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O AUTOR Valter Bracht nasceu em To ledo (PR). Realizou seu curso de gra duação em Educação Física na Uni versidade Federal do Paraná. Na mesma Universidade con cluiu o curso de Especialização em Treinamento Desportivo. Ingressou na Universidade Estadual de Maringá, onde atua ain da hoje como docente da disciplina de Fundamentos da Educação Físi ca, no curso de Graduação em Edu cação Física. Obteve o grau de mestre em Educação Física na Universidade Federal de Santa Maria (RS). EDUCAÇÃO FÍSICA E APRENDIZAGEM SOCIAL EDITORA MAGISTER LTDA 1997 VALTER BRACHT COORDENAÇÃO: JOSÉ PEREIRA RODRIGUES REVISÃO DE TEXTOS: IARA HAUBERT RODRIGUES COMPOSIÇÃO E DIAGRAM AÇÃO: LEANDRO AUGUSTO DOS S. LIMA ©VALTER BRACHT TODOS OS DIREITOS DESTA OBRA ESTÃO RESERVADOS À LIVRARIA E EDITORA MAGISTER LTDA IMPRESSO EM OUTUBRO DE 1997 VALTER BRACHT EDUCAÇÃO FÍSICA E APRENDIZAGEM SOCIAL 2ª EDIÇÃO LIVRARIA E EDITORA MAGISTER LTDA PORTO ALEGRE 1997 Dados de Catalogação na Publicação: Nilvea Schapke - CRB 10/784 ISBN 85-85275-05-7 LIVRARIA E EDITORA MAGISTER LTDA. AV. WENCESLAU ESCOBAR, 2667/204 FONE (051) 249-5054 PORTO ALEGRE - RS - BRASIL EDITOR JOSÉ PEREIRA RODRIGUES SUMÁRIO Carta-Prefácio......................................................................................................... 9 Prefácio à 2a edição.............................................................................................. 10 Introdução............................................................................................................ 11 PARTEI Em torno da Autonomia e da Legitimidade da Educação Física.........................13 Capítulo I 1. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica.......................................15 1.1 Introdução.................................................................................... ................. 15 1.2 Instrumento teórico da análise.......................................................................18 1.3 Educação Física - Instituição Militar - Instituição Esporte...........................19 1.4 A busca de um referencial teórico.................................................................24 Capítulo II 2. Educação Física: a busca da legitimação pedagógica..................................... 33 2.1 Introdução...................................................................................................... 33 2.2 Excurso acerca da pergunta “o que é Educação Física?”...........................34 2.3 Crise e legitimação........................................................................................ 36 2.4 Os modelos de legitimação da Educação Física............................................36 2.5 A produção do conhecimento na e para a Educação Física.......................... 37 2.6 A crítica e a superação dos modelos de legitimação vigentes...................... 42 PARTE II Aprendizagem social na Educação Física............................................................ 55 Capítulo III 3. A criança que pratica esportes respeita as regras do jogo... capitalista ......... 57 3.1 Introdução...................................................................................................... 57 3.2 O Conteúdo sócio-educativo do esporte........................................................58 3.3 Princípios de uma pedagogia crítica para a Educação Física........................65 Capítulo IV 4. A Educação Física Escolar como Campo de Vivência Social.........................71 4.1 Introdução............................................................................................... ...... 71 4.2 A socialização através do jogo e do esporte .................................................74 4.3 A aprendizagem social no ensino dos esportes nas escolas.......................... 77 4.4 O fenômeno do jogo na sua relação com o esporte.......................................81 4.5 A metodologia do ensino do basquetebol......................................................82 4.6 Objetivos do estudo..................... ..................................................................83 4.7 Materiais e métodos....................................................................................... 84 4.7.1 Instrumentos de medida..............................................................................84 4.7.1.1 Sistema de registro de comportamentos de interação social.................. 85 4.7.1.2 Questionário............................................................................................ 87 4.7.2..Coleta de dados...........................................................................................87 4.7.3 Metodologia Funcional-Integrativa (MFI).................................................88 4.7.4 Metodologia Tradicional (MT).................................................................. 92 4.8 Resultados e Discussão..................................................................................92 4.9 Discussão dos resultados............................................................................. 100 4.10 Conclusão................................................... ............................................... 106 Bibliografia..........................................................................................................111 O AUTOR Valter Bracht nasceu em Toledo (PR) no ano de 1957. Realizou seu curso de graduação em Educação Física na Universidade Federal do Para ná, concluindo o curso no ano de 1980. Na mesma Universidade concluiu, no ano seguinte, 1981, o curso de Especialização em Treinamento Despor tivo. Neste mesmo ano, ingressou na Universidade Estadual de Maringá, onde atua, ainda hoje, como docente da disciplina de Fundamentos da Edu cação Física, no curso de Graduação em Educação Física. Em 1983, obteve o grau de mestre em Educação Física na Universidade Federal de Santa Maria (RS). Em 1984, obteve o primeiro lugar no Prêmio MEC de Literatura Desportiva na modalidade de Estudos Pedagógicos. Em 1990, doutorou-se pela Universidade de Oldenburg (R.F.A). Publicou, como co-autor, o livro: Autores Coletivos, Metodologia do Ensino da Educação Física (Coleção Magistério), editado pela Cortez Editora em 1992. Atualmente é Presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, e desenvolve estudos nas áreas da Pedagogia da Educação Física e Sociologia do Esporte. PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO Dirijimo-nos aos leitores por ocasião desta 2a edição do "Educação Física e Aprendizagem Social”, para agradecer a boa acolhida que este livro vem tendo junto aos colegas da área. Decorridos quase cinco anos desde sua 1a edição, cabe ressaltar o fato do livro ter sido editado, em 1996, também em língua espanhola no país vizinho, a Argentina (Editorial Vellez Sarsfield). É importante frisar, tam bém, que decidimos manter a versão original por entendermos que as ques tões aqui discutidas não foram esgotadas, ou seja, continuam a oferecer ele mentos importantes para a discussão pedagógica da Educação Física. Foi e continua sendo nossa expectativa, a de contribuir para o debate em torno de uma teoria da Educação Física, que encare esta como uma prá tica pedagógica; reitero o convite aos colegas para participar deste projeto. Vitória (ES), julho/l997 Valter Bracht CARTA-PREFÁCIO Companheiro Valter, Tudo bem? Acabo de fazer um levantamento, em nível nacional, bus cando os textos que mais repercutiram - nos anos 80 - entre estudantes e professores de Educação Física. O resultado revelou uma antiga desconfi ança. Você é um dos articulistas mais lidos em nossa área. A profundidade e o rigor científico, bem como o seu poder de comunicação escrita encarrega ram-se de colocá-lo nessa invejável posição. Conhecemo-nos em 1984, por ocasião da II Semana de EducaçãoFísica promovida pela UEM. Desde então, tenho acompanhado com muito carinho a sua carreira e a sua militância. Tenho certeza de que o sucesso deveu-se ao fato de você não desarticular Educação Física e Sociedade. E mais. Pensar, não qualquer Educação Física em uma sociedade qualquer. Pensar, sim, esta Educação Física nesta sociedade. Nesta sociedade onde 45% de todos bens produzidos coletivamente estão nas mãos de 1% de proprietários. Onde as empresas multinacionais detêm quase o dobro das terras dos nossos lavradores. Só faltava, mesmo, ganhar uma medalha na competição da miséria. Não falta mais. Somos me dalha de bronze, de acordo com o Banco Mundial. Será que a Educação Física não tem nada a ver com isso? Amigo Valter, você bem sabe que omis são identifica-se com cumplicidade. Você não se omite e daí a sua importância. Apesar e por causa disso tudo, fica uma lacuna. A publicação - em forma de livro - dos artigos que melhor representem o seu pensamento. Aguardamos. Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1992. Do seu amigo e admirador, *Vitor P.S. Sucesso na presidência do CBCE. *PROF.: Vitor Marinho de Oliveira INTRODUÇÃO Este livro compõe-se de uma série de artigos e ensaios, três deles já publicados anteriormente em periódicos da área, e um ainda inédito. A de cisão de publicá-los agora na forma de livro, adveio da constatação de que, no âmbito da Educação Física, os periódicos ainda não têm a mesma pene tração dos livros, levando-nos a crer que grande parte da comunidade da Educação Física ainda não teve acesso a este conteúdo. Por outro lado, o incentivo do Prof. Vitor Marinho de Oliveira representou o empurrão final para que levássemos à frente a idéia. O título “Educação Física e Aprendizagem Social”, num primeiro momento, pode parecer estar apenas relacionado com o conteúdo da segun da parte, mas, na verdade, contém uma categoria que é característica para uma corrente que surge na Educação Física brasileira no início da década de 80. Esta corrente, influenciada pela discussão que era levada a efeito no âmbito mais geral da pedagogia no Brasil, começa a refletir o papel social da Educação Física, contextualizando-a no sistema educacional, e este, na sociedade capitalista brasileira, operando estas análises com um referencial teórico de orientação marxista. Assim, o conteúdo deste livro reflete também diferentes momentos desse movimento, e diferentes momentos do próprio autor. Contém tanto um ensaio que possui um forte caráter de denúncia (Cap, 3 - "A criança que pratica esportes respeita as regras do jogo ... capitalista"), como um ensaio onde já a auto-crítica tem seu espaço (Cap. 2 “Educação Física: a busca da legitimação pedagógica”). Embora algumas das posições defendidas na época em algum destes artigos precisassem hoje ser relativadas, e outras tivessem sido superadas pelo autor, decidiu-se pela publicação sem alterações significativas, de vez que, na essência, as posições permaneçam inalte radas. A segunda parte, que cronologicamente antecede a primeira, contém dois artigos onde a questão central é o tipo de aprendizagem social propici ada pelas aulas de Educação Física. Em “A criança que pratica esportes respeita as regras do jogo ... capitalista”, procuramos analisar que repercus são política teria o tipo de aprendizagem social típica das aulas de Educação Física, e, no capítulo seguinte - “Educação Física escolar como campo de vivência social” procuramos ir além, buscando desenvolver uma alterna tiva metodológica que levasse a um tipo de aprendizagem social que se colocasse na perspectiva de uma educação transformadora. A primeira parte contém dois artigos, cuja preocupação central é o desenvolvimento de elementos de uma teoria pedagógica de Educação Físi ca articulada discursivamente com uma teoria crítica da educação. No capí tulo um, analisamos até que ponto podemos falar da Educação Física en quanto prática pedagógica que desfrute de autonomia, ou seja, que se paute por princípios e códigos próprios e não de sistemas, afora a escola, com os quais se relaciona, como por exemplo, o sistema esportivo. No capítulo dois, levamos a efeito reflexões iniciais em tomo da razão de ser da Educação Física, ou seja, da questão da legitimidade da Educação Física no currículo escolar. Esperamos, com a publicação deste livro, propiciar o acesso de seu conteúdo a um número maior de colegas, e contribuir para incrementar o debate em torno desta prática pedagógica que é a Educação Física. Maringá, 12 de janeiro de 1992. Valter Bracht PARTE I EM TORNO DA AUTONOMIA E DA LEGITIMIDADE DA EDUCAÇÃO FÍSICA L Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 15 CAPÍTULO I Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 1.1 Introdução Parece-me necessário, antes de mais nada, realizar um esforço no sentido de estabelecer uma certa clareza terminológica quanto à expressão Educação Física. Este termo tem sido utilizado no Brasil, concomitante- mente, num sentido restrito e num sentido amplo, o que tem gerado um verdadeiro caos conceituai, que dificulta a comunicação científica e a refle xão teórica. No seu sentido “restrito”, o termo Educação Física (1) abrange as atividades pedagógicas, tendo como tema o movimento corporal e que toma lugar na instituição educacional. No seu sentido “amplo” tem sido utilizado para designar, inadequadamente a meu ver, todas as manifestações culturais ligadas à ludomotricidade humana, que, no seu conjunto, parecem-me me lhor abarcadas por termos como cultura corporal ou cultura de movimento (2). 1 Segundo Marinho, I.P. (1984, p. 217), é a J. Locke (1632-1704) que devemos a utilização/sedimentação do termo Educação Física. No entanto, o autor mesmo, em obras anteriores não opera a diferenciação dos sentidos amplo e restrito. 2 Poderia aqui ser contra-argumentado que o termo Educação Física é tão adequa do quanto o de cultura corporal para designar o conjunto das atividades corporais de movimento. O inconveniente, a meu ver, é que teríamos que substituir o termo Educação Física no seu sentido restrito, já que me parece urgente eliminar a am bigüidade. Por outro lado, não gostaria de adentrar aqui na questão da im propriedade do próprio termo Educação Física, que seria, na opinião de Sérgio (1986, p. 24), com vantagens substituído por Educação Motora, devido ao maior peso e densidade ontológica deste. 16 Educação Física e Aprendizagem Social Em parte, a confusão se deve ao fato do profissional denominado Professor de Educação Física ou Licenciado em Educação Física (3), re querer para si o direito de atuação profissional com todas as atividades cor porais de movimento - da Educação Física, passando pelo esporte, pela dança, até a ginástica de academia. Essas atividades estavam desde logo presentes nos currículos de formação de professores de Educação Física no Brasil, donde a célebre afirmação de que o esporte, a dança, os jogos a ginástica, etc., são os meios da Educação Física - até aí nada de mais, - derivando-se daí a falsa conclusão de que o termo Educação Física seria mais “abrangente” do que os de Esporte, Ginástica (recreação [4]), etc., porque os compreendia. Neste escrito, portanto, a expressão Educação Físi ca será utilizada no seu sentido restrito, definido acima. O tema Educação Física, como mencionado anteriormente, é o movi mento corporal — é o que confere especificidade à Educação Física no inte rior da Escola. Mas o movimento corporal ou movimento humano que é seu tema, não é qualquer movimento, não é todo movimento. É o movimento humano com determinado significado/sentido, que por sua vez, lhe é confe rido pelo contexto histórico-cultural. O movimento que é tema da Educação Física é o que se apresenta na forma de jogos, de exercícios ginásticos, de esporte, de dança, etc.Esses movimentos não são propriedade exclusiva desta área ou desta prática pedagógica, muito pelo contrário, a Educação Física apoderou-se em maior ou menor grau (ou foi ela que foi instrumenta lizada?) dessas atividades corporais, pedagogizando-as (ou pretendendo pe- dagogizá-las). Estas atividades, como disse, possuem um determinado có- 3 É interessante notar que, em 1939, foi criada, integrando a Universidade do Bra sil, a Escola Nacional de Educação Física e Desportos, cujos egressos recebiam, no entanto, o título de Professor de Educação Física (Marinho, 1984, p. 220). 4 O entendimento da recreação como uma forma específica de atividade que pu desse figurar ao lado da ginástica, do esporte, etc., foi apenas recentemente des- mistificado por RL. Moro, num artigo recomendável: Redimensionando a Recre- acão em Educação Física. In: Comunidade Esportiva, nov./dez. 1986, n. 40. p. 2- 7. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 17 digo que denuncia seu condicionamento histórico, expressam/comunicam um sentido, incorporam-se a um contexto que lhes confere sentido (5). Por exemplo, os movimentos na forma de exercícios ginásticos, de corridas, etc., que incorporam os programas de preparação militar no inte rior desta instituição, expressam e possuem um sentido, um determinado código que só pode ser apreendido, se considerados o sentido e os códigos que vigoram na própria instituição militar como um todo. Isto é, o movi mento corporal, na forma de ginástica, foi aí instrumentalizado. Se analisarmos, através da literatura específica, a forma cultural do movimento corporal que tem sido objeto da Educação Física no Brasil, ve remos que inicialmente (pelo menos até a década de 40 deste século), havia o predomínio do exercício ginástico - principalmente o de orientação mili tarista - que, a partir de então, cede lugar progressivamente ao movimento na forma cultural de esporte. É lógico que outras expressões da cultura corpo ral ou de movimento, estiveram/estão presentes ou são tematizados na Educa ção Física, como a dança, jogos e brincadeiras populares. Parece-me, no entan to, que essas expressões constituem minoria, e que podemos falar da ginástica e posteriormente de esporte, como as atividades, nos respectivos momentos históricos, que se apresentam como hegemônicos na Educação Física. Por outro lado, a Educação Física, em se realizando na instituição educacional, presume-se, assume o estatuto de atividade pedagógica e como tal, incorpora-se aos códigos e funções da própria escola. Assim sendo, pa rece-me que a Educação Física, no Brasil, vai desenvolver sua identidade (?), seus códigos, a partir da relação que estabeleceu/estabelece com um meio ambiente que compreende, fundamentalmente, a instituição escola, a instituição militar e a instituição esporte. E é neste conjunto de relações que buscaremos, inicialmente, as bases para a discussão de dois pontos que nor tearão nossas reflexões daqui por diante: a) O grau de autonomia pedagógica (identidade da Educação Física) alcançada na sua relação com as instituições referidas acima; 5 Não existe um salto em distância que seja em si capitalista e um que seja em si socialista. Somente sua contextualização permitirá identificar possíveis sentidos significados diferentes nesta ação. 18 Educação Física e Aprendizagem Social b) As bases de legitimação como integrantes do sistema formal de ensi no - o que compreende a questão dos objetivos-conteúdos da disciplina. 1.2 Instrumento teórico de análise Antes de adentrar a análise propriamente dita, gostaria de, antecipa damente, explicitar alguns elementos teóricos que utilizarei na análise. Um destes elementos é a teoria da diferenciação dos sistemas soci ais, como ela tem sido desenvolvida pela moderna teoria dos sistemas na sociologia (6). Os sistemas sociais, em função de sua especialização funci onal, desenvolvem uma lógica própria que se objetiva na forma de valores, normas, códigos e semânticas. Um exemplo típico é o apresentado por K. Marx em relação à lógica própria desenvolvida pelo sistema econômico do capitalismo (7). Isto não significa que um sistema social que se diferenciou de um meio-ambiente, que desenvolvou uma lógica própria, não mantenha mais relações com este meio-ambiente. Pelo contrário, autonomia não sig nifica, neste caso, isolamento ou autarquia: “A autonomia pressupõe uma determinada interdependência, e expressa o grau de liberdade com a qual as relações entre o sistema e o meio-ambiente podem, através dos critérios seleti vos do sistema, ser por ele próprio reguladas” (LUHMANN, 1970, p. 157). Na teoria dos sistemas, parte-se do princípio da unidade da diferença entre o sistema e o meio-ambiente (CACHAY, 1986). Assim, a identidade de um sistema desenvolve-se em íntima relação com o seu meio-ambiente. Se nos distanciarmos agora da teoria dos sistemas (funcional-estru- turalismo) ou a complementarmos com categorias do materialismo históri co, poderíamos dizer que os sistemas sociais não podem ser simplesmente colocados lado a lado, e sim, para superar o caráter meramente descritivo da análise, precisamos, através da análise histórica, identificar a gênese dos sistemas, as suas determinações, ou seja, através da categoria antropológica 6 Um dos mais importanies defensores desta teoria é o sociólogo alemão Niklas LUHMANN (1970). Para uma crítica a Luhmann ver HABERMAS (1983). 7 A respeito ver SCHIMANK (1987). Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 19 do trabalho, introduzir a questão do poder nas relações inter-sistemas. Isso significa perguntar, por exemplo, em que medida um sistema não tem sua identidade ou o sentido norteador das ações, determinadas por outros siste mas (que constituem o seu meio-ambiente) mais “poderosos”? “É preciso analisar o desenvolmento em função de sua posição na hierarquia global” (BRUHL, 1987, p. 35). Um dos critérios que identificam a diferenciação de um sistema diz respeito à diferenciação dos papéis (8). Isso é, em que medida os diferentes papéis que precisam ser cumpridos no interior de um sistema, não se con fundem com outros de outros sistemas. Os papéis podem ser analisados a partir de diferentes características como: suas funções, qualificação neces sária, o processo de socialização para o desempenho do papel, habilidades técnicas que envolvem o papel, etc. É a partir deste instrumental que pretendemos, a seguir, discutir a questão do grau de autonomia pedagógica da Educação Física, o problema de sua identidade (9). 1.3 Educação Física - Instituição Militar - Instituição Esporte A instituição educacional é produto de um processo de complexifi- cação da sociedade - produzido fundamentalmente pelo desenvolvimento das forças produtivas - que determinou uma diferenciação de sistemas, os quais cumprem, no conjunto das relações sociais, determinadas funções: a transmissão do saber social acumulado exigiu o surgimento de uma institui ção para cumprir tal tarefa - o sistema educacional. A Educação Física nasce praticamente junto com a Escola, com os sistemas nacionais de ensino, típicos da sociedade burguesa emergente dos 8 “Papéis são conjuntos ou padrões de expectativa de comportamentos (compor tamentos esperados)” (JOAS, 1978). 9 É importante frisar que a questão que perseguimos é menos a de se a Educação Física constitui um sistema diferenciado no sentido da teoria dos sistemas, e sim, que grau de autonomia pedagógica ela alcançou, as perspectivas de desenvolvi mento de tal autonomia, bem como as influências que sofre na formação de sim identidade. 20 Educação Física e Aprendizagem Social séculos XVIII e XIX. Foram inicialmente os Filantropos como Guths Mu- ths (1759-1839) e Pestalozzi (1746-1827), que buscaram introduzir as ati vidades corporais no currículo escolar. Noentanto, a influência destes pe dagogos na Educação Física brasileira é claramente superada pelos chama dos métodos ginásticos, como o desenvolvido por P.H. Ling na Suécia, ou o Regulamento Geral da Educação Física conhecido no Brasil como método francês. Uma outra característica marcante da Educação Física brasileira tem sido a influência da instituição militar em seu desenvolvimento. Assim, os métodos inicialmente adotados foram, via-de-regra, os adotados pela ins tituição militar, como foi o caso do já citado método francês (10). Mas não somente os métodos ginásticos de inspiração militar foram, principalmente nas quatro primeiras décadas de nosso século, levadas à es cola, como também os próprios instrutores ou “aplicadores” dos métodos. Ora, a preparação militar inclui historicamente a exercitação corporal com o objetivo do desenvolvimento da aptidão física e do que se convencionou chamar de “formação do caráter” - auto-disciplina, hábitos higiênicos, ca pacidade de suportar a dor, coragem, respeito à hierarquia. O importante a ressaltar é que a instituição escola, neste caso, é mais ou menos palco de uma ação “pedagógica“ que se legitimava a partir de sua presumível contribuição para a saúde, ou seja, com função higiênica (inici almente com um conceito anatômico e posteriormente anátomo-fisiológico), e formação do caráter, e o seu conteúdo baseado fundamentalmente na exer citação corporal através de exercícios analíticos, corridas, saltos, etc. Isto é, assume, através do conteúdo e da forma como ele é apresentado, através das características dos papéis desempenhados pelos instrutores e alunos, os có digos/símbolos/linguagem/sentido da instituição militar. O que aliás, em li nhas gerais, não estava em dissonância com o projeto da ditadura do Estado Novo (ver ALMEIDA CABRAL, 1987), e portanto, com o papel atribuído à Escola naquele período da história do Brasil. Analisemos ainda um pouco as características dos papéis dos dois principais sujeitos envolvidos nesta atividade: o instrutor e o aluno. As fun ções atribuídas ao instrutor eram as de apresentar os exercícios, dirigir, a manter a ordem e a disciplina. Ao aluno competia repetir e cumprir a tarefa 10 Ver a respeito MARINHO (1980). Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 21 atribuída pelo instrutor. A socialização do instrutor, ou seja, o processo pelo qual o sujeito assumia o papel de instrutor de ginástica consistia, fundamen talmente, num treinamento no interior da instituição militar ou numa Escola de Educação Física militar. Poderíamos ainda analisar, por exemplo, a característica do fenotipo típico para o instrutor de ginástica, as habilidades técnicas necessárias, a relação entre instrutor e aluno. Parece-me no entanto claro que, a nível da caracterização dos papéis, fica explícita a transferência mecânica dos códi gos da formação física militar para a Educação Física. A pergunta é se neste quadro acabou sendo desenvolvido algo como uma ação teórico-prática que propiciasse a recepção crítica da influência militar, do papel atribuído à escola e à Educação Física pelos interesses dominantes. Tudo indica que não, ou seja, a Educação Física não desenvol veu a este tempo, um corpo de conhecimentos que a diferenciasse funda mentalmente da instrução física militar. A Educação Física não é ela mes ma; em maior ou menor grau ela é a instrução física militar. A sua identida de e o seu desenvolvimento são totalmente determinados a partir de fora. Seu entendimento como atividade eminentemente prática colabora também para impedir a reflexão teórica em seu interior. A figura do professor, ou seja, o sujeito que poderia desempenhar tal tarefa, também não está ainda presente. A "desmilitarização” da Educação Física brasileira dá os seus primeiros passos com a criação das primeiras escolas civis de formação de professores no final da década de 30 e início da de 40. Vale observar, para evitar equívocos, que tal desmilitarização não alcançou em nossos dias o nível desejável tanto na Educação Física quanto ao nível da sociedade em geral (11). Após a II Guerra Mundial, que coincide a grosso modo com o fim da ditadura do Estado Novo, a influência do esporte cresce rapidamente. Tam bém temos a influência neste período, do Método Natural Austríaco, desen volvido por Gaulhofer e Streicher na Áustria e do Método da Educação Física Desportiva Generalizada, divulgado no Brasil pelo Prof. Augusto Listello. Mas, como observado em outro momento, parece-me possível re 11 A respeito ver FARIA JR (1987) e BRIGAGÃO (1985). 22 Educação Física e Aprendizagem Social nunciar à análise da influência destes dois métodos em favor da influência do esporte ou da instituição esporte. O esporte sofre, no período do pós-guerra, um grande desenvolvimento quantitativo. Afirma-se paulatinamente em todos os países sob a influência da cultura européia, como o elemento hegemônico da cultura de movimento. No Brasil as condições para o desenvolvimento do esporte, quais sejam, o desen volvimento industrial com a conseqüente urbanização da população e dos meios de comunicação de massa, estavam agora, mais do que antes, presen tes. Outro aspecto importante é a progressiva esportivização de outros elemen tos da cultura de movimento, sejam elas vindas do exterior, como o judô ou o karate, ou genuinamente brasileiras como a capoeira (ver JORGE, 1980). Mais uma vez a Educação Física assume os códigos de uma outra instituição, e, de tal forma, que temos então, não o esporte da escola, e sim o esporte na Escola, o que indica sua subordinação aos códigos/sentido da instituição esportiva. O esporte na escola é um braço prolongado da própria instituição esportiva. Os códigos da instituição esportiva podem ser resumi dos em: princípio do rendimento atlético-desportivo, competição, compara ção de rendimentos e recordes, regulamentação rígida, sucesso esportivo é sinônimo de vitória, racionalização de meios e técnicas. O que pode ser observado é a transplantação reflexa destes códigos do esporte para a Edu cação Física. Utilizando a linguagem sistêmica, poder-se-ia dizer que a in fluência do meio-ambiente (esporte) não foi/é selecionada (filtrada) por um código próprio da Educação Física, o que demonstra sua falta de autonomia na determinação do sentido das ações em seu interior. É importante citar que o desenvolvimento da instituição esportiva não se dá independentemente do da Educação Física: condicionam-se mu tuamente. A esta é colocada a tarefa de fornecer a “base” para o esporte de rendimento. A Escola é a base da pirâmide esportiva. É o local onde o talen to esportivo vai ser descoberto. Esta relação, portanto, não é simétrica. Por outro lado, a instituição esportiva sempre lançou mão do argumento de que esporte é cultura, é educação, para legitimar-se no contexto social, e princi palmente para conseguir apoio e financiamento oficial. Na literatura específica, temos uma disseminação de livros que con- centram-se no desenvolvimento de estratégias do aprendizado do esporte, centrados quase que exclusivamente nos elementos técnico-táticos do apren Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 23 dizado e nas pré-condições fisiológicas e neuro-motoras para a prática de determinado esporte. Estas estratégias são trazidas para a escola com funda mentalmente uma única adaptação, qual seja, a divisão do processo em fun ção dos tempos escolares e dos graus de ensino. Os papéis do agora professor de Educação Física e do educando como se apresentam? Os papéis desses sujeitos também não são diferenciáveis nos seus aspectos fundamentais dos de treinador e de atleta na instituição esportiva. Isto é, passou-se do professor-instrutor e o de aluno-recruta para o de professor-treinador e de aluno-atleta. A diferenciação entre o “bom” treinador e o “bom” professornão é possível. A socialização do professor é marcada pela atividade esportiva. Os próprios professores dos cursos supe riores de Educação Física, que, aliás, possuem um currículo predominante mente esportivo, foram e são contratados em função do seu desempenho no mundo esportivo. A conservação da divisão de turmas para as aulas de Edu cação Física por sexo (M e F) é também, em parte, um reflexo da divisão existente na instituição esportiva, pelo menos justificada a partir de seus códigos (12). Os professores não operam a diferenciação dos papéis de treinador e professor, em parte, porque a própria Educação Física, não tendo autono mia ou uma identidade pedagógica, não fornece um referencial, um conjun to fundamentado e institucionalizado de expectativas de comportamento. Isto é, a própria definição do papel do professor de Educação Física inexiste. Esta falta de referência é fator de perpetuação da indiferenciação destes papéis. Esta orientação parece, mais uma vez, adequar-se bem à orientação tecnicista que, principalmente nas décadas de 60 e 70 predominam no sis tema educacional brasileiro, sob a égide da ditadura militar, do projeto “Bra- sil-Grande”. É a época dos, objetivos operacionais, do primado do planeja mento, da tecnologia do ensino. Menos o professor e o aluno têm importân cia no processo de ensino, e mais o planejamento (SAVIANI, 1984, p. 15- 9). Sob esta orientação, ocorreram reducionismos, ou uma segunda redução do movimento corporal nas aulas (a primeira redução já havia ocorrido atra 12 Nunca é demais observar que, num esforço teórico de síntese como este escrito, o grau de diferenciação necessário não pode ser observado. Falo, portanto, em ten- dências hegemônicas, o que não exclui tendências desviantes. 24 Educação Física e Aprendizagem Social vés da assimilação dos códigos do esporte), pela necessidade de operacio- nalizar os objetivos, o que levou, pelo menos na tendência, à substituição do lúdico em favor de tarefas mecânicas (13). Com isto gostaria de chamar a atenção para o fato de que não basta autonomizar-se em relação à instituição esportiva e à instituição militar vol tando-se totalmente à Escola. É preciso que a autonomização pedagógi ca da Educação Física compreenda uma reflexão crítica do próprio papel da Escola em nossa sociedade de classes. Isto é, não só uma relação crítica (filtragem crítica) para com o conjunto de atividades corporais (por ex. o esporte) deve ser elemento constituinte do desenvolvimento da sua identi dade pedagógica, mas também para com a instituição educacional. 1.4 A busca de um referencial teórico Sem dúvida, a questão dos objetivos-conteúdos (métodos de ensino) da Educação Física é um dos pontos centrais do desenvolvimento da sua identida de pedagógica que, no entanto, tem sido negligenciada, enquanto tema, pela investigação em Educação Física no Brasil, ou, quando muito, discutida assis- tematicamente. Muito mais, parece-me predominar, quanto a esta questão, um consenso funcional-latente, cuja existência deve-se, pelo menos em parte, à já discutida subordinação da Educação Física à instituição esportiva. E esta situa ção persiste sobretudo porque é funcional no conjunto das relações sociais, ou seja, é fator de reprodução das relações sociais dominantes, é, assim, somente serão - os objetivos e conteúdos da Educação Física - radicalmente ques tionados quando as próprias relações sociais vigentes o forem. Nesse contexto, a questão da legitimação da Educação Física na Es cola também não é objeto da investigação em Educação Física, também não é problematizada. Aceita-se a imposição do seu sentido a partir de fora (14). 13 O lúdico é dificilmente reduzível a objetivos operacionais: o aluno deverá, no final da aula, ser capaz de rir corretamente pelo menos 3 vezes em 5 tentativas - sic!!!. 14 Suspeito, nesse aspecto, de um certo oportunismo, como aquele da instituição esportiva que manteve uma relação de "compadrio” com a ditadura militar do pós 64. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 25 É interessante notar que, num regime autoritário, a legitimidade confunde- se com a legalidade. A última tende a subsumir a primeira e, assim, esta questão é reduzida a um problema de legalidade da Educação Física (se por decreto ou não, não é o problema!). O referido consenso funcional-latente quanto aos objetivos - conteúdos da Educação Física - que permanece latente enquanto não for problematizado - pode ser caracterizado, a partir da análise desenvolvida das práticas hegemônicas, ainda que de forma grosseira, da seguinte forma: Conteúdo: esporte, isto é, esporte federado, suas técnicas, regras, táticas, etc. A ginástica e a corrida, por ex., são praticadas com vistas a “parte principal”. Os jogos populares são denominados e tematizados como ‘‘jogos pré-esportivos” (15). Objetivos: aprendizagem dos esportes e desenvolvimento da apti dão física (para a saúde). É claro que a Educação Física lançou mão, para buscar legitimidade na escola, de um amplo leque de objetivos, como: desenvolvimento do sen timento de grupo, de cooperação, da sociabilidade, da auto-confiança, do conhecimento de si, etc. etc. (ou bla, bla, bla?), objetivos que, no entanto, exercem função ideológica porque a ação pedagógica não está centrada na sua consecução, relegando-os, de fato, a “efeitos paralelos desejáveis” (16). A Educação Física fez seu o discurso pedagogicista da Educação Integral. A este respeito convêm citar o prof. MELO DE CARVALHO (1987, p. III): “a fundamentação do educador tem de recusar o discurso pedagogicista mais ou menos mistificador para assentar-se na análise honesta e lúcida das bases objetivas que sustentam a escola. Qualquer esforço fora deste quadro para afirmar a disciplina é pura ilusão, quando não é puro e simples oportunismo de caráter político e ideológico”. Parece-me que o início da década de 80 marca o momento em que a visão hegemônica descrita anteriormente começa a sofrer os primeiros aba- 15 A respeito ver a importante análise de PARLEBAS, P. (1980). 16 A dicotomia entre este discurso e a prática pedagógica ficou exemplarmente evi dente na investigação de FERREIRA (1984). 26 Educação Física e Aprendizagem Social los - talvez possamos falar em início de uma crise, no sentido atribuído por MEDINA (1983). Talvez seja proveitoso caracterizar, ligeiramente, essas novas interpretações (propostas), que, via-de-regra, fazem a crítica da Edu cação Física estabelecida. Vale ressaltar que, devido à sua fragmentação e interpenetrações, estas novas interpretações resistem ainda a uma tipologia mais precisa (ver CAVALCANTI 1985 e TAFFAREL 1985). - Uma destas novas interpretações está baseada na crítica ao be- haviorismo, à pedagogia tecnicista, e pode ser caracterizada como o da Edu cação Física Humanista. Esta proposta desloca a prioridade dada ao pro duto para o processo de ensino, introduzindo o princípio do processo de ensino não-diretivo. Os objetivos da Educação Física situam-se mais no plano geral da Educação Integral. O conteúdo é muito mais instrumento para promover as relações inter-pessoais e facilitar o desenvolvimento da natureza, em si boa, da criança (17). Esta interpretação ou proposta mantém íntima relação com uma outra que surge a partir do chamado Esporte para Todos. Embora surgido menos como crítica à Educação Física e mais como movimento alternativo ao esporte de rendimento, o EPT acaba influencian do-a. Sua concepção é baseada numa crítica humanista, de cunho existenci alista, ao esporte de rendimento (18). O objetivo central da Educação Física torna-se, nesta concepção, a instrumentalização do aluno para ocupar suas horas de lazer com atividades. E, de maneira que tal ocupação possa ocorrer de forma autônoma, crítica e criativa, existe a necessidade de utilizar for mas variadasde movimentos corporais, diferenciando-as das atividades es tereotipadas do esporte de alto nível. Adaptar, modificar, criar novas formas de movimento são as palavras de ordem. No entanto, “o social é entendido como uma extensão do individual, ou seja, trata-se de desenvolver atitudes de cooperação e solidariedade a fim de inserir-se de maneira positiva no meio social já dado, jamais questionado” (LIBANEO, 1985, p. 65). 17 Para esta concepção ver OLIVEIRA (1984). 18 Claramente identificável, por exemplo, no trabalho de DIECKERT (1987, p. 134): “O Esporte para Todos, desenvolvido neste meio tempo no Brasil, representa muito desta nova antropologia, que coloca a autonomia do ser humano no centro. Não é o esporte que faz o homem, mas o homem que faz o esporte! Ele determina o que, como, onde, quando, por quanto tempo, com quem, sob que regras, com que objetivo e sob que condições o pratica”. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 27 - A Psicomotricidade. Baseada na interdependência do desenvol vimento cognitivo e motor, critica o dualismo predominante na Educação Física, e propõe-se, a partir de jogos de movimento e exercitações, con tribuir para a Educação Integral. O autor de maior influência no Brasil é, sem dúvida, o francês J. LE BOULCH, para quem “a Educação Psicomoto ra assenta no desenvolvimento de algumas aptidões de natureza perceptiva e de natureza motora, em relação com as funções mentais” (apud SOBRAL, 1976, p. 93). Sua proposta está expressa no título de um de seus livros: a Educação pelo movimento. Isto é, e a tentativa de instrumentalizar o movi mento com vistas às tarefas “fundamentais” da Escola. Embora considere a crítica ao dualismo um grande avanço, parece-me que sua base teórica ainda não apresenta os fundamentos de uma teoria pedagógica da Educação Físi ca (parece-me também que não é esta a intenção dos seus autores). A con cepção de Educação Física presente nesta proposta “resulta de uma pers pectiva desencarnada socialmente” (MELO DE CARVALHO, 1987, p. III). Com a Psicomotricidade, temos um deslocamento da polarização da Educa ção do movimento para a Educação pelo movimento, ficando a primeira nitidamente em segundo plano: “a Educação Psicomotora considera as ati vidades como algo secundário, devendo subordinar-se ao desenvolvimento de algumas capacidades e relacionadas com as funções mentais” (SOBRAL, 1976, p. 94). A motricidade ou movimento corporal (por ex. na forma cul tural de esporte) não é um saber a ser transmitido, e sim meio, instrumento. Por outro lado, a sua base de argumentação, a íntima relação do desenvolvi mento de estruturas cognitivas com o desenvolvimento motor, é generalizá vel para depois dos 10-11 anos de vida somente com restrições. Ou seja, a “qualidade” da relação entre cognição e motricidade assume conotação to talmente diferente. Se nos primeiros anos de vida a aprendizagem de no ções como a lateralidade, a estruturação espaço-temporal, etc. desenvol vem-se em íntima relação com o próprio desenvolvimento da motricidade, de tal maneira ser quase impossível identificar os limites entre um e outro, parece-me difícil afirmar o mesmo do aprendizado, por ex., de operações matemáticas mais complexas. Bem observado, a relação entre cognição e motricidade (e afetividade) não desaparece, mas assume outra “qualidade”. - A assim chamada Educação Física Revolucionária. Como bem lembra CAVALCANTI (1985), a concepção crítica ou revolucionária da Educação Física vem ensaiando os primeiros passos, porém ainda de forma bastante difusa, apresentando-se ainda muito fragmentada. O que diferen cia esta tendência de todas as outras descritas anteriormente é o fato dela 28 Educação Física e Aprendizagem Social realizar a crítica da Educação Física a partir de sua contextualização na sociedade capitalista, operando tal crítica a partir da tradição teórica do marxismo e, assim, ressaltando a dimensão política da Educação e da Edu cação Física. Seus adeptos colocam como elemento norteador de uma “nova” Educação Física, um compromisso político com as classes oprimidas, com vistas a transformações estruturais na sociedade, condição indispensável para um com-viver Humano. Dois pontos têm sido objeto de análise crítica: a) a ideologia burguesa veiculada pela Educação Física (19); e b) a “domes ticação do corpo” na Educação Física (crítica realizada a partir das teorias de M. Foucault e também W. Reich (20). Como bem lembra KUNZ (1991), estas novas concepções estão ainda numa fase crítico-teórica que precisa ser superada em favor de alternativas pedagógicas, para que o próprio dis curso não perca sua ressonância crítica. Se, na análise e avaliação da função que a Educação Física tem cumprido em nossa sociedade, não ocorre disso nância maior entre estas duas correntes, o mesmo não pode ser dito das poucas propostas alternativas de ação pedagógica que delas tem emanado. Enquanto a primeira centra sua proposta mais na transmissão crítica do sa ber, mesmo do esporte, e na luta contra-ideológica, a segunda centra-se na experiência ou vivência corporal, nas práticas de conscientização corporal. Nenhuma destas novas tendências parece, no entanto, ameaçar seria mente a hegemonia da “tendência esportiva”. Não fornecem também, até o momento, à ação pedagógica em Educação Física um quadro referencial teórico consistente. Identificando-me com a concepção revolucionária de Educação Físi ca - preferiria denominá-la de tendência progressista - gostaria de, finali zando e obedecendo ao caráter exploratório deste escrito, tentar uma peque na contribuição à tarefa enunciada acima, abordando o complexo: Educa ção do movimento - Educação pelo movimento? Antes de mais nada, é importante evitarmos aqui o “pedagogismo”. SOARES (1987) aponta o ca minho: “cabe às disciplinas que constituem o currículo (conjunto de ativi- 19 Entre outros: CASTELLANI FILHO (1983); BRACHT (1986); CARMO (1987). 20 Entre outros: MEDINA (1987) e FREIRE DA SILVA (1987). Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 29 dades nucleares da Escola), transmitir, enquanto partes constitutivas de uma totalidade de conhecimentos, o seu particular, sem entretanto estabelecer uma posição com o geral. Entretanto, para que possamos realizar esta tare fa, é preciso examinar atentamente o que fundamenta cada disciplina curri cular e o porque de sua existência. É preciso captar o que a definiu como tal, a que necessidade pedagógica veio atender”. Nesta perspectiva, parece-me necessário negarmos a oposição entre Educação pelo Movimento e Educa ção do Movimento em favor de uma unidade dialética: Educação pelo, do e para o Movimento. A Educação Física possui um conteúdo, um saber, cuja transmissão deve ser assumida como tarefa pela Escola. A Educação Física, na transmissão deste saber e em função das características, deste elemento da cultura, pode contribuir para com os objetivos da Escola (que transcendem a especificidade de uma dada dis ciplina). A desconsideração da Educação do e para o movimento, em favor da Educação pelo movimento correria o perigo de negligenciar o fator históri- co-cultural do movimento (e com ele as contradições sociais). Por isso, con sidero que as formas culturais de movimento que se apresentam no mundo vivido de nossa população alvo, precisam ser tema e problematizadas na Educação Física. Isto implica, por exemplo, a tematização da vida de movi mento das camadas populares (ver KUNZ, 1991). Mas como podemos legitimar a Educação Física na Escola? Em que consiste a importância da Educação Física? Para que Educação Física? Pa- rece-me que a tendência progressista da Educação Física tem negligenciado esta questão em favor da questão: para quem serve a Educação Física? Na visão da Educação Física como atividade, com o objetivo do desenvolvi mento da aptidão físicacom vistas à saúde, a legitimação ocorria pela sua vinculação ao mundo do trabalho, pela sua importância para a produção (força de trabalho). Como vimos, com a afirmação do esporte também como conteúdo hegemônico na Educação Física- e as modificações estruturais a nível da sociedade que co-determinaram esta mudança - ocorre um certo deslocamento em direção ao lazer. A Educação Física passa a ser relaciona- da, agora, menos diretamente com o mundo da produção, mas de forma imediata através da mediação do lazer, o que, em função do maior status social do trabalho (atividade “nobre”) em relação ao lazer (atividade "su- 30 Educação Física e Aprendizagem Social pérflua”), não deixa de constituir-se numa dificuldade para tal legitimação (21). No entanto, o lazer e a educação para o lazer parecem, cada vez mais, serem considerados um tema e uma tarefa também da Escola (22). Para alguns autores (KURZ [1985] e BENTO [1987]), a importância quantitativa que o esporte assumiu em nossa sociedade é considerada já como argumento justificador para a sua consideração por uma escola que não é “cega” frente à realidade social. No entanto, para a legitimação da Educação Física, a alusão à dimensão quantitativa do esporte não me parece condição suficiente pois, antecedendo ou complementando a avaliação da importância quantitativa do esporte, seria necessária uma avaliação do sen tido e funções do esporte (por ex. como elemento do lazer) para o Homem e nossa sociedade; portanto, uma avaliação qualitativa (normativa) do espor te. E, neste sentido, uma teoria pedagógica da Educação Física, para além da consideração do aspecto histórico-cultural concreto ou de como o movi mento se apresenta culturalmente, não pode renunciar a uma análise antro pológica do fenômeno da ludomotricidade humana, pois, para além das ca racterísticas e códigos que os movimentos corporais e os jogos assumem a partir da sua contextualização histórico-cultural, parece-me impossível ne gar seu caráter universal e constituinte da natureza humana. Permanecer nesta análise antropológica, fazendo dela a base única de uma teoria (da legitimação) da Educação Física é condená-la a um abstratismo ideológico e ao a-historicismo. No entanto, se não é condição suficiente, é, pelo menos, condição necessária. Finalizando, gostaria de dizer que o desenvolvimento de um corpo teórico da Educação Física que intermedie a sua relação com o “meio-am- biente” é tarefa nossa, ou seja, dos sujeitos que constituem a Educação Físi ca. A autonomia pedagógica, da qual se falou aqui, necessita da investiga ção pedagógica, que não e uma tarefa meramente técnica, que não exclui mas não pode também ser confundida com a pesquisa em aprendizagem 21 O preconceito burguês em relação ao ócio acentua-se quando este diz respeito as atividades corporais, o que vale combater. Ver a respeito LAFARGUE (1983). 22 Importantes a respeito são os trabalhos de MARCELLINO (1983, 1987). motora, em crescimento e desenvolvimento, em socialização, etc., pois, se esta pode fornecer elementos para a realização dos objetivos da Educação Física, não descobrirei, com o seu auxílio, o compromisso político para com os oprimidos de nossa sociedade (23). Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 31 23 A falta de respostas neste escrito às muitas das questões levantadas, deve-se não só, em parte às minhas próprias limitações, ao caráter deste texto, mas também ao próprio estágio de desenvolvimento da Teoria da Educação Física. h Educação Física: a busca da legitimação pedagógica CAPÍTULO II Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 2.1 Introdução Este ensaio pretende ser um prolongamento de outro publicado ante riormente e que leva o título “Educação Física: a busca da autonomia peda gógica” (BRACHT, 1989). Ambos circunscrevem-se no âmbito do esforço que faz o autor para desenvolver elementos para uma teoria (crítica) da Edu cação Física. Naquele texto procurei demonstrar que aquela prática pedagógica chamada de Educação Física, e que tem como característica diferenciadora a tematização do movimento corporal, manteve e mantém uma relação his tórica com instituições como a militar e a esportiva, que pode ser caracteri zada como de subordinação e que, portanto, não logrou desenvolver sua autonomia, vale dizer, reger-se por princípios e códigos próprios. Embora considere que várias questões (1) importantes - para o de senvolvimento de um corpo teórico que fundamente a prática pedagógica em Educação Física - estejam sendo discutidas em diferentes fóruns, como simpósios e congressos, entendo que uma tem estado, estranhamente, au- 1 Por exemplo: O que é Educação Física? É comum ouvir-se, (nós nem sabemos o que é Educação Física)!, o que é interpretado como sinal de uma “crise de identi dade”. A Educação Física seria uma (nova) ciência? ou, formulado de outra for ma: a Educação Física deveria assumir o estatuto de ciência? Tem sido denuncia do (se é que isto ainda pode ser considerado uma denúncia?!), que a função so- cial da Educação Física, assim como da Educação como um todo, e a de reprodu zir o nosso sistema societal, portanto, de reproduzir também, entre outras coisas, a injustiça social, etc. 3 3 34 Educação Física e Aprendizagem Social sente (para não dizer que tem sido evitada). Refiro-me à questão da legiti midade da Educação Física na Escola, ou seja, a razão de ser da Educação Física no currículo escolar (2). Pretendo, portanto, me ater mais especificamente a esta problemáti ca, sem contudo me furtar de abordar questões que a tangenciam ou que com ela estão intimamente relacionadas. Um exemplo, é a citada pergunta: mas afinal, o que é Educação Física? 2.2 Excurso: acerca da pergunta, o que é Educação Física? Uma resposta a esta questão só é possível se tivermos claro o que na verdade estamos perguntando. Entendo que parte das dificuldades no en frentamento desta pergunta, decorre da falta de clareza quanto ao “o que estamos perguntando com esta pergunta”, portanto, residem na raiz da pró pria pergunta. Senão, vejamos: é comum buscar-se elucidar a essência (3) da Educação Física, como se esta existisse independentemente da Educação Física concreta e situada historicamente, que conhecemos. É desta busca que derivam expressões do tipo: “mas esta não é a verdadeira Educação Física”. Ora, a “verdadeira Educação Física” é aquela que acontece concre- tamente, e não uma entidade metafísica que estaria hibernando em algum recanto à espera de sua descoberta. Se é isto que estamos perguntando (pela essência no sentido metafísico), estamos perguntando errado, pois a “ver dadeira” Educação Física é aquela que nós construímos no nosso fazer diá rio. Entendo que, para apreender a Educação Física enquanto fenômeno, é preciso, num primeiro momento, desvencilhar-se daquilo que desejamos 2 Esta foi a questão que levantei no ensaio anteriormente citado, no momento que fazia a (auto)crítica às “tendências progressistas” da Educação Física, que até então haviam se omitido em relação a este problema. 3 Leia-se, “essência metafísica”. Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 35 que ela seja (4). Além disso, é importante atentar para o que nos diz V I E I RA PINTO (1979, p. 90-1): “o conteúdo de todo conceito é a sua história”. Acreditando estar respaldado pela história, entendo que a Educação Física é a prática pedagógica que tem tematizado elementos da esfera da cul tura corporal/movimento. Este conceito, reconheço, é ainda meramente descritivo; além disso, seria necessário complementá-lo com a elucidação do entendimento da expressão “prática pedagógica” (5). A resposta que ofereci aqui, e que tomo como base para minhas reflexões, tem um ca ráter descritivo, uma vez que entendo que um conceito de Educação Física é uma teoriada Educação Física, e isto estamos tentando desen volver. Relembrando, no Brasil os elementos da cultura corporal/movimen to predominantes na Educação Física foram, num primeiro momento, a gi nástica e, num segundo - e esta é a situação atual - o esporte (6). É impor- 4 Não estou ignorando a necessária dialetização entre o velho e novo, no sentido de que existem diferentes “projetos” para a Educação Física (que refletem dife rentes projetos de sociedade e visões de mundo). Mas enquanto projetos, eles ainda não são a Educação Física. 5 Eu acentúo, a Educação Física é antes de tudo uma prática pedagógica, que como toda prática social não é obviamente destituída de pensamento - eu quero com isso me contrapor àquelas posições que a denominam preferencialmente como uma área do conhecimento. Ela elabora um corpo de conhecimentos que tendem a fundamentá-la, pois toda prática exige uma teoria que a constitua e dirija. Mas a Educação Física é uma prática social de intervenção imediata, e não uma práti ca social cuja característica primeira seja explicar ou compreender um determi nado fenômeno social ou uma determinada parte do real. 6 Aqui faz-se necessária uma rápida observação: não posso derivar daí que o Es porte é Educação Física. Não, o esporte é um fenômeno social que tem um desen volvimento, embora relacionado, relativamente autônomo em relação à Educa ção Física, assim como a dança já compunha a nossa cultura corporal/movimen to, muito antes que o próprio termo Educação Física tivesse sido usado pela pri meira vez. 36 Educação Física e Aprendizagem Social tante ressaltar que a eleição ou a tematização na Educação Física de deter minado elemento ou manifestação da cultura corporal/movimento, está re lacionada, direta ou indiretamente, com as necessidades do projeto educa cional hegemônico em determinada época, e com a importância daquela manifestação no plano da cultura e política em geral. A tematização privi legiada da ginástica por exemplo, tem a ver com o papel higienista atri buído à Educação Física no projeto educacional do início deste século no Brasil (ver a respeito os estudos de (CASTELLANI 1989; SOARES, 1990). 2.3 Crise e legitimação É cada vez mais comum ouvir-se nos meios da Educação Física que ela se encontra em crise. É de M. SÉRGIO (1988, p. 12) a afirmação de que “o discurso da Educação Física é, desde a década de 60, declaradamente de crise”. São aludidas diferentes causas para explicar a referida crise, além de diferentes interpretações do seu caráter. Uma delas, por exemplo, parte do argumento de que não existe uma profissão regulamentada de Professor de Educação Física, o que causaria uma falta de respeito profissionais bem como uma indefinição do mercado de trabalho. Outros entendem que a crise é de cunho epistemológico. Considero que, neste contexto de crise, a legiti mação da Educação Física no sistema de ensino, assume um caráter funda mental (a questão epistemológica não está aí excluída). Contra uma possível falta de legitimação, o professor de Educação Física não soube, até o momento, articular nada muito além de "altos brados de indignação” e um discurso, na maioria das vezes, teoricamente inconsis tente, isto quando não se apega ou faz um discurso “legalista", confundindo legalidade com legitimidade. 2.4 Os modelos de legitimação da Educação Física Como lembra HABERMAS (1983, p.220), “somente ordenamentos políticos podem ter legitimidade e perdê-la; somente eles têm necessidade de legitimação”. “Legitimidade significa que há bons argumentos para que um ordenamento político seja reconhecido como justo e equânime; um or Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 37 denamento legítimo merece reconhecimento. Legitimidade significa que um ordenamento político é digno de ser reconhecido” (Idem, p. 219-220). E neste sentido, como lembra WEFFORT (1988), “um regime de legitimida de política só pode ser a democracia. ... E isso porque a democracia é o único regime que organiza, isto é, institucionaliza, o consentimento popu lar. sem o qual a legitimidade perece” (p. 24). Eu diria, trazendo a discussão para o nosso tema, que é só na democracia (ou seja, na luta democrática entre grupos/partidos para a realização de sua proposta de democracia), que a questão da legitimidade pode vir à tona e ser efetivamente coloca da (7). Legitimar a Educação Física significa, então, apresentar argumentos plausíveis para a sua permanência ou inclusão no currículo escolar, apelan do exclusivamente para a força dos argumentos, declinando do argumento da força (que é o que acontece quando um regime autoritário “legaliza” alguma prática social). Esta legitimação precisa integrar-se e apoiar-se dis- cursivamente numa teoria da Educação. Na verdade, a legitimação de uma matéria se dá em função do papel que uma determinada época lhe atribui. Que funções, que papéis foram atri buídos à Educação Física nos diferentes momentos, e que função social/ humana a (pouca) teoria da Educação Física tem advogado para esta prática pedagógica? Antes de apresentar especificamente as tentativas de legitimação da Educação Física na Escola, gostaria de discutir brevemente a questão da produção do conhecimento na e para a Educação Física. 2.5 A produção do conhecimento na e para a Educação Física A produção do conhecimento nesta área esteve pautada por proble máticas que se derivaram dos entendimentos das funções atribuídas histori 7 Por isso não estranha que a questão da legitimidade da Educação Física enquanto componente curricular, comece a ser discutida após a ditadura militar 38 Educação Física e Aprendizagem Social camente à Educação Física. Quais sejam: quais as contribuições do exercí cio físico sistemático e racionalizado para a saúde, entendida enquanto saú de biológica (higiene, funções orgânicas, etc.). Tratava-se de evidenciar tam bém, os efeitos sobre o desenvolvimento do “caráter”, numa visão funcio- nalista da sociedade. Já sob o paradigma esportivo, a problemática passa a incluir, além da possível influência de determinado esporte sobre vari áveis relacionadas com a saúde (e com o desenvolvimento motor e or gânico), a investigação da variável melhoria do desempenho atlético- esportivo. Vale registrar que a teoria do conhecimento ou a concepção de ciência que predominou no âmbito da produção do conhecimento na área, foi o das ciências naturais de matriz positivista. Uma das princi pais características desta concepção de ciência, e que vai nos interessar mais de perto, é que ela radicaliza a separação entre teoria e prática: “ela apresenta como medida absoluta da cientificidade, os critérios da comprobabilidade intersubjetiva e da consistência lógica. A prática hu mana dirigida por decisões é denunciada como a-científica por escapar ao alcance experimental e à fixação empírica como validade universal, como tudo que não pode ser subsumido a este esquema” (SCHMIED- KOWARZIK 1983, p. 21). Isto nos remete ao problema da relação entre o conhecimento (cien tífico) produzido na “área” e a prática pedagógica em Educação Física. São várias as conseqüências da adoção da concepção de ciência pró pria do positivismo pela comunidade acadêmica que se propunha a produzir conhecimento “científico” na área da Cultura Corporal/movimento. Uma delas é a de que o conhecimento produzido é, via-de-regra, inútil para a prática pedagógica em questão. Outra é de que o conhecimento produzido não enfrenta a questão do sentido da prática. Para APEL (1988, p. 24), é justamente o conceito de racionalidade que domina no interior da ciência analítica, no seu sentido de objetividade sem julgamento de valor, que coloca a impossibilidade de fundamentar ra Educação Física: a busca da legitimação pedagógica cionalmente decisões normativas intersubjetivamenteválidas, pois esta te ria que submeter-se às seguintes premissas: a) Fundamento racional significa dedução lógico formal de senten ças a partir de sentenças mais básicas. b) Validade intersubjetiva de sentenças (afirmações) é igual a valida de objetiva, no sentido da constatação não valorativa ou da dedução lógico- formal. c) A partir de tal verificação ou constatação (de fatos) não é possível, com o auxílio da dedução lógica, derivar nenhum julgamento de valor ou afirmação normativa. Mas a teoria pedagógica, bem lembra SCHMIED-KOWARZIK (1983, p. 130), tem uma dupla tarefa: “pois na medida em que a Educação é a produção do homem em homem através do homem (educador), o educa dor necessita tanto da diretriz do “como” de sua ação educativa, como da determinação de sentido desta ação dirigida ao homem em seu quê. Numa das tarefas da pedagogia sobressai uma motivação prática, já que a teoria se coloca inteiramente a serviço da destinação prática do educador em sua prá- xis futura; na segunda tarefa sobressai uma motivação teórica, pois a teoria se esforça em desvelar ao educador o horizonte de tarefas da prática educa cional a partir da totalidade da humanização do homem. Entretanto, a teoria nem é ensinamento artesanal puramente prático na sua primeira forma, nem na segunda, simples sabedoria teórica; pois em ambos os casos a motivação prática e a teórica são mediatizadas em direção à unidade de teoria e prática no processo educacional”. Acontece que, nas ciências analíticas de orientação positivista, não se colocam as questões práticas onde decisões sobre o sentido da prática humana são solicitadas. Estas são recusadas em nome da neutralidade e objetividade científicas. Mas, como sabemos, a prática pedagógica exige tais decisões. Se a “ciência” não se responsabiliza por tais decisões, se ela 39 40 Educação Física e Aprendizagem Social somente se preocupa com o que é objetivamente, ou com o como (questões técnicas), quem, e a partir de que bases vão ser tomadas estas decisões de cunho normativo? HABERMAS (1988, p.11) lembra que “questões técnicas colocam- se no sentido da organização de meios racionais com vistas a objetivos, e da escolha racional entre meios alternativos tendo em vista objetivos dados (valores e máximas). Questões práticas no entanto, colocam-se no sentido da aceitação ou rejeição de normas, especialmente de normas de ação, cuja aspiração de validade nós podemos fundamentar ou rejeitar racionalmente. Teorias que pela sua estrutura servem para esclarecer questões práticas, são estruturadas para entrar no âmbito da ação comunicativa”. O que é impor tante ressaltar, é que “os interesses orientadores do conhecimento técnico e prático não são condutores da cognição, que em função da aspiração de objetividade do conhecimento, precisariam ser colocados fora de ação. Eles muito mais determinam o aspecto.sob o qual a realidade pode ser objetivada e assim tornada acessível à experiência" (Idem. p. 16). Como a primeira pergunta com a qual uma teoria pedagógica (como uma teoria da Educação Física) é a do seu sentido, e a concepção de ciência predominante no âmbito da Educação Física exclui esta questão do rol de suas competências, a (pouca) teoria da Educação Física desenvolvida até então preocupou-se fundamentalmente com as questões técnicas, instrumen tais, não enfrentando a questão dos valores. Na abordagem chamada de de- senvolvimentista (ver TANI et al. 1988) há inclusive, uma tentativa de fun damentar “cientificamente” a Educação Física a partir das necessidades obviamente “naturais” das crianças, e porque leis naturais, passíveis de se rem determinadas objetivamente, pois independem dos seres humanos con cretos, na esperança de contornar a questão dos valores. Estamos aí frente a uma das características de uma teoria da Educa ção Física. Enquanto teoria de uma prática pedagógica, ela precisa enfren tar a questão dos valores (penetrar no âmbito da ética). Ou seja, ela vai refletir (e fazer opções conscientes) em torno de uma visão (projeto) de mundo, de Homem e de sociedade. Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 41 Retomando a "abordagem desenvolvimentista” de TANI et al. (1988), gostaríamos de exemplificar as limitações das abordagens em- pírico-analíticas no que diz respeito à formulação de uma teoria peda gógica para a Educação Física. Para os autores acima citados, “a Edu cação Física Escolar pode ser estruturada através de abordagens ma croscópicas, de características filosóficas e administrativas, e também de abordagens mais microscópicas, que parte do estudo das caracterís ticas dos alunos em diferentes níveis de análise” (TANI et al., 1988. p. 135). Os autores optaram pela abordagem microscópica, considerada uma entre várias outras possíveis. Ora, o equívoco é patente, na medida em que as abordagens macroscópica (filosófica) e microscópica (des crição dos processos de desenvolvimento da criança) não são indepen dentes entre si, de tal maneira que pudéssemos a posteriori apenas so mar uma à outra. Elas muito mais se interpenetram, pois as decisões chamadas de filosóficas vão valer-se das informações sobre o desen volvimento da criança, assim como aquelas decisões vão determinar, como diz HABERMAS (1988), o aspecto sob o qual aquele desenvolvi mento será objetivado e tornado acessível à experiência. Os objetivos da Educação Física na Escola não podem ser simplesmente deduzidos logicamente dos conhecimentos sobre o desenvolvimento da criança. É preciso para tanto, elucidar qual o papel desejável para a Escola em nossa sociedade. Isto por sua vez implica, tanto em fazer uma leitu ra da sociedade em que vivemos, como implica em projetar a socie dade que almejamos. Portanto, para uma teoria para a prática pe dagógica em Educação Física, o “porquê” (decisões normativas) não pode ser discutido isoladamente do “como” (questões técnico-me- todológicas). Assim, as diferentes disciplinas científicas que se ocupam do movi mento humano, enquanto não envolvidas com a prática pedagógica em Edu cação Física, e ocupando-se com dimensões parcelares desta prática, são apenas fornecedoras de informações em estado bruto, que precisarão passar por um processo de teorização da pedagogia da Educação Física, e não po derão jamais substituí-la. A pedagogia da Educação Física enquanto ci ência prática, tem seu sentido não na “compreensão, mas no aperfeiço amento da práxis”. Assim, seria necessário que a produção do conheci 42 Educação Física e Aprendizagem Social mento para sustentar/orientar a prática pedagógica em Educação Física, se pautasse no específico do “educativo”, isto é, a problemática a ser objeto de investigação, seria determinada pelas questões que a prática educativa em Educação Física coloca. Quais são então as expectativas em relação a uma teoria da Edu cação Física? A quais perguntas deveria uma teoria da Educacão Física responder? Basicamente a duas: o porque (sentido) e o como (instru mental). Estas duas questões de cunho geral devem ser precisadas. Uma teo ria da prática pedagógica Educação Física, precisa: a) poder fundamentar esta prática no currículo escolar, isto é, precisa dizer a quais necessidades vem atender e da indispensabilidade de sua função, caracterizando assim o seu objeto - ou seja, precisa se defrontar com a pergunta do porque Educa ção Física na Escola, legitimá-la (implica discutir os fundamentos filosófi- co-antropológicos, o significado humano e social da ludomotricidade hu mana); b) desenvolver e apoiar-se numa concepção de currículo, defi nindo, entre outras coisas, a função da Escola no contexto societal, o saber ou o conteúdo de que vai tratar, bem como dos critérios para a seleção e sistematização destes conteúdos; c) em consonância com os objetivos e as características dos conteúdos, propore fundamentar uma metodologia do ensino; d) explicitar uma proposta para o problema da avaliação do ensino. 2.6 A crítica e a superação dos modelos de legitimação vigentes Mas retornemos à questão da legitimação da Educação Física na Es cola. Busquei condensar num esquema, os modelos legitimadores ou que buscam fundamentar a Educação Física na Escola, e que estão presentes excluindo-se, complementando-se, em diferentes momentos. Em abstrain do desta forma (construindo tipos ideais), estou correndo o risco de genera lizar excessivamente, como por exemplo, não levar em consideração as es- pecificidades dos diferentes graus de ensino. Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 43 Eu classifiquei estas tentativas em modelos heterônomos e autôno mos(8). As tentativas de fundamentação autônomas são aquelas que situam a razão ou importância pedagógica das atividades corporais de movimento nelas mesmas. Nesta perspectiva, estas atividades encerrariam elementos humanos fundamentais. As tentativas heterônomas, ao contrário, buscam tal razão muito mais fora das atividades, em suas repercussões sociais. É importante observar, mais uma vez, que são tipos ideais que criei, e que não aparecem de forma pura e, sim, na maioria das vezes, combinados e intere- lacionados. A base teórica das legitimações autônomas tem sido basicamente a antropologia filosófica e a fenomenologia (as diferentes teorias fenomeno- lógicas do jogo como as de HUIZINGA, BUYTENDJIK, MERLEU PON- TY e também SANTIN), ao passo que as legitimações heterônomas têm nas disciplinas científicas de cunho biológico e nas teorias sociológicas funcio- nalistas ou na sociologia funcionalista, sua base. É importante observar que são os pedagogos que se valem destas teorias para fundamentar a Educação Física na Escola, e não como muitos gostariam de insinuar, de que aqueles autores estariam propondo a Educação Física na Escola. 8 Transformar o saber elaborado em saber escolar. “Essa transformação é o poces- so através do qual seleciona-se, do conjunto do saber sistematizado, os elementos relevantes para o crescimento intelectual dos alunos e organiza-se esses elemen tos numa forma, numa seqüência tal que possibilite a sua assimilação” (SAVIA NI, 1991, p. 79). * O autor holandês Bart CRUM (1988) resumiu as tentativas de legitimação (In Educação Física enquanto atividade curricular, também em duas vertentes há:.i cas: a) A concepção biologista (biologistische Fachkonzept), c b) n contvpçmi formativa (bildungstheoretische Fachkonzept). 44 Educação Física e Aprendizagem Social Enquanto, na perspectiva heterônoma, acentua-se a funcão social, ligada principalmente ou tendo como referência básica o mundo do trabal ho, isto é, uma função em última instância, “séria” ou “produtiva”, na pers pectiva autônoma, acentua-se a dimensão lúdica do humano. GRUPE (1976. p. 35), um pedagogo que busca fundamentar a Edu cação Física via Antropologia Filosófica, entende que a primeira questão com a qual uma teoria da Educação Física precisaria se confrontar é exata mente de cunho antropológico. Neste sentido, entende que a legitimação da Educação Física é resultado de dois princípios independentes: em primeiro lugar, do fato de que a existência humana é radicalmente “um ser corporal no mundo” (não existe consciência sem corpo); e, em segundo, de que o jogo (junto com o trabalho) pertence às formas originais (até agora não ple namente conhecidas) da existência humana. Ora, uma educacão que está voltada para o humano, que se volta para as dimensões essenciais do Ho mem, não pode negligenciar a corporeidade e a ludicidade, pois estas são formas humanas básicas de comunicacão com o mundo (o discurso pedago- gicista da Educação Integral também vai nutrir-se nesta trilha de argumen tação). Mas, na verdade, o que tem predominado entre nós é a fundamenta ção heterônoma. Aqui predomina uma visão instrumentalista da Educação Física. A Educação Física é fomentadora da saúde (via aptidão física), cria e desenvolve hábitos higiênicos, desenvolve o sentimento cívico, etc. Usando uma classificação desenvolvida por MARCELLINO (1987) para o Lazer, poderíamos dizer que as funções atribuídas à Educação Física neste plano são de ordem: a) compensatória; b) utilitarista e c) moralista. Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 45 Compensatória, na medida em que a Educação Física colabora para compensar a insatisfação e alienação do trabalho intelectual em sala de aula. Uma atividade que compensa o desgaste na atividade séria e a implacável materialização do mundo contemporâneo (coisificação das relações huma nas). Utilitarista porque prepara para o trabalho (aptidão física e habili dades motoras), ao mesmo tempo que prepara o indivíduo para uma ativida de que tem a função de recuperar a força de trabalho. Moralista porque é uma atividade que ajuda a suportar a disciplina e as imposições obrigatórias da vida social, pela ocupação do tempo livre em atividades equilibradas, socialmente aceitas e moralmente corretas (enquanto a criança pratica esporte está ocupada com uma atividade socialmente acei ta e não pensa em “bobagens”). A abordagem funcionalista vê a Educação Física e a Educação como elementos que garantem a funcionalidade do sistema como um todo, e aju dam a prevenir disfuncionalidades ou conflitos. O fundamento científico desta perspectiva advém das ciências biológicas e da saúde de orientação positivista. Daí advém também grande parte de suas limitações e seus redu- cionismos, que, em termos de concepção pedagógica, tem sido denominada e denunciada como "biologista". Na verdade, a concepção positivista da ciência não pode fornecer o fundamento para a prática pedagógica, porque ela radicaliza a separação entre teoria e prática. “Ela apresenta, como medi da absoluta da cientificidade, os critérios dacomprobabilidade intersubjeti- va e da consistência lógica. A prática humana dirigida por decisões (como é o caso da prática pedagógica V.B.) é denunciada como a-científica por esca par ao alcance experimental e à fixação empírica como validade universal, como tudo que não pode ser subsumido a este esquema” (SCHMIED- KOWARZIK 1983, p. 21). A partir deste modelo teórico, questões com plexas, como por exemplo a da saúde, sofrem uma redução de cunho biologista. Neste contexto, surge, mais recentemente, uma nova versão para le gitimar a Educação Física na Escola. Esta tem a ver com a dimensão que 46 Educação Física e Aprendizagem Social assumiu o fenômeno esportivo em nossa sociedade. A dimensão quantitativa do esporte parece ser razão suficiente para que a escola assuma a tarefa de transmitir este elemento da cultura. Define-se, nesta perspectiva, a tarefa da Educação Física como a de desenvolver a capacidade de ação no desporto” (BENTO, 1987). A legitimidade das práticas corporais, principalmente o esporte, nas sociedades modernas, pode ser deduzida da praticamente unanimidade que o esporte hoje alcança. Ser esportivo, aparentar boa forma física, já quase não é mais uma opção, mas sim uma imposição social. Ligada a este “boom” do corpo ou das práticas corporais, temos o “boom” da indústria do lazer e dos materiais esportivos. Assim, embora os pedagogos resistam em utilizar esta nova dimensão do cotidiano de boa parte da população como elemento de legitimação da Educação Física na Escola, é bem provável que a Esco la, concretamente, já esteja, através das aulas de Educação Física, ser vindo a esta nova indústria, e a Educação Física esteja recebendo reco nhecimento a partir do reconhecimento tácito (9) destas práticas corpo rais na sociedade como um todo. Poderíamos citar também a vertente da “psicomotricidade”, que ins trumentaliza o movimento para as tarefas “fundamentais da escola”, e que tem sido utilizada pelos
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