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1RBCE - LATN A POLÍTICA COMERCIAL DO GOVERNO LULA R B C E - R ev is ta B ra si le ira d e C om ér ci o Ex te rio r n° 8 3 z a br il - j un ho d e 20 05 sé rie BR IE F LATIN AMERICAN TRADE NETWORKLATN WITH THE SUPPORT OF IDRC (CANADA) Decorridos dois anos e meio do mandato do governo Lula, sua política externa e sua estratégia de negociações comerciais são, com freqüência, objeto de elogios e alvo de críticas. Isto reflete acima de tudo o fato de que as negociações comerciais tornaram-se, além de um componente essencial da política comercial brasileira desde meados da década passada, um tema relevante na agenda de política doméstica do país, tendência que já se evidenciava nos últimos anos do governo anterior. Uma reflexão cuidadosa acerca dos fatores que condicionam e que movem a estratégia brasileira de negociações comerciais, bem como acerca de seus limites e possibilidades, é o que se vai ler nos quatro Briefs publicados por LATN em colaboração com a Funcex. Trata-se da primeira publicação coordenada pelo núcleo brasileiro de LATN e nosso objetivo é, com esta publicação, dar a mais ampla difusão possível a trabalhos técnicos que contribuam para aprofundar os debates nas áreas pertinentes à política comercial. Yana Chang Yana Chang Yana Chang *Texto publicado em 04/2005 ** Portanto, análise somente dos 2,5 primeiros anos do 1° mandato Lula (completo é de jan/2003 a jan/2007) 2 RBCE - LATN A POLÍTICA COMERCIAL DO GOVERNO LULA: CONTINUIDADE E INFLEXÃO PEDRO DA MOTTA VEIGA Pedro da Motta Veiga é sócio da Ecostrat Consultores Ltda. 1 Mas o que é o paradigma globalista, que está na base da política externa brasileira há quatro décadas? É uma visão da posição brasileira nas relações internacionais que resulta “da articulação (...) de diversas influências intelectuais: a crítica nacionalista à matriz americanista da política externa (...); a visão da CEPAL das relações centro-periferia; e a tradição do pensamento realista nas relações internacionais, em particular a concepção do sistema internacional como um âmbito anárquico” (Soares de Lima, 1994). Segundo esta autora, “no início dos anos 60, a política externa encontraria no eixo Norte-Sul o espaço adequado para o exercício de um papel protagônico pelo Brasil. O eixo Norte-Sul possibilitaria ao MRE (...) encontrar na diplomacia econômica multilateral uma missão organizacional específica: complementar as políticas governamentais de desenvolvimento industrial”. O BRASIL E AS NEGOCIAÇÕES COMERCIAIS: POSIÇÕES NEGOCIADORAS E CONDICIONANTES Ao longo dos anos 90, o Brasil abriu um vasto leque de frentes de negociação comercial, nos âmbitos sub- regional (Mercosul), regional (Alca) e birregional (União Européia). Nestas negociações, o país adotou posturas em geral defensivas. No Mercosul, resistiu a propostas típicas de um processo de integração que se pretendia “profundo” e que implicassem abrir mão de graus todavia limitados de soberania na área econômica. Na OMC, o Brasil tem na agricultura praticamente o único componente de sua agenda ofensiva. Nas negociações da Alca e com a União Européia, situação semelhante se reproduz – posturas defensivas dominando a posição brasileira nos demais temas de negociação. Esta situação não pode surpreender: ela traduz o fato de que, no campo dos condicionantes domésticos que moldam a estratégia comercial brasileira, houve, nos anos 90, muito mais continuidade do que ruptura em relação às décadas anteriores. Dois fatores parecem especialmente importantes para explicar a dominância das posturas defensivas do Brasil nas negociações comerciais dos anos 90: ! o primeiro envolve a economia política do processo de reformas liberalizantes no Brasil e, em especial, a primazia que os setores import-competing lograram manter, na área de política comercial, sobre os setores e interesses exportadores, apesar da liberalização unilateral levada a cabo no início da década. Diversos setores beneficiados pelo regime de substituição de importações mantiveram, depois da liberalização, níveis elevados de proteção nominal e efetiva e alguns deles receberam novos incentivos aos investimentos; e ! o segundo diz respeito à matriz hegemônica de política externa, caracterizada pelo objetivo de neutralizar os fatores externos que possam comprometer os objetivos de desenvolvimento econômico e de consolidação da capacidade industrial, percebidas como condição indispensável para uma atuação autônoma do país no sistema internacional. Nessa área, a continuidade prevaleceu com muito pouca ambigüidade: o paradigma globalista, hegemônico na política externa brasileira desde os anos 60, manteve-se nesta posição e “enquadrou” a lógica política de participação do Brasil no Mercosul e nas demais iniciativas de liberalização preferencial em curso.1 O peso da matriz de política externa na definição dos objetivos e instrumentos da política comercial não poderia ser minimizado, no caso do Brasil. Como Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 3RBCE - LATN A estratégia de negociações comerciais é instrumentalizada domesticamente para remediar, pelo menos em parte, o desgaste causado junto ao eleitorado do PT pela adesão governamental à ortodoxia macroeconômica 2 De fato, a postura do Brasil frente ao Mercosul traduziu estritamente a percepção de que os limites da cessão de soberania vinculada à integração devem ser definidos por objetivos nacionais que antecedem, em termos de prioridade política, os objetivos do projeto sub-regional e que não deveriam ser por este afetados. Ou seja, no caso brasileiro, o projeto de desenvolvimento industrial nacional mantém-se intacto na matriz hegemônica de política externa no âmbito do Mercosul, sequer se combinando com elementos de um projeto industrial regional. Ao contrário, nas negociações com os sócios brasileiros no Mercosul, o projeto de desenvolvimento nacional se expressou sistematicamente como um processo de competição e conflito e quase nunca como cooperação. 3 Vale lembrar que, no início da Rodada Uruguai, o Brasil se opôs fortemente à inclusão, na agenda multilateral, dos chamados novos temas de negociação: comércio de serviços, investimentos e TRIPs. Na década de 90, embora o país tenha firmado vários acordos bilaterais de proteção de investimentos, nenhum deles foi ratificado pelo Congresso. observa Soares de Lima (2004), por questões de formação histórica do Brasil, “as definições de ameaças externas e as percepções de risco são basicamente derivadas de vulnerabilidades econômicas e não de segurança”, o que gerou, na visão das elites, a percepção de que a política externa tem como função principal reduzir aquele tipo de vulnerabilidade e “abrir espaço” para as políticas de desenvolvimento nacional. No campo estritamente comercial, esta função atribuída à política externa se traduziu, no GATT, em demandas por tratamento diferenciado e mais favorável no âmbito multilateral e, na Rodada Uruguai, em resistências para ampliar a agenda de comércio para além das medidas fronteiriças. O paradoxo da situação em que o Brasil diversificou as frentes de negociação comercial, mas adotou sistematicamente, em todas elas, posturas essencialmente defensivas, remete ao peso destes dois condicionantes domésticos na definição da estratégia de política comercial do país. Resta explicar, então, porque o Brasil envolveu-se em processos ambiciosos de negociação preferencial na década de 90 em vez de concentrar seus esforços na esfera multilateral, menos exigente em termos de liberalização efetiva e de estabelecimento de regras em novas áreas como investimentos, compras governamentais, etc. No que se refere ao Mercosul,a iniciativa de investir em um projeto de integração sub-regional relaciona- se, no plano da política comercial, à meta de consolidar a abertura do início dos anos 90 e, no campo da política externa, ao objetivo de aumentar o capital político do país no mundo da pós-Guerra Fria e da difusão da “regionalização”. No entanto, a adesão brasileira ao projeto sub-regional respeitou estritamente os condicionantes domésticos acima apontados, mesmo quando isso gerava conflitos com os parceiros do bloco ou com os objetivos – explícitos no caso do Mercosul – de integração profunda.2 No que diz respeito às negociações com os EUA e a União Européia, os “riscos da exclusão” ou da perda adicional de preferência frente a outros concorrentes nesses grandes mercados ajudam a explicar a decisão de participar dos processos negociadores. Mais além, difundiu-se, nos meios responsáveis pela formulação da política comercial, a idéia de que acordos preferenciais são um instrumento adequado para obter mais rapidamente ganhos de acesso a mercados que podem tardar a concretizar-se no foro multilateral. Por outro lado, o processo de revisão do paradigma de políticas públicas em curso no país nos anos 90, ao longo de uma trajetória de revisão liberal dos marcos regulatórios domésticos, tornava policymakers e parte da opinião pública menos refratária não somente à idéia, implícita nessas negociações, de que o Brasil seria levado a viver um novo ciclo de liberalização comercial, mas também ao tratamento, nas negociações comerciais, de temas como serviços, investimentos, serviços e compras governamentais.3 Ainda assim, o Brasil adotou, nas negociações relativas a esses temas, posturas nitidamente defensivas, especialmente na Alca, em que defendeu acordos GATS-like na área de serviços e resistiu a disciplinas ambiciosas nas áreas de investimentos e compras governamentais. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 4 RBCE - LATN A atitude dominante ainda é de ambigüidade em relação ao projeto sub-regional: positiva por seu potencial para alavancar exportações e “excessiva” quando requer regras 4 Visto desde Brasília, esse risco é mais político do que econômico. De acordo com um ex-embaixador, a Alca “vai expandir e legitimar a proeminência dos EUA nas Américas, favorecendo a emergência de um mundo unipolar” (Souto Maior, 2001). A POLÍTICA COMERCIAL DO GOVERNO LULA: CONTINUIDADE E MUDANÇA NA ESTRATÉGIA DE NEGOCIAÇÕES COMERCIAIS Na área de negociações comerciais, a estratégia do Governo Lula apresenta, em relação àquela praticada pelo dois governos Cardoso, ao mesmo tempo linhas de continuidade e de mudança. Como se viu, nos governos Cardoso, a estratégia de negociações respeitou estritamente os limites impostos pelas condicionalidades domésticas relacionadas à visão dominante de política externa e à economia política da política comercial, mas abriu espaço para iniciativas que potencialmente entravam em conflito com essas condicionalidades – ou, pelo menos, testavam alguns dos seus limites: as negociações preferenciais com os EUA e a União Européia. Diante desse quadro, o governo Lula adota uma série de orientações que reduzem a ambigüidade herdada dos governos anteriores, especialmente no que diz respeito às negociações preferenciais com os países do Norte: nesses casos, a condicionalidade relacionada à política externa voltou a pesar fortemente nas posturas negociadoras do país e não por acaso esse peso se faz sentir com maior intensidade nas negociações com os EUA na Alca, processo percebido, dentro do paradigma dominante de política externa, como a opção estratégica menos desejável e mais arriscada para o Brasil.4 Essas negociações foram paralisadas a partir do primeiro trimestre de 2004 e a postura brasileira de resistência a um projeto visto como ameaça não apenas econômica, mas também política, foi certamente um dos fatores que contribuíram para o impasse em que foram lançadas as negociações. Mesmo nas negociações com a União Européia, que adquiriram uma funcionalidade política maior para o governo após a paralisação da Alca, a postura brasileira traduziu uma resistência ainda maior do que a verificada nos anos anteriores em relação ao tratamento de temas considerados sensíveis em si mesmos, como serviços, investimentos e compras governamentais. No caso deste último tema, inclusive, o Brasil afastou-se de compromissos de negociação, ao se recusar, a partir de 2003, a negociar questões de acesso a mercados. Portanto, as negociações preferenciais com os países do Norte perderam peso, na estratégia do novo governo, e as demandas brasileiras relacionadas aos países desenvolvidos – essencialmente na área agrícola – tendem a se concentrar na esfera multilateral. As negociações preferenciais continuaram a ser percebidas como instâncias relevantes para a negociação de acesso a mercados (não de regras), mas, como demandeur na área agrícola, tende a se tornar claro para o Brasil que a melhoria das condições de acesso nesta área também dependem, pelo menos em parte, da negociação de regras aplicáveis a subsídios agrícolas, o que somente ocorrerá na OMC. Na OMC, a evolução da estratégia brasileira revela crescente preocupação ofensiva com a liberalização do comércio agrícola e, do lado defensivo, confere importância ao tema da manutenção de margens de liberdade na área de políticas microeconômicas com impactos comerciais. Também na Rodada de Doha, o Brasil liderou a formação do G-20 – coalizão de países em desenvolvimento focada nas negociações agrícolas – e contribuiu ativamente para a obtenção do consenso que permitiu o acordo de julho de 2004 sobre frameworks de negociação. A vitória obtida na OMC em dois panels agrícolas contra países desenvolvidos legitima internamente tal estratégia e confirma, aos olhos dos policy-makers brasileiros, a posição única que cabe ao multilateralismo na estratégia de negociações do Brasil. Mais recentemente, o país sinalizou com a adoção de uma postura ofensiva nas negociações de modo 4 em serviços, também na OMC. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 5RBCE - LATN No que se refere às perspectivas de aprofundamento da integração internacional, prevalecem as posições que vêem nas negociações muito mais riscos do que oportunidades 5 Em boa medida, o G-20 pode ser entendido como uma externalidade positiva associada a iniciativas não necessariamente comerciais de aproximação entre países em desenvolvimento, especialmente Brasil e Índia. De fato, o governo brasileiro entende que a defesa da liberalização em modo 4 constitui o principal denominador comum dos interesses dos países em desenvolvimento nas negociações de serviços e que é, a partir desse tema, que se pode criar uma “plataforma ofensiva” de negociação para esses países, que certamente será objeto de muitas demandas dos países desenvolvidos em outros modos de prestação de serviços. Deve ser lembrado, a propósito, que alguns países em desenvolvimento, como a Índia – parceiro essencial do Brasil no G-20 – estão entre os principais demandantes de liberalização em modo 4 na OMC. A importância, na estratégia de negociações do Governo Lula, de considerações de política externa típicas do paradigma “globalista” não se evidencia apenas na revisão do modelo de negociações com os países do Norte, adotado nos anos 90, em que as negociações preferenciais desempenhavam papel relevante, senão central. Ela também se manifesta na “volta” à estratégia brasileira do componente de cooperação Sul-Sul. De fato, a partir de 2003, adquiriram relevância na estratégia do Brasilas negociações com outros países em desenvolvimento. Dois elementos estão presentes na reativação, pela política de negociações do Brasil, da dimensão Sul-Sul. Em primeiro lugar, há a busca de formas de cooperação econômica com outros grandes países em desenvolvimento, situados fora da América do Sul. A iniciativa IBSA (Índia-Brasil- África do Sul) é uma ilustração desse tipo de proposta, em que o componente comercial das relações bilaterais pode, inclusive, não desempenhar o papel central, embora a própria iniciativa possa gerar externalidades positivas para o país em foros multilaterais.5 Em segundo lugar, encontra-se a prioridade explicitamente atribuída ao aprofundamento do Mercosul e à intensificação das relações econômicas com a América do Sul, que recoloca a região no centro da estratégia brasileira, com duas qualificações: ! o componente comercial é percebido pelos policy-makers como apenas um dos elementos da estratégia de fortalecimento dos vínculos regionais do Brasil: no caso do Mercosul, por exemplo, afirma-se a necessidade de incluir na agenda temas relacionados à política industrial, ao financiamento de investimentos, enquanto, no caso das relações com o restante da América do Sul, o tema da infra-estrutura recebe prioridade por parte do Brasil. Além disso, preocupações com questões políticas e de segurança – narcotráfico, guerrilhas, etc – reforçam a prioridade concedida, na política comercial, à América do Sul; e ! na área comercial, o Brasil tem admitido uma abordagem das concessões baseada no conceito de reciprocidade assimétrica: países menores e/ou menos desenvolvidos recebem tratamento mais favorável do que o Brasil, especialmente nas negociações com a Comunidade Andina. Para os formuladores da política, trata-se do preço a pagar pelo exercício de uma liderança benévola do Brasil na região. Não há nenhuma indicação concreta de que a disposição a pagar um preço pela liderança regional seja suficiente para gerar uma mudança substancial na postura negociadora do Brasil em relação ao Mercosul, especialmente quando objetivos de política nacional entrarem em conflito com requisitos de implementação de regras e disciplinas sub-regionais. Por enquanto, o preço a pagar tem se traduzido em uma postura de tolerância em relação a medidas protecionistas da Argentina e em concessões assimétricas negociadas com os países da CAN, posição que se poderia denominar “unilateralismo benévolo”. Em suma, a estratégia de negociações do governo Lula pode ser tida como um investimento simultâneo: (i) em um multilateralismo compatível com objetivos Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 6 RBCE - LATN A mudança mais significativa decorre menos de uma revisão voluntarista das estratégias de negociação anteriores do que de um processo de transformação estrutural da economia brasileira de desenvolvimento – via OMC e aproximação com outros países em desenvolvimento –; e (ii) na inserção regional do país, em detrimento da consolidação de laços preferenciais com países desenvolvidos, que absorveram boa parte dos esforços negociais dos governos anteriores. Segundo Soares de Lima (2004), esta estratégia tem como pano de fundo um “entendimento da ordem internacional” em que “vetores multipolares” são relevantes e devem ser fortalecidos para evitar a consolidação de uma ordem unipolar, moldada pelos interesses da potência hegemônica. Essa estratégia inclui os seguintes elementos: ! intensificação das demandas na área agrícola, tanto nas negociações preferenciais – para acesso a mercados – quanto na OMC – para regras; ! postura defensiva na área de tarifas industriais, tanto nas negociações preferenciais com países desenvolvidos quanto na OMC, posição que pouco difere daquela adotada nos governos anteriores. Esta postura não exclui, no Governo Lula assim como no que o precedeu, a idéia de que a conseqüência “natural” das negociações de livre comércio (com países desenvolvidos) seria um novo e amplo ciclo de liberalização comercial decorrente da eliminação das tarifas que atualmente protegem a produção doméstica. Mas ela inclui a defesa, nas negociações preferenciais com os países desenvolvidos, de prazos de transição longos para a desgravação tarifária de produtos sensíveis e algumas regras de tratamento mais favorável para os países do Mercosul; ! intensificação da postura defensiva em temas não fronteiriços, tidos como sensíveis por suas implicações potenciais sobre margens de liberdade do país para formular políticas industriais (serviços, investimentos, compras governamentais, DPIs, etc.). Seria correto afirmar que o núcleo duro do protecionismo brasileiro deslocou-se, nos últimos anos, da dimensão tarifária para a agenda de temas não fronteiriços; ! postura ofensiva em modo 4 nas negociações de serviços na OMC e manutenção de posição defensiva em outros modos de prestação, especialmente modo 1; ! priorização da estratégia “sul-americana”, com os componentes “aprofundamento do Mercosul” e “intensificação dos laços com os países da CAN”, ambos incluindo elementos não-comerciais e esquemas assimétricos de troca de concessões na área especificamente comercial; ! valorização das alianças com outros países grandes em desenvolvimento fora da região, com base em considerações e interesses econômicos e políticos bilaterais, mas também “sistêmicos” (fortalecimento do multilateralismo “multipolar”); e ! manutenção da posição tradicional da diplomacia brasileira, de rejeição frontal ao tratamento dos temas ambientais e trabalhistas em foros comerciais, o que não deixa de ser curioso para um governo de esquerda. O ALCANCE E OS IMPACTOS DA ESTRATÉGIA COMERCIAL DO GOVERNO LULA Decorridos quase dois anos e meio do mandato do Governo Lula, sua política externa e sua estratégia de negociações comerciais são, com freqüência, objeto de elogios e alvo de críticas. A estratégia comercial tem, no que se refere às negociações comerciais, linhas de continuidade e de inflexão quando comparada com aquela que prevaleceu sob o governo de Cardoso. É como se, frente a um portfólio de processos negociadores herdado do governo anterior, o novo governo tivesse redistribuído suas fichas. Esta redistribuição beneficiou a OMC – que se tornou instância preferencial (quase exclusiva, se poderia dizer) de negociações com os países desenvolvidos – as negociações Sul-Sul (dentro da região e fora dela) e o Mercosul, retirando ênfase das negociações preferenciais com os países do Norte. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang null null 7RBCE - LATN Quais são os elementos centrais da estratégia posta em prática pelo governo atual na área de negociações comerciais? Três deles parecem hoje claros e é interessante observar que eles não necessariamente convergem para a definição dos meios e objetivos da política. Em primeiro lugar, há uma subordinação nítida da estratégia de negociações comerciaisà política externa tout court. Nos governos Cardoso, ensaiou-se um movimento de “autonomização” da estratégia de negociação comercial em relação aos objetivos mais gerais da política externa, a partir da idéia geral (sujeita a algumas qualificações pontuais) de que essas negociações, e seus resultados, não seriam capazes de comprometer aqueles objetivos, mas poderiam dar alguma contribuição positiva à sua consecução. No governo atual, esse movimento de “autonomização” foi revertido e as negociações são avaliadas, em grande medida, segundo critérios políticos, entre os quais a clivagem Norte-Sul aparece como um critério de primeira grandeza. A estratégia de negociação do atual governo encaixa-se à perfeição no modelo de legitimação da política externa hegemônica durante o período desenvolvimentista: sua legitimidade derivava de seu papel como política capaz de mitigar as ameaças econômicas externas e de criar espaço para políticas autônomas de desenvolvimento industrial. Em segundo lugar, a estratégia de negociações comerciais é instrumentalizada domesticamente para remediar, pelo menos em parte, o desgaste causado junto ao eleitorado do PT pela adesão governamental à ortodoxia macroeconômica. Nesse sentido, a política de negociações comerciais é um mecanismo de legitimação política do governo e esse fato impõe limites claros à flexibilidade que o Brasil pode demonstrar em negociações com países desenvolvidos. Sem agregar esse elemento, é muito difícil entender a paralisia das negociações da Alca e a posição brasileira nesse processo negociador. Sem considerar esse componente de política doméstica, também fica difícil entender o padrão de relacionamento do governo com a sociedade civil nesta área de governo: pouco institucionalizado, esse relacionamento sujeita os grupos da sociedade civil à discricionaridade dos atores públicos, criando incentivos para que estes adotem práticas “instrumentalistas” em suas relações com a sociedade civil. O acesso heterogêneo da sociedade civil a diferentes processos de negociação reflete em parte esse tipo de comportamento dos atores públicos. Em terceiro lugar, a estratégia governamental internalizou e deu prioridade às demandas de liberalização dos mercados agrícolas, que traduzem essencialmente um processo de transformação estrutural da economia brasileira expresso na emergência de um agribusiness voltado para a exportação e altamente competitivo. Ao fim e ao cabo, a mudança mais significativa na política comercial sob o Governo Lula – e aquela cujos efeitos deverão ser mais duradouros e profundos – decorre menos de uma revisão voluntarista das estratégias de negociação anteriores do que de um processo de transformação estrutural da economia brasileira que levou à emergência de um agribusiness competitivo e fez do Brasil um demandeur de peso em uma área onde se concentra o “núcleo duro” do protecionismo dos países desenvolvidos. Esse processo “amadureceu” no final do Governo Cardoso e durante o período Lula. Ao governo atual, deve-se reconhecer o mérito de haver “incorporado” em sua estratégia as implicações dessa mudança estrutural, pressionando ativamente os países desenvolvidos – nas negociações multilaterais e preferenciais, mas também através do mecanismo de solução de controvérsias da OMC – pela liberalização do comércio agrícola internacional. Esse componente ofensivo da estratégia brasileira se encaixa adequadamente no modelo de política , porque “atualiza” a clivagem Norte-Sul, que desempenha papel central na lógica daquele modelo. A constituição do G-20 sanciona essa clivagem Norte-Sul em uma área onde até então as coalizões eram heterogêneas, do ponto de vista do nível de desenvolvimento de seus membros. Esses três elementos domésticos moldam a estratégia brasileira de negociações comerciais, que é favorecida por um fator externo, a saber, a marcada reversão – observada nos últimos sete ou oito anos – no ambiente em que ocorrem as negociações comerciais no mundo. Pode-se formular a idéia sinteticamente da seguinte forma. O final da última década do século XX assistiu Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 8 RBCE - LATN à crise do consenso pró-liberalização comercial e pró- harmonização de regimes regulatórios e à emergência de um modelo de percepção da globalização muito mais pessimista, em que temas relacionados ao desenvolvimento, ao combate à fome e à pobreza, às clivagens Norte-Sul ganharam destaque. Esse novo ambiente é muito mais permissivo em relação a estratégias como a seguida pelo atual governo do que o era aquele vigente até meados da década de 90 e isto, além de conferir maior legitimidade externa à estratégia brasileira de negociação comercial (e à própria política externa), certamente ajuda a entender porque líderes de países em desenvolvimento que se esmeram em referências à polarização Norte- Sul, como Lula, são tratados com extrema benevolência, até mesmo por chefes de Estado dos países mais protecionistas do mundo na área agrícola. Como o ambiente externo não condiciona – no sentido de restringir opções – senão de forma muito branda a estratégia negociadora brasileira, esta resulta fundamentalmente do jogo entre os fatores condicionantes domésticos. E este jogo tende a opor, de um lado, os dois primeiros fatores apontados acima, e, de outro, o terceiro fator, tal polarização se manifestando de forma particularmente intensa no que se refere à estratégia a adotar nas negociações com países desenvolvidos. Enquanto a subordinação da estratégia de negociação a uma política externa que se baseia na lógica da oposição Norte-Sul e o uso desta polít ica para fins de legit imidade doméstica desestimulam a busca de acordos comerciais com os países desenvolvidos – e, em primeiro lugar, com os EUA – a pressão ofensiva do agribusiness vê nesses acordos uma oportunidade insubstituível de acesso aos grandes mercados do Norte. O resultado líquido das tensões existentes entre esses fatores é uma estratégia de negociação comercial que pretende fazer da OMC a instância praticamente exclusiva de negociação com os países desenvolvidos, denotando baixa disposição para firmar acordos preferenciais com esses países, especialmente quando tais acordos incluem temas considerados sensíveis à luz dos objetivos gerais de preservar o espaço para a formulação de políticas de desenvolvimento (investimentos, compras governamentais, etc.). Na visão do governo, o grande risco associado às negociações com países desenvolvidos é de natureza político-regulatória e relaciona-se com a percepção de que acordos abrangentes em áreas não diretamente comerciais podem afetar a capacidade do país para fazer políticas e, portanto, comprometer a soberania econômica nacional.6 Se a posição negociadora do Brasil integrou um componente ofensivo de peso e teve seu componente defensivo deslocado dos temas estritamente comerciais (proteção tarifária, principalmente) para as áreas de política industrial, esta nova configuração tende a tornar mais aceitável, para os negociadores brasileiros, a hipótese de pagar, com concessões em áreas como bens industriais e serviços, o preço pelos ganhos a serem obtidos na agricultura,7 mesmo que a matriz de política não incluia, entre seus objetivos, a ampliação do grau de abertura da economia brasileira à competição das importações. Outro resultado da ação simultânea dos fatores domésticos e externa apontados acima é a decisão de utilizar os acordos comerciais Sul-Sul de alcance muito limitado, em termos econômicos, como instrumento deconstrução de coalizões que só adquirem sentido pleno – na política do governo – dentro de uma lógica de confrontação Norte-Sul em instâncias multilaterais (OMC) ou em negociações preferenciais (Alca). No caso das negociações intra-Mercosul, houve alguma mudança de postura do Brasil sob o Governo Lula, mudança orientada pela idéia de que cabe ao país “pagar o preço da liderança”. Os impactos desta mudança no processo de integração foram – e provavelmente continuarão a ser nos próximos anos – limitados. De um lado, há que se reconhecer que a crise do bloco é profunda. De fato, ao déficit de institucionalização acumulado a partir de 1995 soma- se, no período mais recente, o aprofundamento das assimetrias estruturais entre as economias brasileira e argentina: entre 1998 e 2003, as diferenças de tamanho e de competitividade entre a grande maioria 6 A preocupação com o “risco regulatório” associado às negociações com os países desenvolvidos – especialmente em áreas percebidas como sendo “de política industrial” – não é nova na política comercial brasileira. Não resta dúvida, no entanto, de que esta preocupação tornou-se mais aguda sob o Governo Lula do que sob o anterior. 7 No Governo Lula, este trade-off é admitido no que se refere a acesso a mercados, a concessões a serem feitas pelo Brasil nas áreas em que os países desenvolvidos têm interesses ofensivos não incluindo o campo de regras e disciplinas. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 9RBCE - LATN dos setores manufatureiros dos dois países só fizeram crescer (em favor da economia brasileira) e é este fator estrutural que está na origem das medidas protecionistas argentinas. De outro, a mudança de postura do governo brasileiro não foi suficiente para colocar em questão a resistência brasileira a aceitar negociar regras e disciplinas sub-regionais que possam vir a limitar as margens de liberdade do governo no manejo de políticas consideradas domésticas – embora tais regras constituam parte essencial da agenda de qualquer processo de integração econômica mais profunda. Nesse sentido, a atitude dominante no Brasil ainda é de ambigüidade em relação ao projeto: avaliado positivamente por seu potencial para alavancar a capacidade de negociação de seus membros (inclusive o Brasil) e para beneficiar as exportações industriais do país, o projeto sub-regional torna-se “excessivo” quando requer o estabelecimento de regras e disciplinas que cerceiam a liberdade de seus membros – ou seja, do Brasil – para fazer políticas. Obviamente, o somatório desses movimentos tem sido, quando avaliado em termos comerciais, muito limitado, gerando críticas vindas principalmente dos setores que têm interesse ofensivo nas negociações preferenciais com países desenvolvidos e de segmentos da opinião pública que criticam os pressupostos políticos da estratégia de negociação comercial. No que se refere ao primeiro tipo de crítica, M.R. Soares de Lima lembra que a cobrança de resultados concretos, de curto prazo, das iniciativas diplomáticas é uma decorrência natural do protagonismo que os temas econômicos adquiriram na política externa brasileira. Se a legitimidade interna da política externa é gerada pela percepção de que esta política tem implicações positivas para o desenvolvimento econômico, é legítimo esperar que as negociações gerem resultados econômicos que vão mais além da “prevenção de danos” e da “mitigação de riscos e ameaças externas”. Na realidade, por trás desse tipo de crítica, encontra-se a percepção de que os resultados econômicos da política externa não podem mais se reduzir àqueles perseguidos na época do nacional-desenvolvimentismo (a prevenção de danos e ameaças externas), mas devem incluir a geração de oportunidades externas para a economia brasileira. No que se concerne ao segundo tipo de críticas, estas têm como alvo os pressupostos políticos da estratégia de negociação comercial do Brasil. Num primeiro plano, há as críticas à visão ideológica que permeia esta estratégia: os objetivos de legitimação doméstica junto a um eleitorado de esquerda frustrado com a política macroeconômica explicam essa influência ideológica que efetivamente está presente, mesmo que o governo se empenhe em negá-la. Num plano mais profundo, a crítica remete às hipóteses sobre as quais se baseiam as escolhas concretizadas pela estratégia de negociações comerciais e, em particular, sobre a viabilidade (política) de tais hipóteses: a clivagem Norte-Sul pode ser fonte de um aumento do capital político do Brasil na cena internacional? É possível operacionalizar estratégias Sul-Sul que vão além de iniciativas pontuais como o G-20 quando as clivagens entre países em desenvolvimento se explicitam cada vez mais nas negociações multilaterais e preferenciais? A política para a América do Sul pode ir além de esforços de integração comercial e de infra- estrutura, transbordando para iniciativas “pomposas” como a Comunidade Sul-americana de Nações? Não por acaso tais críticas atacam precisamente a distância entre a retórica da política externa e os recursos de poder que estariam efetivamente à disposição do Brasil. Passado pouco mais da metade do Governo Lula, parece claro que a política comercial adotada não foi pautada principalmente pela preocupação de aumentar o grau de integração internacional da economia brasileira e de gerar impactos expressivos sobre os fluxos de comércio e investimentos do Brasil com seus principais parceiros. Embora essa preocupação não tenha estado ausente do discurso e da prática da diplomacia econômica brasileira nos últimos dois anos – essencialmente através da demanda por maior acesso aos mercados dos países desenvolvidos na área agrícola – não foi ela, mas sim uma visão da ordem mundial que prioriza claramente a clivagem Norte-Sul o elemento-chave a orientar a estratégia brasileira de negociação no Governo Lula.8 8 Se a preocupação de aumentar o grau de integração internacional da economia brasileira e de gerar impactos expressivos sobre os fluxos de comércio e investimentos do Brasil com seus principais parceiros tivesse papel central na estratégia brasileira, a matriz de formulação de política do governo incluiria como objetivo a perseguir o aumento do grau de exposição da produção doméstica à competição dos importados e de novos investidores externos. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 10 RBCE - LATN O objetivo do presente trabalho é avaliar a política comercial brasileira nos dois primeiros anos do Governo Lula. O recorte empregado está circunscrito ao que a literatura chama de análise de política externa, especificamente no campo da política de comércio internacional. Nesse caso, acompanha-se os movimentos do governo brasileiro no âmbito das negociações comerciais internacionais, ou seja, busca- se discutir o processo de tomada de decisão à luz dos constrangimentos e possibilidades colocadas às autoridades brasileiras nas diferentes mesas de negociação. De maneira geral, o Governo Lula tem sinalizado, nas negociações comerciais, uma continuidade com os eixos centrais da política econômica externa do Brasil herdada dos governos pós-abertura comercial no início dos anos 90. Nesse aspecto, destaca-se a tradicional prioridade conferida às negociações multilaterais, e uma aposta inequívoca no sentido estratégico do Mercosul (e da integração regional na América do Sul), a despeito do aumento da fragilidade do bloco. Ao mesmo tempo, percebe-se uma sensível mudança na hierarquia das agendas de negociação hemisférica e inter-blocos. Ao contrário do Governo FHC, há uma manifestação de preferência explícita pela integração Mercosul-UE emdetrimento da Alca. Um balanço preliminar acerca dessas negociações merece três ordens de considerações. A primeira diz respeito à dimensão doméstica das negociações internacionais, especificamente no que se refere à formação de coalizões. A premissa é a de que o contorno mais definido dos grupos de interesse posicionados contra a Alca, aliado a uma mudança na orientação governamental ,1 tornaram a integração com os EUA o “patinho feio” das negociações do Governo Lula. Ao mesmo tempo, a configuração de poder formada ao redor da agroindústria encontrou no Governo Lula maior disposição para enfrentar os subsídios agrícolas dos países desenvolvidos. A cautela do Governo FHC deu lugar a atitudes mais agressivas e de interesses melhor definidos, em âmbito doméstico. Como resultado, sugere-se que o Governo Lula, além de alargar o processo decisório no que diz respeito às escolhas em matéria de política comercial, pode ter contribuído para a organização dos setores interessados. A segunda trata da contribuição do governo para o avanço das negociações multilaterais da OMC depois de Cancun. A decisiva participação brasileira para o fechamento do Framework Agreement em julho de 2004 aumentou o cacife do Brasil na construção de consensos e manteve o G-20 em evidência. No entanto, a consolidação dessa coalizão depende de como será definida a eliminação dos subsídios agrícolas em uma agenda positiva a ser aprovada na reunião ministerial da OMC em Hong Kong. Além disso, a coesão do G-20, até o momento bastante AS NEGOCIAÇÕES COMERCIAIS NO GOVERNO LULA JOÃO PAULO CÂNDIA VEIGA João Paulo Cândia Veiga é doutor em Ciência Política pela USP, pesquisador do Caeni (Centro das Negociações Internacionais) e professor de Relações Internacionais da PUC-SP. 1 Refiro-me às mudanças no plano retórico com a maior politização de temas da agenda internacional, e na preferência explícita pela negociação com a UE em detrimento da Alca. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 11RBCE - LATN resistente à pressão norte-americana, deve ser posta à prova com a discussão de outros temas onde o consenso é mais difícil de ser alcançado. A terceira faz algumas observações a respeito do eixo Mercosul-UE, processo de negociação inédito entre dois blocos. Nesse caso, a obrigatoriedade de ofertar concessões em torno de temas muito sensíveis como subsídios e compras governamentais contribuiu para o engessamento das posições. A utilização de recursos táticos discutíveis (fatiamento da agenda sem proposta geral, falta de transparência) não ajudaram. A contaminação da agenda interblocos pelas negociações multilaterais bem como o processo aberto pelo Brasil contra a UE no OSC (Órgão de Solução de Controvérsias) da OMC, a respeito dos subsídios ao açúcar, não facilitaram as negociações. Por fim, o aumento da fragilidade do Mercosul se fez presente na mesa de negociações na discussão de vários temas. AS VANTAGENS DA SIMULTANEIDADE NÃO SE CONFIRMARAM Quatro idéias circularam no segundo Governo FHC, expressão de certo otimismo entre as elites políticas e empresariais, acerca da margem de manobra disponível para o presidente empossado em 2003 no que se refere às negociações comerciais internacionais: 1. a simultaneidade das mesas de negociações aumentaria o cacife brasileiro junto aos países desenvolvidos – Os EUA e a UE fariam maiores concessões para garantir o Brasil na Alca e no bloco Mercosul-UE; 2. ficaria para o próximo presidente colher os eventuais resultados positivos da negociação da Alca com a co-presidência dividida entre o Brasil e os EUA, e no acordo de livre-comércio Mercosul-UE; 3. avançar-se-ia na luta contra os subsídios agrícolas nas negociações da Rodada Doha que continuaria a balizar os limites e obrigações do Brasil nos planos regional e bilateral e; 4. O “relançamento” do Mercosul, supostamente fortalecido pelas eleições presidenciais no Brasil e na Argentina, seria o ponto de partida comum para as demais negociações internacionais. Passados mais de dois anos do novo governo, a maior parte dessas expectativas não se confirmou. A idéia de que a simultaneidade, por si mesma, traria vantagens ao Brasil acabou se mostrando ingênua. De fato, para que ela pudesse trazer efeitos benéficos às mesas de negociação era preciso uma estratégia mais acabada acerca das ofertas do Brasil-Mercosul, das possíveis concessões, e dos objetivos a serem alcançados no processo de barganha entre EUA e UE. As possibilidades de barganha em uma mesa com os olhos voltados à outra estavam dadas pelo timing entre as duas negociações. Os cronogramas de ofertas do setor privado para a UE e para os EUA eram praticamente os mesmos.2 Ademais, havia certa expectativa, partilhada por governos e pelo setor privado, de que uma negociação puxava a outra, ou seja, as possibilidade de melhoria em relação a acesso a mercados em uma mesa calibrava os objetivos e concessões na outra.3 No caso específico da Alca, a dificuldade em alcançar o conceito de “equilíbrio” nos temas em negociação, esteve presente nos governos FHC e Lula. O equilíbrio refere-se à troca entre a oferta do Brasil em áreas consideradas sensíveis e avanços na negociação da agricultura. Como os EUA querem tratar o tema dos subsídios agrícolas na OMC, a negociação da Alca teria 2 No final de 2002, às vésperas da VII Reunião de Cúpula Ministerial da Alca, o setor empresarial brasileiro se movimentava para apresentar suas primeiras propostas (com listas de produtos). O cronograma de entrega de propostas pelo setor privado era praticamente o mesmo para a Alca e para a UE. Naquele momento, a decisão do Governo FHC foi deixar a tarefa de apresentar as ofertas para o novo governo eleito, isto é, as eventuais propostas fechadas pela Coalizão Empresarial foram apresentadas à equipe de transição do Governo Lula, processo conduzido pelo então ministro Celso Lafer (ver Lívia Ferrari, Gazeta Mercantil, 30 de outubro de 2002.). 3 As possibilidades de a criação da Alca levar a UE a perder espaço no Mercosul foi sugerida pelo presidente FHC ao primeiro-ministro francês, Lionel Jospin em abril de 2001 (ver Reali Jr., O Estado de S. Paulo, 30 de abril de 2001). Na perspectiva do setor privado, ao contrário, um avanço nas negociações Mercosul-UE poderia colocar as empresas americanas em desvantagem no comércio com o Brasil. Por exemplo, um acordo automotivo com os europeus baseado em cotas reduziria os impostos para as montadoras com sede na Europa, o que diminuiria a competitividade dos automóveis americanos no Brasil-Mercosul (ver Geraldo Samor, The Wall Street Journal Americas, reproduzido por O Estado de S. Paulo, 15 de abril de 2004.). Além de alargar o processo decisório de escolhas em matéria de política comercial, o Governo Lula pode ter contribuído para a organização dos setores interessados Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 12 RBCE - LATN ficado desequilibrada, o que explica a atual posição brasileira. Ocorre que congelar a Alca significa, em grande medida, tirar da agenda a negociação comercial com os EUA. Esse aspecto da política comercial do Governo Lula tem sido alvo de críticas de setores empresariais importantes que enxergam nessa posição uma possibilidade perdida de melhorar o acesso dos produtos brasileiros ao mercado americano.4 No caso da UE, a disputa em torno dos subsídios agrícolas no âmbito multilateral contaminou a negociação intrabloco e acabou jogando os dois lados em uma barganha posicional da qual não houve saída possível até 31 de outubro, momento em que terminava o mandato dos comissários europeus envolvidos na negociação.5 Parte das dificuldades na condução das negociaçõescom a UE deveu-se à divergência entre Brasil e Argentina em diferentes temas da mesa de negociações.6 Ao mesmo tempo, o Brasil mostrou grande capacidade de negociação multilateral ao contribuir decisivamente para destravar a agenda da Rodada Doha, em agosto de 2004. O Brasil, no âmbito do G-20, articulou a “construção de consensos”7 e “foi um dos responsáveis pela articulação política do G-20”. Dessa forma, segundo destacado negociador brasileiro em Genebra, “ao permitir a participação mais decisiva dos países em desenvolvimento no núcleo da negociação, o G-20 criou uma nova matriz, um novo paradigma para a tomada de decisões na OMC”.8 Na visão do ministro Celso Amorim, esse novo “paradigma” teria modificado o processo de tomada de decisão no interior da OMC: de uma negociação centrada no “presidente de uma comissão ou de um conselho e os [representantes] dos grandes países, para uma negociação com a participação efetiva dos principais interlocutores, algo que só ocorreu por causa do G-20”.9 MERCOSUL É PARTE DO PROBLEMA Paradoxalmente, no caso do Brasil e da Argentina, a combinação de governos supostamente “de esquerda”, teoricamente comprometidos com uma estratégia regional de “relançamento” do Mercosul, não se concretizou. A retórica do “relançamento” vem sendo utilizada desde a desvalorização do real em janeiro de 1999 quando os limites da agenda da integração regional ficaram evidentes em razão das assimetrias macroeconômicas. Desde então, o Mercosul continua padecendo das fragilidades estruturais10 que marcaram seus dez anos de vida. Chama a atenção o fato de o período Lula ser marcado pela ascensão de uma nova onda de conflitos comerciais com a Argentina. Esses conflitos, sempre presentes na agenda de negociação entre os dois países, principalmente depois da desvalorização do real em 1999, ganharam uma dimensão mais dramática. Parte dessa sensibilidade é resultado da forma como o Governo Kirchner vem lidando com os conflitos. A maior parte deles foi incorporada à agenda de política econômica externa do governo argentino de forma automática, quase sem mediação. Em A criação do G-20, em continuidade à estratégia negociadora definida no Governo FHC, é o resultado mais importante do Governo Lula no cenário internacional na primeira metade de seu mandato 4 Os EUA são os maiores compradores de produtos manufaturados do Brasil. 5 As negociações continuam depois desta data mas a nova Comissão Européia, empossada em novembro de 2004, certamente vai sofrer uma inflexão em seu posicionamento ante a negociação com o Mercosul. O ingresso dos dez países do Leste europeu deve reorientar a formação das preferências e dos interesses europeus com reflexos significativos para a negociação inter-blocos. 6 Um dos mais salientes foi a discussão a respeito das cotas de veículos automotores oferecidas pelo bloco aos europeus. Voltou à tona um dos maiores conflitos comerciais do Mercosul, nunca resolvido, qual seja, as diferentes políticas industriais direcionadas à indústria automotiva pelos dois governos. 7 “Ninguém duvida de nosso compromisso com o sistema multilateral de comércio e todos apreciam a capacidade do Brasil de construir consensos”. Entrevista com o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Zero Hora, 02/01/2005. 8 Entrevista do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Zero Hora, 02/01/2005. 9 Entrevista com o ministro Celso Amorim, revista Carta Capital, ano XI, número 330, 28 de fevereiro de 2005. 10 O dilema entre a organização do bloco em uma área de livre-comércio ou uma união aduaneira, as divergências entre os modelos de política externa adotados pelos governos Menem e Collor no início dos anos 90, a ambigüidade entre o intergovernamentalismo e a institucionalidade, e as enormes assimetrias macroeconômicas e setoriais (e a inexistência de mecanismos para dirimi-las), podem ser vistos em Janina Onuki, “O Mercosul enfrenta Brasil e Argentina”, artigo publicado no jornal Valor Econômico, 13-15 de novembro de 2004. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 13RBCE - LATN outras palavras, o presidente Kirchner assumiu a “linha de frente” da relação com o Brasil, potencializando as pressões dos setores econômicos prejudicados com as importações brasileiras. Essa dinâmica reforçou os grupos de interesse contrários à estratégia de integração regional em ambos os países e passou a sensação para a opinião pública de que o Mercosul está irremediavelmente comprometido. Um aspecto pouco abordado para a avaliação do Mercosul diz respeito à (não) posição brasileira em relação ao default argentino, adotado no final de 2001, em meio à crise política que resultou na eleição do presidente Kirchner alguns meses depois. Segundo essa interpretação, o Governo Kirchner estaria descontente com o baixo perfil do Governo Lula quando o assunto é a governabilidade dos fluxos financeiros internacionais. Com uma posição de confronto com o FMI, e com os demais credores da dívida externa, a movimentação do governo argentino contrasta com o suposto conservadorismo da política econômica brasileira. O governo brasileiro, incluindo suas autoridades lotadas nos cargos do FMI em Washington, não teria feito o que lhe cabia, em razão de sua liderança regional, para apoiar a posição argentina e enfrentar o governo americano. O resultado disso é o silêncio das autoridades brasileiras, o que teria irritado o governo argentino. Se essa variável for verdadeira, ela ajuda a entender o atual distanciamento entre os dois governos e as dificuldades presentes do Mercosul.11 AS PEÇAS SÃO AS MESMAS MAS HÁ NOVA HIERARQUIA Assim como aconteceu com o segundo mandato de FHC, o Governo Lula iniciou 2003 diante de um grande desafio, no âmbito da agenda de política econômica externa, qual seja, o de enfrentar simultaneamente quatro mesas de negociação com graus variados de interdependência e hierarquia: as negociações pós- default com a Argentina (Mercosul), bloco a bloco com a UE, com os EUA na Alca e para a definição da agenda da Rodada Doha no plano multilateral. É bom considerar que, da perspectiva brasileira, o governo se inicia em condições adversas, similares àquelas que condicionaram o Governo FHC em início de seu segundo mandado depois da desvalorização do real. No caso de Lula, uma crise de confiança generalizada submeteu o governo, em seus primeiros meses, à forte pressão dos indicadores macroeconômicos (desvalorização do real, expectativa de elevação de juros, incerteza sobre a balança comercial, etc.). Ao menos no plano da retórica, o Governo Lula impõe uma mudança de ênfase sobre os issues da agenda econômica internacional, em sentido mais amplo do que a discussão da política comercial. Em geral, pode- se dizer que o governo dá continuidade à política de FHC com um discurso mais politizado e com uma hierarquia baseada nas seguintes variáveis: 1. de forma mais incisiva, acentua-se a insuficiência da globalização como remédio “para os problemas do desenvolvimento e a superação da pobreza”; 2. a necessidade do crescimento econômico vir acompanhado de uma agenda para o desenvolvimento social;12 3. um recorte mais “Sul-Sul” para a diplomacia presidencial com implicações para a política comercial;13 e 4. a utilização de programas de governo, de forma mais explícita, como recurso de poder (principalmente na relação com organismos internacionais)14 são algumas variáveis que organizam o tabuleiro de forma diferente sem mexer, necessariamente, em suas peças.11 “Foi um grande erro diplomático o Brasil não ter sido solidário com a única posição possível para a Argentina. O governo brasileiro teve medo de que a crise do vizinho nos contaminasse e manteve-se distante. Isso terá repercussões negativas, de longo prazo, no Mercosul” (Rubens Ricupero, revista Carta Capital, ano XI, número 332, 09 de março de 2005.). Os conflitos, sempre presentes na agenda Comercial de negociação entre Brasil e Argentina, ganharam dimensão mais dramática pela forma como o governo Kirchner vem lidando com eles 12 “Inserção global do Brasil: OMC, Mercosul, Alca, Zona de Livre Comércio do Brasil com a União Européia”, Palestra do ministro Celso Amorim, pronunciada pelo ministro interino, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, no XV Fórum Nacional, 21 de maio de 2003, Brasília; Política Externa, v.12, n. 02, setembro/outubro/novembro de 2003. 13 A principal implicação comercial é o maior distanciamento/independência dos tradicionais parceiros comerciais do Brasil, fundamentalmente os Estados Unidos, e uma aproximação com países do Terceiro Mundo, principalmente do Oriente Médio e da África. 14 Vale mencionar o programa Fome Zero, a proposta do Software Livre, e os esforços para equilibrar o respeito às patentes com o atendimento à saúde pública. Nesse campo, ganhos obtidos no Governo Lula foram a fundamental participação brasileira para o fechamento do Acordo sobre Medicamentos Genéricos, divulgado no final de agosto, cerca de duas semanas antes do início da reunião ministerial de Cancun (2003). Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 14 RBCE - LATN Há também contribuições originais do Governo Lula que merecem uma consideração à parte.15 A principal delas é a criação do G-20 – grupo de países em desenvolvimento organizado no âmbito das negociações multilaterais da OMC.16 Mesmo os críticos mais destacados da política exterior de Lula reconhecem ser essa uma “válida aliança (...) para a condução das difíceis e ainda indefinidas negociações [multilaterais]”.17 De fato, o principal resultado aferido pelo G-20 até o momento foi a decisiva atuação, em âmbito multilateral, para definir as diretrizes e princípios da agenda da Rodada Doha. Como se sabe, o documento síntese foi consensuado em Genebra, em julho de 2004, dez meses depois do fracasso da reunião ministerial da OMC em Cancun. A SUBSTÂNCIA DO G-20 Há dois elementos a respeito do G-20 que ajudam a entender os movimentos do Governo Lula na parte final de seu mandato. Em primeiro lugar, o núcleo duro do G-20 é composto por Brasil e Índia. Na realidade, há um revival desta aliança, muito presente ao longo da negociação da Rodada Uruguai do GATT (1986-93). Naquele período, os dois países foram os principais opositores ao ingresso dos então chamados “novos temas” (investimento, propriedade intelectual e serviços) no âmbito multilateral de comércio. Mais tarde, fecharam posição contra os temas do meio ambiente e de padrões trabalhistas. O importante aqui é notar que essa aliança vem ganhando densidade desde o lançamento da Rodada Doha em novembro de 2001. Durante o segundo mandato de FHC, o governo implementou uma política de combate à AIDS que se transformou em modelo para a ONU. Com ela o país desenvolveu um programa para a indústria de medicamentos genéricos, cujo principal objetivo era reduzir os gastos com a compra de retrovirais. Para isso, era preciso pressionar os laboratórios multinacionais para que reduzissem os custos dos remédios, sob a ameaça de quebra da patente (licença compulsória concedida a outro laboratório). O Governo Lula foi adiante e definiu uma política industrial focada no setor de medicamentos. No plano internacional, a política de combate à AIDS esteve baseada em uma interpretação discutível do acordo de Trips. A disputa basicamente estabelece um conflito de interesses entre os laboratórios farmacêuticos multinacionais, que buscam proteger seus investimentos no desenvolvimento de medicamentos, e os países pobres que precisam, a curto prazo, oferecer remédios baratos para o combate a doenças que ameaçam a saúde pública, como são os casos da AIDS, da Tuberculose e da Malária. Contudo, a política brasileira para o combate da AIDS foi suficientemente bem-sucedida para conquistar grande apoio internacional e esvaziar o processo movido pelos EUA contra o Brasil, com base no acordo de Trips, no OSC da OMC. Ademais, ela aproximou ainda mais o Brasil da Índia, o maior produtor mundial de medicamentos genéricos e um país com uma vasta população portadora do vírus HIV. Depois da vitória na OMC em 2001, a disputa continuou na OMS e o Brasil e a Índia conseguiram que esse órgão das Nações Unidas manifestasse seu apoio à idéia de que a saúde pública está acima dos interesses dos laboratórios. Depois disso, o mais difícil era conseguir um acordo multilateral sobre o comércio de medicamentos genéricos, o que foi obtido três semanas antes da reunião de Cancun em 2003. Pode-se dizer que o governo dá continuidade à política de FHC com um discurso mais politizado e com uma hierarquia baseada em algumas variáveis 15 Segundo o ministro Celso Amorim, além do G-20, as outras duas contribuições do Governo Lula foram o programa Fome Zero e a criação da área de livre-comércio sul-americana, revista Carta Capital, ano XI, número 330, de 23 de fevereiro de 2005. 16 São 20 países membros, todos do Mercosul, exceto o Uruguai. Segundo o informe oficial do grupo, o G-20 foi criado em 20 de agosto de 2003, no período final de preparação da V Conferência Ministerial da OMC, realizada em Cancun, entre 10 e 14 de setembro daquele ano (ver o website www.g-20.mre.gov.br, acesso em 14 de abril de 2005). 17 Celso Lafer identifica em uma “movimentação mais abrangente do tema Sul-Sul outra nota própria do governo Lula”. No entanto, Lafer aponta certo desconforto com uma politização exagerada na afirmação dos interesses do país, posicionamento cuja conseqüência poderia ser a de “enrijecer o quadro internacional com uma nova polarização ideológica”, (A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira, Editora Perspectiva. Segunda edição revista e ampliada, São Paulo, 2004). Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 15RBCE - LATN Nessa fase, o Governo Lula começa a utilizar de forma mais explícita e incisiva o programa brasileiro como um recurso de poder18 para dar conteúdo à aliança com a Índia e a África do Sul. FHC E LULA: UM NOVO PADRÃO DE INSERÇÃO GLOBAL? O segundo elemento levanta uma hipótese acerca de um suposto padrão de inserção internacional do Brasil, no qual o G-20 é a roupagem política, a ossatura de ligação do país com outras nações em desenvolvimento. Nesse aspecto, há dois movimentos concomitantes. De um lado, as políticas domésticas estimulam os fluxos privados de comércio, tecnologia e investimentos. De outro, sua projeção internacional, potencializada pelo apoio de agências e organismos multilaterais, ajuda a forjar consensos entre os países em desenvolvimento e reforça a capacidade negociadora do Brasil nos foros multilaterais. O G-20, dessa forma, é o resultado político desse processo que tem início no governo FHC. Tal como a política para aspatentes de medicamentos, a hipótese levantada aqui para a compreensão de uma suposta estratégia de inserção global adotada pelo Brasil (governos FHC e Lula), no âmbito multilateral, seguiria uma regularidade, um padrão de comportamento com três elementos fundamentais: 1. O país desenvolve um (a) programa/política doméstico(a) com grande visibilidade internacional. 2. Utiliza ao máximo sua capacidade de influência junto aos organismos internacionais para forjar consensos e projetar os programas/políticas. 3. O tema em discussão sempre resvala para um problema global com claro recorte Norte-Sul, tendo um inequívoco valor ético-moral como pano de fundo – o que garante o apoio de ONGs e da opinião pública. O caso das patentes farmacêuticas, o programa Fome Zero e, mais recentemente, a discussão do software livre são alguns exemplos de programas e políticas domésticas que se encaixam na suposta estratégia brasileira. Em que medida esses casos pontuais estabelecem um padrão de inserção internacional e, dessa forma, consubstanciam uma estratégia de inserção internacional? Até que ponto o G-20 é resultado direto dessa suposta estratégia? CONCLUSÃO O Governo Lula define os contornos políticos de uma estratégia internacional que tem início no governo FHC. O G-20 é, até o momento, o resultado político dessa estratégia. A real influência de suas lideranças (Brasil, Índia, África do Sul e mais recentemente a China), a coesão do grupo com a discussão de novos temas, e os desdobramentos para o sistema internacional desse movimento entre países em desenvolvimento são ainda questões sem resposta. De qualquer forma, a criação do G-20, em continuidade à estratégia negociadora definida no Governo FHC, é o resultado mais importante do Governo Lula no cenário internacional na primeira metade de seu mandato. O principal resultado aferido pelo G-20 foi a decisiva atuação, em âmbito multilateral, para definir as diretrizes e princípios da agenda da Rodada de Doha 18 Na linguagem Neo-realista, o conceito de capability é entendido como uma condição específica do país, da qual o Estado consegue projetar influência na forma de um recurso de poder sobre os demais estados. Yana Chang 16 RBCE - LATN Uma avaliação dos dois primeiros anos do Governo Lula não hesitaria em assinalar a política macroeconômica e a política externa como os dois maiores sucessos deste governo. O curioso é que no início do governo, quando ficou claro que não haveria mudança de rumo na política econômica, mas já se anunciava uma política externa mais assertiva nas relações com o Norte e de maior protagonismo político no Sul, duvidou-se da capacidade do Governo Lula em combinar ortodoxia na primeira com heterodoxia na segunda. Seria relevante se perguntar por que foram essas áreas mais bem-sucedidas do que as demais, em particular, a política social, que se apresentava, no início do mandato, como aquela em que mais se afirmariam as credenciais progressistas do novo governo. Uma diferença entre a política externa e as demais políticas públicas é que, na primeira, as iniciativas são menos dependentes de condicionamentos orçamentários e metas de superávit fiscal. Por outro lado, também exibe maiores graus de liberdade para mudar o rumo da política em curso, porque menos dependente da capacidade de coordenação política e de gestão administrativa, já que é conduzida por burocracias especializadas e com capacidade administrativa instalada. Assim, por exemplo, a política externa escapou das dificuldades de coordenação política e gestão administrativa que têm afligido o Governo Lula, em função de, entre outros fatores, maior heterogeneidade da sua base de apoio parlamentar, quando comparada com o governo anterior. O relativo insulamento das políticas governamentais, contudo, não é condição necessária nem suficiente para seu sucesso já que o último depende não apenas das respostas dos agentes externos, mas da adesão interna, só obtida por via de processos democráticos de decisão. Independentemente do fato de que o sucesso de qualquer política governamental depende do resultado de uma miríade de interações estratégicas entre atores diversos que não se pode controlar ex-ante, grande parte da avaliação positiva da política externa está relacionada à legitimidade desta entre as elites, no sentido de se constituir em um instrumento importante de um projeto de desenvolvimento nacional. Esta crença se consolidou em parte como um legado do processo de formação do Estado brasileiro e, em parte, como uma construção intencional dos agentes diplomáticos. Como é sabido, o processo de constituição das fronteiras nacionais se fez por uma série de arbitragens internacionais, amplamente favoráveis aos interesses brasileiros, de modo que o país ingressou na modernidade tendo resolvido praticamente todos os conflitos territoriais com seus vizinhos. Esse processo relativamente pacífico legou às elites a percepção de que as principais ameaças externas não envolviam as questões clássicas de guerra e segurança militar, mas de vulnerabilidade econômica e desenvolvimento. Ao longo dos anos, a prática e o discurso diplomáticos reforçaram essa percepção da contribuição da política AUTONOMIA, NÃO-INDIFERENÇA E PRAGMATISMO: VETORES CONCEITUAIS DA POLÍTICA EXTERIOR MARIA REGINA SOARES DE LIMA Maria Regina Soares de Lima é professora do IUPERJ e do IRI/Puc-RJ e coordenadora do OPSA. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 17RBCE - LATN externa aos desafios econômicos da nação. Durante a Guerra Fria, a diplomacia brasileira foi uma das principais articuladoras da idéia de que a segurança internacional só seria alcançada pelo desenvolvimento – mote que marcou a atuação do país nas arenas multilaterais de então. No pós-Guerra Fria, em um contexto de globalização econômica; reestruturação e ajuste fiscal; esfacelamento e esmaecimento da coalizão terceiromundista e da agenda do desenvol- vimento, a legitimidade dentro do país do Mercosul, um projeto estratégico do Estado brasileiro, depende de seus resultados econômicos. Se uma das vantagens da saliência dos temas econômicos na política externa é sua legitimação como instrumento de desenvolvimento, a desvantagem, contudo, é a cobrança de resultados concretos, de curto prazo, das iniciativas diplomáticas. Por outro lado, este legado de pragmatismo econômico da conduta diplomática brasileira facilitou a convivência entre a ortodoxia na política macroeconômica e a heterodoxia na política externa. No mundo contemporâneo globalizado e com fronteiras permeáveis aos movimentos transnacionais, a política externa se torna bastante complexa, seja com relação ao número e diversidade de atores sociais que atuam no ambiente externo, seja com respeito à variedade de temas substantivos que passam a ser objeto de negociação internacional e ratificação doméstica. Ademais, dentre as políticas governamentais, a política externa é aquela que exibe maior grau de resistência à mudança. Como se sabe, parte expressiva da atividade externa envolve compromissos de longo prazo com outros países cuja modificação, se motivada por razões extrínsecas ao próprio acordo, gera perda de credibilidade do país ante seus parceiros. No entanto, a política externa, por ser uma política em que o executivo é dominante, também permite a um governante que queira valorizar a mudança um espaço de inovação interessante, ainda mais, como no caso do Governo Lula, se este tem pouca margem de manobra para inovar. Esta é a outra razão para a sintonia sutil entre a ortodoxia econômica e a heterodoxia política. É nesta última que o Governo Lula exibe o legado de esquerda de sua trajetóriapolítica e realiza as expectativas de mudança de uma parte substancial de seu eleitorado, diante das exigências disciplinadoras dos agentes financeiros e do mercado internacional. O componente inercial da política externa do Governo Lula está expresso, por exemplo, na participação brasileira nos principais exercícios multilaterais em curso – Rodada de Doha da Organização Mundial de Comércio, negociação da Alca e entre Mercosul e União Européia e negociações do Mercosul com outros arranjos regionais. Na medida em que se negociam novas regras e medidas substantivas, com impactos diversificados na sociedade brasileira, é inevitável que esses processos gerem a politização da política externa. Por outro lado, persiste a falta de um consenso nacional com relação ao grau de aprofundamento da integração internacional da economia brasileira, bem como da extensão da delegação da soberania econômica a instituições de integração regional.1 VETORES CONCEITUAIS É no componente político propriamente dito que o Governo Lula busca inovar e se diferenciar das experiências pretéritas. O discurso diplomático se constrói a partir de três vetores conceituais, por assim dizer. O primeiro deles refere-se a uma visão do sistema internacional com tintas multipolares ou, pelo menos, com potencial para brechas de uma estrutura que se reconhece ainda unipolar. Nesse contexto, trata-se de construir capacidade de influência na elaboração de normas e padrões globais e regionais de modo a torná- los mais permeáveis aos interesses dos países do Sul. Este vetor está informado pelo legado “autonomista” de experiências passadas, como o foram a “política externa independente”, dos anos 1960, ou o “pragmatismo responsável” dos 1970. A renovação da postulação de O legado de pragmatismo econômico da conduta diplomática brasileira facilitou a convivência entre a ortodoxia na política macroeconômica e a heterodoxia na política externa 1 Ver Pedro da Motta Veiga, “As negociações comerciais intra e extra- Mercosul”, Análise de Conjuntura OPSA, n. 3, fevereiro de 2005. Disponível em http://observatorio.iuperj.br. Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 18 RBCE - LATN um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas é o melhor exemplo dessa busca do exercício de uma política externa própria2 e do reconhecimento pelas potências da sua relevância, pelos papéis que pode desempenhar na comunidade das nações, nas questões da paz e do desenvolvimento.3 A se diferenciar de outros experimentos autonomistas, em particular o “pragmatismo responsável”, é que o contexto democrático implica que o exercício da autonomia no plano externo é dependente também de sua ratificação interna. Uma outra diferença bastante significativa tem a ver com a aceitação pelas elites dirigentes de que o Brasil só terá o reconhecimento que almeja na sociedade de Estados desiguais se puder “falar” por outros que não sejam apenas seus nacionais, isto é, se representar uma determinada categoria de países. Ainda que esse truísmo já fosse conhecido dos atores do pragmatismo responsável, por exemplo, a novidade fica por conta do reconhecimento no presente de que qualquer representação implica sua aceitação também pelo representado. Em outras palavras, que a coordenação da ação coletiva envolvendo outros atores nacionais tem custos que incidem diretamente sobre o grau de autonomia e flexibilização dos interesses particulares que se está disposto a abrir mão em prol dos interesses coletivos. A política sul-americana do atual governo sugere que a diplomacia reconhece os custos da liderança regional, seja na concessão de benefícios materiais, como créditos especiais aos vizinhos, seja atenuando a arraigada tradição do “esplêndido isolamento” em relação aos assuntos domésticos dos vizinhos. Destaque-se, neste particular, a intermediação brasileira na formação do Grupo de Amigos da Venezuela, no início do governo e, mais recentemente, no conflito entre aquele país e a Colômbia. Também em um horizonte geográfico mais distante, mas exemplo da aceitação dos “custos da liderança”, mencione-se o comando brasileiro de uma força de paz de cerca de 1.200 soldados no Haiti desde junho de 2004. Ainda que ao longo dos anos o Brasil tenha contribuído em diversas missões desta natureza, comparando-se com a Argentina, sua participação em termos do tamanho do contingente militar e da localização geográfica da missão foi sempre menor e normalmente restrita a regiões com prévios vínculos políticos e culturais, como por exemplo, os países africanos de língua portuguesa, o Timor Leste, de colonização portuguesa, e países latino-americanos. A participação militar brasileira no Haiti não apenas demonstra uma nova postulação com respeito ao exercício de um papel mais protagônico em face de situações de conflito interno e/ou guerra civil que possam reverberar em seu perímetro de segurança, como se dá em um país do Caribe, região de fracos vínculos com o Brasil. Nos anos 1990, por exemplo, o Brasil absteve-se de apoiar, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o envio de uma missão multinacional àquele país, posição acompanhada pela República Popular da China. Duas objeções podem ser feitas a esta argumentação. A primeira delas, teoricamente frágil, é que as “boas ações” brasileiras são motivadas por interesses próprios, seja para impulsionar e ampliar as exportações e os investimentos brasileiros na região, seja por obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Meu argumento não pressupõe qualquer componente altruísta no comportamento brasileiro. Trata-se na verdade de sugerir, como novidade deste comportamento, o exercício de um papel de auto- interesse esclarecido, capaz de arcar com os custos da ação coletiva porque os benefícios dela derivados, inclusive no longo prazo, são expressivos. A questão pertinente é a disposição brasileira em participar da vida regional e se de fato o Brasil aceita investir garantia de estabilidade regional em uma quadra em que a área, como outras periféricas do planeta, é abandonada a sua própria sorte? 2 “Independente”; “ecumênica”, “pragmática”; “soberana”, foram expressões utilizadas para definir a política externa em todos os momentos em que o país buscou afirmar seus interesses, diante de alinhamentos dados como incondicionais. 3 Para uma discussão desta aspiração na história da política externa, ver Maria Regina Soares de Lima, “Aspiração internacional e política externa”, Revista Brasileira de Comércio Exterior, ano XIX, n. 82, Janeiro/Março de 2005. O Brasil aceita de fato investir garantia da estabilidade regional em uma quadra em que a área, como outras periféricas do planeta, é abandonada a sua própria sorte? Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang Yana Chang 19RBCE - LATN A outra objeção é pertinente ao argumento e refere-se à Argentina. Parece certo que qualquer política inovadora de “aprofundamento da inserção regional” só terá sucesso com a cooperação argentina. Vários mecanismos de cooperação entre os dois países já são de uso corrente. O problema é que um dos principais objetivos do governo brasileiro tem natureza soma-zero uma vez que nenhum dos dois países aceitaria compartilhar o mesmo assento permanente e, mesmo na eventualidade de que os membros atuais aceitassem abrir o Conselho para uma nova inclusão,
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