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A RETÓRICA DO CATIVO

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A RETÓRICA DO CATIVO: PADRE ANTÔNIO VIEIRA E A INQUISIÇÃO(1) 
 
E como o tempo não 
tem, nem pode ter 
consistência alguma, e 
todas as coisas desde o 
seu princípio nasceram 
juntas com o tempo, por 
isso nem ele, nem elas 
podem parar um 
momento, mas com 
perpétuo moto, e 
revolução insuperável 
passar, e ir passando 
sempre" 
Sermão da Primeira 
Dominga do Advento. 
Padre Antônio Vieira 
 
O Padre Antônio Vieira escapou com vida do fogo sempre aceso pela Inquisição. Foi 
punido com o silêncio. Acusado, não escapou do cárcere. Sua pena foi branda: perdeu o 
direito à palavra e teve sua residência fixada em colégio jesuítico. 
Lançando mão de seus contatos na Corte, Vieira consegue deixar Portugal em missão da 
Companhia. Não era difícil para um grande orador como ele defender a canonização de 
mártires jesuítas em Roma. Sua proximidade com o papado favoreceu negociações que 
resultaram na revisão de seu processo. Em 1675, Vieira retorna para Portugal livre das 
determinações do Tribunal, recuperando o direito à palavra. 
A oratória foi instrumento de seu gênio. Manteve sempre com entusiasmo em suas 
pregações a profundidade e a clareza necessárias para a reflexão dos textos bíblicos. 
Estudava, pensava, escrevia. Assim, não edificou sua história com vistas a um desfecho 
épico nem tampouco se prestou a construções que lhe atribuíssem um perfil heróico. Ao 
contrário, usou de sua habilidade política para obter em Roma um diploma que o 
isentava da Inquisição portuguesa: gesto nada heróico. 
Em geral, construímos com maior ênfase e glória a história dos perseguidos pelo Santo 
Ofício que, mantendo-se fiéis às suas crenças, sofreram suplícios e foram executados. A 
sentença de Vieira, desta forma, retira-o do modelo heróico, exclui violências físicas, 
deixando-o apenas com a sua solidão no silêncio do cárcere. 
A cena inquisitorial, da qual Vieira é parte, não terminou em tragédia, nem tampouco 
foi gerida por gestos comovedores. Tudo transcorreu em meio a negociações 
sustentadas por sua primorosa defesa diante do Tribunal. 
O espetáculo teve início com a sobrevivência (e não morte) do narrador e concluiu-se 
com um longo trabalho de reelaboração de textos, cuja versão final foi refinada nos seus 
últimos anos de vida. 
Sem a glória dos heróis, pôde produzir, lentamente, um trabalho precioso, cujo poder de 
reflexão mantém sua obra viva até os dias de hoje. 
Afinal, os sermões eram seu ofício, sua vida. 
Ainda hoje, não é simples abandonar a estética romântica. Ela nos comove e nos 
impressiona. Facilmente enobrecemos a história daqueles que morreram em nome de 
seus ideais. A ação heróica valoriza comportamentos que explicitam seu conteúdo ético, 
a inteireza de caráter das personagens, facilitando para o receptor da mensagem a 
separação pedagógica entre bem e mal. Tudo pode ser explicado, tudo fica claro no 
dualismo vítima - algoz. 
Nesse sentido, a morte se constitui na maior prova que o herói pôde dar a si mesmo e 
aos outros de que tem certeza plena (fé) de que não existe dúvida alguma para aqueles 
que vivenciam o papel central do drama. A resposta final, conclusiva, exige apoteose da 
cena e passa a ser retida na memória dos sobreviventes, através de descrições 
enobrecidas pela firmeza com que se aceita a morte. 
Na verdade, a biografia de Vieira segue trajeto inverso. Ela expressa a valorização da 
obra, das formas de pensamento. Nela a personagem parece estar sempre jogando sua 
força de expressão para o texto que fala e escreve. Evita-se o sacrifício do texto e, 
portanto, do narrador. 
Para um homem do século XVII, acostumado a vincular sua crença ao que se pode ver e 
tocar, um comportamento estruturado, através da palavra, desmobiliza a grande cena 
inquisitorial. Os autos-de-fé constituíram-se em espetáculos repletos de emoções, não 
sendo fácil desenvolver paralelamente uma outra linguagem que respondesse a esse tipo 
de encenação. 
Vieira opta pelo caminho mais difícil: discutir a doutrina evitando as delações ou 
espetáculos. Sua missão realiza-se através de um longo rito de iniciação, em que os 
ouvintes aprendiam a pensar com uma retórica que é produzida plasticamente. Assim 
desafiava a ação, dando vida à sua narrativa repleta de luz e cor. Tornava imprecisas as 
provas de culpabilidade, utilizadas precariamente por testemunhas que nem sempre 
sabiam pensar mas queriam participar do espetáculo da acusação. 
Sua linguagem, capaz de se fazer figura, amolecia os motivos que sustentavam os 
desejos de violência. 
 
A palavra em ação 
 
A facilidade com que Vieira manipulava a linguagem não lhe permitiu passar impune 
pela Inquisição. Sua fé estava contida na forma com que se utilizava da palavra, tanto na 
vida religiosa quanto na vida política. E foi em meio às palavras, à retórica barroca, que 
ele teceu inúmeras significações à fé cristã, transformando seus fiéis em pensadores 
ativos. 
Como homem político realizou artimanhas, sabendo manipular as contradições 
presentes na vida da corte, dos negócios e do papado. O padre jesuíta não só conspirou 
contra o Sagrado Tribunal, como também tomou partido da coroa em detrimento da 
própria Companhia, usando da palavra como instrumento básico para o seu trabalho. 
Reproduziu os paradoxos do seu texto no cotidiano, marcado também pela presença dos 
contrários. Às vezes, estava comprometido com missões políticas, vivendo em meio ao 
fausto da Corte; outras vezes, pregava no sertão brasileiro, convivendo de perto com o 
negro e com o indígena. 
Mas foi a morte de D. João IV, de quem era conselheiro, que aprofundou os impasses 
políticos, favorecendo a sua denúncia para o Santo Tribunal. Afastado da vida 
palaciana, onde anteriormente encontrara seus protetores, não conseguiu apoio para 
escapar do cárcere. Suas intervenções públicas tocavam em temas proibidos. Defendia a 
abolição das discriminações de que eram vítimas os cristãos-novos. 
Vieira questionava o modo de proceder do Santo Tribunal e avaliava o prejuízo que 
sofria a economia portuguesa com as atividades persecutórias "contra a gente da nação". 
Pedia a Deus que o ajudasse a sabê-lo representar. Assim, em meio às suas reflexões, 
construiu um perfil de homem político que o indispôs, ainda mais, com a Inquisição. 
Sua conduta foi ousada em relação aos cristãos-novos. Suas falas, habilmente 
elaboradas, não impediram que a acusação encontrasse um bom motivo para retirá-lo da 
cena histórica. Seus escritos sobre o Espírito Profético de Bandarra, e o Quinto Império 
do Mundo, enviado ao bispo do Japão para consolar a rainha D. Luíza de Gusmão pela 
morte do marido D. João IV, serviram como matéria de acusação. O texto escrito para 
consolo da rainha o levou ao cárcere. 
 
A fortuna do pensamento barroco 
 
Para analisar a retórica do cativo em Vieira é necessário reconhecer a estrutura que 
caracteriza seus textos. Em primeiro lugar, vale a pena notar qual a significação da 
forma barroca de sua linguagem. Esse é o elemento central capaz de articular todo o 
seu discurso, portanto, não iremos tratá-lo como ornamento. 
A forma da linguagem organiza o pensamento de Vieira. Seu texto produz, 
constantemente, uma multiplicidade de sentidos capaz de esvaziar explicações tirânicas 
e conclusivas. Ou seja, a composição dos paradoxos(2) impede que a Verdade se 
constitua em um só plano. A palavra, dentro de sua estrutura retórica, deve desencadear 
um processo de reflexão, solapando a forte tendência do pensamento cristão, definidor 
constante de uma versão unívoca da narrativa. A diversidade de encaminhamentos 
sugeridos pelo texto torna mais difíceis as justificações ingênuas em favor da 
escravidão, destruição oumorte. 
O discurso de Vieira, nesse sentido, desorganiza uma percepção simplificadora da fé. 
Esse é o elemento que institui a beleza e a liberdade de seu pensamento. Criava-se um 
grande desafio, ao qual a linguagem deveria responder, mantendo, ao mesmo tempo, 
sucessivas indagações ao sentido dos textos sagrados. 
Portanto, refletir, ainda hoje, sobre a defesa de Vieira perante o Tribunal do Santo 
Ofício significa recuperar a palavra como forma capaz de dissolver o desejo de 
violência. 
A forma escolhida consistia em criar dúvidas no interlocutor de maneira que as 
afirmações aparentemente justas pudessem transformar-se em injustas. Essa passagem 
realizava-se através das diversas ordenações que Vieira dava à frase. 
Vieira maneja a disposição das palavras perante a proposição, alternando as 
significações, exercício que permite aos fiéis acompanharem a elaboração das 
mensagens contidas nos textos sagrados. Este é o seu trabalho, sua missão e por ele 
deverá sobreviver. 
 
A forma e a palavra 
 
O primeiro passo para se compreender a estrutura de pensamento de Vieira consiste em 
desvendar a forma e os argumentos centrais que nortearam a feitura dos sermões. Esses 
elementos permitiram que se compreendesse o significado da sua defesa perante o 
Tribunal do Santo Ofício. No silêncio das formas que traduziam sua reflexão constante, 
percebemos uma luta primorosa pela vida, uma vontade funda de poder usar novamente 
da palavra em público. 
Portanto, não se trata de buscar unidade, já que os escritos (os sermões e a defesa) não 
se parecem. Diante do Tribunal, Vieira quer apenas concordar, descobrir o que seus 
acusadores queriam ouvir, sem que eles notassem este desejo, estabelecido a priori, de 
refletir uma interpretação já conhecida da Bíblia. Nos sermões, ele pregava para ensinar 
aos fiéis. Na sua defesa, escreveu com o cuidado necessário para obedecer ao Tribunal 
e, assim, receber permissão para continuar expressando sua maneira de indagar. 
Tomemos como exemplo o processo pelo qual Vieira elabora sua estrutura narrativa: o 
Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real, no ano de 1655. Nele Vieira discute o 
significado da palavra de Deus: 
"Se a palavra de Deus é tão eficaz e poderosa, como vemos tampouco fruto da palavra 
de Deus ?" 
Observem a forma como ele institui este vocábulo Deus, utilizando como recurso a 
repetição. Repetindo é possível retomar o significado inicial recolocando-o em outro 
nível. O movimento indica que Vieira se considera um interlocutor em condições de 
traduzir um texto sagrado cujas significações nem sempre estão aparentes. 
Instituindo a dúvida, Vieira obriga seus interlocutores a duvidar, questionar 
circunstâncias históricas que permitem fazer florescer a onipotência. Desconfia dos 
gestos que definem, sem remédio, o suplício ou a morte do "outro". 
 
As figuras da trama retórica 
 
As figuras de linguagem utilizadas por Vieira não podem ser vistas apenas como 
reflexos da mensagem bíblica. Uma das principais imagens utilizadas pelo autor para 
explicar esse processo é o espelho. A metáfora do espelho é a mimese da própria forma 
de narração, capaz de identificar, transformar e multiplicar as significações da 
proposição. 
Assim, Vieira dissolve o sentido ingênuo contido na superfície das imagens 
apresentadas ao leitor ou ao ouvinte. O bem e o mal, o certo e o errado se aproximam e 
começam a ganhar semelhanças. Ou seja, o que parece bom nem sempre é bom, 
sugerindo ao interlocutor deve ter cuidado com as respostas prontas ou ações 
precipitadas. 
O processo de repetição de alguns elementos do texto não reforça a proposição inicial. 
Ao contrário, repetindo, Vieira transforma o significado favorecendo a ambigüidade de 
sentido. Observem: 
Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três 
coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não 
pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de 
noite, não pode ver por falta de luz. Logo há mister de luz, 
há mister de espelho e há mister de olhos. Que coisa é a 
conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de 
si, e ver-se a si mesmo ? Para esta vista são necessários 
olhos, é necessário luz, e é necessário espelho. O pregador 
concorre com o espelho, que é a doutrina, Deus concorre 
com a luz que é a graça; o homem concorre com os olhos 
que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das 
almas por meio da pregação depende destes três 
concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte; por qual 
deles havemos de entender que falta ? Por parte do 
ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de 
Deus?"(3) 
O primeiro movimento para iniciar a reflexão envolveu a presença de figuras: espelho 
(como doutrina), luz (como graça) e olhos (como conhecimento). As imagens definiram 
espaços visuais onde se construiu a trama retórica. A "história" a ser contada transcorre 
no interior da retórica e não do tema, permitindo à narração (como forma) ganhar um 
enredo. 
Os três elementos (espelho, luz e olhos) passam a ser organizados como se estivéssemos 
diante de um jogo que abrisse possibilidade para outras combinações com significações 
específicas para cada uma das ordens compostas. Vieira não compõe seis alternativas. 
Ele organiza dentro de princípios lógicos três ordens de significações. Mas é na sintaxe 
das frases que a liberdade do discurso se realiza, pois o narrador não autoriza conclusão 
em nenhuma das ordens. As variáveis criadas pela combinação dos elementos citados, 
embora respondendo a um critério lógico de argumentação, são implodidas quando 
vinculam o movimento do discurso ao emissor e ao receptor. 
Considerar a conversão de uma alma como o esforço de um homem de "entrar dentro de 
si e ver-se a si mesmo" é um zelo admirável do narrador para provocar a imaginação. A 
procura de si inicia uma ordem infindável de questionamentos. Portanto, a seqüência 
das imagens (espelho, luz e olhos) não estabelece uma direção certa ao receptor da 
mensagem. Cabe a ele analisar também, evitando a mera reprodução do que supõe ser a 
Verdade. 
A proposta de Vieira, para que fossem abolidas as discriminações de que eram vítimas 
os cristãos-novos, é um bom exemplo das possibilidades abertas por esta forma de 
pensar. Contudo, para os que liam os textos sagrados como repositórios de exemplos, a 
fala do padre jesuíta era muito ameaçadora. 
Vieira indaga, aparentemente, desobedece, verte e retroverte o pensamento, usando 
palavras-chave que, transformadas pela sintaxe, enriquecem as significações das 
proposições discutidas. Essa animação do sentido obtida através da retórica pode gerar 
no interlocutor, acostumado à imobilidade diante do texto, uma certa insegurança e 
irritação com o narrador. Realizar esta obra no interior da Igreja é tarefa dos que, de 
fato, acreditam na palavra. 
Ao invés de impor um significado moral, o que facilmente comove a platéia, ou ainda 
definir uma meta em nome dos fiéis, Vieira prefere elaborar proposições e objeções ao 
seu próprio pensamento. Como podemos observar no Sermão da Sexagésima - Semen 
est verbum Dei, Luc.,VIII: 
"1ª.Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em 
uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser 
culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? [...] 
2ª. Será por ventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? 
Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um 
estilo tão afetado, um estilo tão encontrado a toda a arte e 
a toda a natureza? [...] 
3ª. Será pela matéria ou matérias que tomam os 
pregadores? [...] 
4ª. Será, porventura, a falta de ciência que há em muitos 
pregadores ? [...] 
5ª. Será finalmente a causa que tanto buscamos, a vozcom que hoje falam os pregadores? [...](4) 
A narrativa montada a partir dessas proposições é bastante complexa. Quando o leitor 
começa ad-mirar um encaminhamento dado pelo narrador à própria organização das 
suas proposições, o texto que se desenvolve a seguir rompe o equilíbrio da hipótese 
inicial. Portanto, nada se harmoniza em definitivo. É impossível mirar-se neste texto. A 
cada momento surge uma nova linhagem de questões. A resposta que Vieira formula é 
unívoca apenas, na aparência: 
Sabeis (cristãos) a causa porque se faz, hoje, tampouco 
fruto com tantas pregações ? É porque as palavras dos 
pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. 
(5) 
A mensagem emitida descarta palavras que são apenas palavras, mas mantém, através 
dessa sintaxe, um lugar para o inexprimido, permitindo o surgimento de interpretações. 
Quais são afinal, as palavras de Deus? 
Vieira manipula a forma narrativa para que seu interlocutor questione a si mesmo em 
um trabalho lento e profundo de reflexão e introspecção. 
Refletir e examinar os próprios pensamentos são dois exercícios inadequados a épocas 
de perseguição e violência, quando poucos, muito poucos se arriscam a pensar e, muito 
menos, indagar ou indagar-se publicamente. Desse trabalho Vieira não se furtou. 
 
O espelho e a dúvida 
 
Embora sua forma de reflexão seja inovadora a ponto de desafiar a Inquisição, Vieira 
também incorpora à sua fala uma tendência marcadamente medieval: sabe acentuar a 
presença de imagens. Observem: 
O homem em qualquer estado que esteja, é certo que foi 
pó e há de tornar a ser pó. Foi pó e há de se tornar pó ? 
Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que 
é, é o que foi, é o que há de ser. (6) 
Freqüentemente ao se ler textos como esse, desfrutamos a sensação de que podemos 
materializar as idéias. Vieira nos interroga, mas antes constrói, como imagem, o pó. A 
imagem do pó nos introduz à reflexão. Constitui-se em cena e vai além da ilustração do 
tema proposto. O trajeto, aparentemente ilustrativo, se rompe com a repetição da 
palavra (pó) e permite uma reorganização da proposição, tirando a nitidez do desenho 
inicial da frase. Repetindo, o interlocutor se distancia da figura inicial e percebe a 
palavra como um signo capaz de sugerir diversos sentidos. 
As imagens seqüentes permitem que o discurso tenha unidade e ao mesmo tempo 
deslocam a significação de cada um dos elementos propostos inicialmente. A estrutura 
narrativa mantém o ritmo e a sonoridade através da repetição, recuperando com 
pequenas alterações outras dimensões para o texto enunciado. Observem o caminho que 
nos leva do pó ao ouro e do ouro ao pó: 
Por que se não converte o bronze em pó de bronze, e o 
ferro em pó de ferro? Mas o oiro, a prata, o bronze, o 
ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. 
Cuida o ilustre desvanecido que é de oiro, e todo esse 
esplendor em caindo, há de ser pó de terra. Cuida o rico 
inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo, há 
de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze, 
cuida o valente que é de ferro, um confiado, outro 
arrogante; e toda essa fortaleza, e toda essa valentia em 
caindo, há de ser pó, e pó de terra. (7) 
Vieira nos seus sermões repete imagens, mantendo um ritmo capaz de fazer o 
interlocutor pressentir na repetição as diferenças de um mesmo objeto. Dissolvem-se as 
imagens consolidadas por fragmentos da memória que serviam, apenas, para conservar 
uma verdade superficial. A repetição em Vieira não consolida uma fantasia. Ao 
contrário, repetindo, ele desvenda o mecanismo que nos leva a superar a figura, 
substituindo-a pelo símbolo. 
 
Dos Sermões à defesa 
 
Vieira consegue escapar das acusações que lhe atribuiu o Santo Tribunal. Havia 
sugerido à Rainha D.Luíza que o "real enfermo" não morreria, enquanto não se 
cumprissem as profecias de Bandarra. D. João seria o eleito para completar a missão de 
"resgatar os lugares e Santos e fundar, no mundo, a monarquia universal de Cristo." 
A Inquisição, ao avaliar as proposições de Vieira, julgou sua "ortodoxia duvidosa" e 
desgostou dos escritos considerando-os "temerários, cheios de falsidade e 
repreensíveis". 
Para responder a estas acusações, no cárcere Vieira redigiu sua defesa. Modificou a 
maneira de narrar para que ela exprimisse, sem sombra nem dúvida, "sujeição, 
rendimento e obediência", abrindo mão, como prisioneiro, de sua perigosa retórica 
barroca. Deixava de lado, no seu discurso de cativo, a beleza de um universo aberto, 
repleto de incertezas, optando por um outro, encerrado dentro da lógica desejada pelo 
Tribunal do Santo Ofício. 
Vieira decompõe as proposições, esclarece os motivos, responde às objeções de forma 
espelhada. Espelha com seu texto tudo o que o tribunal desejava ouvir. 
Constrói um princípio tirânico e utiliza-se de uma forma pedagógica para expressar-se. 
Seu texto permite aos inquisidores vê-lo como cativo, cativo no texto. Observem: 
Não he meu intento nem foy nunca (como por muitas 
vezes tenho declarado) defender as ditas Proposiçoens. 
Porque o que só pretendo & desegei sempre he mostrar a 
sogeição, rendimento, & obediencia, que professo & devo 
à Igreja & seus ministros & muito particularmente aos 
deste sagrado Tribunal, cujas resoluçoens são, & serão 
para mym o mayor, mais efficaz, & mais evidente motivo 
de tudo o que ouver de crer, seguir, approvar, e ter por 
mais acertado. E se acazo (sem o pretender) me tenho 
appartado em alguma cousa do caminho ou modo da 
resignação, com que mais se pode ou deve manifestar o 
dito obséquio, veneração & submissão, conforme os 
estilos do Santo Officio, he por eu não ter noticia alguma 
dos ditos estilos, nem quem neste ponto mos declarasse 
ou insinuasse, avendo pedido por muitas & repetidas 
instancias se me dissesse o modo com que podia & devia 
mostrar o dito obséquio mayor & summo, porque isso era 
só o que queria, dezejava & pretendia. E em 
conformidade desta disposição de meu animo & juizo, 
digo que se da representação dos motivos, que aqui 
determino fazer, se segue alguma presunção minima, de 
querer defender ou contrariar não só as resoluçoens, senão 
os acenos deste Sagrado Tribunal; desde logo cedo & 
desisto, & retrato tudo o que neste papel estiver escrito, 
nem quero que se veja ou tenha effeito algum; porque 
mais estimo & mais quero mostrar me obediente, que 
innocente." (8) 
 
A obediência em Vieira está clara tanto no conteúdo quanto na forma. Expressa-se na 
própria estrutura narrativa produzida para refletir, como se fosse um espelho, os desejos 
do Santo Ofício. Portanto, no processo, a retórica barroca se transforma na "outra", na 
retórica inquisitorial. 
Esta é a questão central que caracteriza o texto do cativo. Vieira participa de um diálogo 
com o cuidado e a abnegação de quem vê com distância as acusações. Atento à forma 
do texto, ele pode discriminar o significado das palavras e, assim, reproduzir "o outro" 
sem deixar marcas de sua presença. 
Portanto, ao responder, Vieira abandona o ritmo estilístico ao qual se dedicava. 
Abandona os conjuntos antitéticos e a forma com que repetia as palavras e as figuras. 
Em sua defesa observamos que a narrativa segue uma direção determinada. Formulam-
se questões e, a partir das Escrituras, Vieira coloca em cena o texto dos profetas: 
O 1 lugar he do 2 cap. de Daniel, onde se refere o sonho 
da estátua de Nabucodonosor. Tinha a estátua a cabeça de 
ouro, os peitos de prata, o ventre de bronze huma & outra 
perna de ferro, & os pés de ferro & barro. E enquanto 
Nabucodonosor estava admirado do que via (porque a 
estátua, como diz o texto, era grande & de aspectoterrível) vio mais que hum monte cahia ou se arrancava, 
sem mãos, huma pedra; a qual deo um golpe nos pés da 
estátua com tam maravilhoso effeito, que a estátua & seus 
metaes se desfizerão todos em pó & cinza; & a pedra, 
crescendo, se converteo em hum monte de tam imnensa 
grandeza, que cobrio toda a terra. Até aqui o sonho ou 
visão, da qual se esqueceo Nabucodonosor & Daniel, para 
maior evidencia do seu spirito profético, lha referio assy 
como tinha passado".(9) 
No inquérito, tanto as proposições elaboradas por Vieira quanto as respostas não 
guardam ambigüidades. Ao contrário, o texto é claro, lógico e vertebrado na forma 
exata com que a igreja desejava ver sua história contada. 
Os ornamentos, típicos dos sermões que mostram os paradoxos do mundo, 
desaparecem. Ou seja, diante da condição de processado, Vieira prefere expor com 
objetividade uma estátua compondo uma imagem contínua e linear. O texto citado é um 
entre muitos outros, onde se mantém a mesma estrutura. Uma escrita de defesa exclui a 
dúvida. A narrativa deve ser certeira e conclusiva. O depoimento é um trabalho que foi 
realizado com a perfeição de um artífice da linguagem. 
O ritmo barroco é extremamente perigoso, pois vive, enquanto forma, da imprecisão dos 
seus limites. Um texto que responde a uma acusação não pode deixar transparecer 
sentidos ocultos. A dúvida dos inquisidores poderia representar, para Vieira, a 
impossibilidade total de continuar, construindo formas de narração capazes de ensinar a 
pensar. 
Vieira sacrifica o estilo barroco para evitar irritação nos seus acusadores. É importante 
notar como a retórica ornada, em Vieira, exprime pluralidade de sentidos e como 
sentidos plurais são perigosos por sub-verter ordens. 
Dizer: "Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que é, é o que foi, é o que há de 
ser"(10) é extremamente perigoso. O reverso, a segurança, é repetir os textos sagrados 
na mesma ordem de significações: 
Não declarou o Anjo quaes fossem os quatro imperios 
significados nas quatro feras, mas he sentença commum 
de todos os Padres, sem discrepancia, que significão 
literalmente os mesmos quatro imperios dos Assyrios, 
Persas, Gregos & Romanos que significavam na estatua 
quatro metais. (11) 
Reproduzir ordens é seguro para o discurso inquisitorial. O nosso anti-herói, à moda de 
D.Quixote, obedeceu, escrevendo de próprio punho uma resposta em espelho para os 
algozes de sua retórica: 
É um espelho de tão diferente artifício, que olhando para 
ele, não nos veremos semelhantes a nós, mas ele só com 
sua vista nos fará semelhantes a si. (12) 
Talvez o cativo Vieira tenha permitido que em sua linguagem se refletissem as imagens 
dos acusadores por supô-las exteriores a si mesmo. Ou ainda, talvez, compôs tão sábia e 
rigidamente uma linha de argumentação por conhecer uma outra, a linha dos contrários. 
No caminho barroco de uma prosa poética, Vieira descobriu como obter sua liberdade. 
Sabia ver a si e ao outro. Assim pôde retornar livre ao signo do paradoxo. 
 
P.S. Neste simpósio de heróis vale a pena lembrar que o Padre Antônio Vieira morreu 
de velhice. 
 
 
 
1-)Comunicação apresentada no "I Congresso Internacional sobre a Inquisição" 
promovido pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências 
Humanas da Universidade de São Paulo, no dia 22 de maio de 1987. 
2-)Jamil Almansur Haddad selecionou, com muito apuro, alguns sermões e escreveu um 
ensaio crítico para publicação resumida da Difel dirigida pelo professor Vitor Ramos. O 
ensaio é extremamente rico, facilitando a leitura da obra de Vieira. Em diversos 
momentos deste capítulo, acompanhei suas sugestões. Elas abriram caminhos fecundos 
para se comparar a retórica dos sermões com a do texto em que Vieira responde ao 
Santo Tribunal. 
3-)Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real no ano de 1655. 
4-)Idem 
5-)Idem 
6-)Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, pregado em Roma na Igreja de Santo Antônio 
dos Portugueses, no ano de 1672. 
7-)Idem 
8-)Idem, Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício, Salvador, Livraria Progresso, 
1957, tomo I, p.3. Esta edição apresenta um interessante prefácio e notas de Hernani 
Cidade, que nos permite localizar várias questões importantes para a compreensão do 
texto. 
9-)Idem, ibidem, p. 235. 
10-)Idem, Sermão da Quarta-Feira de Cinzas. 
11-)Idem, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício, tomo I, p.237. 
12-)Sermão do Demônio Mudo, pregado no convento de Odivelas, Religiosas do 
Patriarca São Bernardo, no ano de 1651.

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