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Memórias quase póstumas de Machado de Assis qollless FTD Copyright O Álvaro Cardoso Gotnes, 2014 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 — 13ela Vista — São Paulo — SP CEP 01326-010 -Tel. (0-xx-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 - CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br — E-tnail: projetos@ftd.com.br Diretora editorial Silmara SapienseVespasiano • Gerente editorial Ceciliany Alves • Editora Cectha Bassarant • Editor assistente Luiz Gonzaga de Almeida • Assistentes de produção Ana Paula lazzetto, Lilia Pires • Assistentes editoriais Tássia Regiane Silvestre de Oliveira,Thalita R. Morseteti• Preparadora Bruna Perrella Brito • Revisora Regina C. Barrozo • Coordenador de arte Eduardo Rodrigues • Editora de arte Andréia Crema • Projeto gráfico Andréaa Cretna. Fabiano dos Santos Mariano • Diagramação Sheila Moraes Ribeiro • Supervisão iconográfica Célia Rosa • Pesquisa iconográfica Etoile Shaw • Escâner c tratamento de imagens Ana Isabela Pithan Maraschin • Diretor de produção gráfica Reginaldo Soares Da:nasceno Alvaro Cardoso Gomes é professor universitário, ensaísta, romancista e escritor para crianças e jovens. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gomes, Alvaro Cardoso Memórias quase pósturnas de Machado de Assis / Álvaro Cardoso Gornes; ilustrações Alexandre Camanho. — 1. ed. — Sio Paulo : FTD, 2014. Bibliografia ISBN 978-85-322-9284-1 l. Assis, Machado de, 1839-1908 2. Romance biográfico — Literatura juvenil I. Catnanho, Alexandre. II. Título. 14-00934 índices para catálogo sistemático: l. Biografia romanceada : Literatura juvenil ()28.5 O grande Machado, nosso igual Apresentação TJIII caderno de memórias Ao leitor Capitulo Saldo de duas vidas Olhos de cigana oblíqua e dissimulada Capítulo 11 0 filho da lavadeira Incidente com Hermenegildo À velha casa Anica doente Os arrufos de Carola Capítulo Um ajudante muito especial São os homens animais? O bruxo do Cosme Velho Capítulo IV Ganhei um secretário' Por favor, senhor diretor, lavre o parecer Diálogo com um leitor curioso Capítulo v O crente e o descrente • 11 • 15 • 18 • 20 • 33 . 46 . 52 • 55 • 57 • 62 • 64 • 70 • 73 • 76 . 81 • 84 94 • 112 capítulo VI Uma noite de autógrafos Infância e juventude capítulo De médico e de IOUCO As virtudes de Carola Crendices A cartomante Capítulo Cartas de amor A difícil corte FaustO e Mefistófeles capít,no A teoria do tijolinho A teoria do tijolinho II Vaidade das vaidades Capítulo x Ao pé do leito derradeiro A vida sem Carolina Um epílogo escrito por Outra mão Fotocronologia da vida e da obra de Machado de Assis Créditos das imagens Bibliografia • 114 • 119 . 128 • 143 • 146 • 148 • 160 • 168 • 171 • 180 • 190 • 198 • 206 • 211 • 213 • 218 • 232 • 233 O grande Machado r nosso igual ao poucos os escritores contemporâneos, no Brasil, que têm uma obra tão vasta e diver- sa quanto a de Alvaro Cardoso Gomes. Nisso, curiosalllente, ele se irmana a Machado de Assis. Am- bos são autores de romances, ensaios críticos, cro- nicas, volurnes de poesia, contos etc. Quase não há oênero que não tenham tentado — e realizado bem. Nunia época em que a especialização literária marca carreiras e pune a ousadia de autores, Alvaro Cardoso G01nes continua falando as várias línguas do espírito po em que pratica sua imensa variedade de opções. Mas há, tannbém, outra questão que os aproxima, Os dois autores cultivam a rabula, adoram a ironia, abraçanl a paródia, incorporam em sua ficção o diá- logo conl obras de matrizes diversas e não evitam os géneros populares. A ilnaginação alegórica — que, aliás, define boa parte da contribuição de ambos 6 nos convida a ver o mundo, tão familiar, como algo estranho. E não é estranho que nosso Realismo li- terário comece, justamente, por um romance conta- do a partir da perspectiva do além-túmulo? MemÓrias póstuntas de Brás Cubas (1881) é a prova de que, se a literatura de qualquer tempo quiser permanecer fiel à sua capacidade de invenção, ela não pode abandonar a ousadia: dela colhemos os melhores frutos de uma fantasia crítica. Pois as Menlórias quase pÓstumas de Macllado de Assis, a despeito de sua aparente simplicidade, é obra de ousadia. Alvaro Cardoso Gomes nos conduz a um Machado de Assis outonal; ele está no auge de sua carreira e quase no fim da vida. Mesmo assim, não é um Machado impaciente para com aqueles que o acompanham. Muito pelo contrário. Quando a histó- ria que vocês estão prestes a ler começa, encontramos Machado revisando trechos importantes de Dom Cas- illtlrro (1899) em companhia de Carolina, sua esposa, de quem ele recebe repelões de consciência e estilo. Uma relação afetuosa, de imensa cumplicidade entre marido e esposa, marca essas Memórias quase póstumas do início ao fim. Carola — tal como Machado costuma 7 chamar a esposa — acompanha nosso herói-escritor enquanto viva e ainda lhe sobrevive, após sua morte na saudade. No início do livro, ambos vão ao morro do Livramento, berço — por assim dizer — do próprio Machado, onde encontram o jovem Hermenegildo, que servirá de secretário e nova companhia ao escri- tor. E Hermenegildo quem lê, passa a limpo e prefa- cia essas memórias de Machado. Ao mesmo tempo, Hermenegildo é também leitor curioso, uma espécie de jovem Machado, que se dedica a desvendar o sen- tido dos textos lidos. Hermenegildo foi Machado — e somos nós. Além dele, também farão companhia ao velho autor Joana e Raimundo, nos serviços da casa, e o padre Siqueira, nas partidas de xadrez. Temos, en- tão, um cenário íntimo completo. Porém, ninguém duvide de que Carola seja mesmo a presença mais fundamental em cena. Essas Memórias quase póstumas não evitam o tema do preconceito nem as dificuldades de se lidar com os colegas de profissão. Detalhes biográficos de Ma- chado de Assis são intercalados com grande sutileza a trechos de sua própria ficção, fazendo homem e obra comparecerem sem receio nem monumentalização. 8 Hermenegildo discute com Machado suas opiniões sobre a leitura dos contos e dos romances do autor, ao mesmo tempo em que também se familiariza com outros escritores do século XIX. Alvaro Cardoso Go- mes, inventor de Hermenegildo, casa com grande as- túcia fragmentos dos textos do próprio Machado com a recriação de episódios importantes da vida do autor. Vemos, por exemplo, instantâneos da formação do escritor em sua projeção no jovem Hermenegildo, o dificil noivado com Carolina, os rituais de contato e socialização com outros escritores, além dos grandes temas da ficção machadiana, tais como a vaidade e as determinações de várias ordens, que, supostamente, explicariam o comportamento humano. E, ao lon- go do livro, Carola cobra do marido uma visão mais atenta à mulher e uma perspectiva menos cáustica da condição humana. O resultado é uma história na qual o grande Ma- chado de Assis se humaniza imensamente. Ele convive com seus acompanhantes e com as próprias memórias sem exigir deles nenhuma "chave"; ele tem prazer nas conversas com Hermenegildo e nas partidas de xa- drez com o padre Siqueira sem, tampouco, perder a 9 Nach.•Ao Aaotn oportunidade de transtortná-la« instantes de cs- clarecttncnto de tetnas cruci.11K. Neqsas Alentórias (lilase Machado «e torna no«o igual, ouvindo aparvntc Itupacléncta a própria eqpo«a, cultivan- do anugos c lidando cotil a frágil questão da Alvaro Cardoso Gonies convida a considerar .Machado dc ASSIS tnais pró.xitno a nós, leitores, e para a Itnaglnaçio de «ituações Inurnanas é, ao mesmo tctnpo. prazerosa. útil e delicada. Afonérias quase pósrtonas dc Macllado de Assis é tí- tu20 espcctalis«inao da coleção Meu amigo escritor, por- que ',.rrs.a sobre aquele que, talvez, seja nosso autor maior — pela vida que viveu, pelas realizações que al- cançou, pelas obras que escreveu. E essa importante históna lemos com grande proveito e muita emoção. José Luiz Passos Professor titular de bteraturas brasileira e portuguesa na Unnrrsidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA). Entre outros livros, é autor do estudo Machado de Assis: o ropnance com m soas (Edusp, e do romance O sonâmbulo amador (Alfaguara, 2012), vencedor do Grande Prémio Portugal Telecom de Literaturx Apresentaçã0 tzcr que Machado de Assis é o tnaior csctltor brasileiro dc todos os tempos constitut lugar-cotnum. Há muito tcnzpo. os ma:s Itnportantcs críticos do Brasil e do CXtct20t vêm chamando a atenção para seu excep- ctonal talento. Apesar disso, há quem tenha certo prvconcctto contra ele, acusando-o de dificil, com- plexo, por contar suas histórias de um modo difervnte do usual. De fato: Machado, utilizando-se da alusão e recusando-se a dizer diretamente as coi- sas, procura, por meio de imagens sutis, sugerir algo ao leitor que não poderia ser dito de outro modo. Como é o caso da descrição que faz de Capitu, a imortal figura feminina do romance Dom Casmurro. Seu retrato é quase todo sintetizado nos olhos, ima- ginados como "de cigana oblíqua e dissimulada" e "de ressaca". Ora, isso nem sempre é assimilado por um leitor pouco afeito a sutilezas e que, por isso mesmo, prefere descrições pormenorizadas dos 11 Apresentação izer que Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos já constitui lugar-comum. Há muito tempo, os mais importantes críticos do Brasil e do exterior vêm chamando a atenção para seu excep- cional talento. Apesar disso, há quem tenha certo preconceito contra ele, acusando-o de dificil, com- plexo, talvez por contar suas histórias de um modo diferente do usual. De fato: Machado, utilizando-se da alusão e recusando-se a dizer diretamente as coi- sas, procura, por meio de imagens sutis, sugerir algo ao leitor que não poderia ser dito de outro modo. Como é o caso da descrição que faz de Capitu, a imortal figura feminina do romance Dom Casmurro. Seu retrato é quase todo sintetizado nos olhos, ima- ginados como "de cigana oblíqua e dissimulada" e "de ressaca". Ora, isso nem sempre é assimilado por um leitor pouco afeito a sutilezas e que, por isso mesmo, prefere descrições pormenorizadas dos 11 ila (Ic Icv;ı Maç cjii a (Icfij)iü ııjiı car;ltcv, (Ic (s por Ilına gaııçl;lvcl ora C Machaçlo ji(i LİZ (la vida para tornar Itıclhor ainçl;ı cıc tcııjpcro cxUra na ıı;ırra- lıvj' clıcga a Scr corrosivo, por cxu'liiplo, A4('1116rias pöslıı„ nj(1S de İhlâs C CIII *CII coııto ' 'Ç) Alicnista”, (Qııcıji Icınbr;ı da beni-hıınıorada frasc de 14r;1s Çiııl»a«, ao (Icfinir o G'i scvı caso amoroso conı a anjantc: "Marccla anıoıı-ıjıc durantc zc c onzc contos dc rû•is”. Mas tanıbûm possİvcl ver cnj Maçlıado tom ıncnos âcido no cıııc rcvcla a perda da İnocöııcia dc jovcns, coıııo açontccc nos contos "Uns braços” c "Missa do galo ş ', c ıııcsnjo no romancc Dom Casmurro. Mas, tant() ınıııı caso coıjıo outro, Maclıado visa a fa- zer ıınıa crİtica h ganância dos homcns, a um mundo 12 açao onde os mais fracos são vítirnas dos ruais tortes. "Ao vencido, ódio ou cotupai.xào; ao vencedor, as bata- tas" é a verdade que enlana da filosofia do Flutua- nitas de Quincas Borba, pertneando seus livros ruais instigantes. No entanto Machado de Assis nio nos charna a atenção tão só por sua excelência como escritor. Há um aspecto muito importante nele que tatu- bém me levou a pensar em escrever esta biografia romanceada: a sua vida. E bem verdade que nada há nela de heroico, de grandioso. Muito pelo contrá- rio: Machado foi um homem pacato, funcionário público exemplar, bem casado, respeitável burguês. Mas talvez, por isso mesmo, sua vida seja tão atra- ente e possa servir de exemplo para qualquer jo- vem. Machado de Assis era mulato (o pai negro e a mãe branca), viveu numa sociedade escravocrata e preconceituosa, era pobre e tinha a saúde frágil, so- frendo de gagueira e epilepsia desde a infincia até a velhice. Com a morte do pai, teve que ajudar a ma- drasta (perdera a mãe bem cedo), vendendo doces na rua. Apesar de todos esses problemas, tornou-se um leitor voraz, aprendeu francês sem dificuldades 13 MezOrias quase póstumas de Machado de Assis (entre 15 e 16 anos), e, não demorou muito, veio a trabalhar na imprensa, começando a publicar seus versos. Em alguns anos de frutuoso trabalho, produ- ziu mais de duzentos contos, oito romances, livros de poesia, peças de teatro, traduções, crónicas e ar- tigos de crítica literária, tornando-se o escritor mais famoso do seu tempo. Machado de Assis, por tudo o que passou, é mesmo um verdadeiro fenómeno, um milagre da natureza. Com seu talento invulgar e sua vontade férrea, é um homem a ser seguido e imitado. Tanto na obra, quanto na vida. Alvaro Cardoso Gomes 14 Um caderno de memórias ra em setembro, na primavera. A charnado do Sr. Machado, fui vê-lo em seu quarto, onde ele, rnuito abatido, repousava. Tinha a pele macilenta, respira- va com dificuldade, os olhos fundos, os lábios cheios de feridas. Sentei-me num banquinho ao lado da carna, e ele me disse: — Meu caro Hermenegildo, queria lhe pedir urn gran- de favor... 0 que eu não faria pelo Sr. Machado? Devo tudo o que sou hoje ao fato de ele ter me acolhido quando eu não tinha ninguém para cuidar de mim. Minha mãe havia falecido, e meu padrasto era um homem cruel, que me maltratava. Com sua natural bondade, o Sr. Machado e dona Carolina — que Deus a tenha - adotararn-rne, corno se eu fosse o filho que não puderam ter. — Às ordens, Sr. Machado. Apontou para algo sobre a cómoda. — Faça a gentileza de pegar aquele caderno. 15 Era um caderno pautado, desses co- muns, usados nas escolas. - Meu caro, registrei nele as nhas memórias. Como bem sabe, meu cursivol não é dos melhores e piorou mais nos últimos tempos. Temo que não me entendam... — abriu um sorriso triste e completou: - Quanto a você, já está mais que habituado a decifrar meus hieróglifos... Fez uma pequena pausa e prosse- guiu: — 0 favor que lhe peço é que passe à limpo minhas anotações. Sobre a escriva- ninha do escritório, encontrará outro ca- derno destes, ainda sem uso, que poderá levar consigo. — 0 Sr. Machado tem alguma pressa? Algum prazo? — Não sei se me cabe agora ter al- guma pressa ou prazos. Portanto, não se preocupe com isso. Redija devagar, com 1 Letra manuscrita. seu capricho usual. 16 Um caderno de morn6ria:g Como ele se sentia muito cansado, deixei-o. Em casa, acomodei-me e abri o caderno, cuja primeira pá- gina apresentava o seguinte título: Memórias quase póstumas de Machado de Assis. Pus-me, então, a ler as memórias dele. E gostei tanto que deixei para depois a tarefa de passá-las a limpo. Assim atravessei a noite, en- tretido com a leitura do caderno. Eis o que eu li. 17 Ao leitor ou início a estas minhas memórias dizendo que resolvi escrevê-las não só para tornar suportável a minha solidão, acentuada desde a morte de Carolina, mas também porque sinto que, dentro em breve, irei morrer. A partir dos primeiros meses deste ano de 1908, comecei a me sentir muito mal, a ponto de ter que pedir mais uma licença no Mi- nistério da Viação, onde trabalho. Com a saúde abalada, tinha na boca feridas que doíam muito, impedindo- -me de comer alimentos sólidos, e uma grave infec- ção intestinal. Sem contar que meus ataques epiléticos vinham sendo cada vez mais frequentes. Fui consultar o doutor Miguel Couto, e ele, com muito tato e deli- cadeza, acabou por me desenganar. Pensei então que, para esquecer os meus males, valeria a pena deixar re- gistrados neste caderno alguns fatos relevantes, e outros nem tanto, de minha vida. Depois que tomei essa decisão, vim a descobrir que, ao me propor a contar esta história, quando já contava com 69 anos, chegava, em parte, a imitar o 18 personagem do meu romance AleniÓrias póstutnas de Brás Cubas. Digo "em parte", porque ambos contamos nossa história começando pelo fim, mas Brás Cubas, ao fazer isso, estava morto, e eu, ainda que muito comba- lido, estou vivo. Desse modo, narrando sua vida depois de falecer, meu personagem acabou se tornando um "defunto autor", e eu, de minha parte, acabarei por Ilie tornar um "autor quase defunto", coisa mais ou menos comum, em se tratando de literatura. Devo confessar também que resolvi compor essa história do modo mais prazeroso possível, escrevendo só quando me apetecesse, sem ao menos pensar num enredo ou numa possível ordem dos capítulos, deixan- do que os acontecimentos viessem do fundo da me- mória e se impusessem a mim quando e como bem entendessem. Sendo assim, não se surpreenda quem se mais espera da vida, com as idas e vindas que a histó- ria oferecerá.A ordenação dela, portanto, deverá contar com a benevolência de meus presumíveis leitores. Antes, porém, de entrar em alguns fatos desta exis- tência que vai se findando aos poucos, gostaria de com- parar a minha futura morte com a de Brás Cubas. E o que virá expresso no capítulo I destas minhas memórias. 19 Capítulo I duas vidas caro leitor, que já deve ter lido Ji/cntórias pÓstumas de Brás Cubas, corn certe- za se recordará do prirneiro capítulo: Algum tempo hesitei ge devia abrir «atag polo princípio ou pelo tia, isto poria em pri- moiro lugar 0 nagciacnto ou a mi- nha morte. Suposto o ugo vulgar seja começar pelo nasciaento, duas consi- deraç0ee levaras a adotar diferen- te aétodot a pri:neira é gae eu não sou propriamente u.' aütor defunto, mas um defunto autor, para quem a ca:npa foi Outro berço; a segunda é gue o escrito ficaria galante e mais novo. Noi8égt que t.azbé:n contou a sua norte, não a pôs no Introito, nas no cabo: di- ferença radicai entre este livro e o Pentateuco:. Dito isto, expirei às duas horas da tarde de una sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catan- bi. rinha uns sessenta e quatro anos, ri- jos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acon- panhado ao cemitério por onze amigos, 2 Cinco dos primeiros livros do Antigo Testa- mento Génesis, Exo- do, Levítico, Números e Deuteronómio. 21 O o 'O Undiscevered country: em inglês, país desco- nhecido, inexplorado; é um eufemismo para a morte. Hamlet é per- sonagem da tragédia do mesmo nome, da autoria do dramaturgo inglês William Shakes- peare (1564-1616), au- tor também de Ron:eu e Julieta, Macbeth, entre outras obras. 22 Onze amigos! Verdade é que não hou- ve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão cons- tante e tão triste, que levou da- queles fiéis da última hora a interca- lar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: "Vós, que o conhecestes, meus se- nhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de dos mais be- 10s caracteres que têm honrado a manidade. Este ar sombrio, estas go- tas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; ilustre finado" . Bom e fiel amigo! Não, não me ar- rependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet 3 , sem as ânsias nelll as dúvidas do moço príncipe, nas pau- sado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborre- cido. Viram-me ir umas nove ou dez pes- soas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com 0 Cotrim, a fi- lha - um lírio-do-vale, - e4 . Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Conten- tem-se de saber que essa anónima, ain- da que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais . Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convul- sa. Nen o meu óbito era coisa altamente dramática. • • Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não pare- ce gue reúna em si todos os elementos de una tragédia. E dado que si.m, o que menos convinha a essa anónima era apa- rentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entrea- berta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção • — Morto! morto! dizia consigo. E a imaginação dela, corno as cego- nhas que um ilustre viajante viu des- ferirem o voo desde o Iliss0 5 às ribas africanas, sen embargo das ruínas e dos tempos - a imaginação dessa senhora tam- bén voou por sobre os destroços presen- tes até às ribas de uma África juvenil.. • Saldo de dua:g vidas 4 Nas citações das obras de Machado de Assis, optou-se por atualizar a ortografia e a pon- tuação, quando tiradas diretamente das publi- cações originais. 5 Ilisso é um pequeno rio da Ática, região da Grécia antiga. 23 Memórias quase póstumas de Machado de Assis ASSIS, Machado de. Memórias póstutnas de Brás Cubas. São Paulo: 24 Deixá-la ir; lá iremos rnais tarde; lá iremos quando eu rae restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ou - vindo os soluços das damas, as fa- 1as baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de una navalha que um amolador está afian- do lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da mor- te foi muito menos triste do que po- dia parecer. De certo ponto em dian- te chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se- -me a consciência, eu descia à imo- bilidade física e moral, e o cor- po fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma. Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumo- nia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é pos- sível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo De maneira diversa de Brás Cubas, quando morrer, de modo muito provável, com meus 69 anos, não diria que estes seria-n "rijos¯ e me- nos "prósperos". Cornojí disse, ando bem doente, e o maco- ao me desenganar, deu-me um prazo de cinco ou seis meses de vida, para que vá desta para a meLhor ou para a pior, dependendo do ponto de vista. Quanto à prosperidade, ela será muito rela:i- va- Morrerei remediado, sem fortuna. Ao contrá- rio de meu personagem, se não deixarei dinheiro aos herdeiros, deixarei, porém, o legado de meus escritos, o que não é coisa de pouca monta. Tam- bém diferente do solteirão Brás Cubas, que era re- fratário ao casamento, fui muito bem casado com Carolina. E, quando morrer, quase com certeza. serei acompanhado até o cemitério nio pr apenas onze pessoas, como ele, mas por um grande numero de amigos, alguns parentes e admiradores. Segundo nhas determinações, enterrar-me-ão no jazigo per- pétuo 1359, no cemitério São João Batista, onde já repousa Carolina. 25 pp O Mais ainda: Brás Cubas procurou cd o de forma extravagante, inculpar um emplast07 como o responsável pela sua morte, como disse nos capítulos II e V de suas memórias: Q) Cora efeito, urn dia de manhã, estan- do a passear na chácara, pendurou-se- -me urna ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arroj adas cabriolas de volatins, qtüe é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de X: decifra-me Ou devoro-te . Essa ideia era nada menos que a in- venção de um medicamento sublime, emplasto anti-hipocondríaco, desti- nado a aliviar a nossa melancólica hu- manidade. 7 Medicamento que, ao calor, amolece e adere à pele. 8 Andarilho. 26 Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio golpe do logo, e aio tratei, Tinha o to no cérebro; trazia eomiqo fixa dos doidos e doe Via-mo, ao longe, ascender do chão dag e renontar ao como uma águia tal, e não é diante do tao exeoloo petáculo que u.' homem podo sentir a dor que o punge. No outro dia egtava pior; tratei-no enfim, nag incomplotamon• te, gea sétodo, nem cuidado, nem por- gietência; tal toi a origem do mal que ae trouxe à eternidade. Sabem já que morri sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha in• vençáo que ne matou. A minha morte, pelo contrário, não se deverá a emplasto algurn, Mor- rerei, como se sabe, em consequência das feridas na boca e de infecção intes- tinal, que vinha me afctando já há um longo tempo. Como estou sozinho, no fina da vida e sofrendo muito, vejo a morte agora, e creio também que a verei mais ASSIS, op, cite,p 24, 27 Memórias quase póstumas de Machado de Assis 10 Em latim, "Cur non ut plenus vitae conviva recedis, / aequo animoque capis securam, stulte, quie- tem?", Lucrécio, poeta latino (98 a.C-55 a.C.), Da natureza, III, 938-9, In: BARELLI, Ettore; PENNACCHIETTI, Sérgio. Dicionário das ci- tações. São Paulo: Mar- tins Fontes, 1 , p. 362. 28 tarde, como um bálsamo. Afinal, aos mortos, só cabe o descanso, ou, como melhor diria Lucrécio: Por que não te retiras da vida cono un conensa2 já satisfeito ou te concedes serenamente, ó tolo tranquilo repouso? 10 Assim, quando chegar o momen- to azado, deixarei a vida sem muitas la- mentações, ao contrário de Brás Cubas, que queria continuar vivendo a todo custo, como ele revela no seu delírio do capítulo VII: - Não, respondi; nem quero enten- der-te; tu és absurda, tu és uma fábu- Ia. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de una concepção de alienado, isto é, una coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora? — Porque levo na ninha bolsa os bens e os males , o e o maior de todos, a esperança, consolação dos ho- nens. Trenes? — Sim; o teu olhar fascina-me. — creio; eu não sou somente a vida; sou também a norte, e til estás prestes a devolver-ne o gue te enprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosi- dade do nada . Quando esta palavra ecoou, cono trovão, 2a- guele inenso vale, afigurou-se-me gue era o último son gue chegava a meus ouvidos; sentir a decomposição súbita de min mesmo. Então, encarei-a con olhos súplices, e pedi mais alguns anos . — Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e se- res devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o gue eu te de- parei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, Os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior bene- fício das ninhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota? Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me ? 29 11 Alegre, feliz. 12 ASSIS, op. cit., p. 32- 33. 30 - Porque já não preciso de ti. importa ao tempo o minuto que passa mas o minuto gue vem. O minuto gue ven é forte, jucundo", supõe trazer en a eternidade, e traz a morte, e ce como o outro, nas 0 tempo subsis- te. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísno não tenho outra lei. Egoísmo, conse:- vação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve ver, e se o novilho é tenro, tanto ne- lhor: eis o estatuto universal . Sobe e Olha 12 Nunca tive desses delírios em vida, a não ser os delírios que inven- tei para meus contos e romances, e espero que, ao fechar os olhos, possa descansar, sem ser importunado por fantasmagorias. E, caso tivesse opor- tunidade de encontrar a figura da Natureza, ao contrário de Brás Cubas, não lhe imploraria nem mais um liii- nuto de vida. Não, não faria isso não ia querer ser chamado de "idiota" Saldo de duas vidas nenl receber a lição de que a vida, de acordo com o estatuto universal, é uma luta em que alguém devora o próxin10, para ser devorado depois... E tnuito Inenos ia querer a consolação ofertada pela mãe Natureza: "Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei Ilienos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior beneficio das Illinhas mãos". Recusaria o consolo e talvez lhe dissesse apenas: "Afasta-te de mim, ó infausta criatura! Deixa-me, que nunca precisei de ti e não será agora que irei implorar-te o que quer que seja". Queria só que meu corpo repousasse em paz, ao lado de minha querida Carolina... Quanto a estas minhas memórias, o leitor verá que eu, apesar de pobre, de saúde frágil e, ainda por cima, apesar de ser mulato, nascido numa sociedade escravocrata, consegui dar rumo à vida. Fui sempre um funcionário exemplar e um dedicado esposo para Carolina. E, como legado, deixarei para a pos- teridade romances, contos, crônicas, poesias e peças de teatro, que os leitores não se cansarão de louvar. 31 Expressio itahana que significa "ócio pra- zeroso . ASSIS, op. cit., p. 32 Mornado 'Io AaaJn Já Brás Cuba«, apesar dc rico, saudável e branco, diqsipou a existência num sem- dolcefar nicnt('13, deixando, depois da ele Ilic•stno chegou a confessar: Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebri- dade do emplasto, não fui :ninistzo não fui califa, não conheci o casa- mento. Verdade é que, ao lado dessac faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas unas coisas e outras, qualquer pessoa imagina- rá que não houve míngua nen sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; por- que ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - lüao tive filhos, não transmiti a nenhu- ma criatura o legado da nossa misé- ria. 14 Mas chega de delongas vamos à história. E dou início a ela com uma cena que muito me apraz lembrar. Nela, estava ainda bem de saúde, fazendo o que mais aprecio, que é escrever. E junto a mim encontrava-se Carolina, pronta a me assistir quando dela precisase. Olhos de cigana oblíqua e dissimulada Eu tinha os olhos postos na rua, entre os coqueiros do meu jardim eram oito horas da manhã. Quem me visse, à janela de minha casa em Cosme Velho, cuidaria que estivesse olhando para o movimento dos veículos e passantes; mas, em verdade, vos digo que pensava em ou- tra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era eu, muitos anos atrás? Um vendedor de balas e, depois, tipó- grafo. Que sou agora? Funcionário de um ministério e escritor. Voltei os olhos, contemplando o escritório. Os livros nas estantes, a escrivaninha com seu tinteiro de pra- ta -- presente de um amigo —, blocos de papel e canetas, o abajur de bronze — cuja base era uma estátua de Dia- na, tendo aos pés uma corça —, meu confortável canapé, onde costumava me sentar para ler — tudo me dava a sen- sação de sossego, comodidade, convidando ao trabalho. 33 Eu vestia uma mupa leve por conta do intenso calor. As cigarras cantavalli enl coro, naquele sába- s: do. Joana, a nossa cozinheira, costutnava dizer que "cimrra cantando é sinal de chuva chegando". Seria bom que chovesse, que urna canícula assilll não fazia bem aos nervos. Para nneu alívio, unna prinla- vera, debruçada sobre urna das janelas, dava sonibra, refrescando o escritório. Deixei a janela e voltei a me sentar diante da mesa, sobre a qual as folhas de papel manuscritas e a pena mergulhada na tinta me aguardavam. Estava inspirado naquele dia e escrevia com ra- pidez. Meu romance prometia, os personagens ga- nhando um perfil definido, e os fatos do enredo se concatenando com solidez. Assim, escrevi até me doer a mão. Parei para descansar um pouco, tirei os óculos e limpei as lentes com um lenço. Repondo- frase, e reescrevi o parágrafo que começava por "Fui devagar..." e não me parecia nada bem. Uma hora depois, satisfeito com o resultado, passei todo a limpo o capítulo XXXII, que intitulara "Olhos de ressaca" tarefa que me exigiu umas duas horas de trabalho: 34 Tudo curIogJdades ao Catoo houver porém, no qual náo no ou ensinou, on como É o contarei no Olitro capítulo. dl- roi somente pargoadors alguns diaa do com o agregado, fui ver a mi- nha amiqa; oram dez horas da manhã. D. Fortunata, que otgeava no quintal, nem esporou quo ou lhe perguntasse pola filha. - Fat3tá na sala penteando o cabe- lot disse-mo; vá devagarzinho para lhe pregar um susto. Fui devaqar, mas ou o pé ou o es- polho traiu-me. Este pode ger que não fosse; era um espelhinho do pataca" (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, ar- golinha de latão, pendente da pare- det entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na gala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta: - Há alguma coisa? - Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue P' Moeda de pouco valor. para a lição. Como passou a noite? 35 thJIÇ;? tala? logo de alto e por um ria, primeiro 'dor go - tem, tftm, interrompeu Câpit.v;, tooso pteelao alguém para vencer j", lho falaria, Eu nem Jog6 influir tanto; acho Cará todo, você realmenve náo quer ser padre, cangar? , , , Ele ó ôt«ndido; porém, . , loto! Você teimo com ele, Bentinho. - Teimo; hoje mesmo de falar. - Voc6 jura? - Juro! Deixo ver on olhos, Capita, Tinha-mo lembrado definição Jozé dera doleot "01h00 do cigana oblíqua e digai:tuiada". Eu não gabia o quo era oblíqua, diggi.nalad¿r bio, e queria ver ge podiam chanar asgi:n. doixou-oo fitar e examinar, perguntava o era, oe nunca os vira; eu nada achei eztraordinárro; a cor o a doçura eram minhas conhecidas. h dezora da contemplação creio que lhe den outra ideia do intento; imaginou quo era um pretexto para mirá-lo: mais do perto, com 03 mous Olhotl longos, constantes, 36 enfiados neles, e a isto atribuo gue entrassem a ficar crescidos, cres- cidos e sombrios, com tal expressão que. Retórica dos namorados, dá-me uma conparação exata e poética para dizer o que fora:n aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sen quebra da dignidade do estilo, 0 que eles foran e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei gue fluido misterioso e enérgico, '.=a força gue arrastava para dentro, cozo a vaga gue se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser ar- rastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda gue saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me , puxar-me e tragar-me. Quantos minu- tos gastan0s naquele jogo? Só os re- 16gios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tern as suas pêndulas 16 ; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a dura- ção das felicidades e dos suplícios. 00 O 16 0 mesmo que o pên- dulo de um relógio. 37 o, l)ante Alighieri (1265- 1321), poeta Italiano, autor de A divina co- média. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 5. ed. São Paulo: FTD, 1999, P. 63-65. 8 Há de dobrar o gozo aos bem-aventura- dos do céu conhecer a soma dos tormon- tos que já terão padecido no infor- no os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão zado no céu os seus desafetos aumen- tará as dores aos condenados do in- ferno. Este outro suplício escapou ao divino Dantet7; nas eu não estou aqui para e:nendar poetas. Estou para con- tar que, ao cabo de um tempo não mar- cado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, nas então con as nãos, e disse-lhe — para dizer alguma coisa - que era capaz de os pentear, se quisesse. - Você? - Eu mesmo. - Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim. -- Se embaraçar, você desembaraça depois . - Vamos ver. Voltei a ler o texto. Estava tão entre- tido com a leitura que não me dei conta da entrada de Carolina no escritório. Ca Ido De maneira que estremeci, quando ela pôs o braço em torno a meus ombros e disse: — Então, como vai este Dom Casnturro? —Vai bem, ao que parece respondi, erguendo o rosto. --- Estava escrevendo sobre a atração que Capitu exerce sobre Bentinho... — Posso ver? — perguntou-me ela, cheia de curio- sidade. — Por que não, Carola? Passei-lhe o manuscrito. Ela foi sentar-se numa cadeira em frente à mesa e começou a ler as folhas de papel que ainda cheiravam à tinta. Como era seu costume, enrolava uma mecha de seus cabelos cotil um dedo. Depois de algum tempo, não podendo conter a curiosidade, perguntei: E então? Sempre tive em conta os juízos de Carolina. E, ou- vir e acatar a opinião dela, como nunca deixara de fazer, era fundamental para o progresso de Dom Casmurro. — Um instantinho, meu caro... Ao terminar de ler, ela pôs as folhas sobre o colo e disse, fingindo que me admoestava: 39 •mórias quase póstumas de Machado de Agaio 19 Apelido pelo qual Carolina tratava o es- critor. 20 Personagem de Sha- kespeare, da peça de mesmo nome, que, in- citado pela mulher, mata seu benfeitor para lhe roubar o trono. 40 Mas que ideia você teni (Ias lheres, hein, Quincas 19 --- Como assine "Olhos de cigana oblíqua c dis- simulada"... Ora, então sorno« dissimuladas, fingidas? -- Como você deve ter percebi- do j— comecei a retrucar —, não fui eu quem disse isso. Quem o disse foi o José Dias. — Mas foi você queni criou o José Dias. Portanto... — Carola, não acredito que você esteja falando sério. Fosse assim re- fleti um pouco, para depois cornplctar: — Shakespeare, por exemplo, seria o cul- pado pelos assassinatos que Macbetlf() comete. Eu não assun10 tudo o que o José Dias pensa a respeito de Capitu... Carolina levantou-se, aproxirnou- -se e disse, com um ar provocativo, como se não estivesse de todo conven- cida dos meus argumentos: --- E você acha então (IVIC I)élll tenho esses olhos dc cigana oblí- qua e csqes olhos de res- «aca que tentaria l)) para o Não pucle resistir à graça dc Ca- rolina. Tomei-a pela cintura e a fiz aproxitnar-se njais de Disse-lhe conl afeto: De 1110do algujn, querida, jnuito pelo contrário... E, fechando os olhos, recitei versoq que havia connposto: Teus olhos são meus livros. Que livro há aí melhor, Em que melhor se leia A página do amor. 21 Carolina deu Vilna risada e beijou- -Ine a face: Mas que horneln Inais galante! Saiu-se jnuito bem, depois do que dis- se das nmlheres... Trecho do poctna de Machado de Assis "l,ivros e flores", pu- blicado pela primeira vez Falenas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1870, Disponível Cin: <www.brasiliana.u«p. br/bbd/handle/ 1918/ njode/lup>. Acesso coo.' 24 dez. 2013, 41 Carola. Por um lado, quem o diz é Pias e, por outro, não se diz no texto que todas as mulheres são desse modo. Quem é assim Corno era uni pouco teirnosa, Carolina in- sistiu: Lembra-me de que, em Meniórias póstumas você disse uma coisa engraçada, mas bastante provo_ cativa, sobre uma mulher... Qual coisa? — Que Marcela amou Brás Cubas durante . ela hesitou, como que tentando se lembrar da pas- sagem. "quinze meses e onze contos de réis" completei. — Está aí! As mulheres, em seus romances, ora são fingidas, ora interesseiras. Não é o que também acontece com a mulher do Palha, a Sofia, que seduz o pobre do Quincas Borba com seus lindos olhos, braços e colo, só para explorá-lo? Balancei a cabeça, e ela tornou a cair na risada: --- Não dê importância, não, Quincas, estou amangar contigo. v i 'lao Carolina costutnava ser sisuda. Não no papel de Carola, quando, Ilitlitas vezes, gostava Inestno de manoar comigo. Mas nunca Ine tirava do sério por- que tinha sua graça. Lancei os olhos para as folhas de papel enl posse dela e perguntei, ainda cheio de curiosidade: NIas, fora essa censura aos olhos da tninha ciga- na, o que achou do que escrevi, Carola? Carolina voltou a olhar para as páginas. Depois de se demorar refletindo uni pouco, respondeu da- quele seu jeito circunspeto: Está Inesmo ótimo o capítulo! Parece que es- tou a ver a cena de tão viva. E que atraçào que a rapa- riga exerce sobre ele. Urna atração fatal, que o arrasta como uma onda... O melhor etn seu romance é que ele, não sabendo como definir o que há nos olhos da Capitu, usa de uma metáfora tão bonita... Digna de um grande poeta. Carolina buscou um trecho com o dedo e, en- contrando-o, pôs-se a lê-lo enl voz alta: Retórica dos namorados, dá-me uma compara- ção exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, 43 ,uemórias quase póstumas do Machado do sem quebra da dignidade do ogtüi.lo que eles foralll e mo fizeram. Olhou ressaca? Vá, do ressaca. o ideia daquela feição nova. Traziam sei que fluido lilisterioso o enérgico uma força que arrastava para doutro como a vaga que se retira da praia, dias de ressaca. 22 Ela fez urna pausa e disse colho para si mesnxa: Há muito não lia coisa tão bonita. E concluiu: Sabe, Quincas, estou curiosa por saber aonde isso vai dar, Você tem uma ideia exata do que acon- tecerá com eles? — Sim, mas não diria exata, por- que depende de con10 andará o ro- mance, mas sei que não terniinará lá fraco, e a Capitu é uma força da natu- reza. Ele não resistirá a ela. E há entre 22 ASSIS, op. cit., p. 64. ardiloso. O certo é que se casarão, mas o abisrno en- tre eles... o Carolina levou-me um dedo aos lábios, fazendo- -me calar: ---- Não, não me conte mais nada. Não estrague a surpresa. O romance lido, tenho certeza absoluta, será bem mais saboroso que o romance resumido e conta- do. Além disso, está na hora de nosso chá. Tinha vindo até aqui para avisá-lo que a Joana fez aquele bolo de fubá de que você tanto gosta. 45 Capitulo IT- O filho da 1 av ade ir a fly. Igum tempo se passou depois da cena des- crita anteriormente. Dom Castnurro fora publicado e ganhara a estima dos críticos e dos leitores. E minha vida corria com a placidez de costume. Fazia meu trabalho no Ministério com o escrúpulo de sempre, lia muito, escrevia para jornais e revistas, reunia-me com os amigos. Pois, um dia, es- tando entretido com a releitura de Hamlet, ouvi toca- rem a sineta da entrada. Uma vez, duas vezes. Por que o Raimundo ou a Joana não atendiam à porta? Ao terceiro toque, lembrei-me de que eles haviam ido comprar verduras e legumes numa chácara das pro- ximidades. E Carolina não estava em casa. Tinha ido visitar a amiga, dona Constança. Cabia a mim deixar a leitura e ver quem era. Ao portão, deparei-me com um rapazinho que trazia uma grande trouxa na cabeça. Era mulato e bem franzino. Como conseguia carregar tanto peso com um fisico daquele? — Pois não? —A roupa lavada, senhor... — respondeu, num fio de voz. —Ah, sim, por favor, traga-a aqui para dentro. 47 Ele acotnpanhou-lne e, chegando à sala, os nósculos para depositar, com dificuldade, no chão. Perguntei-lhe quanto era e fui pegar nheiro no quarto. Quando voltei, dei com ele tado sobre a trouxa. Ao ver-me, assustou-se e f: . logo de pé. Reparei que parecia extenuado. estivesse no limite de suas forças. Quiçá estivesse fome. Fiz-lhe um sinal com a mão e disse: —Venha comigo até a cozinha. Pedi que sentasse, fui ao armário e peguei travessa com uma broa de fubá e um litro de le,. Depositei tudo à sua frente, mas o rapazinho nio atreveu a tocar no alimento. — Ande, não faça cerimónia. Como ainda hesitasse, eu mesmo cortei um daço de broa e voltei a dizer: — Coma, meu pequeno. Começou a comer, a princípio, devagar, depo:s. com voracidade. Cortei outro pedaço, que logo desa- pareceu em sua boca. Quando pareceu saciado, ainda lhe ofereci um copo de leite. Enquanto bebia deva:r, como se economizasse cada gole, perguntei-lhe: — Como você se chama? O filho da lavadeira Herrnenegildo de Souza Pereira. Detl-rne vontade de rir do jeito ceritnonioso conl que Ilie respondera, 111as não fiz isto. Apenas per- guntei: —Você é filho da Anica, não? vinha nos servindo. Trabalhava corno poucos e, se- gundo a Carolina, dava gosto ver como engonnava lençol. O Hermenegildo apenas balançou a cabeça, confirmando. — E por que ela não veio trazer a roupa? --- Mamãe está doente. O que ela tem? — Dor no peito. Disse que não dava para carregar tanto peso. — E onde vocês moram? No morro do Livramento... Quanta coincidência! Eu também nascera por lá. Isso fez com que simpatizasse ainda mais com ele. Insisti para que comesse outro pedaço de broa, acom- panhado de leite. Não se fez de rogado. No final, depois que o paguei, foi embora, levando, após muita insistência, o que restara da broa. 49 Memórias quase póstumas de Machado de Assis Quando Carolina voltou da rua, comentei o episódio com ela, que me disse: —A Anica, então, está doente? Pobre mulher. Há tempo que vem se queixando de que não dorme à noite, com tantas dores. Nem sei como consegue trabalhar. E, se não bastasse isso, ainda é casada com aquele mandrião do Fortunato. — Fortunato? — O homem com quem vive. O primeiro ma- rido faleceu, deixando-a com o filho. Ela, então, inventou de se amasiar com esse indivíduo, que é pedreiro. Mas, de acordo com que ouvi, não é boa bisca. Não trabalha, vive bêbedo, bate nela, maltrata o pobre do menino. a— Não é à toa que o Hermenegildo é tão fran- zino. Contei-lhe o que havia feito, dando-lhe a broa e uns poucos tostões a mais. — Você fez muito bem, Quincas. Não me sur- preenderia saber que estão passando fome. Ainda mais com a notícia de que a Anica está de cama. Voltei para a leitura de Shakespeare, mas nio consegui mais me concentrar. 50 Volta e meia, era assombrado pela visão daquele corpo franzino, daqueles olhos fundos. Via-me no rapazinho: de família pobre, nascera também naquele morro, onde vivera numa chácara, e meu pai era pintor de paredes. O que nos diferenciava era que eu tivera momentos felizes na infincia, graças à proteção da mi- nha madrinha, Dona Maria José de Mendonça Barros0 23 , de quem éra- mos agregados24 . E meu pai, ao con- trário do padrasto de Hermenegildo, sempre fora trabalhador e não tenho a lembrança de ele ter tocado a mão em minha mãe ou em mim. Era por isso tudo que havia me condoído da sorte do menino. Mas a história daquele rapazi- nho que, sem que eu esperasse, cru- zava-se com a minha, haveria de ter outros desdobramentos que relatarei adiante. Viúva do Bngade:ro Bento Barroso Peretra, que tinha «Ido senador do Impérto, por duas vezes foi Ministro da Guerra e, unu nistro da Ntarinha- 24 Pessoa que vi'tr com uma família, sem ter grau de parentesco com ela. 51 Incidente cora Hermenegildo De vez em quando, tinha eu 0 costume de trabalho para casa. Mas isso só acontecia em situações excepcionais, quando as coisas se atrasavam no Mi tério, menos por minha culpa do que por culpa de gum funcionário relapso. Era o caso: tinha que com urgência alguns processos que estavam cheios de erros. A tarefa consumia-me bastante do meu tempo mas sabia que era meu dever cuidar dela. Quem mais senão eu, diretor-geral da Contabilidade, podia fazer esse trabalho com o rigor que dele se exigia? sultava uma tabela, na qual os nÚmeros pareciam maneira intempestiva. Disse com muita indignação: — Não é possível! Desse jeito, não dá. — O que não é possível, Carola? O que aconteceu de tão grave? perguntei, preocupado. Afinal, ela não andava com a saúde muito boa, o que lhe provocava alterações constantes do humor. Pensava eu que vinha se queixar de mais um de seus achaques. — O Hermenegildo, Quincas! Apareceu hoje cá em casa com uns hematomas pela cara. 52 O filho da lavadeira Hematomas? Por acaso, de alguma queda? Balançou a cabeça e disse, ainda com indignação: —Antes fosse! Parece que o malandro do padrasto bateu-lhe. — Mas que absurdo! Onde se viu uma coisa dessas? disse, levantando-me da cadeira. — Pois é. Quando chegou com a roupa, o Rai- mundo foi pagar-lhe e notou que o menino não pare- cia bem. Contou-me a história, fui até ele e notei que estava mesmo bastante machucado. Ele já se foi? Claro que não! Não o deixei ir-se. Calcule que o Hermenegildo só me contou o que aconteceu de- pois de muita insistência minha. Ponderei sobre o caso. A mãe, pelo que eu sabia, continuava mal, apesar de que ainda nos lavasse e passasse a roupa. E vinha ainda aquele homem bater no menino. — E o que acha que devemos fazer? —Vim até aqui para combinar com você. Carolina disse isso num tom que eu conhecia de muito. Fingia querer aconselhar-se comigo, mas sabia que já havia tomado uma decisão. Então...? — eu disse. 53 as de Machado de Assis rias quase Acho que devemos ir até a casa dele para ver que anda acontecendo de fato. Até o morro do Livramento? --- Isso mesmo respondeu, num tom que não ad_ mitia réplica. —Vamos até lá, levamos o Hermenegild conosco e pomos em pratos limpos essa história toda Não me restava outra coisa senão dobrar-me à I tade de Carolina. Em todo caso, sabia que ela estava com a razão.Tínhamos mesmo que tomar alguma providência do contrário, o homem era capaz de dar cabo do menino. E fui ter certeza disso quando me encontrei com o rapazinho na sala. Parecia mais frágil do que antes, talvez devido aos hematomas em sua face. Aquilo me constrangeu demais e levou-me a decidir de vez pela sugestão de Carolina. Chamamos um carro e fomos os três ha direção do Livramento. O cupê subia o morro bem devagar e com gran- de esforço dos dois cavalos. Ao contemplar o casario, o arvoredo e a gente que por ali passava, não pude deixar de sentir nostalgia. Afinal, fora no Livramento que passara toda minha infincia. E ainda estavam bem impressas na memória as imagens da velha casa onde, como agregada, minha famflia residira. 54 P, velha casa Bentinho, tornado Casmurro, resolve reconstruir a casa em que viveu, com o intuito de "restaurar na velhice a adolescência", como, aliás, o leitor já bem sabe. Eu, mais modesto em minhas intenções, naquele esforço de me- mÓria, enquanto subia o morro do Livramento, recons- Ú-uía também a minha casa, mas apenas recuperando a imagem do lugar em que vivi até meus seis anos de idade. Ficava numa grande chácara, no topo desse morro. Creio que hoje ela não exista mais. Tinha entre o povo o nome de Casa Velha, e o era realmente: datava dos fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, sem adornos. Eu, desde criança, conhe- cia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois portões enormes, um para as pessoas da família. e para as visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, ao gado que saía a pastar. Além dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos ou rezar a ladainha aos sábados. Quanto ao espaço que mais amava, a biblioteca, era uma vasta sala, dando para 55 o z: f 2" Diz-se do formato que tem a folha de im- pressão de um hvro ape- i. nas dobrada em duas. 2' Este parágrafo é re- produção quase Integral de trechos dos capítulos I e II de Relíquias da casa trlha, In: Obra completa, Machado dcAssis, vol. II. 'l g' Rio de Janeiro: Nova : Aguilar, 1994, p. 2, 5-6. 56 a chácara, por meio de seis janelas dgrade de ferro, abertas de um só ladTodo o lado oposto estava forrado destantes, carregadas de livros. Esses eramna maior parte, antigos, e havia muitosinfólios25; também livros de história dpolítica, de teologia, alguns de letras efilosofia, não raro em latim e italian026 Foi o que me ficou dela. Não me lembro de adornos no teto ou nas pa- redes, muito menos de retratos de ante- passados. Recordá-la faz-me retornar ao passado. Posso ver a criança que eu era, descalça e sem camisa, brincando por entre as árvores, caçando passarinhos ou tentando pegar lagartixas. Mas me lembra de que, acima de tudo, o que mais me agradava mesmo era enfiar-me entre os livros e ver, com curiosidade, o que continham. Ainda hoje, sinto no ar aquele cheiro de pó e velharia da biblioteca da casa em que passei a infincia. O filho da lavadeira A2ica doente Chegamos, afinal, onde vivia o Hermenegildo, sob os reclamos do condutor do carro, porque era dificil subir por aquela senda tão esburacada. Era um casebre de taipa, com uma janela à frente, ocupando um pequeno terreno, onde se viam algumas flores e pés de couve, alface e tomate. Pareciam malcuida- dos, como se não conhecessem mãos que tomassem conta deles. Entramos numa saleta de chão de terra batida, onde havia uma mesa de pinho com três cadeiras. Nas paredes de barro, estavam dependuradas estampas de santos. O menino foi para dentro, e logo o ouvimos conversar em voz baixa com alguém. Pouco depois, uma mulher negra, magra como um pavio, veio se ar- rastando com muita dificuldade. Ao dar com a gente de pé na saleta, chamou a atenção do rapazinho. Fez isso entre muitos acessos de tosse: — Mas... mas adonde se viu, Menegildo? Deixar as Incelências de pé?! E só foi sentar-se quando viu que já estávamos acomodados. 57 gmórias guase póstumas de Machado de Assis Queria oferecer alguma coisa a nhô Machad e nhá Carolina. Mas não tenho café. Serve um chá de erva-cidreira? — Não se incomode, Anica — disse Carolina. Como ela se finara em tão pouco tempo! Lembro_ -me de que a Anica, quando começou a lavar a roupa para nós, era uma mocinha cheia de corpo e toda ridente. Agora, tornara-se um molambo, só osso e pele. —Anica, estamos aqui por causa do seu menino.Você pode nos contar o que houve? — continuou Carolina. Ela nos fitou com os olhos cheios de tristeza. Pôs a cabeça entre os braços sobre a mesa cambaia e come- çou a chorar. Entre soluços, dizia: —Além de não trabalhar... ele ainda bate no meni- no... Ontem, chegou bêbedo... Não encontrando co- mida, me xingou e... e... espancou o Menegildo. Meu pobre filho que não tem pai e logo não terá a mãe... — O que é isso, Anica? Como não terá mãe? — pro- testei sem muita convicção. —Você logo estará boa. Va- mos ver se conseguimos interná-la numa casa de saúde. Isso mesmo — apoiou Carolina, para depois completar: E vamos também resolver a situação do seu menino. 58 Anica contou, então, que o Fortunato não só batia no Hermenegildo, como também não o deixava mais ir à capela de São José, onde costumava ajudar o padre Sarnento com a missa- Alegava, sem motivo, que pre- cisas.a dele em casa. O Menegildo vinha aprendendo tanta coisa com o padre... Estava inté começando a ler língua de missa, nhá Carolina. Sempre aparecia em casa com um livro. E o desgraçado do meu homem dizendo que ler não enchia barriga de ninguém e que queria o Mene- gfldo ajudando ele. Deu um suspiro fundo. E o pior é que começou a bater nele à toa, à toa. Diz que o Menegildo é vagabundo, que não quer trabalhar. Mas o Menegildo é menino trabalhador. O que ele não pode é com coisa pesada, de tão fra- quinho que está. Deu outro suspiro e pôs-se a falar do finado mari- do, que, segundo ela, era originário dos Açores. Ele, sim, era homem trabalhador, não deixava faltar nada em casa. E tinha um grande amor pelo Me- negildo. Ah, por que Deus tinha de levar ele! E, agora, estou vendo que eu mesma vou faltar... 59 — Não diga uma coisa dessas, Anica cortou Carolina. —Você vai ficar boa... — Sei, não, nhá Carolina. Sinto uma gastura aqui — ela passava a mão pelo ventre. — Parece inté que estou pegando fogo por dentro. Olhou com intensidade para nós e continuou: — Por isso, se eu for mesmo pro hospital, queria pedir pra nhá Carolina cuidar do Menegildo. Se ele ficar aqui em casa com o Fortunato, esse homem é capaz de fazer alguma maldade pro menino. — Pode ficar descansada — disse Carolina — que cuidaremos dele. Você indo para o hospital, ficamos com o Hermenegildo em casa. "Como é que ela podia prometer uma coisa da- quelas?", pensei. Nem lugar tínhamos. Sem contar que andava com muito trabalho e não queria ficar quebrando a cabeça com aquele tipo de problema. Foi o que lhe disse quando voltamos. — E qual é o problema? Lugar arranja-se. Quan- to a seu trabalho, não custaria nada você dar uma parada. — Acha que é coisa assim tão simples? Você não devia ter-se comprometido com isso — contestei. 60 O Ei lho da lavadeiro Para que fui contestá-la?! Veio já com pedras na mão: --- Machado! Não entende a situa- ção do menino? Caso a Anica lhe falte, não terá onde ficar e nem quem cuide dele! — Entendo, mas... a— a minha co- modidade parecia querer estar acima da comiseração. — Não, não entende — rebateu ela. Se entendesse de fato, concordaria comigo. Mas você é assim: não quer sair do seu mundinho, do seu trabalho, e, com isso, deixa de pensar nas coisas, nos outros. Ora, tenha a santa paciência! Notei que Carolina estava presa de grande irritação, o que implicava que, em consequência disso, ia perder o meu sossego. O bom senso soprou-me ao ouvido que o melhor era concor- dar com ela o quanto antes para evi- tar mais atritos. Afinal, conhecia muito bem quando ela estava com arrufos 27 27 Zanga passageira en- tre pessoas que se esti- mam. 61 ao:nôriao quase pOatumas de Machado de Ficava sorumbática, de cenho franzido, mal falava co migo. Por que desafiá-la então? Foi essa reflexão que me levou a acenarcabeça, dizendo: Está betn, Carola, não precisa se exaltar.Vnos arranjar com o Hertnenegildo. Os Car01a -Bla-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá, -blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá--blá-blá-blá! a.- Mas, Carola... Blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá. Essa não entendi, eu... Blá-blá-blá! Blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá- -blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá! Blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá- -blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá- -blá, blá-blá-blá-blá-blá. 62 Eu não disse isso! Eu... Blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá ! — Carola! Você está sendo injusta! —Blá-blá-blá?! Blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá, blá- -blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá- -blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá- -blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá- -blá-blá... Blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá- -blá-blá-blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá- -blá-blá-blá, blá-blá, blá-blá-blá-blá- -blá, blá-blá-blá-blá, blá-blá-blá! Assim costumavam ser os arrufos de Carola. Ti- vesse eu razão ou não, ela sempre tinha razão. Mas, para minha sorte, pouco duravam. Não demorava muito, vinha ela até minha mesa com uma chávena de chá. Sem dizer nada, punha o braço em meu ombro, e eu, para o bem de nossa relação, procurava esquecer tudo. 63 Capítulo 111 Um ajudante muito especial s fatos relativos ao Hermenegildo aca- baram se complicando, porque a Anica, poucas semanas depois de ingressar na Santa Casa de Misericórdia, veio a falecer. E assim, atendendo ao chamado de Carolina, o menino apa- receu, um dia, em casa, com uma trouxinha conten- do seus pertences. E o problema de sua acomodação logo se nos ofereceu. Onde arrumar um lugar para ele? Não havia como hospedá-lo em casa,já que não tínhamos quartos disponíveis. Mas a Joana letnbrou- -se de que a irmã solteira, que vivia num bairro próximo, podia oferecer abrigo a ele. Essa questão resolvida, cabia agora decidir que trabalho poderia ele fazer para nós, a troco de alimentação e algum dinheiro. Como a casa era pequena, e o jardim e o quintal, exíguos, o Raimundo e a Joana dispensa- ram qualquer ajuda. Como sempre, foi a Carolina quem soube como resolver a questão: — Ora, Quincas, ele pode muito bem cuidar da biblioteca. Assim, lhe damos comida, alguns tostÕes e uma obrigação que o mantenha ocupado e longe do padrasto. 65 Da biblioteca? --- disse, assu.stado composta, que talvez viesse a perturbar o meu O que ele poderia fazer por lá? --- Arrumar e espanejar os livros. Ao do Raimundo, 0 Hermenegildo, pelo visto, sabe Não pude deixar de rir com a lembrança deCarolina. De fato, quando, sob muita insistência dela eu deixava o Raimundo "arrumar" a biblioteca, era um deus nos acuda. Livros perdidos, fora de ordem ou numa ordem que só ele entendia; livros de ponta cabeça, papéis perdidos... Mas, mesmo que o Her- menegildo soubesse ler, eu ainda estava meio reti- cente. Gostava de ficar a sós quando lia e, ainda mais, quando escrevia. ---- Deixo-o fazer isso com uma condição — disse, após alguns segundos de circunspecção. — Só se você o fizer prometer que não mexerá em nada sem mi- nha ordem e não fará bulha alguma enquanto estiver no escritório. --- Bulha, Quincas?! O Hermenegildo? Nunca vi menino mais sisudo. Tenho certeza absoluta de que ele não o incomodará de modo algum. 66 E assim, na manhã do dia seguinte, lá veio o Hermenegildo. Tomado o café na cozinha, apresentou-se à porta do cs- critório, com um pano e um espanador, murmurando de cabeça baixa: -- Bom dia, Sr. Machado. Com sua licença. E ficaria ali, parado, se eu não o convidasse a entrar: — Entre, Hermenegildo, pode co- meçar com aquela estante lá ao fundo. Voltava eu a escrever. De fato, era ele a mais discreta das criaturas, porque, nas horas que se passaram, não ouvi ruído das penas do espanador ou do pano to- cando os livros. Contudo, num determi- nado instante, ele interrompeu-me: a— Desculpe, Sr. Machado... Levantei a cabeça. Encontrei este livro do... — e ele leu com certa dificuldade —... Schope- nhauer28 entre os livros do Shakespeare. Qual o lugar certo dele? 2' Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão, autor de O mundo como vontade e representação, cuja obra caracteriza-se pelo pes- simismo. Exerceu gran- de influência em Ma- chado de Assis. 67 'mói' ias quase póstumas de Machado do Aza i a 29 Tristram Shandy (tí- tulo completo etn in- glês: Life opi- i' nions ofTristram Shand)', Gcntlcman) é um ro- mance escrito pelo ir- landês Laurence Ster- ne (1713-1768), que influenciou o estilo e o humor de Machado de Assis. "Mais uma das artes dopensei. -Tem razão, não é 0Schopenhauer. Por favor Kar d os livros de filosofia ali entre urna estante junto à janela. e apontei Para Assim, foi ele se inteirando daganização da biblioteca e corrigindoarbitrariedades do Raimundo deixavam meio doido. Pouco depoismuito esperto, sabia, sem me consultaronde deveriam ficar os livros de litera-tura brasileira, portuguesa e estrangei- ra, os livros de filosofia, os dicionários e gramáticas, e assim por diante. E tra- balhava tão bem que eu, quando tinha necessidade de alguma coisa, por como- didade, pedia-lhe: — O Hermenegildo, por favor, al- cance-me o Tristram Shandy, do Sterne 29, Sem perda de tempo, lá vinha ele com o volume. E, no final do expe- diente, pedindo licença, perguntava-me quais os livros que eu não iria luais usar, para colocá- -10s de novo nas estantes. Fui Ilie acostumando àquela companhia silencio- sa e tão prestativa. Algunnas vezes, quando levantava os olhos da página que lia ou em que escrevia, dava com o rapazinho, mesmo de pé, entretido com um livro aberto na mão. -— Sente-se, Hermenegildo — dizia, apontando um canapé, pois sabia que aquela não era uma postura decente para se ler. A primeira vez em que disse isso, como se o ti- vesse surpreendido numa má ação, ficou tão assustado que deixou cair o livro ao chão. — Oh, desculpe, Sr. Machado murmurou, tra- tando de catar o volume. — Não me deve desculpas, Hermenegildo. Quando quiser ler, pegue o que quiser, mas leia sen- tado. Passadas algumas semanas, o rapaz, sob a dieta da Joana, foi recuperando as forças. Dentro de alguns me- ses, tinha energia suficiente para subir a escada portátil de minha biblioteca, com alguns tomos em um dos braços, e arrumá-los sem muita dificuldade nas estantes. 69 30 Do original em inglês: Men are trry queer ani- mals — a mixture ofhorse- -nervousncss, ass-stubborn- ness, and cantcl-malice", da autoria de T. H. Huxley (1825-1895), naturalista inglês. In: BARELLI, Ettore; PENNAC- CHIETTI, Sérgio. Di- cionário das citações, p. 54. 70 Mas a assistência de Hermenegildo longo do tempo, não se restringiu só a arrumar os livros ou a alcançar os volumes que eu lhe solicitasse. Logo logo, ele me prestaria um tipo de balho que seria de muita valia. São os homens animais? Há certos homens que me fazem lembrar um aforismo de Thomas Huxley, que li não sei onde e que, se não me falha a memória, é assim: Os homens são animais muito es- tranhos : uma mistura do nervosisno de un cavalo, da teimosia de una nula e da malícia de um camelo. 30 Vim a descobrir que isso era bem correto, na mais que desagradável con- versa (e por que não dizer também ne- gociação?) que tive com o padrasto do Hermenegildo, o tal do Fortunato. Utna tarde, (le novo sozinho etn casa Carolina tinha ido co, o I lerinenegildo fora atc o (Icspacljar para cotnprar frutas e verduras ele apareceu à porta, I Depois de se identificar, conjeçotl a cn- grolar unva conversa, falando de dificuldadeq, c CII, nmito itnpaciente para que terjninasqe tildo aquilo. Cotuo não ia direto ao ponto, cortei-lhe rente a fala: Sr. Fortunato, diga logo o que quer, que tenho luais o que fazer. O que quero, Sr. Machado, é que o senhor entenda a minha situação. E continuou conn Inuitos rodeios: O senhor tirou o Hermenegildo de casa, ago- ra não tenho mais ninguém pra Ine ajudar. Uni ho- mem na minha idade não pode carregar tanto peso. Sendo assim... -- Se deixasse o menino conl o senhor disse, de mau humor —, com certeza o estaria espancando! Deu um sorriso Inaroto e, pondo a mão no pei- to, completou: 71 .Óm6rxas quase póstumas de Machado de Asais Eu?! Por queru nxe t01AAa, senhor? verdad que, às vezes, lhe dava unAas tareias, só quando queria trabalhar. Agora, não é justo que... Interrompi-o mais unxa vez: O senhor não teni noção do que seja justiça E sei aonde quer chegar. Quanto Para deixar oHerrnenegildo em paz? Ao ouvir o que lhe propunha, abriu bem os olhos e voltou a sorrir daquela cínica: NÃO estava pensando enx dinheiro, Sr. Machado. Afinal, coin a 1110rte de minha querida Anica, me tornei o respons.áwel por ele. Sempre tive amor pelo menino, Mas já que quer conceder um pequeno ajutório... E Inurmurou ulna quantia qualquer. Enfiei a mão no bolso, peguei ulna cédula de quinhentos réis que lhe dei, dizendo: Por favor, não me venha mais à porta, se não quiser se dar mal com as autoridades. Enquanto ele, de chapéu na mão, engrolava outras explicações, virei-lhe as costas e entrei em casa. De fato, era, em parte, como o homem do aforismo de Thomas Huxley: teimoso como uma mula e malicioso como um camelo. 72 O bruxo do Coz:ne velho Cosme Velho é a rua onde viemos morar, de- pois de alguns anos vivendo na Rua das Laranjeiras. Ocupávamos um sobrado de dois andares, tendo um jardim com coqueiros à frente e um quintalzinho aos fundos. O bairro era sossegado e não tão longe assim do centro. Tudo seria bom, não fosse um dos vizinhos, um tal de Sr. Teles, começar a se indispor comigo. Dizia não gostar de mim, por ser eu pessoa arrogante e de pouca conversa. — Não custava nada, de vez em quando, tro- car uns dedos de prosa com o homem dizia-me a Carola, tentando conciliar. Talvez se ressinta disso... Trocar uns dedos de prosa? Conversar sobre o que com ele? Negócios do comércio? — respondi, mal-humorado. Como Dom Casmurro, queria sossego, trocar dedos de prosa só com quem me aprouvesse. Mas o homem, irritado com a minha casmurrice, virou- -me a cara e pôs-se a falar mal de mim na vizi- nhança. 73 critório, dizendo que 0 vizinho desejava falarliiigo. Era a respeito das minhas árvores que drubavam folhas sobre 0 seu telhado. Mandei dizerque o Sr. Teles podia pedir a ele, Raimundo podasse. Mas, para nneu desconforto, pouco depois Nhô Machado, nhô Teles disse que só querfalar com o sinhô. Para não prolongar mais a história, fui até oportão para ver o que aquele sujeito queria. Nem bem o cumprimentei, disse com grosseria: — O senhor não devia mandar ordens pelo seu criado. Não gosto de falar com subalternos, ainda mais um preto. Fechei o cenho: E com um mulato, o senhor gosta? Dei-lhe as costas, deixando-o plantado ali na calçada. E mandei o Raimundo podar as árvores. Isso serviu para piorar ainda mais as coisas. Não contente em continuar com a maledicência pela vi- zinhança, ainda apelidou de o "Bruxo do Cos- me Velho". 74 ajudante espec2.a1 Essa alcunha, penso eu, nasceu do seguinte: como era meu costume, gostava de queimar velhos papéis num caldeirão. Aquilo levantava uma fuma- rada por todo o meu quintal. E não é que o Teles, vendo-me, em meio à fumaça, inclinado junto ao caldeirão, associou minha figura à de um bruxo! Vá lá que ficasse eu como o "Bruxo do Cosme Velho". Tinha a sua graça. Enfim, que ele divulgasse isso pela vizinhança e não viesse mais perturbar o meu sossego. 75 Capitulo IV Ganlxei un secret. Ariot. os últimos tempos, uma doença dos olhos vinha me incomodando além da conta, de maneira que ler se tornava muito dificil. E tudo se agravava quando tinha que revisar meus textos, pois, além dos problemas da vista, minha grafia se tor- nava cada vez pior. Eram garranchos que eu mal podia entender e que não ousava enviar para o Ministério ou para os editores. Nos bons tempos, era Carolina, com a paciência de sempre, quem me passava tudo a limpo, mas, agora, com os males dela, não tinha coragem de lhe pedir uma coisa dessas. Foi, então, que tive a ideia de testar o Hermenegildo. Trepado numa escada, ele arrumava os tomos de uma enciclopédia nas alturas de uma estante. — Hermenegildo, venha cá um instante. Ele desceu, limpando as mãos no pano de espanar: Pois não, Sr. Machado. — Como é o seu cursivo? — O meu cursivo? perguntou, coçando a cabeça. — Sim, a sua letra — respondi, com impaciência, já que tinha que enviar ao Ministério um documento ainda naquela tarde. Acredito que não seja ruim, Sr. Machado. 77 o a, Antárno de Castro Alw:s (1847-1871 poe- ta rornánuco brasileiro, autor de Espumas nu- tuantes. 78 Então, escreva alguma coisa disse, estendendo-lhe um pedaço d aí papel e ulna pena, para avaliar o seu Ele pensou uni pouco e redi Peguei a folha de papel e vi que ele giu. via escrito versos de "Navio negreiro" de Castro Alves 31 : ' Stanos em pleno mar • . • Doudo no espaço Brinca o luar - dourada borboleta. Ah, então, gosta de poesia? ad mirei-nne, ao ver que ele reproduzia de cor os versos. — Gosto muito, Sr. Machado. Vi que ele tinha um belo cursivo, o que o tornava muito capaz de passar a limpo o documento. -- Tenho uma tarefa para você. Vá até a sala de jantar, sente-se e copie isto para mim. Faça com capricho, mas lem- bre que tenho um pouco de pressa. Ganh22 secrerá:io: Meia hora depois, ele voltava com o documento, copiado sem nenhum erro, em que tive apenas que apor minha assinatura. --- Meus parabéns, Hermenegildo! Obrigado, Sr. Machado. Quando precisar, é só falar --- disse, com satisfação. Não tenha dúvidas, logo, logo, precisarei de novo de seus préstimos. De fato, vinha elaborando um romance, inti- tulado Esaú e Jacó, e as dificuldades com a minha letra impediam-me que trabalhasse a contento com a revisão. As vezes, ficava empacado numa página, por conta dos garranchos que rabiscara e que não conseguia, de forma alguma, traduzir. Tomei uma decisão: seria o Hermenegildo a passar a limpo as páginas de Esaú eJacó. Foi o que lhe propus uns dias depois: — Queria que fosse passando a limpo este meu romance— e completei com uma risada: — Como poderá ver, está quase ilegível. Ele pôs-se a trabalhar com afinco. No final da tarde, já tinha copiado um bom punhado de páginas, que me pus a revisar. 79 'Memórias quase póstumas de Machado de Assis Antes de 0 Hermenegildo ir embora interrompeu-me o trabalho, dizendo com a tiniid 1a de sempre: Sr. Machado, queria lhe pedir um favor. — Diga lá, meu caro. — Será que o senhor podia emprestar-me uns lisvros? — e acrescentou: — O senhor fique tranquilo terei o maior cuidado com eles. , que — E que livros seriam? Um é Espuynas Jlutuantes, que gostaria de ter- minar de ler. E os outros são do Sr. José de Alencar. Ante meu assentimento, levou para ler a poesia do Castro Alves, além de Iracellla, O tronco do ipê e Senhora. E isso se tornou um hábito. Todas as tardes, quando se ia, levava consigo alguns livros. Trazia-os de volta, colocava-os na estante. Satisfazendo minha curiosidade, dizia o que achara de um, de outro: — Para lhe ser sincero, Sr. Machado, preferi Senho- ra aos outros do Sr. José de Alencar. Perguntava-lhe a razão da escolha. — São belos romances indianistas Iracema e Ogua- rani, mas Senhora me diz muita coisa sobre o amor, sobre princípios. 80 Tarnbéna disse que gostara jnais da poesia de Castro Alves do que da dc Olavo Bilac 32 E posso saber o porquê? Não que a poesia do Sr. Bilac não seja bonita, mas, às vezes, ele Ine parece tão frio cotnparado com o Sr. Caqtro Alves... Um dia, Inanifestou vontade de ler livros meus. Ah, os meus livros. Quais? Ah, podia ser Páginas recolhidas e também Dom Casrnurro. Fiz um gesto com a mão, abarcando as estantes: Sirva-se, esteja à vontade. E faça bom proveito! For favor, senhor di retor, lavre o parecer Embora o trabalho burocrático, por vezes, aborrecesse além da conta, mesmo assim procurava desempenhar minhas 32 Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), poeta par- nasiano, autor de Poe- sias e Tarde. 81 atividades conl o liláxltno dc zelo. Fora indicado servir ao Estado e fazia isso conn o liláxill)o de e escrúpulos. O dificil nneslno era suportar os im nos, aquelas pessoas que acreditavam saber mais do eu e que tinham a grosseria de querer Lembra-me de que, quando ainda estava lotado na cretaria da Agricultura, onde começara como primero oficial e chegara, depois, a diretor, apareceu-me ali cidadão para falar sobre um processo, que dependia uma informação minha para seguir adiante. Era um su- jeito com um bigode em pontas, muito bem-vestido e que falava com afetação, exagerando nos "Vossas Exce- lências". Chegou, inclusive, a dizer que viera recomen- dado por um fulano qualquer, não me recordo se um deputado ou um senador, entregando-nne um carüo visita que deixei sobre a mesa, seni olhar. Um pedant4 em suma. Mas, como não nne cabia julgá-lo e, sim, a processo, recebi-o com a mesma atenção que dedicaria a qualquer pessoa que lá viesse. Começou com muitos preâmbulos e rapapés, o suficiente para me aborrecer. Com toda paciêncu, ajeitei-me na cadeira e preparei-me para ouvir mus uma indigesta digressão. Contestando o despacho que 82 Ganhei un secretário! dera enl seu processo, ele pôs-se a defender seu ponto de vista, corn a veen)ência de quem estivesse na tribuna da Câjnara. Sinto niilito, senhor Torres disse, cortando-lhe a fala, pois sua lenga-lenga parecia que não ia terminar nunca mas não nne parece que tenha razão. Exami- nei o caso conn nnuito cuidado e não vejo como possa despachar a seu favor. Teve um sobressalto, como se não acreditando que eu ousasse não só interrompê-lo, como também contrariar seus argumentos. Não se dando por acha- do, pôs-se a discorrer ainda mais sobre o assunto, na esperança de modificar minha opinião. Por educação, ouvi toda a arenga, embora já estivesse começando a ficar irritado. Quando me pareceu que terminara, levantei-me, fiz um gesto com a mão, convidando-o
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