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A LAMENTÁVEL METÁFORA DOS RAMOS DO DIREITO

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A LAMENTÁVEL METÁFORA DOS “RAMOS” [GALHOS] DO DIREITO 
 Entre essas metáforas, há um tipo vegetal, arbórea, que se vê em 
muitas ciências. Trata-se dos “ramos” do direito, como se a ciência jurídica 
fosse um tronco em crescimento, do qual vão saindo ramos. Cada um desses 
ramos seria uma das especialidades científicas dentro do saber jurídico (v.gr., 
direito civil, direito comercial, direito trabalhista). Esta é uma metáfora muito 
empregada, mas é péssima. Por quê? Porque quando se recorre a uma 
metáfora, espera-se que a comparação utilizada seja boa, não qualquer coisa 
que possa parecer. Se você diz a sua namorada que ao vê-la você arde em 
chamas, a ideia é entendida; mas se você queria transmitir-lhe que sente por 
ela um profundo amor, que acredita ser eterno, a metáfora não foi muito feliz, 
porque não é essa a ideia que se entende. E mais, se a eleita esperava uma 
declaração de amor mais amorosa, é muito possível que responda 
decepcionada, “é somente isso que te interessa”. De modo que, tanto em 
matéria de amor, como de ciências, deve-se escolher muito bem as metáforas. 
Ou não usá-las. 
 Como esta metáfora dos “ramos” do direito já possui carta de cidadania, 
y é empregada há muitos séculos, vamos aproveitá-la, mas ao inverso. Ou 
seja, para ver o que as especializações jurídicas não são. Porque, justamente, 
se há algo que elas não são é ramos de um tronco comum. Geralmente, 
admite-se como tronco o direito civil. No entanto, esta presunção não resiste a 
uma análise mais aprofundada. Primeiramente, porque o conceito desse 
adjetivo “civil” em si tem mudado drasticamente com o decorrer do tempo e 
com as circunstâncias. Na Roma antiga, era usado para referir-se à cidade 
(civitas, em latim) e aos cidadãos (cives, em latim); quer dizer, aos romanos. 
No ano de 212, o imperador Caracalla estendeu a cidadania romana a quase 
todos os habitantes do enorme império, de modo que o conceito de “civil”, que 
originalmente só havia abarcado a alguns milhares de pessoas, que viviam 
todas na cidade de Roma, passou a referir-se a milhões de seres humanos, 
que habitavam das [planícies] do continente asiático até o oceano Atlântico, e 
da Gran Bretânia até o norte da África. 
 No decorrer desse tempo (Roma apareceu até o século VIII a.C., e 
deixou de ser capital imperial em 476 d.C.), o “civil” abrangeu todas as 
questões. Ou seja, tanto o casamento como a compra e venda, a violação e o 
homicídio. Tudo. No entanto, quando na América Latina do século XIX se diz 
“direito civil”, ao que se faz referência concretamente é somente àquela parte 
da ciência jurídica que se ocupa de determinados temas: a pessoa em si, seus 
atributos (nome, endereço, estado, capacidade), os fatos e atos jurídicos 
(casamento, contratos, etc.), as obrigações de conteúdo patrimonial, os direitos 
“reais” (de res, “coisa” em latim), as sucessões e outras questões acessórias. 
Quer dizer, uma quantidade de matérias enorme, porém muito menos ampla 
que a abrangida na Roma antiga. Então, quando se fala do direito civil como 
“tronco”, qual dos sentidos do adjetivo “civil” estaria sendo usado? Nenhum 
tronco verdadeiro muda de substancia ao longo de sua vida. Pode envelhecer, 
crescer, tornar-se mais grosso ou forte, ou debilitar-se. Porém o tronco de um 
pinheiro permanecerá sempre sendo tronco de pinheiro, e não se transformará 
em tronco de eucalipto. De modo que a imagem arbórea é falsa. 
 Pior ainda, todo ramo [galho] de uma árvore participa da substância do 
tronco do qual surgiu. Não traz elementos “novos”. Um ramo de pinheiro não dá 
folhas de eucalipto, tampouco um ramo de eucalipto produzirá pinhas. Nunca 
(salvo se fizermos uma mutação genética, sendo que não teríamos, realmente, 
nem pinheiro nem eucalipto, mas outra coisa diferente). Por isso, todos os 
ramos de uma árvore contem elementos muito diferentes e até mesmo 
incompatíveis entre si. Por exemplo, a analogia pode ser usada em temas civis 
(e não em todos), mas jamais em questões penais (se um código castigasse “a 
relação sexual violenta com uma mulher”, seria inconstitucional empregar essa 
figura para penalizar a quem violentou um homem; seria necessário reformular 
o código). 
 Em matéria civil e comercial, a confissão é uma prova importante: se 
cobro a Juan um empréstimo de mil pesos mais um lucro de 10% anual, e este 
declara que realmente me deve isso, mas que a taxa de juros foi de 5% ao ano, 
tanto o empréstimo como os 5% ao ano ficam reconhecidos, e fora do tema a 
decidir pelos tribunais. O juiz poderá estabelecer uma taxa que varie de 5 a 
10%, mas não poderá fixar mais de 10% (seria uma sentença além do que foi 
pedido), nem menos de 5%, porque isso estaria fora de debate. No entanto, no 
direito penal, a confissão, que era importantíssima antigamente, chamada “a 
prova das provas” (e por isso se praticava, legalmente, a tortura, para que os 
acusados “confessassem”), na atualidade converteu-se em um elemento 
praticamente irrelevante. Se um senhor se apresenta à polícia, declara ser 
autor do atentado a AMIA, e pede para ser preso de imediato, para aliviar sua 
consciência, mas não aporta outra prova de semelhante afirmação, nem sequer 
será ouvido pelos agentes, cuja reação poderá ir desde a advertência pela 
moléstia até o riso. Se atualmente um juiz penal condenasse alguém baseado 
em sua confissão, seria forte candidato a um muito merecido juízo de 
destituição. Ao mesmo tempo, os juízes civis reiteradamente sentenciam a 
partir das confissões dos litigantes. 
 Logo nossa suposta “árvore” é um verdadeiro monstro, com galhos de 
pinheiro, de eucalipto, de figueira e de salgueiro, e para piorar com um tronco 
que muda de substância com o passar do tempo. Mais que um vegetal 
terrestre, parece um delírio da ficção científica. Mas é ainda pior. Porque estes 
ramos trazem elementos que não vem do tronco desta árvore, mas de outras 
árvores diferentes. Por exemplo, tomemos o júri, uma instituição que – apesar 
de ser muito discutida – conta com muitos defensores na América Latina e está 
se estendendo, timidamente, pela Argentina dos últimos tempos. As origens 
mais remotas do júri parecem estar em um tribunal grupal que se formava na 
ilha da Gran Bretanha no século IX, na região que estava governada pelos reis 
dinamarqueses, cuja capital era a cidade nortista de York. A princípios do 
século XI, o sistema, um pouco modificado, havia se estendido a todo o 
território chamado Inglaterra (quando esses reis dinamarqueses o 
conquistaram). Pouco depois, em 1066, a ilha foi invadida pelos escandinavos, 
um povo de remota origem dinamarquesa, mas que vinha do norte da França e 
falava francês. Seu chefe, o duque Guillermo de Normandía, tornou-se rei da 
Inglaterra (Guillermo o conquistador). Tanto ele como seus descendentes, 
trouxeram juristas da França e da Itália, formados no direito romano, que 
fundaram a Universidade de Oxford e influenciaram muito desde o inicio na 
construção do direito inglês. Então esses reis escandinavos retomaram a velha 
instituição dinamarquesa que era a base arcaica do júri, e a tingiram de 
formalidades tomadas do direito romano. Dessa forma, para os tempos do 
grande legislador inglês, o rei Eduardo I Zanquilargo (o “mau” do filme de Mel 
Gibson Coração Valente), a cavalo entre os séculos XIII e XIV, o júri já havia 
tomado substancialmente, a forma atual. 
 Então, quando e um país latino-americano um tema se resolve com a 
participação de um júri, “o que aconteceu com esse ramo?” Por acaso é 
transgênico? O consentimento informado para os temas médicos provém do 
direito estadunidense (norte americano), e atualmente está sendo imposto - 
com razão – em toda a América hispânica. Apesar de apresentarelementos 
latinos (a ideia de “contrato” que está em sua base), é um resultado 
característico das colônias protestantes (de religião puritana) estabelecidas 
desde o século XVII na América do Norte inglesa. É, pois, um “fruto” de uma 
árvore diferente. De uma sequoia estadunidense, digamos. Mas o que faz 
florescendo no galho de uma oliveira latina? Se os sistemas jurídicos fossem 
árvores, isso seria uma aberração. Porém, como não são, os exemplos desse 
tipo são muito abundantes, e os resultados destas misturas podem ser 
excelentes, como neste caso. 
 Na Europa da Idade Média, sobretudo quando foram diminuindo as 
terríveis condições de violência que reinaram – com poucas intermitências – 
entre os séculos V e XI, as cidades começaram a repovoar-se, multiplicaram-se 
os artesãos e algumas pessoas começaram a dedicar-se ao comercio. Este 
requeria deslocamentos físicos, dada a existência de um sistema de correios 
estável e confiável; era necessário, pois, viajar levando dinheiro para comprar a 
mercadoria. Porém o dinheiro eram moedas de metal (as mais importantes 
eram de ouro e de prata, pesadas e grandes). Os mares eram perigosos, ainda 
infestados de piratas, e os caminhos estavam cheios de ladrões (as vezes, os 
mesmos encarregados dos territórios pelos quais se cruzava eram os piores 
saqueadores). Os próprios capitães dos barcos podiam mudar de opinião 
durante o trajeto, matar o passageiro, ou vende-lo como escravo em outro país, 
e ficar com seus bens, se esses fossem atrativos e fáceis de apropriar-se. Além 
disso, as embarcações eram muito frágeis, e os naufrágios aconteciam 
permanentemente. Salvar a vida agarrado às madeiras do barco despedaçado 
era uma possibilidade, mas fazer isso com uma bolsa de moedas de prata já 
era outra história. 
 Nesse contexto foi se desenvolvendo uma instituição nova, criada pelos 
comerciantes e pelos banqueiros (outra novidade desse período), que 
empregou elementos jurídicos de origem romana, misturados a outros 
desenvolvidos antes. Como os banqueiros de diferentes cidades costumavam 
manter boas relações entre si, ou inclusive formavam parte das mesmas 
famílias, ou nacionalidades (p. ex., eram originários de Florência ou de 
Génova), surgiu a ideia de que um deles escreveria uma carta ao outro, que 
levaria consigo ao comerciante, nestes termos: “Haverás de pagar ao portador, 
Juan Florentino, à vista desta carta, a quantidade de cem moedas de ouro”. O 
banqueiro que emitia a carta recebia as cem moedas do comerciante, e as 
trocava pela carta. O receptor (pagador), ao ser-lhe apresentada a carta, a 
trocava novamente pelas moedas, que extraia de seu próprio caixa, por meio 
de um sistema de conta corrente com o banqueiro emissor. Assim os 
comerciantes viajavam sem as moedas e ninguém se interessava em roubar-
lhes a carta, porque somente Juan Florentino podia apresentar-se para cobrá-
la. Este inteligente mecanismo, sem o qual o comercio jamais teria florescido, 
foi se aperfeiçoando no decorrer dos séculos posteriores. Aceitou-se assim que 
as cartas poderiam ser endossadas, ou seja, transmitidas de um comerciante a 
outro, de modo que passaram a ser usadas como forma de pagamento. Por 
exemplo, Juan Florentino entregava cem moedas a seu banqueiro, pensando 
em viajar a Constantinopla para adquirir telas persas, mas logo por razões de 
saúde desistia dessa empreitada. Então, podia utilizar essa carta para pagar a 
Miguel Milanés parte de uma dívida de duzentas moedas que tinha com ele. 
Endossava-lhe a carta, assinando no dorso, e a entregava. Miguel, se 
aceitasse, poderia emprega-la posteriormente em suas compras em 
Constantinopla. 
 Desta forma nasceu a “carta de porte” (porque o comerciante a portava 
consigo), ou “letra (um antigo sinônimo de carta) de câmbio” (porque trocava-se 
por moedas de metal). Deste documento transcendental derivaram, a seu 
modo, os cheques, as letras de câmbio e, em definitivo, o papel moeda, que é 
o mecanismo empregado por todos os países do mundo como forma de 
pagamento. Como os colocamos em nossa suposta árvore? Costuma-se 
entender que integram o direito comercial, porque foram criados pelos 
comerciantes para o comercio. No entanto, atualmente são empregados por 
qualquer um para qualquer coisa. Uma professora primária que recebe seu 
mísero salário mediante um cheque não está realizando um ato comercial, de 
certo. Se responde que o ato do comercio o realiza o banco; ele sim é um 
comerciante. Mas, e em se tratando de um banco público, que oficialmente não 
tem (e repudia) finalidade de lucro? A coisa se complica. 
 Por outro lado, costumava-se sustentar que o direito comercial deriva do 
direito civil (o “tronco”). Porém, é bem certo que nas letras de cambio há 
elementos civis (o contrato de empréstimo, a “boa fé”, etc.), também aprecem 
outros que são novos, originados nas circunstâncias do comércio medieval. 
Então, como poderia um ramo ter elementos que não se acham no tronco? 
Outra vez, observamos como fracassada a metáfora arbórea. Além do mais, os 
bilhetes (papel moeda) se originam nas letras de cambio, e são um elemento 
de direito administrativo (público), que é muito diferente do comercial (privado). 
De modo que aqui teríamos um ramo que entra por um lado e sai por outro, ou 
dois ramos que se juntam e originam um terceiro, fenômenos nunca vistos na 
botânica. 
 Finalmente (e poderíamos seguir dando-lhes paus, já que se trata de 
madeiras esta triste metáfora), os que atribuem ao direito o caráter de “tronco” 
aparentam elogiá-lo muito, mas na verdade o amam pouco. Porque os troncos 
não dão frutos senão por meio de seus galhos (ramos), e o direito civil, se o 
entendemos no sentido atual (que é o já referido do século XIX, com alguns 
agregados – p. ex., os direitos “existenciais”, ou “pessoalíssimos”, ou 
“humanos” -, que são estudados a partir da ótica civil em conjunto com outras: 
a do direito constitucional, a do direito administrativo, a do direito penal, etc.), 
segue crescendo e florescendo, e dando lugar a novas teorias, soluções e 
debates. O que é, pois? Por acaso um curioso ramo de si mesmo? Um “tronco-
ramo”? As metáforas são perigosas.

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