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África_ culturas e sociedades

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26/9/2014 África: culturas e sociedades
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África: culturas e sociedades
Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy)
Texto do guia temático para professores África: culturas e sociedades, da série Formas de
Humanidade, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.Escrito em
janeiro de 1999 e revisto e adaptado em julho de 2005 para publicação neste site.
1ª. Parte - África: cultura material e história
Para compreendermos a cultura material das sociedades africanas, a
primeira questão que se impõe é a imagem que até hoje perdura da
África, como se até sua "descoberta", fosse esse continente perdido na
obscuridade dos primórdios da civilização, em plena barbárie, numa luta
entre Homem e Natureza. 
De fato, a história dos povos africanos é a mesma de toda humanidade: a
da sobrevivência material, mas também espiritual, intelectual e artística,
o que ficou à margem da compreensão nas bases do pensamento
ocidental, como se a reflexão entre Homem e Cultura fosse seu atributo
exclusivo, e como se Natureza e Cultura fossem fatores antagônicos. 
E é isso que fez com que a distorção da imagem do continente africano,
atingisse também os povos que ali habitavam. De acordo com as ciências
do século XIX, inspiradas no evolucionismo biológico de Charles Darwin,
povos como os africanos estariam num estágio cultural e histórico
correspondente aos ancestrais da Humanidade. Dotados do alfabeto
como instrumento de dominação não apenas cultural, mas econômica
também, os europeus estavam em busca de suas origens, sentindo-se no
vértice da pirâmide do desenvolvimento humano e da História. Vem daí
as relações estabelecidas entre Raça e Cultura, corroborando com essa
distorção. 
Por isso, a história da África, pelo menos antes do contato com o mundo
ocidental, em particular antes da colonização, não pode ser
compreendida tomando-se como referência a organização dominante
adotada pelas sociedades ocidentais. Normalmente fica no esquecimento,
dado ao fato colonial, que não existe uma África anterior, a que se
convencionou chamar África tradicional, diversa e independente, com
suas particularidades sociais, econômicas e culturais. 
As sociedades ocidentais, assim chamadas por oposição às não-ocidentais
(não-européias), se estruturaram fundamentalmente sob o modo de
produção capitalista. Além disso, o modo de produção dominante (não
existe apenas um) numa sociedade pode nos dizer muito sobre a vida
dessa sociedade, mas certamente não comporta explicações de todas as
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dimensões de como os homens que a constituem compreendem sua vida
e modelam sua existência. 
A degeneração da imagem das sociedades africanas, de suas ciências, e
de seus produtos é resultado do projeto do Capitalismo, que difundiu a
idéia de que o continente africano é tórrido e cheio de tribos perdidas na
História e na Civilização. É resultado também do etnocentrismo das
ciências européias do século XIX. É necessário, pois, ver de que História
e de que Civilização se trata. E do ponto de vista histórico-econômico, o
imperialismo colonial na África é meio e produto do Capital, uma das
grandes invenções que vem desde a era dos Descobrimentos reforçada
ainda mais pela consolidação do Liberalismo. 
O viés econômico da História é um importante instrumento da Ideologia
do Desenvolvimento, tipicamente ocidental. Dentro dessa linha de
raciocínio, o Capital emerge de fora das sociedades de que tratamos para
regrar suas atividades econômicas de modo diferente, conforme
interesses externos aos dessas sociedades produtoras e dos povos que as
constituem, modificando as relações sociais e impondo um novo modelo
de pensar e agir. 
As sociedades africanas tradicionais (ou pré-coloniais) tinham em suas
atividades econômicas uma das formas de sobrevivência, de acordo com o
meio ambiente em que viviam, de suas necessidades materiais e
espirituais, e de toda uma tradição anterior de várias técnicas e tipos de
produção. Havia muitos povos nômades, que precisavam se deslocar
periodicamente, e havia povos sedentários, que fundando seus territórios,
chegaram a constituir grandes reinos, desenvolvendo atividades
econômicas produtivas, tanto de bens de consumo como de bens de
prestígio (em que se destacam várias de suas artes de escultura e
metalurgia). 
O que a história oficial procurou velar é que os africanos desenvolveram
várias formas de governo muito complexas, baseando-se seja em uma
ordem genealógica (clãs e linhagens), seja em processos iniciáticos
(classes de idade), seja, ainda, por chefias (unidades políticas, sob várias
formas). Algumas grandes chefias, consideradas Estados tradicionais, são
conhecidas desde o século IV (como a primeira dinastia de Gana), mesmo
assim posteriores a grandes civilizações, cuja existência pode ser
testemunhada pela arte, como a cerâmica de Nok (Nigéria), datada do
século V a.C. ao II século d.C. Aliás, ela é uma das produções mais
atingidas pelo tráfico do mercado negro das artes na África que coloca em
risco toda uma história ainda não completamente estudada (cf. esse
assunto e dois exemplares da cerâmica de Nok dos mais célebres
clicando aqui).
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Os impérios de Gana, Mali e outros se sucederam na África ocidental
durante toda a Idade Média européia; reinos da África oriental e central
(como os Lunda e Luba) se disputam entre os séculos XVI e XIX, sendo
considerados semelhantes aos estados de modelo monárquico ou
imperial. Outros estados centralizados marcam relações de longa data
com o exterior, como o reino Kongo (a partir do século XIII). Então, é
importante relativizar o peso conferido ao continente africano enquanto
um dos territórios das "descobertas", como também é o caso das
Américas. Em ambos os casos, a história dos povos que lá e aqui
habitavam era considerada como inexistente pelos europeus, como se a
história fosse resultado de uma cultura - a européia. 
Normalmente se esquece de pensar que a "ação civilizadora" européia era
para tirar suas elites da emergência de sua própria falência econômica:
os europeus precisavam se apropriar de novas terras e mercados para
alcançar hegemonia. E fizeram isso na perspectiva da exploração, sob
pretexto de "descobrir" o que estava "perdido", tanto no globo terrestre
(como se fosse seu quintal) como na história (como se ela fosse um
produto acabado), sendo eles os sujeitos, no presente, do tempo e do
espaço - passado e futuro. Ignoraram que os africanos já mantinham
contatos seculares (provavelmente milenares) com outras civilizações: a
egípcia, por exemplo, é africana, apesar das relações estabelecidas, e
reconhecidas historicamente, com o Mediterrâneo antigo. 
Devemos ainda lembrar que a penetração árabe no território africano vem
do século VII, enquanto os primeiros contatos dos europeus com os
africanos foram estabelecidos a partir do século XV. E tais contatos foram
de viajantes e mercenários, do lado ocidental, e chefias bem
estruturadas, do lado africano, resultando, em alguns casos, e durante
alguns séculos, num comércio ativo, dada a força de grandes estados
tradicionais na África, num clima muito diferente da situação colonial
que sobreveio apenas no fim do século passado. Essa exploração teve o
apoio da Etnologia da época, mas tornou-se um dos fundamentos da
Antropologia, cujo desenvolvimento, através de várias teorias sobre as
relações do Homem com a Naturezae a Cultura, permite-nos perceber as
diferenças como características e valores fundamentais para a
permanência e dinâmica da Humanidade. 
É através dela que se permitiu reconhecer que os estados tradicionais
africanos não foram apenas instrumentos de governo eficazes e agentes
da história, mas estimularam a produção de grandes patrimônios
materiais.É o caso das artes de Ifé e Benin, bem como das artes luba e
kuba.
Confira uma terracota de ifé cuja réplica já foi exposta no Brasil clicando
aqui). Da arte de Benin e arte luba confira as FIG 1 e 2, a sobre a arte
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kuba veja uma de suas estátuas mais célebres clicando aqui). 
FIGURA 1:Figura de rei, arte de Benin, Nigéria, acervo MAE-USP
FIGURA 2: Estatueta do tipo chamada "de ancestral", arte luba-hemba,
Republica Democrática do Congo, acervo MAE-USP
Há muitas outras modalidades da arte africana que dominam, junto com
essas, a gênese de uma história da arte africana, mesmo que sempre
apartada da história universal da arte. Por isso, não deixe de conferir a
linha do tempo da história da arte no continente africano proposta pelo
Museu Metropolitano de Nova Iorque clicando aqui. 
O fato de não terem escrito sua história anteriormente, não quer dizer
que os africanos, bem como os povos autóctones das Américas e da
Oceania, não tinham história, muito menos que não tinham escrita.
Objetos de arte considerados apenas decorativos estão plenos de
mensagens codificadas por signos e símbolos que podem ser "traduzidos",
ou interpretados verbalmente, como é o caso de muitos objetos
proverbiais (FIG 3). 
FIGURA 3: Pesos de latão para medição de pó de ouro, arte ashanti,
acervo MAE
Confira também o artigo de Lucia Harumi Borba Chirinos neste site.
(LINK4A) Além disso, na tradição oral, ou no registro oral da história dos
povos africanos, podemos constatar que o tempo é marcado pelo evento, e
que esse evento não se situa num vazio: ele supõe um lugar exato, um
instante único (p. ex., a queda de um cometa célebre, uma enchente
inusitada, marcando feitos de um governo determinado, de um chefe
conhecido e nominado). Do mesmo modo, podemos pensar na revalidação
da informação histórica em objetos que expressam, através de mesclas de
estilo ou da própria iconografia, deslocamentos das comunidades
africanas, formando grandes correntes migratórias pelo continente, seja
de caráter cultural, comercial ou outro. 
Esses contatos, determinando combinações de elementos originais de um
povo com outro(s), promoveram um dinamismo externo e explicam a
unidade cultural da África. Por outro lado, a história desses povos pelo
continente é uma história de conquistas, de legitimação do território a
ser habitado e cultivado, explicando a diversidade cultural existente. 
A mudança social provocada pelo fato colonial faz parte dessa história,
mesmo que a intenção da colonização era acabar com ela. O período
colonial africano é recente, durando de 1883-1885 até pouco mais da
metade do século XX. Nesse período, os governos europeus dividiram e
reagruparam as sociedades tradicionais da África em colônias, cujas
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fronteiras não correspondiam aos seus territórios originais. 
Nas décadas de 1950 e 1960, depois das independências conquistadas
individualmente, mas num grande movimento de solidariedade entre
nações, as linhas de divisa colonial foram de modo geral absorvidas na
configuração dos países atuais, a partir de então com seus próprios
governos. Mesmo assim, até hoje são países que lutam com dificuldade,
tentando recuperar suas origens ancestrais, e prosseguir suas vidas
dentro do quadro da globalização imposto mundialmente. As lutas civis, e
a presença de ditadores compactuados com potências estrangeiras na
África atual refletem ainda os problemas que a exploração européia e a
ideologia do desenvolvimento causaram aos povos africanos, esgotando
seus minérios e suas florestas, degradando seu meio ambiente, alterando
seu ecossistema, estabelecendo uma ordem completamente diferente
sobre uma experiência secular de vida. 
É evidente que a exploração da África não se deu apenas na sua
colonização, esta já tão truculenta em si mesma, lembrando que durante
esse período os africanos não foram apenas usurpados em suas
economias e territórios, mas em seus modos de existência e de
pensamento, principalmente através de ações missionárias. Sabemos
como a Igreja manipulou o Cristianismo sob pretexto de uma ação
civilizatória compactuada com países europeus. 
Aqui estamos falando apenas daqueles que permaneceram no continente
e não dos que foram sequestrados para a industria da escravidão que
durou pelo menos quatro séculos. Podemos dizer que se o futuro de
alguns africanos (os que foram feitos escravos) continuou aqui no Brasil
(e nas Américas), e o passado de povos africanos na África ficou na
memória coletiva e no silêncio da cultura material, temos muito a
repensar sobre a nossa história em comum, encontrando, oxalá, nossos
valores para o futuro. 
Por isso, não podemos admitir nada de primitivo na história e na cultura
material dos povos africanos, vez que se trata de sociedades que têm atrás
de si mesmas existência milenar. Temos testemunhos plásticos e
iconográficos do séculos V, VI e até VII a.C. nos países do Mediterrâneo
antigo, que demonstram não apenas a presença da civilização egípcia,
como também das civilizações da África sub-saariana, esta chamada de
África negra. Vê-se aqui a antiguidade das culturas africanas, bem como
sua dinâmica, alimentada não apenas por fluxos internos, mas também
externos, desde longa data. Ao lado de tudo isso, lembrar que
descobertas arqueológicas vêm demonstrando a precedência da espécie
humana e de suas indústrias no continente africano, antes dos seus
vestígios em território europeu, como o caso do exemplar mais antigo do
homo sapiens sapiens (nossa espécie) descoberto no Quênia, datado de
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130 mil anos atrás. 
É importante, portanto, ter sempre em vista que o continente africano é
imenso, com centenas de grupos étnicos ou sociedades, que não devemos
chamar de tribos, pois o sistema de parentesco, além de não ser a única
forma de organização, manifesta-se em grande diversidade e
complexidade na composição dos grupos culturais. Hoje as sociedades
africanas são sociedades modernizadas, o que não quer dizer que antes
elas não tinham organização. Com uma hierarquia de obrigações e
direitos, e com uma tecnologia própria ditada pela sua economia, seja ela
de subsistência ou de comércio, algumas sociedades tradicionais
voltavam-se mais para a agricultura, outras para a caça e pesca, e não
raro, essas atividades eram mescladas. Não há conhecimento de grupos
africanos sem um tipo de organização, seja em pequenas chefias a
grandes repúblicas e reinos, até que as grandes potências ocidentais
invadiram e colonizaram o território africano. 
Em contrapartida, devemos também estar alertos para não nos valermos
do que, entre nós, é tido como premissa de civilização, achando que com
isso chegamos à compreensão de outros povos. Ao lado de técnicas de
metalurgia ou cultivo, ao lado de chefias ou de um comércio ativo, cada
sociedade, cada cultura tem um sistema de categorias próprias de
pensamento e existência, sendo ele o que a diferencia das outras, e o que
lhe dá real relevância perante a Humanidade. A cultura materiale a arte,
pelo seu caráter concreto (de "coisas", objetos), podem ser veículos
eficientes para que tais categorias não fiquem tão vulneráveis à ação
destruidora de nosso etnocentrismo, desde que sejam enfocadas como
produtos de sociedades diferentes e não desiguais. 
2ª. Parte - África: cultura material e arte africana
As artes plásticas da África que vemos nos livros e coleções são produtos
desenvolvidos ao longo de séculos. Sejam esculpidos, fundidos,
modelados, pintados, trançados ou tecidos, os objetos da África nos
mostram a diversidade de técnicas artísticas que eram usadas nesse
continente imenso, e nos dão a dimensão da quantidade de estilos
criados pelos povos africanos. 
Tais estilos são a marca da origem dos objetos, isto é, cada estilo ou
grupo de estilos corresponde a um produtor (sociedade, ateliê, artista) e
localidade (região, reino, aldeia). Mesmo assim, devemos lembrar que os
grupos sociais não podem ser considerados no seu isolamento, e,
portanto, é natural que a estética de cada sociedade africana compreenda
elementos de contato. Além disso, cada objeto é apenas uma parte da
manifestação estética a que pertence, constituída por um conjunto de
atitudes (gestos, palavras), danças e músicas. Isso pode determinar as
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diferenças entre a arte de um grupo e de outro, tendo-se em vista
também o lugar e a época ou período em que o objeto estético-artístico
era visto ou usado, de acordo com a sua função. 
Portanto, a primeira coisa a reter é que, na África, cada estátua, cada
máscara, tinha uma função estabelecida, e não eram expostas em
vitrines, nem em conjunto, nem separadamente, como vemos dos
museus. Outra coisa deve ser lembrada: a arte africana é um termo
criado por estrangeiros na interpretação da cultura material estética dos
povos africanos tradicionais, diferente das artes plásticas da África
contemporânea que se integram, como as nossas, brasileiras e atuais, no
circuito internacional das exposições. 
Se hoje ainda há uma produção similar aos objetos tradicionais, ela deve-
se no maior das vezes às demandas de um mercado turístico, motivado
pela curiosidade e exotismo. 
Com referência aos objetos muito semelhantes aos tradicionais ainda em
uso em rituais religiosos ou festas populares há, assim como no Brasil,
na África atual, uma cultura material, que, apesar de sua qualidade
estética, é considerada, também pelos africanos de hoje, "religiosa" ou
"popular" nos moldes ocidentais, onde o antigo e moderno são
historicamente discerníveis. Isso não quer dizer, no entanto, que, através
de conteúdos e símbolos, a arte africana atual não esteja impregnada do
tradicional, ainda que se manifestando em novas formas. Ao contrário, as
especificidades da estética tradicional africana é visível também, nos dias
atuais, nas produções artísticas dos países de fora da África,
principalmente daqueles, como o Brasil, cuja população e cultura foram
formadas por grandes contingentes africanos. 
Mas aqui, neste texto, estaremos tratando sempre dessas produções
realizadas pelos africanos antes da ruptura entre tradição e
modernidade. Daqui para frente, devemos relativizar o uso do tempo
verbal, e lembrar que a expressão arte africana é, queiramos ou não, um
reducionismo inventado por estrangeiros, mas que está cristalizada entre
nós, relativa a toda produção material estética da África produzida antes
e durante a colonização, até meados do século XX, trazida à Europa por
viajantes, missionários e administradores coloniais. 
Não seria difícil encontrarmos nessa arte africana alguns elementos de
aproximação com os de correntes da arte ocidental, do naturalismo ao
abstracionismo. Mas esse tipo de comparação não é capaz de nos
desvendar o verdadeiro sentido da arte africana tradicional, porque esta
não foi feita para ser realista ou cubista, isto é, ela não era um exercício
de reflexão sobre a forma, ou sobre a matéria, como nas artes plásticas
entre nós. Apesar disso, podemos identificar na arte africana os
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elementos que permitiram a artistas, como Picasso, a revolucionar a arte
ocidental. 
O cubismo, portanto, é uma invenção intelectual dos europeus, que nada
tem a ver com a intenção dos africanos: enquanto no cubismo a
representação do objeto se dá de diversos pontos de vista, em diversas de
suas dimensões formais ao mesmo tempo, a estética africana busca, ao
contrário, uma síntese do objeto ou do tema construído materialmente,
plena de objetivo, inspiração e conteúdo. 
Uma estátua não representa, normalmente, um Homem, mas um Ser
Humano integral, que tem uma parte física e espiritual - do passado e do
futuro. Tem, por isso, um lado sagrado, ligado às forças da Natureza e do
Universo. Uma máscara ou uma estátua concentram forças inerentes do
próprio material de que são constituídas, ou que comportam em seu
interior ou superfície, além de sua própria força estética. Elas não têm,
portanto, uma função meramente formal. 
Ainda assim, podemos observar que algumas produções são mais
realistas ou mais geométricas. O realismo ocorre com frequência nas
estátuas, talvez por seu caráter representativo (de uma figura humana,
da imagem onírica de um antepassado), enquanto que o geometrismo
aparece muito nas máscaras, principalmente naquelas que representam
espíritos e seres sobrenaturais, melhor dizendo, o desconhecido (mas
existente no plano consciente e inconsciente). Mesmo assim, nada disso
permite dizer ou não é isso que determina haver uma linha divisória clara
entre uma forma e outra, ou um estilo e outro. 
Mas podemos distinguir uma arte produzida na África ocidental e a
produzida na África central. E dentro dessas grandes áreas geográficas,
podemos distinguir estilos seja pelos detalhes, seja pelo tema ou tipo do
objeto produzido. Por exemplo, as produções artísticas dos Dogon e
Bambara são muito distintas embora situadas, por alguns autores,
dentro de uma mesma faixa estilística (chamada de "sudanesa"), já que
elas apresentam uma certa continuidade formal ou temática, além do fato
de que tais sociedades ocupam territórios contíguos permeados por
identidades históricas, geográficas e ambientais. No entanto, as portas de
celeiro são renomadas entre os Dogon (FIG 4 ), e o tema do antílope é
mais reconhecido, embora não exclusivo, na arte Bambara (FIG 5).
FIGURA 4: Porta de celeiro, arte dogon, Mali, acervo MAE-USP
FIGURA 5: Topo de máscara "tyi-wara", arte bambara, Mali, acervo MAE-
USP
Esse tipo de objeto (porta de celeiro) e esse tema (antílope) celebram a
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arte dos Dogon e dos Bambara respectivamente não apenas porque foram
encontrados em abundância entre eles, mas também porque são
considerados por esses povos como signos específicos de sua cultura em
circunstâncias dadas na sua tradição oral. 
É oportuno lembrar que a distinção entre os estilos só pode ser
determinada por uma série de estudos interdisciplinares que apoiam a
análise morfo-estilística. Entre essas disciplinas estão a arqueologia e
etno-história, que, apesar de suas especificidades, estão intimamente
ligadas à etnografia e à Antropologia. 
Os procedimentos técnicos e a matéria-prima usados na produção
material podem "falar" muito sobre o estilo, assim como sobre o meio
ambiente em que determinadas sociedades vivem. A madeira era muito
usad-a nas regiões de floresta. É porisso que a estatuária africana está
concentrada na chamada África ocidental e na África central, regiões
onde predominava a floresta equatorial e tropical, e onde se conservam
apenas partes dela hoje em dia. 
O uso do metal, embora tenha sido corrente em todo o continente,
caracterizou as produções artísticas da savana, onde floresceram grandes
reinos, tanto na África ocidental quanto na central, onde a arte era
fundamentalmente ligada à organização social e política, a serviço de
mandatários, através de ateliês oficiais - caso da chamada "arte de côrte"
de Ifé e Benin (já ilustrada acima) ou da escultura da associação Ogboni
fieta pelo sofisticado processo de fundição pela cera perdida (FIG 6).
FIGURA 6: Ilustração das etapas da fundição de um par de "edan" pela
técnica da cera perdida, arte ogboni/ioruba, Nigéria, acervo MAE-USP. 
Junto a essas produções de metal devemos mencionar a escultura em
marfim, renomada não apenas entre povos do Golfo da Guiné e do Benin
(como os ioruba) mas também entre os da embocadura do Rio Congo
(como os Bakongo), que desde o século XV era requerida pelos "gabinetes
de curiosidade" da Europa (veja clicando aqui). Bruto ou trabalhado, o
marfim, assim como o cobre, era considerado precioso em todas as
sociedades africanas, desde muito antes do tráfico (desde a antiguidade,
pelo Vale do Nilo e pelo Saara), mas é certo que o contato com o mundo
ocidental, desde o Renascimento europeu, promoveu um
desenvolvimento de uma arte africana em marfim já voltada para o
comércio e turismo como a da atualidade. 
Outras artes, como a cerâmica, cestaria, adornos corporais, eram feitas
tradicionalmente por todas as sociedades, respondendo às necessidades
cotidianas e rituais, sendo que podemos destacar algumas em que essas
técnicas eram mais usadas do que a escultura, de acordo com o modelo
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de organização social e as formas de expressão estética. Nesses casos, os
recursos gráficos eram mais aplicados do que os recursos representativos
da escultura. Aqui podem ser compreendidos, particularmente, os
produtos de sociedades situadas em regiões semi-áridas, que, em busca
periódica de novos territórios, não podiam transportar com facilidade
bens móveis de grande porte. Mas às vezes esses modelos de análise se
mostram arbitrários, pois a arte decorativa pode imperar também onde as
figurativas e realistas são muito destacadas, e onde a produção estética
está voltada à legitimação de um poder monárquico e centralizado como
dos Bakuba (FIG 7), e que também comporta uma importante estatuária
conforme ilustrado acima.
FIGURA 7: Montagem de objetos utilitários com decoração típica, arte
kuba, Republica Democrática do Congo, acervo MAE-USP. 
Assim, o material nem sempre era usado por sua abundância ecológica e
a escolha do material não era arbitrária: como o objeto que iria ser
produzido, o material tinha um valor simbólico em cada centro de
produção. Algumas máscaras e estátuas deveriam ser esculpidas em
madeira de árvores determinadas; a confecção de adornos implicava no
uso de determinadas fibras e sementes, e, em alguns casos, de tipos
diferentes de contas, se não de um tipo de liga metálica, de marfim e
outros materiais de origem inorgânica e animal. 
Certos detalhes morfológicos dos objetos, como a posição, o tamanho, a
distribuição de cores, entre outros, são características diferenciais do
estilo com que cada sociedade representa uma forma e um tema. Mas
existe uma série de características culturais comuns entre os povos da
África e diversas das de sociedades de outros continentes que permeiam
suas artes tradicionais de uma forma singular: seus sistemas de
pensamento e de crenças. 
3ª. Parte - África: cultura material, filosofia e religião
Antes de mais nada, devemos lembrar que a dissociação entre Religião e
outras esferas da Cultura existente no Ocidente, e na Modernidade, não
faz parte da natureza da Humanidade. E, como vimos, as sociedades da
África pertencem a complexos culturais muito antigos, reciclando valores
arraigados pela Tradição, caracterizando-se por uma maneira de produzir
bens espirituais e materiais de acordo com sua história e com o meio
ambiente onde se formaram. 
Para compreendermos os sistemas de pensamento e de crenças das
sociedades africanas, devemos ter sempre em mente a dinâmica tradição-
modernidade, e, como fizemos com respeito à arte, relativizar o que
pertenceu ao passado e o que, e sob que forma, permanece no presente. 
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Cada cultura africana tinha, antes da ruptura social, sua forma de
conceber o mundo, de explicar suas origens e de formular o que lhes
convêm, conforme mostram os mitos e lendas, bem como o discurso das
pessoas mais antigas, que viveram antes ou durante a situação colonial.
Isso demonstra a grande diversidade cultural no continente,
correspondente à diversidade de formas e estilos na arte tradicional. 
Apesar disso, no plano filosófico, podemos assinalar um aspecto que dá
unidade aos povos da África tradicional: o indivíduo é considerado vivo
porque tem um ascendente (é filho, neto de alguém), e quem vai lhe
garantir a finalidade e memória de sua vida e existência é a perspectiva
de seu descendente (seu futuro filho e neto). Portanto a noção de morte
está concretamente ligada à de vida : morrer significa não procriar. Sem
filhos, a linhagem familiar se extingue - vida e morte não são apenas
biológicas, mas sociais principalmente. A existência do indivíduo se
traduz através do seu ser-estar (o que implica em tempo e espaço ou
lugar) no mundo, através do cotidiano, no trabalho ou no lazer, sempre
conectado ao universo social, cósmico, natural e sobrenatural ao mesmo
tempo, sendo impossível separar o que é concreto e espiritual, ou
determinar o que é sagrado ou profano, na vida desses povos. 
Nesse contexto, o exercício da existência volta-se para questões que vão
além do poder econômico, o que não exclui a preocupação social e
individual com o status (disputado e atribuído a indivíduos de prestígio
como sábios e dirigentes), já que ele é uma das chaves para que o grupo
tenha uma estrutura para permanecer unido e forte visando ao advento
de futuras gerações. 
Daí, a profusão de imagens antropomórficas esculpidas a que se chama
de "ancestrais", já que normalmente, mas nem sempre como se divulga
através de publicações, eram relacionadas, e usadas, no culto de
antepassados. Os chamados "fetiches", aí colocados em oposição aos
"ancestrais", são objetos, esculpidos ou não, constituídos de vários
materiais agregados. O conceito de fetiche é discutível, pois, significando
"coisa feita", é relacionado sempre à magia e a feitiçaria num sentido
distorcido. 
FIGURA 8: Estatueta "buti", do tipo chamada de "fetiche", arte teke,
Republica Democrática do Congo, acervo MAE-USP. 
Na verdade, os materiais dos "fetiches" entre os quais são também
classificadas estatuetas dos Bateke (FIG 8, acima) - simbolizam partes dos
mundos animal, vegetal e mineral, aludindo uma idéia de totalidade
construída pelos africanos, baseada em seu conhecimento sobre as forças
da Natureza (muitas vezes relacionados à cura medicinal) e do Cosmo.
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Isso explica porque muitas das estatuetas chamadas de "fetiches", em
contrapartida, tinham relações diretas com o culto de antepassados,
fundado na idéia de acúmulo de forças atravésde gerações sucessivas e
da apropriação do território. 
Outras duas características nos sistemas filosófico e de crenças das
sociedades africanas tradicionais é a consciência de periodicidade e
infinitude, isto é, a idéia de que o descendente vem do ascendente e a
idéia, que vem em decorrência disso, de que o passado está intimamente
ligado ao futuro, passando pelo presente. 
Um indivíduo vivendo em sociedade em um determinado período
histórico supõe a existência de outro ou outros indivíduos (filho, neto,
bisneto, etc) em períodos subsequentes, graças à existência daqueles que
vieram antes dele, e criaram regras para que seus contemporâneos e
conterrâneos pudessem seguir vivendo, articulando-se conforme as
condições de sobrevivência. Há um provérbio de origem africana em que
podemos constatar essa característica de infinitude, de que a vida é
infinita: "uma vez que é dia, depois noite, qual será o fim deles?". 
Esse tipo de pensamento comporta uma perspectiva dinâmica que não
corresponde à idéia de que esses povos não teriam história antes dos
europeus chegarem, e que eles viviam sempre do mesmo modo que seus
avós e bisavós. Outro provérbio africano nos permite constatar essa
característica de periodicidade, de que a vida é periódica - e histórica: "as
coisas de amanhã estão na conversação das pessoas de amanhã". 
Vemos aqui uma preocupação em regrar o que acontece no presente, o
que é uma responsabilidade dos que vivem para garantir a existência do
futuro, e que não há nada de estático nisso, ao contrário, há uma
previsão de mudança, uma consciência de que há um dinamismo na vida,
na existência, não apenas por modificações ambientais naturais, mas
também modificações técnicas e filosóficas determinadas pela sucessão
de gerações. 
Desse modo, os africanos preservavam regras de sua Cultura,
modificando-as quando necessário, sem precisar de outras normas vindas
de fora, coisa que os Europeus não podiam entender, pois eles se
consideravam superiores a todos os povos não-europeus. 
Esse sentimento de superioridade vem da constatação da diferença. Na
visão judaico-cristã, por exemplo, os africanos foram tidos como povos
animistas, isto é, aqueles que atribuem vida às coisas e seres
inanimados, e acreditando que plantas e animais são dotados de "alma",
sendo portanto capazes de agir como seres humanos. Isso não é verdade
e deturpa as formas autênticas de concepção do mundo dos africanos,
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colocando-os como inferiores, ou "primitivos". 
O que ocorre, na verdade, é que na África tradicional a concepção de
mundo é uma concepção de relação de forças naturais, sobrenaturais,
humanas e cósmicas. Tudo que está presente para o Homem tem uma
força relativa à força humana, que é o princípio da "força vital", ou do axé
- expressão ioruba usada no Brasil. As árvores, as pedras, as montanhas,
os astros e planetas, exercem influência sobre a Terra e a vida dos
humanos, e vice-versa. Enquanto os europeus queriam dominar as coisas
indiscriminadamente, os africanos davam importância a elas, pois tinham
consciência de que elas faziam parte de um ecossistema necessário à sua
própria sobrevivência. As preces e orações feitas a uma árvore, antes dela
ser derrubada, era uma atitude simbólica de respeito à existência
daquela árvore, e não a manifestação de uma crença de que ela tinha um
espírito como dos humanos. Ainda que se diga de um "espírito da árvore",
trata-se de uma força da Natureza, própria dos vegetais, e mais
especificamente das árvores. Assim, os humanos e os animais, os vegetais
e os minerais enquadravam-se dentro de uma hierarquia de forças,
necessária à Vida, passíveis de serem manipuladas apenas pelo Homem.
Isso, aliás, contrasta com a idéia de que os povos africanos mantinham-se
sujeitos às forças naturais, e, portanto, sem cultura. Os povos da África
tradicional admitem a existência de forças desconhecidas, que os
europeus chamaram de mágicas, num sentido pejorativo. Mas a "mágica",
entre os africanos, era, na verdade, uma forma inteligente - de
conhecimento - de se lidar com as forças da Natureza e do Cosmo,
integrando parte de suas ciências e sobretudo sua Medicina. 
Esses elementos filosóficos podem ser vistos expressados graficamente
nas decorações de superfície de esculturas, na tecelagem e no trançado,
e na própria arquitetura, através de figuras geométricas (zigue-zagues,
linhas onduladas, espirais - contínuas e infinitas), de figuras zoomorfas
(cobras, lagartos, tartarugas - que, além de sua forma, estão associadas à
idéia de vitalidade e longevidade). 
Trata-se de uma linguagem gráfica simbólica, equivalente a da figura
antropomórfica em estátuas e estatuetas, onde se ressaltam cabeça, mãos
e pés, seios, ventre, orgãos sexuais (todos considerados, de um modo
geral, centros de força vitais). Elas expressam, do mesmo modo que os
grafismos, aspectos relacionados ao tema da reprodução humana e à
capacidade de produção do conhecimento necessário à perpetuação da
espécie humana, mesmo que individualmente, venham a desempenhar
funções e a expressar significados específicas(FIG 9). 
FIGURA 9: Estatueta "akua-ba", arte ashanti, Gana, acervo MAE-USP
Temas como a fertilidade da mulher e fecundidade dos campos são
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freqüentes e quase que indissociáveis na expressão artística,
estabelecendo a relação entre a abundância de alimento e a
multiplicação da prole, um fator concreto em sociedades agrárias. O tema
do duplo remete à relação de fatores complementares ou antagônicos
(dia-noite, homem-mulher). Todas essas formas gráficas e representativas
são um recurso para apresentar, sob forma material, um conjunto de
idéias sobre a existência concebida visando ao equilíbrio e à perpetuação
biológica e espiritual do grupo social. 
Dizem que os africanos não tinham Deus, ou que tinham vários deuses, o
que não parece ser muito preciso. Em quase todas as populações da
África foram registrados depoimentos da criação do mundo, em que
existe apenas um único "Deus". Trata-se de uma força primordial, um
Criador que criou o Mundo e os Homens, colocou-os na Terra, e deixou-
os ao seu Destino (FIG 10).
FIGURA 10: Topo de máscara, arte senufo, Costa do Marfim, acervo MAE-
USP. 
Essas histórias de origem podem ser chamadas de mitos porque se trata
de seres não conhecidos em vida (que estão na memória coletiva), sendo
por isso míticos, sem que se caia no erro de desconsiderá-los, como
fizeram os ocidentais, como idéias sem valor científico e histórico. Tais
mitos de origem comportam freqüentemente o relato de pares
primordiais, de gêmeos ou duplas, que vieram para cultivar e povoar o
mundo, e, muitas vezes, seres zoo-antropomorfos que, dotados da
tecnologia (instrumentos agrários ou de caça), vieram para ensinar os
Homens a produzir e obter alimento, para se multiplicarem, zelando, eles
- os Homens -, pela sua própria permanência em vida. 
Uma das diferenças dessas idéias com relação às idéias de mundo cristãs
é a consciência de que cada ser que está presente no mundo tem seu
papel, e que a força dos Homens é humana, e não divina. Daí a
necessidade de uma relação constante com os antepassados, visando às
futuras gerações. Esse pode ser apontado como um significado
substantivo das várias formas de culto de ancestrais. 
É por isso que a vida dos povos africanos é tida como muito mais
ritualizada que no mundo cristão. O mundo material e o espiritual são
concebidos juntos, quase que inseparáveis, o que implicaem modelos de
culto e religião completamente diferentes do que se adotou no Ocidente,
que por sua vez serviu de modelo para outros povos formados na
modernidade, como é o caso brasileiro. 
Os Candomblés (são várias as formas como essa religião brasileira de
origem africana se apresenta) conservam formas de culto muito próximas
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às de cultos tradicionais da África ocidental (sobretudo dos Fon e dos
Ioruba), adotando emblemas, nomes e outras características de suas
divindades (e, às vezes, das divindades dos povos de línguas bantu, ou
dos chamados Bantos, da África central), bem como a hierarquia de poder
iniciático (FIG 11 a 13). 
FIGURA 11: Colar de babalaô, arte nagô, República Popular do Benim,
acervo MAE-USP 
FIGURA 12: Estátua de Iemanjá, arte afro-brasileira, Salvador/Brasil,
acervo MAE-USP
FIGURA 13: Opaxorô, arte afro-brasileira, Salvador/Brasil, acervo MAE-
USP. 
Mas, numa aproximação ainda que a grosso modo, eles teriam uma
estrutura de panteão, como a das religiões grega e cristã. Isso quer dizer
que existe um Criador e uma porção de outras divindades articuladas em
camadas subalternas. Os cultos tradicionais da África, por sua vez,
voltavam-se, em linhas gerais, aos antepassados ou a divindades da
Natureza. Neste último caso, poderia ser enquadrado o Culto de Orixás -
apelação dada às divindades de origem ioruba ou nagô (os voduns,
inquices e caboclos são divindades de povos africanos de outras origens) -
, em que se baseiam a maioria dos candomblés, muito embora muitas
dessas divindades celebram chefes políticos sacralizados, com uma
qualidade divina, de uma localidade (ou reino) determinado, onde são
considerados como antepassados. 
Para concluir, grande parte da escultura antropomórfica seja da África
ocidental, seja da central, é uma "presentificação" desses personagens
míticos ou mesmo conhecidos em vida - antepassados fundadores de
territórios, chefes de linhagem ou chefes eleitos renomados por feitos
realizados durante seus governos. Em peças desse tipo transparece a
grande relação entre política e religião, motivo pelo qual estátuas, bustos
e cabeças, tendo uma força acumulada de vários níveis, não podiam ser
vistas por todas as pessoas, se não os altos iniciados nos cultos, ou seja,
aqueles que tinham status social e religioso, sendo que em muitas
sociedades, o chefe político era também o sacerdote supremo. 
E, neste final, resta a contradição: grande parte da arte africana, que
tanto nos mobiliza o olhar pelo impacto estético, era feita, antes de ser
tirada de seu contexto, para não ser vista, a menos que houvesse uma
ocasião precisa para isso. Está aí está a demonstração da grandeza e do
poder de uma cultura material, depositária não de segredos, mas de
fundamentos, a serviço da história e cultura dos povos africanos, que
dentro e fora de seu território original, continuam sua existência,
formando novos valores, como acontece entre nós, no Brasil. 
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Bibliografia
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