, recebi-o com a mesma atenção que dedicaria
a qualquer pessoa que lá viesse.
Começou com muitos preâmbulos e rapapés, o
suficiente para me aborrecer. Com toda paciêncu,
ajeitei-me na cadeira e preparei-me para ouvir mus
uma indigesta digressão. Contestando o despacho 
que
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Ganhei un secretário!
dera enl seu processo, ele pôs-se a defender seu
ponto de vista, corn a veen)ência de quem estivesse na
tribuna da Câjnara.
Sinto niilito, senhor Torres disse, cortando-lhe
a fala, pois sua lenga-lenga parecia que não ia terminar
nunca mas não nne parece que tenha razão. Exami-
nei o caso conn nnuito cuidado e não vejo como possa
despachar a seu favor.
Teve um sobressalto, como se não acreditando
que eu ousasse não só interrompê-lo, como também
contrariar seus argumentos. Não se dando por acha-
do, pôs-se a discorrer ainda mais sobre o assunto, na
esperança de modificar minha opinião. Por educação,
ouvi toda a arenga, embora já estivesse começando
a ficar irritado. Quando me pareceu que terminara,
levantei-me, fiz um gesto com a mão, convidando-o

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