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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ ANA CRISTINA KUSS CASTANHEIRA A PROPRIEDADE, A POSSE, E OS EFEITOS DA FUNÇÃO SOCIAL CURITIBA 2014 ANA CRISTINA KUSS CASTANHEIRA A PROPRIEDADE, A POSSE, E OS EFEITOS DA FUNÇÃO SOCIAL Trabalho de Monografia apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Clayton Reis CURITIBA 2014 TERMO DE APROVAÇÃO ANA CRISTINA KUSS CASTANHEIRA A PROPRIEDADE, A POSSE, E OS EFEITOS DA FUNÇÃO SOCIAL Esta monografia foi julgada e aprovada para obtenção do título de Bacharel no Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, _____ de _____________________ de 2014. Curso de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná. _____________________________________ Orientador: Prof. Dr. Clayton Reis _____________________________________ Prof. _____________________________________ Prof. ___________________________________ Professor Doutor Eduardo de Oliveira Leite Coordenador do Núcleo de Monografias RESUMO Direito real é o complexo das normas reguladoras das relações jurídicas referente às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem. O conceito de posse considera possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. O conceito de propriedade abrange uma visão do homem sobre mundo, e também uma ideologia. Função Social, no direito, serve para exprimir a finalidade de um modelo jurídico, algo que precisa ser cumprido por determinada ordem jurídica. O presente estudo teve como objetivo definir a importância de um conceito correto de posse seja para a contraposição ante o direito de propriedade, quando evidenciado o mau uso, seja para garantir direitos inerentes à condição humana. Como o direito pode estabelecer uma nova forma se sociedade com os conceitos de posse e propriedade e suas implicações com a função social. Para tanto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica contextualizando toda a história dos direitos reais, conceitos e teorias de posse, natureza jurídica da posse, noções históricas acerca da propriedade, função social da propriedade, restrições ao direito de propriedade e função social da posse. Conclui-se assim a imensa importância de não confundir a função social que o direito à propriedade deve englobar com a política social que o governo deve desenvolver para amenizar as desigualdades sociais existentes no País. Assim, estarão preservados os institutos do direito à propriedade e da soberania como assegurados pela Constituição Federal brasileira de 1988. Palavras-chave: Propriedade. Posse. Efeitos da função social. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 07 CAPÍTULO 1 - AS TEORIAS DA PROPRIEDADE E DA POSSE ............................. 09 1.1 Conceito, Caracteres Fundamentais, e Classificação dos Direitos Reais ........... 09 1.2 Noções Históricas do Direito Real ....................................................................... 12 1.3 Conceito e Teorias da Posse .............................................................................. 13 1.4 A Natureza Jurídica da Posse ............................................................................. 18 1.5 Noções Históricas acerca da Propriedade .......................................................... 21 CAPÍTULO 2 - A PROPRIEDADE COMO PORTADORA DE FUNÇÃO SOCIAL ..... 24 2.1 A Função Social da Propriedade ......................................................................... 24 2.2 Restrições ao Direito de Propriedade .................................................................. 32 2.2.1 Cláusula de Inalienabilidade ............................................................................. 33 2.2.2 Cláusula de Incomunicabilidade ....................................................................... 35 2.2.3 Cláusula de Impenhorabilidade ........................................................................ 35 2.2.4 Súmulas e Leis de Convergência de Restrições Voluntárias ........................... 36 2.2.5 Bens de Domínio Público ................................................................................. 36 CAPÍTULO 3 - A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E SUA MAIOR IMPORTÂNCIA ANTE A PROPRIEDADE .......................................................................................... 39 3.1 A Importância da Propriedade no Contexto Social .............................................. 39 3.2 O Estatuto da Cidade, em Face da Função Social da Propriedade .................... 39 3.3 O Uso da Posse na Função Social da Propriedade ............................................ 41 3.4 A Importância da Função Social da Propriedade em Face dos Tribunais ........... 43 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 55 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 57 7 INTRODUÇÃO Atualmente, é de imensa relevância o conhecimento dos conceitos, características e implicações legais da propriedade, da posse, bem como de sua função social. Sendo a propriedade a matriz dos direitos reais, a diversidade de concepções em torno do aludido instituto pode ser compreendida por meio de um escorço histórico, analisando-se a sua evolução através dos tempos e das fases mais importantes que contribuíram para a sua feição atual. Na história do direito não existe um conceito único de propriedade. Pode-se afirmar que a configuração do instituto da propriedade recebe direta e profundamente influência dos regimes políticos em cujos sistemas jurídicos é concebida. Este trabalho foi orientado com base no tema da propriedade e a posse como institutos jurídicos e as implicações da Função Social como limite constitucional. Delimitando a propriedade e a posse como institutos jurídicos podendo ser consideradas como um fato ou como um direito, levantamento das teorias existentes e as implicações da Função Social como limite constitucional estabelecido no nosso ordenamento jurídico. O presente tema foi escolhido, pois a propriedade apresenta função social delimitada constitucionalmente e pode-se considerar que também a posse deve obediência ao limitador constitucional? Como se delimita o interesse individual e o interesse coletivo? Justificando-se pelo fato de que no nosso país de extensão continental precisamos de políticas sociais, de distribuição de terras para o aperfeiçoamento da utilização da propriedade e do instituto da posse, para garantir o plantio, o trabalho e a moradia e o desenvolvimento no campo, como busca de uma diminuição das desigualdades sociais, contudo observa-se que o modelo econômico de nossa sociedade, que tem como pedra basilar a propriedade privada, e onde princípios como livre mercado e concorrência, livre contrato e do estado liberal imperam. Evidencia-se cada vez mais a importância de se ter um conceito correto de posse introduzido em qualquer sociedade. Seja para a contraposição ante o 8 direito de propriedade,quando evidenciado o mau uso, seja para garantir direitos inerentes à condição humana. Enquanto na propriedade a função social é um mero limitador ao modo de uso; na posse, a função social deve também funcionar como tal. Desta forma, o objetivo geral deste estudo foi definir a importância de um conceito correto de posse seja para a contraposição ante o direito de propriedade, quando evidenciado o mau uso, seja para garantir direitos inerentes à condição humana. Como o direito pode estabelecer uma nova forma de sociedade com os conceitos de posse e propriedade e suas implicações com a função social. Como objetivos específicos, têm-se: Avaliar os conceitos de posse e propriedade, conforme doutrina dominadora; Examinar bibliografia sobre Direito Civil e Agrário; e Conflitos existentes sobre o tema. Visando atingir os objetivos propostos, este estudo está pautado em pesquisa bibliográfica, sendo classificada como qualitativa – exploratória. O presente estudo classificou-se como uma pesquisa qualitativa, que segundo Diehl, e Tatim (2004, p.52), Caracteriza-se por poder descrever a complexidade de determinado problema e a interação de certas variáveis, compreender e classificar os processos dinâmicos vividos por grupos sociais, contribuir no processo de mudança de dado grupo e possibilitar, em maior nível de profundidade, o entendimento de particularidades do comportamento do indivíduo. O presente estudo, segundo os autores acima citados, é uma pesquisa do tipo exploratória, pois tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, e, freqüentemente envolve levantamento bibliográfico e estudos de caso. Assim, a pesquisa se classifica como pesquisa bibliográfica - sendo que o presente estudo iniciou-se desta forma - e foi construído com base em materiais já elaborados, em sua maioria livros e legislação específica. De acordo com Gil (2002, p. 45), ―a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente.‖ 9 CAPÍTULO 1 - AS TEORIAS DA PROPRIEDADE E DA POSSE 1.1 Conceito, Caracteres Fundamentais, e Classificação dos Direitos Reais No Livro III do Código Civil de 2002, os direitos reais são entitulados de ―Direito das Coisas‖, bem como no Código Civil de 1916, porém utiliza-se mais frequentemente, de acordo com o batismo de Savigny. Segundo Gonçalves (2012, p. 12), na concepção clássica o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. No pólo passivo incluem-se os membros da coletividade, pois todos devem abster- se de qualquer atitude que possa turbar o direito do titular. No instante em que alguém viola esse dever, o sujeito passivo, que era indeterminado, torna-se determinado. Porém, de acordo com Farias e Rosenvald (2012), no ordenamento jurídico brasileiro, o direito real nunca se definiu por nenhuma titularidade com sentido dicionarizado. Alguns autores definem: Para Coelho e Sampaio era o seguinte: ―por Direitos Reaes entendemos todos os direitos, faculdades, possessões, que pertencem ao summo imperante, e como tal, e como representante da sociedade.‖ (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 31) Já Clóvis Beviláqua apud Farias e Rosenvald (2012) conceitua os direitos reais como ―o complexo das normas reguladoras das relações jurídicas referente às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem.‖ (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 31) De acordo com Farias e Rosenvald (2012), é necessário que os direitos reais ultrapassem a noção de coisas corpóreas. Pois, o direito das coisas regula o poder do homem sobre bens suscetíveis de valor e a regulação da economia. Visando realizar clara distinção entre os direitos reais e os direitos pessoais, alguns autores listam alguns traços característicos dos direitos reais. 10 Segundo Lisboa (2012), as características fundamentais dos direitos reais são 5: a incidência direta e imediata do titular sobre a coisa, sob todos os seus aspectos (domínio) ou em apenas alguns (direito real desmembrado de domínio); a defesa dos direitos reais, por ações e pelo exercício do direito, com exclusividade e em oponibilidade erga omnes; a inexistência de superposição de direitos colidentes; o objeto dos direitos reais é ordinariamente uma coisa corpórea, seja ela móvel ou imóvel; o poder que o titular exerce sobre a coisa independe de prestação do sujeito passivo da relação, que é a coletividade em geral, considerando-se que não há violação contra os direitos do titular da coisa enquanto subsistir realizada a prestação de não fazer, ou seja, somente se poderá falar em ofensa ao direito real quando houver uma conduta comissiva nesse sentido. Para Gonçalves (2012, p. 14-15) os principais caracteres do direito real são: segundo as normas de natureza cogente, de ordem pública. Quanto ao modo do seu exercício caracteriza-se pela efetivação direta, sem a intervenção de qualquer parte. Nessas condições, o direito real de propriedade é exercido direta e imediatamente pelo titular, sem necessidade de qualquer intermédio. (GONÇALVES, 2012) Gomes apud Gonçalves (2012, p. 15) cita outros cinco caracteres distintivos do direito real: a) o objeto do direito real há de ser, necessariamente, uma coisa determinada, enquanto a prestação do devedor, objeto da obrigação que contraiu, pode ter por objeto coisa genérica, bastando que seja determinável; b) a violação de um direito real consiste sempre num fato positivo, o que não se verifica sempre com o direito pessoal; c) o direito real concede ao titular um gozo permanente porque tende à perpetuidade, ao passo que o direito pessoal é eminentemente transitório, pois se extingue no momento em que a obrigação correlata é cumprida; d) somente os direitos reais podem ser adquiridos por usucapião; e) o direito real só encontra um sujeito passivo concreto no momento em que é violado, pois, enquanto não há violação, dirige-se contra todos, em geral, e contra ninguém, em particular, enquanto o direito pessoal dirige-se, desde o seu nascimento, contra uma pessoa determinada, e somente contra ela. (Grifo do autor) 11 Já segundo Farias e Rosenvald (2012), os principais caracteres dos direitos reais são o absolutismo, seqüela, preferência, e a taxatividade, o absolutismo é o traço básico no qual a dogmática sempre se apegou para apartar os direitos reais dos direitos obrigacionais, tradicionalmente marcados pela relatividade. Os direitos reais são excludentes, pois todos se encontram vinculados a não perturbar o exercício do direito real – jura excludendi omnis alios. De fato, nas obrigações não há poder jurídico sobre um objeto oponível a toda a coletividade. Pelo contrário, somente surge uma faculdade jurídica de um credor exigir uma atuação positiva ou negativa do devedor, pautada em um comportamento. Tal atuação só poderá ser reclamada relativamente ao sujeito passivo da relação, não atingindo imediatamente terceiros estranhos ao vínculo. Se eventualmente, um terceiro intervir ilicitamente em um negócio jurídico, induzindo a relação obrigacional ao inadimplemento, a sua responsabilidade perante o credor será extracontratual. (FARIAS, ROSENVALD, 2012, p. 34) De acordo com Farias e Rosenvald (2012), o atributo da seqüela é a mais eloqüente manifestação da evidente situação de submissão do bem ao titular do direito real. Isto decorre do fato de não existir relação jurídica entre a pessoa e a coisa. O atributo da seqüela decorre do absolutismodos direitos reais, pois exigi-se de todos o dever de abstenção da coisa, deve-se retirar o bem daquele que viola tal comando. A característica da preferência, presente predominantemente nos direitos reais de garantia, ―consiste no privilégio do titular do direito real em obter o pagamento de um débito com o valor do bem aplicado exclusivamente à sua satisfação.‖ (FARIAS, ROSENVALD, 2012, p. 39) Desta forma, havendo mais de um credor a coisa dada em garantia é subtraída da execução coletiva, tendo o credor real preferência sobre os demais. A taxatividade segundo Farias e Rosenvald (2012, p. 41-42), destinando-se a operar contra toda a coletividade, não pode qualquer direito rela ser reconhecido juridicamente se não houver prévia norma que sobre ele o faça previsão. Portanto, inseridos em regime de ordem pública, os direitos reais são numerus clausus, de enumeração taxativa, localizados no rol pormenorizado do art. 1.225 do Cógigo Civil e em leis especiais diversas. Ainda segundo os mesmos autores, vale ressaltar que os direitos reais são considerados abertos, pois há um espaço no qual a autonomia privada pode se manifestar, desde que não exista a criação de figuras atípicas não previstas na legislação pertinente. Farias e Rosenvald (2012) discorrem também sobre a classificação dos direitos reais, onde compartimentam-se os mesmos em três grupos: direitos reais de gozo e fruição, direitos reais de garantia, e direitos reais de aquisição. 12 Onde, por direito real de gozo e fruição estão o usufruto, servidão, uso e habitação; nos direitos reais de garantia, penhor, hipoteca e anticrese; e nos direitos reais de aquisição a promessa de compra e venda. 1.2 Noções Históricas do Direito Real O direito real constitui o ramo do direito mais influenciado pelo direito romano. Sendo que coube a este estabelecer a estrutura de propriedade. Segundo Gonçalves (2012, p. 9), o direito civil moderno edificou-se, com efeito, em matéria de propriedade, sobre as bases do aludido direito, que sofreu, todavia, importantes modificações no sistema feudal. A concepção da propriedade foi marcada, inicialmente, pelo aspecto nitidamente individualista. O sistema feudal, produto do enfraquecimento das raças conquistadas, introduziu no regime da propriedade do direito romano, no entanto, profundas alterações, ―consequências naturais da necessidade de apoiar no solo a dominação dos senhores sobre as míseras populações escravizadas‖. O que iniciou o estabelecimento de concepções de propriedade neste período foi a constante dualidade de sujeitos, porém a disponibilidade real do bem sempre recaía aquele que detinha o poder político. Permanecendo assim durante todo o período do feudalismo. Com o advento da Revolução Francesa instalou-se nos sistemas jurídicos, uma noção de propriedade não somente semelhante, mas com características fiéis à tradição romana e aos princípios individualistas. A liberdade preconizada servia a burguesia, proporcionando desta forma segurança aos novos proprietários desta classe. Para tanto, era considerado legítimo até mesmo o abuso do direito de propriedade pelo proprietário. (GONÇALVES, 2012) Com o passar do tempo, porém esta concepção egoísta e individualista foi-se modificando, dando enfoque, mais frequentemente, à função social da propriedade, onde o Estado deve reconhecer a propriedade e defendê-la em função do bem comum, como se observa no art. 182, parágrafo 2º da Constituição Federal de 1988. A partir do século XX a socialização imperou e o predomínio do interesse público sobre o privado foi proclamado. (GONÇALVES, 2012) De acordo com o código civil de 2002, art. 1.228, parágrafo 1, o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de 13 conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas O código de Minas (Dec. N. 24.642, de 10-7-1934) e o Código de Águas (Dec. N. 24.643, de 10-7-1934), bem como as legislações posteriores e as Constituições Federais de 1969 e 1988 dispõe sobre o referido assunto. Ainda de acordo com Gonçalves (2012, p. 10-11), o exercício do direito de propriedade tem tido seu perfil modificado principalmente nas zonas mais densas, que são as urbanas. As modificações nesse campo visam a tornar possível a coexistência de um sem-número de proprietários em áreas relativamente pouco extensas, e, mais, acomodar o exercício de seus respectivos direitos à idéia da função que devem exercer. Nessa senda, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10-7-2001) prevê e disciplina a usucapião coletiva, de inegável alcance social, de áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia por cinco anos, onde não for possível identificar os terrenos ocupados individualmente. Não bastasse, o Código Civil de 2002 criou uma nova espécie de desapropriação, determinada pelo Poder Judiciário na hipótese de ―o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante‖ (art. 1.228, § 4º). Nesse caso, ―o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário‖ (§ 5º). Trata-se de inovação de elevado alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade e também no novo conceito de posse, qualificada como posse-trabalho. Em poucas linhas se procurou, assim, dar uma rápida visão da feição atual do direito de propriedade e um panorama geral do direito das coisas na legislação brasileira. (Grifo do autor) 1.3 Conceito e Teorias da Posse O conceito de posse remonta aos textos romanos que formularam o nosso direito pré-codificado, o Código Civil de 1916 e o Código civil de 2002, bem como as teorias estudadas. O conceito de posse, no direito positivo brasileiro, indiretamente nos é dado pelo art. 1.196 do Código Civil, ao considerar possuidor ―todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade‖. O art. 1.198 do mesmo diploma proclama: ―Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas‖. 14 Complementa o quadro o art. 1.208, prescrevendo: ―Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade‖. Para Gonçalves (2012, p. 35), o conceito de posse resulta da conjugação dos três dispositivos legais mencionados. O art. 485 do Código Civil de 1916, ao definir o possuidor, aludia aos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade. O vocábulo domínio tem caráter restritivo, pois é usado somente em relação às coisas corpóreas. Já a palavra propriedade abrange também as incorpóreas, podendo ser considerada como campo dos direitos sobre o patrimônio. Como a posse não se limita às corporales res, podendo o seu objeto consistir em qualquer bem, o Código Civil de 2002 suprimiu a expressão ―ao domínio‖, que a doutrina considerava ociosa, sem afastar do âmbito da posse qualquer espécie de bem. A Teoria Subjetiva ou clássica de Savigny foi criada em 1803 quando Friedrich Karl Von Savigny tinha apenas 24 anos. Em sua concepção, ―a posse seria o poder que a pessoa tem de dispormaterialmente de uma coisa, com intenção de tê-la para si e defendê-la contra a intervenção de outrem. (FARIAS E ROSENVALD, 2012, p. 60) Segundo Lisboa (2012, p. 50), ―para Savigny, direito subjetivo é o poder de atuação da vontade de uma pessoa decorrente da autorização que lhe é conferida pela vontade geral, traduzida por meio do ordenamento jurídico.‖ Assim, a posse é considerada um fator regulador no direito subjetivo, manifestado pelo poder atuação da vontade, conforme norma jurídica emanada da vontade popular. (LISBOA, 2012) Dessa teoria retiramos um conceito de corpus e animus: Corpus: é o elemento material que se traduz no poder físico sobre a coisa ou na mera possibilidade de exercer esse contato. É à disposição do destino do objeto. Já o Animus consiste na intenção de exercer sobre a coisa o direito de propriedade. As duas trabalham em conjunto. Nessa teoria, para haver uma posse relevante para o direito, deve haver a parte material e a parte subjetiva. Segurar um objeto, sem ânimo de posse é meramente detenção. Ter a intenção, mas não ter o objeto é apenas vontade. (FARIAS E ROSENVALD, 2012) Assim, a posse só se configura pela união de corpus e animus; a posse é o poder imediato de dispor fisicamente do bem, defendendo-a contra agressões de 15 terceiros, a mera detenção não possibilita invocar interditos possessórios, devido ausência de animus. Critica-se na teoria subjetiva, a exacerbação do papel da autonomia da vontade pela incondicionada ligação de posse ao animus domini. Segundo Savigny, refletindo o ideário liberal e individualista vigente na época, a pessoa era o indivíduo abstrato que ocupava um dos pólos da relação jurídica, possuindo autodeterminação nas relações econômicas. Esta visão restrita e unitarista camufla o ser humano concreto, capaz de manifestar em uma pluralidade de relações possessórias, nas quais não releva o exame do animus domini, mas sim a proteção à moradia, ao trabalho e a defesa incondicional dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana. (FARIAS E ROSENVALD, 2012, p. 61) O grande mérito de Savigny, ao criar esta teoria, foi o de dar autonomia a posse, por explicar que o use de bens adquire relevância jurídica fora do contexto de propriedade privada. Essa teoria foi de grande importância e influenciou profundamente nosso ordenamento, mas não é a teoria que acabou prevalecendo. Ela tem um problema fundamental: a necessidade de caracterização do animus (que é difícil e altamente subjetivo). Além disso, retira do conceito de possuidor pessoas como o locatário, comodatário, depositário (já que eles não têm animus de dono). Pois, segundo Gonçalves (2012, p 28-29), os dois citados elementos são indispensáveis, pois, se faltar o corpus, inexiste posse, e, se faltar o animus, não existe posse, mas mera detenção. A teoria se diz subjetiva em razão deste último elemento. Para Savigny adquire-se a posse quando, ao elemento material (poder físico sobre a coisa), vem juntar-se o elemento espiritual, anímico (intenção de tê-la como sua). Não constituem relações possessórias, portanto, na aludida teoria, ―aquelas em que a pessoa tem a coisa em seu poder, ainda que juridicamente fundada (como na locação, no comodato, no penhor etc.), por lhe faltar a intenção de tê-la como dono (animus domini), o que dificulta sobremodo a defesa da situação jurídica‖. Nesse ponto a aludida teoria não encontrou sustentáculo. [...] Savigny procurou uma solução tangencial, criando uma terceira categoria além da posse e da mera detenção, a que denominou posse derivada, reconhecida na transferência dos direitos possessórios, e não do direito de propriedade, e aplicável ao credor pignoratício, ao precarista e ao depositário de coisa litigiosa, para que pudessem conservar a coisa que lhes fora confiada. Assim, ―contrariando a própria tese, isto é, admitindo a posse sem a intenção de dono, Savigny mostrou a fragilidade de seu pensamento, embora tenha procurado fazer a distinção entre o ânimo exigido para a posse e o ânimo do proprietário propriamente dito. No primeiro caso, o ânimo é mais que representação (animus repraesentandi). No outro, o arrendatário, o locatário e o usufrutuário estariam representando o arrendante, o locador ou o nu- proprietário, situação, no entanto, diferente daquela que a realidade apresenta‖. Tanto o conceito do corpus como o do animus sofreram mutações na própria teoria subjetiva. O primeiro, inicialmente considerado simples contato físico com a coisa (é, por exemplo, a situação daquele que mora na casa ou conduz o seu automóvel), posteriormente passou a consistir na mera possibilidade de exercer esse contato, tendo sempre a coisa à sua disposição. Assim, não o perde o dono do veículo que entrou no 16 cinema e o deixou no estacionamento. Também a noção de animus evoluiu para abranger não apenas o domínio, senão também os direitos reais, sustentando-se ainda a possibilidade de posse sobre coisas incorpóreas. De acordo com Lisboa (2012, p. 50), ―a teoria voluntarista do direito subjetivo fixa-se, portanto, na idéia de poder. Somente se torna possível fazer algo que se quer realizar se a norma jurídica o autorizar.‖ Ainda de acordo com Lisboa (2012), para Sauvigny a posse não deve ser considerada apenas como a utilização física de uma coisa, mas um uso decorrente de um poder jurídico conferido pela lei à pessoa. Portanto, uma nova teoria precisava surgir: a Teoria Objetiva de Ihering. Segundo Lisboa (2012, p. 50), ―Ihering afirmou que o direito subjetivo não é à vontade ou o seu poder de atuação, mas sim o interesse que o ordenamento jurídico protege. O direito subjetivo seria, resumidamente, na sua visão, o interesse juridicamente protegido.‖ A teoria de Rudolf Von Ihering é por ele próprio denominada objetiva porque não empresta à intenção, ao animus, a importância que lhe confere a teoria subjetiva. Considera-o como já incluído no corpus e dá ênfase, na posse, ao seu caráter de exteriorização da propriedade. Para que a posse exista, basta o elemento objetivo, pois ela se revela na maneira como o proprietário age em face da coisa. (GONÇALVES, 2012, p. 29) Ele sustenta que esse elemento está ínsito no poder de fato exercido sobre a coisa ou bem. Essa teoria dispensa investigações subjetivas da intenção de dono. Isso foi importante, pois através dela começamos a poder considerar possuidores locatários, comodatários, depositários. ―A teoria objetiva afirma que a detenção seria a posse sem interditos, enquanto a posse poderia ser defendida por meio dos interditos.‖ (LISBOA, 2012, p. 52) Devido a isso, o fenômeno da detenção é desconsiderado juridicamente, e deve ser entendido que apenas em casos excepcionais previstos em lei é que se torna possível a defesa da posse por aquele que não a tem. (LISBOA, 2012) Para Ihering, portanto, a posse não é o poder físico, e sim a exteriorização da propriedade. Indague-se, diz o aludido jurista, como o proprietário costuma proceder com as suas coisas, e saber-se-á quando se deve admitir ou contestar a posse. Protege-se a posse, aduz, não certamente para dar ao possuidor a elevada satisfação de ter o poder físico sobre a coisa, mas para tornar possível o uso econômico da mesma em relação às suas necessidades. Partindo-se disto, tudo se torna claro. Não se guardam em móveis, em casa, os materiais de construção, não se depositam em pleno campo dinheiro, objetos preciosos etc. Cada qual sabe o que fazer com 17 estas coisas, segundo a sua diversidade, e este aspecto normal da relação do proprietário com a coisa constitui a posse. (GONÇALVES, 2012, p. 30) Essa teoria também trouxe a análise da finalidade econômica do bem e isso foiimportante. Com ela podemos identificar com mais clareza que é proprietário e quem é possuidor, já que o proprietário é aquele que pode usar ele mesmo do destino econômico do bem (utilização imediata ou real), ou então, cedê-lo, onerosa (locação, venda ou permuta) ou gratuitamente (comodato, doação). (FARIAS e ROSENVALD, 2012) Para Ihering ―o interesse jurídico movimenta a vontade. È o interesse da realização da destinação econômica da propriedade que justifica a proteção à posse. A posse só se converte em direito, por base no direito superior de propriedade.‖ (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 64) Assim, para essa escola: a posse é condição de fato da utilização econômica da propriedade, o direito de possuir faz parte do conteúdo do direito de propriedade, a posse é meio de proteção do domínio, e a posse é uma rota que conduz à propriedade, reconhecendo, assim, a posse como um direito. Segundo Lisboa (2012, p. 52), ‖a vantagem da teoria objetiva é a de se permitir a tutela da posse através dos interditos, deixando-se de lado: primeiramente, a discussão acerca da detenção; e, ainda, a questão da existência ou não do ânimo de ter a coisa como proprietário.‖ A lei brasileira adotou essa escola. De acordo com o Código Civil, art. 1.196, ―Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade‖. Podemos entender assim que se considera possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse. O conceito de posse também deve ser encontrado em conjunto com esses dois seguintes artigos: Código Civil, art. 1.198, ―Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.‖ 18 Código Civil, art. 1.208, ―Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.‖ Assim, pode-se afirmar que para haver posse (excluindo-se a detenção, permissão e tolerância): sujeito capaz (natural ou jurídica), objeto (corpórea ou incorpórea), uma relação de dominação entre o sujeito e o objeto, um ter da coisa por parte do sujeito. 1.4 A Natureza Jurídica da Posse Apesar de não se debater muito sobre a natureza jurídica da propriedade, visto que esta é um direito real, o mesmo não pode ser dito sobre a posse. Segundo Gonçalves (2012, p. 43), é profunda e antiga a divergência sobre a natureza jurídica da posse. Cumpre defini-la e extremá-la, no entanto, não apenas em razão do interesse teórico-dogmático que desperta no âmbito do direito civil, senão também em consequência dos efeitos que gera no campo do direito processual. Para Farias e Rosenvald (2012, p. 67), a natureza da posse é uma das mais discutidas controvérsias que cercam a matéria, pela própria dificuldade em se abordar a posse de forma analítica. Compreender a sua natureza significa entender se a posse é protegida pelo ordenamento por seu próprio significado, ou como uma extensão da tutela da propriedade, ou mesmo, da necessidade do sistema evitar qualquer forma de violência e proteger a personalidade do ser humano. O primeiro caminho a trilhar no conhecimento da natureza jurídica da posse, é a indagação sobre a posse ser um fato ou um direito. Em algumas passagens do Corpus Iuris Civilis têm-se a idéia de direito subjetivo da posse, em outras se encontra a afirmação que a posse não é somente um fato, mas também um direito, e ainda há a caracterização exclusiva como fato, sendo negada expressamente a natureza do direito. (GONÇALVES, 2012, p. 43) Após a passagem de muitos séculos e a continuidade desta discussão, a doutrina é dividida em três correntes. De acordo com Fiuza (1999, p. 368) na primeira corrente, [...] posse é estado de fato, é situação fática, caracterizada pelo fato de um bem se achar submetido á vontade de uma pessoa (animus), agindo esta com aparência de dono em relação àquele (corpus). Dessa situação, 19 surgiriam direitos e deveres para o possuidor. Estes direitos e deveres são efeitos da posse, estado de fato. Gonçalves (2012) ressalta que para Ihering a posse é um direito, que consiste em um interesse juridicamente protegido, constituindo condição de econômica utilização da propriedade e por este fato deve ser protegida pelo direito. Possui também relação jurídica, tendo por causa determinante um fato. Ainda de acordo com o autor, segundo a teoria objetiva, a posse é um direito subjetivo. Pois o autor desta teoria ―via na posse um interesse juridicamente protegido. Em sua opinião, posse é direito do titular sobre a coisa. Logicamente, esse direito nasce de um fato. Mas a posse difere dos outros direitos reais.‖ (FIUZA, 1999, p. 368) Já Gonçalves (2012) cita a segunda corrente afirmando que ela define posse como um fato, uma vez que não possui autonomia e não tem valor jurídico próprio. Fiuza (1999, p. 368) ainda ressalta uma terceira corrente encabeçada por Savigny: advoga ser a posse simultaneamente fato e direito. Num primeiro momento, a posse é estado de fato, como descrito acima. Ocorre que, dessa situação fática. Segundo Gonçalves (2012, p. 43), ―A corrente mais comum é a eclética, que admite que a posse seja fato e direito. Sustenta Savigny que a posse é, ao mesmo tempo, um fato e um direito. Considerada em si mesma, é um fato. Considerada nos efeitos que produz — a usucapião e os interditos —, é um direito.‖ Fiuza (1999) ainda enfatiza que para se compreender a natureza jurídica da posse é de extrema importância analisar a questão por etapas. Segundo o autor, a terceira corrente de pensamento é a mais racional, visto que, a posse seria um estado de fato, uma situação fática em um primeiro momento, e um direito subjetivo num segundo momento. Para Savigny a posse é um direito pessoal e obrigacional, para Ihering direito real. Porém, para outros doutrinadores a posse não se encaixa em nenhuma destas categorias, mas sim como direito especial, sui generis, por não ser possível encaixar perfeitamente em nenhuma destas categorias. (GONÇALVES, 2012) Assim, posse é estado de coisas, em que uma pessoa tem um bem em seu poder, ou seja, um bem se acha subordinado à esfera de atuação de uma pessoa. A essa situação, a esse estado de fato, denomina-se posse. Nele podemos 20 identificar dois elementos: um objetivo, material; o outro subjetivo, anímico. O elemento objetivo é a atitude externa, visível do possuidor para com a coisa. Traduz-se no exercício de direito pelo possuidor sobre a coisa, que pode ser usar, fruir, dispor ou reivindicar, dentre outros. É neste ponto que se diz, com razão, ser a posse a visibilidade do domínio. Além do corpus, caracteriza a situação fática chamada posse, um elemento subjetivo, interno, volitivo: é o animus, ou vontade de ter a coisa em seu poder, vontade de agir como age o dono, mesmo sem pretender sê-lo. Resumindo, pode-se dizer ser a posse estado de fato caracterizado por dois elementos: corpus e animus. Desse estado de fato, dessa situação fática nascem relações jurídicas, ditas relações possessórias. (FIUZA, 1999, p. 368-369) Vale ressaltar que dessa relação jurídica básica ―inerente à própria situação de posse, decorre apenas um direito real, o direito à proteção possessória. A este direito, corresponde uma obrigação real da partedos não-possuidores, qual seja não ameaçar, perturbar ou esbulhar o possuidor.‖ (FIUZA, 1999, p. 369) À situação básica podem agregar-se outros elementos, gerando outras relações jurídicas e outros direitos. Para compreender onde a posse se encaixa, direitos reais ou direitos pessoais, Gonçalves (2012) lista as diferenças substanciais entre os sujeitos e o objeto dos direitos reais e o dos direitos pessoais: O objeto do direito real há de ser, necessariamente, uma coisa determinada, enquanto a prestação do devedor, objeto da obrigação que contraiu, pode ter por objeto coisa genérica, bastando que seja determinável. O objeto dos direitos reais é sempre a coisa corpórea, tangível e suscetível de apropriação, ao passo que o objeto dos direitos pessoais é sempre uma prestação. o direito real só encontra um sujeito passivo concreto no momento em que é violado, pois, enquanto não há violação, dirige-se contra todos, em geral, e contra ninguém, em particular, enquanto o direito pessoal dirige-se, desde o seu nascimento, contra uma pessoa determinada, e somente contra ela. O código civil brasileiro, 1916 e 2002, tendo adotado o princípio numerus clausus, também não incluiu a posse no rol taxativo dos direitos reais, porém, este fato não é o bastante para justificar sua inserção como direito pessoal, uma vez que a doutrina brasileira reconhece a existência de outros direitos reais no mesmo diploma. 21 Porém, de acordo com Rios Gonçalves apud Gonçalves (2012) um forte argumento que retira da posse qualquer natureza real é a ausência de caráter absoluto dos direitos reais. No entanto, o fato de a posse não pertencer à categoria dos direitos reais não significa que, necessariamente, seja um direito pessoal. Consiste este, como visto em um vínculo jurídico que confere ao sujeito ativo o direito de exigir do sujeito passivo o cumprimento da prestação. (GONÇALVES, 2012, p. 45) Fiuza (1999) finaliza concluindo que em princípio, posse é um estado de fato, onde se caracteriza por dois elementos: corpus e animus. Caracterizando uma relação possessória básica, entre possuidor e não-possuidores, emergindo assim o direito real á proteção possessória. Ademais, agregando-se outros elementos ao estado básico da posse, podem surgir outras relações jurídicas de direito, podendo ser de caráter real ou creditício. Desta forma, quando se trata de direito de posse, refere-se ao conjunto de direitos subjetivos gerados pela situação fatídica de posse. 1.5 Noções Históricas acerca da Propriedade De acordo com Farias e Rosenvald (2012, p. 256), a história do pertencimento e das relações jurídicas sobre coisas é necessariamente marcada por uma profunda descontinuidade; a propriedade moderna é um produto histórico, já que a propriedade é, sobretudo, mentalidade. Não se pode resumir propriedade a forma ou conceito, mas sim a uma ordem substancial, pois se liga a uma visão do homem sobre mundo, e também a uma ideologia. Desde os primórdios da humanidade o indivíduo sempre procurou satisfazer suas necessidades por intermédio da apropriação de bens. (FARIAS e ROSENVALD, 2012) A idéia de propriedade privada, em Roma ou nas cidades gregas da antigüidade, sempre foi intimamente ligada à religião, à adoração do deus-lar, que tomava posse de um solo e não podia ser, desde então, desalojado. A casa, o campo que a circundava e a sepultura nela localizada eram bens próprios de uma gens ou de uma família, no sentido mais íntimo, ou seja, como algo ligado aos laços de sangue que unem um grupo humano. Na civilização greco-romana, a propriedade 22 privada – assim como a família e a religião doméstica – faziam parte da constituição social, da organização institucional da sociedade, que não podia, em hipótese alguma, ser alterada, quer por deliberação popular, quer por decisão dos governantes. De acordo com Farias e Rosenvald (2012, p. 257), a relação entre propriedade e liberdade coincide com o surgimento do Estado, que protege a propriedade como um direito, da mesma forma que tutela o indivíduo contra o arbítrio do estado. Sempre que o Estado reivindica para si recursos produtivos, os indivíduos ou famílias não afirmam sua liberdade, pois se tornam completamente dependente do poder soberano. Então, a civilização burguesa estabeleceu a nítida separação entre o Estado e a sociedade civil, entre o homem privado, como indivíduo e o cidadão, como sujeito da sociedade política. Nesse esquema, a propriedade foi colocada inteiramente no campo do direito privado, e essa foi o alvo preferido da crítica socialista. No curso do século XVIII, essa justificativa da subsistência individual e familiar transformou-se na garantia fundamental da liberdade do cidadão contra as imposições do Poder Público. Cuidou-se de resguardar a esfera pessoal de cada indivíduo contra as intrusões de outrem, não mais pela religião, mas pelo direito natural, ou pela idéia de contrato social. Sob esse aspecto de garantia da liberdade individual, a propriedade passou a ser protegida, constitucionalmente, em sua dupla natureza de direito subjetivo e de instituto jurídico. Não se trata, apenas, de reconhecer o direito individual dos proprietários, garantindo-os contra as investidas dos demais sujeitos privados ou do próprio Estado. Cuida-se, também, de evitar que o legislador venha a suprimir o instituto, ou a desfigurá-lo completamente, em seu conteúdo essencial. É o que a elaboração teórica da doutrina alemã denominou uma garantia institucional da pessoa humana. (FARIAS e ROSENVALD, 2012) A evolução sócio-econômica ocorrida a partir de fins do século passado veio, porém, alterar o objeto dessa garantia constitucional. Doravante, a proteção da liberdade econômica individual e do direito à subsistência já não dependem, unicamente, da propriedade de bens materiais, segundo o esquema do ius in re, mas abarcam outros bens de valor patrimonial, tangíveis ou intangíveis, ainda que não objeto de um direito real. O reconhecimento constitucional da propriedade como direito humano liga-se, pois, essencialmente à sua função de proteção pessoal. 23 Segundo os mesmos autores, o Código Civil de 1916, filho tardio do liberalismo o fruto de uma concepção oitocentista – conferiu prevalência às situações patrimoniais, que espelham resquícios de um sistema liberal, cujos protagonistas eram o proprietário, o contratante e o marido. Por intermédio do absolutismo da propriedade e da liberdade de contratar, seria permitido o acúmulo de riquezas e a estabilidade do cenário econômico, preservando-se ainda a tranqüila passagem do patrimônio de pai aos filhos legítimos, no contexto de uma família essencialmente padronizada. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 260) Daí decorre, em estrita lógica, a conclusão – quase nunca sublinhada em doutrina – de que nem toda propriedade privada há de ser considerada direito fundamental e como tal protegida. Algumas vezes, o Direito positivo designa claramente determinada espécie de propriedade como direito fundamental, ligado diretamente aos nascidos de mulher (segundo os italianos), atribuindo-lhe especial proteção. (FARIAS e ROSENVALD, 2012) Escusa insistir no fato de que os direitos fundamentais protegem a dignidade da pessoa humana e representam a contraposição da justiça ao poder, em qualquer de suas espécies. Quando a propriedade não se apresenta, concretamente, como uma garantia da liberdade humana, mas, bem ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre outrem, seria rematado absurdo que se lhe reconhecesse o estatuto de direito humano, com todas as garantias inerentes a essa condição,notadamente a de uma indenização reforçada na hipótese de desapropriação. Ainda de acordo com Farias e Rosenvald (2012), no novo Código Civil, art. 1.228, é reproduzida a idéia mestra de propriedade. É preciso, enfim, reconhecer que a propriedade-poder, sobre não ter a natureza de direito humano, pode ser uma fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios. 24 CAPÍTULO 2 - A PROPRIEDADE COMO PORTADORA DE FUNÇÃO SOCIAL 2.1 A Função Social da Propriedade Função Social vem do latim functio, onde o significado é de cumprir algo ou realizar uma atividade ou dever de fundo social / coletivo. De acordo com Farias e Rosenvald (2012) esse termo, no direito, serve para exprimir a finalidade de um modelo jurídico. Pode-se dizer que a função social no direito nos remete a algo que precisa ser cumprido por determinada ordem jurídica. Deve-se considerar função social da propriedade as medidas que contribuem para o bom uso das terras. Sem estes controles, por exemplo, uma possível Reforma Agrária seria inviável, já que parte-se do pressuposto de divisão de terras igualmente, já prevista no inciso XXII do art. 5º da Lei Maior. Esta prevê a propriedade como garantia inviolável do individuo, isto é, garantia fundamental, declarada neste como ―é garantido do direito da propriedade‖, e, por conseguinte, ―a propriedade atenderá sua função social‖. Vale lembrar que a exigência da função social não está ligada como artifício ao comunismo ou socialismo, já que ela é uma ferramenta capitalista que preserva o direito da propriedade. Não é a função social que vai garantir uma Reforma Agrária, mas sim auxiliar na mesma trazendo civilidade e bem básico aos seres. A regulação remete ao início da evolução do capitalismo onde o ser apenas se apropriava da terra sem pensar no coletivo. Este pensamento chegou ao século XX retirando toda e qualquer esperança de boa parte da população, pois com o seu direito a propriedade ferido, retira-se a dignidade de muitos em prol do poderio de poucos. Para Farias e Rosenvald (2012, p. 306) ―a liberdade de uns poucos importa opressão de uma massa de pessoas, privadas de acesso a bens mínimos e excluídas até de sua especial dignidade.‖ Segundo Farias e Rosenvald (2012) ―este cenário mostra uma profunda decepção, mostrando assim a fragilidade do ser humano. O racionalismo previa a inteligência humana que produzia a liberdade, mas sem enxergar o outro.‖ 25 Estes fatos contribuíram para o desenvolvimento de constituições mais condizentes com a vida em sociedade. Farias e Rosenvald (2012, p. 306) citam que: As feridas produzidas na humanidade ao longo do século passado repercutiram nas Constituições forjadas nos últimos 50 anos. O compromisso com a tutela da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade, acarretou a valorização dos direitos da personalidade e na consequente submissão a esta de todas as relações patrimoniais. A Constituição Federal de 1988 mostra a grande mudança do isolamento do indivíduo para um ser solidário e vivendo em sociedade e enxergando limites na sua liberdade em decorrência do limite do outro. Mesmo com a importância de regulação das propriedades feita pelas leis pode-se entender que ainda há um caminho muito grande a se percorrer com relação à função social nas propriedades. Isso se deve ao fato de que o capitalismo gera competição e naturalmente existem vitoriosos e derrotados. A vitória faz com que se exerça o direito sobre o prêmio e quanto mais se ganha logo se quer mais. Este comportamento é inerente ao ser humano e por isso quando se determina algo como privado de alguém se deturpa totalmente o sentido de igualdade social, isto é função social. Segundo Farias e Rosenvald (2012, p. 308), A função social é um princípio que opera um corte vertical em todo o sistema de direito privado. Ela se insere na própria estrutura de qualquer direito subjetivo para justificar a razão pela qual ele serve e qual papel desempenha. Percebe-se, portanto uma separação entre tudo o que é privado (capitalismo) do que é igualitário (social). A premissa de igualdade social deve estar intrínseca ao direito, pois todos somos iguais perante a lei, porém o individualismo e as decisões com pensamentos para benefícios de causas próprias acabam por deturpar e distorcer essa essência. Ainda com relação a este aspecto individualista do direito, é até mesmo redundante indagar acerca de uma função social do direito, pois pela própria natureza das coisas qualquer direito subjetivo deveria ser direcionado ao princípio da justiça e bem-estar social. Porém, o individualismo exacerbado dos dois últimos séculos deturpou de forma tão intensa o sentido do que é direito subjetivo, que foi necessária a inserção do princípio da função social nos ordenamentos contemporâneos para o resgate de um valor deliberadamente camuflado pela ideologia dominante. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 308) 26 A inserção da função social nas decisões faz com que se regulem itens que são inerentes dos direitos dos seres humanos como a propriedade. Esta vertente garante aos cidadãos direitos para o bom andamento da sociedade e evite o controle desta por poucos. Logo, segundo Farias e Rosenvald (2012, p. 308) ―em uma sociedade solidária, todo e qualquer direito subjetivo é funcionalizado para o atendimento de objetivos maiores do ordenamento.‖ Esta afirmação leva ao entendimento de que toda e qualquer decisão deve ser remetida, primeiramente, ao bem social e depois sim ao que seja benéfico aos agentes diretos do processo, vai também a via contrária ao início da era liberal em que se priorizava o poder absoluto sobre a terra. Farias e Rosenvald (2012, p. 310) ressaltam que ―nos primórdios da era liberal, a postura absolutista da propriedade se justificava como uma conquista igualitária, pelo próprio histórico de restrição da monarquia ao acesso da maior parte da população à propriedade.‖ Essa igualdade pregada, no período citado acima, mostra que as propriedades eram de direito apenas de parte da sociedade. Este regime (absolutista) era utilizado apenas como forma de excluir parte da sociedade No entanto, com o tempo, tamanho absolutismo se converteu em mero instrumento de exclusão social. É notório que quem possui direito subjetivo absoluto sobre uma propriedade também pode optar por não usá-la não fruí-la e não dispô-la, submetendo-a ao ócio e à paralisia. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 310) O termo propriedade nos remete a algo que pertence a alguma pessoa ou entidade que possa usufruir desta. Porém propriedade possui seus limites mesmo para seus donos. Existem hoje leis rigorosas quanto ao uso da terra por parte de quem as detém. Segundo Neves (2013) no texto: ―O fim do direito absoluto à propriedade‖ as alterações nessas regras do uso da propriedade quanto ao exercício são aproximadamente de 30 anos atrás, com o advento da constituição de 1988 e o parágrafo 2º do artigo 1228 do código civil. Estas alterações se deram num passado relativamente recente, aproximadamente nos últimos 30 anos, e vem sendo solidificadas. Isto se afirma com base nas novas idéias disseminadas com maior rigor após o advento da Constituição de 1988, com a valorização dos direitos sociais e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por exemplo, na área do Direito Imobiliário o uso responsável da propriedade com o 27 cumprimento, por parte do proprietário, da função social atribuída a terra. (NEVES, 2013, p. 1) Este controle é antigo, vindo desde o séculoXIX na França quando se verificou um abuso no uso do direito subjetivo a propriedade, muito antes do conceito de função social. Verificou-se que não se deve utilizar a propriedade de forma nociva ao próximo, dando-se o nome de atos emulativos, que remetem a intenção de prejudicar outros. A partir do final do século XIX, surgiram em França as primeiras restrições ao absolutismo do direito da propriedade, por intermédio da teoria do abuso do direito. Lembramos dois casos paradigmáticos: a) proprietário que edifica uma enorme chaminé apenas com a finalidade de emanar gases no terreno vizinho; b) proprietário que levanta alto muro com hastes de ferro, tão- somente para causar danos aos dirigíveis que partiam do prédio contiguo. Nas duas hipóteses, as cortes francesas entenderam que o direito de propriedade não poderia ser utilizado com o propósito de causar danos a terceiros, sem o intuito de produzir qualquer proveito ao seu titular. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 311) O uso da propriedade é controlado porque os proprietários precisam utilizar suas terras de maneira adequada com o meio ambiente e socialmente condizentes. Estas normas visam uma melhor distribuição da terra, contribuindo assim para o Direito da Propriedade, de todo cidadão. Além de melhorar a utilização de terras para que poucos não tenham muito e muitos não tenham tão pouco. Leno Streck apud Farias e Rosenvald (2012, p. 332) diz que ―milhões de sem-terra, como andarilhos medievais, vaga pelos campos à procura de um lugar para plantar, em um país em que 2% da população possuem mais de 50% das propriedades rurais.‖ Para Farias e Rosenvald (2012, p. 312), ―em termos concretos, haverá função social da propriedade quando o Estado delimitar marcos regulatórios institucionais que tutelem a livre iniciativa, legitimando-há ao mesmo tempo.‖ Ainda de acordo com Farias e Rosenvald (2012, p. 320), ―quando uma atividade econômica concede, simultaneamente, retorno individual em termos de rendimentos e retorno social, pelos ganhos coletivos da atividade particular, a função social será alcançada‖, mais uma vez depara-se com o equilíbrio entre o interesse individual e o coletivo. Na Alemanha, após 100 anos de exclusão devido ao exercício do liberalismo passando pela inclusão da concepção de função social na Constituição alemã feita por Weimar, em 1919, onde a legislação obriga o proprietário a possuir 28 intrinsicamente o princípio de solidariedade, chega-se a uma conjuntura em que o proprietário possui não somente direitos sobre a propriedade mas, também, deveres e obrigações perante a sociedade. Farias e Rosenvald elencam princípios para essa forma de se encarar a propriedade: a refundação do direito de propriedade prende-se a três princípios: o bem comum, a participação e a solidariedade. Quanto ao primeiro, a sociedade surge porque as pessoas descobrem uma vontade geral e um bem que é comum e dispõe-se a construí-lo. A ele se subordinam os bens particulares; a participação resulta na contribuição de todos, a partir daquilo que são e daquilo que têm. A participação transforma o indivíduo em ser humano; por último, a solidariedade, que nasce da percepção de que todos vivemos uns pelos outros, valor sem o qual a sociedade não é humana. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 313-314) Essa necessidade de igualdade vista nos itens acima remete a citação abaixo que fala sobre essa igualdade com teores práticos no que tange as propriedades rurais: este conceito de função social da propriedade partiu da observação dos movimentos sociais rurais, cujas entidades organizadas passaram a bradar e exigir um melhor aproveitamento da terra disponível para agricultura e/ou pecuária, atacando os denominados ―latifúndios improdutivos. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 316) De acordo com o parágrafo 2º do art. 1.228 do Código Civil, toda ação que não proporciona ao proprietário utilidade ou comodidade e sejam motivados apenas para prejudicar outros estão proibidos. Segundo Farias e Rosenvald: em concreto, esse dispositivo já nasce ultrapassado por duas razões: primeiro, por situar o abuso do direito em um contexto subjetivo, no qual o ato emulativo requer a prova da culpa do proprietário, o que é incompatível com a teoria finalista adotada pelo art. 187, do Código Civil, que configura ato ilícito em sentido puramente objetivo. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 311) A questão foi objeto de discussão no Conselho de Justiça Federal conforme citado por Farias e Rosenvald (2012): ―A regra do art. 1228, § 2º, no novo Código Civil, interpreta-se restritivamente, em harmonia com o princípio da função social da propriedade e com o disposto no art. 187 da mesma lei”. Esta afirmação configura como não necessária à análise da intenção do indivíduo para a demarcação do abuso do direito a propriedade, pois, desta maneira, fica-se definido por meios mais objetivos e regras bem definidas se houve ou não culpa, descarta-se assim a subjetividade na decisão. 29 Nos primórdios pode se entender que tudo o que não fosse permitido seria proibido, porém, de acordo com Farias e Rosenvald (2012), nesta linha tênue existe um outro fator que é o abusivo, este tão ilícito quanto o ato proibido de acordo com o art. 186 do Código Civil. O abuso do direito de propriedade é um ato ilícito objetivo, no qual o proprietário pratica uma atividade lícita na origem – posto inserido em uma das faculdades de domínio -, porém ilícita no resultado, eis que ofensiva a interesses coletivos e difusos que interagem com o exercício do direito subjetivo. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 312) A citação remete, em partes, a máxima de que os fins não justificam os meios, isto é, mesmo que a ação tenha uma origem permitida pode ser que o seu propósito não se enquadre na lei e seja um abuso no que tange aos interesses coletivos. Um exemplo é o de que determinado proprietário pode adquirir terras de maneira lícita, com toda a documentação correta e pagamentos feitos, mas deixá-la improdutiva, sem utilização, ou prejudicar o meio ambiente para seu benefício, fazendo com que o ato seja benéfico individualmente, porém um malefício para o coletivo. Nos centros urbanos a ordenação, organização dos locais de habitação para melhor condição para os seres humanos fica por conta do direito urbanístico. O conflito entre o que os proprietários desejam em suas propriedades e o que se pode fazer, não agredindo o interesse coletivo e social, para Farias e Rosenvald (2012) é tarefa árdua e emergencial. Os problemas da urbanização são decorrentes do século XIX, os autores elencam alguns problemas dessa crescente de pessoas nas áreas das cidades: desde o século XIX os problemas urbanos crescentes se identificam com a falta de racionalidade dos administradores e munícipes na gestão de seus locais de trabalho e lazer. Isto propicia relações sociais conflitantes e excludentes, determinando um caldo de intolerância e violência. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 323) As cidades possuem normas que auxiliam na utilização da função social, como cita o art. 182 da Constituição Federal regulamentado pela Lei nº10. 257/01 parágrafo único do art. 1º, de nome Estatuto da Cidade. Ele traz em seu teor normas que contribuem para o bem estar, vida em sociedade e regulamentação do uso da propriedade visando bem coletivo, segurança e equilíbrio ambiental. Por meio de instrumentos urbanísticos, o município poderá disciplinar a função social da propriedade, seja pelo plano diretor (obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes e municípios integrantes de área de 30 especial interesse turístico) ou pelas leis orgânicas locais das cidadesde porte reduzido. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 323) O conceito de função social é muito importante, principalmente para as cidades (Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257 / 2001), pois equaciona os métodos de preservação do bem comum, como cita Farias e Rosenvald no que tange a importância da função social no meio urbano. A função social da cidade pode redirecionar os recursos e a riqueza de forma mais justa, combatendo situações de desigualdade econômica e social vivenciadas em nossas cidades, garantindo um desenvolvimento urbano sustentável no qual a proteção aos direitos humanos seja o foco, evitando-se a segregação de comunidades carentes. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 325) Ainda para Farias e Rosenvald (2012, p. 325), ―a prática da cidadania consiste assim em incorporar setores da sociedade aos mecanismos básicos de direitos habitacionais‖, isto é, a propriedade como forma de prover a cidadania, realizando assim sua função social. Fator determinante para uma boa utilização da função social é a aplicação de um bom plano diretor. Farias e Rosenvald (2012, p. 326) afirmam que, ―o plano diretor é o instrumento fundamental de intervenção do Município na política urbana de garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade‖. O art. 182, § 2º mostra que o plano diretor é de suma importância para a sociedade já que diz em seu teor que ―a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade, expressas no plano diretor”, concomitantemente com este artigo pode-se colocar o art. 186 § 4º que vai de encontro com as sanções previstas para o cumprimento da função social: a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores. A propriedade rural difere da urbana, já que uma tem como centro a produção e a outra moradia. A função social na propriedade rural precisa ser mais rigorosa que em outros tipos de propriedade. O art. 186, da CF, cuida das regras para o cumprimento da função social da propriedade rural. Este é baseado em três 31 elementos para a realização da função social no espaço agrário: econômico, social e ecológico. Além de produzir, a propriedade rural, segundo Farias e Rosenvald (2012, p. 332) é destinada a ―criação de empregos, como bem de produção em que sobreleva o ônus social do proprietário‖. Existem diferenças nesses bens: a distribuição entre bens de consumo e de produção não está localizada na natureza dos bens, mas em sua destinação econômica. Segundo a noção corrente, bens de produção seriam aqueles idôneos à produção de outros bens; já os bens de consumo seriam aqueles destruídos no momento da satisfação da necessidade. (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 332) A produção e as adequações ao bem coletivo percorrem uma linha tênue, pois não se deve pensar somente no que está produzindo sem pensar no meio ambiente, por exemplo, que é fator de bem comum. Qualquer uso de terras de maneira não condizente com as leis, interesses coletivos ou difusos, pode acarretar em desapropriação de terras por interesse social, para a reforma agrária (art. 184 da CF). Farias e Rosenvald (2012, p. 333) explicam este contexto: ―em resumo, a função social da propriedade rural demanda requisitos de eficiência, utilização adequada de recursos ambientais e de utilidade comum, favorecendo o bem-estar dos trabalhadores.‖ Roberto Marques apud Farias e Rosenvald (2012), afirma que no que tange a adequação de exploração correta de recursos naturais tanto os recursos naturais quanto o meio-ambiente são fatores que se entrelaçam, porque ambos consideram o imóvel como um elemento natural posto à disposição do ser humano. Aqui, leva-se em conta o valor natureza, presumindo-se o homem como agente capaz de violá-lo ou preservá-lo. O art. 225 da CF tem como base o privilégio de tutela ecológica ao direito fundamental da terceira dimensão, prezando para que o meio ambiente seja equilibrado à saúde e vida de gerações presentes e futuras. Farias e Rosenvald (2012, p. 352) ainda questionam se propriedade é ou se tem uma função social. em princípio, a propriedade privada não é função social; cuida-se de um direito subjetivo – constituído pela autonomia privada – com função social. Em contrapartida, a propriedade pública é, em regra, função social, pelo fato de os bens pertencerem ao patrimônio estatal. 32 2.2 Restrições ao Direito de Propriedade Como citado no item anterior, pertence à Função Social da Propriedade a regulação do uso das propriedades com o foco no bem coletivo, para melhor distribuição de terras, direito a propriedade e manutenção do meio ambiente, por exemplo, e também em consonância com as finalidades econômicas e sociais (art 1228, parágrafo 1, CC). Para entender este contexto deve-se retornar a Roma antiga, já que segundo Fiuza: todos os direitos de vizinhança que hoje figuram nas legislações mais modernas se prendem ao sistema romano do Digesto. Outras restrições, como o usucapião e as servidões prediais, também tiveram origem no antigo Direito de Roma. (FIUZA, 1999, p. 314) Desde a Roma antiga pode-se dizer que as restrições já estavam presentes para delimitar limites para benefício do bem comum. O direito real de propriedade sempre sofreu restrições. Dizer que em Roma era absoluto e ilimitado indica, quando nada, pouco conhecimento da sociedade romana. Na Roma Antiga dos primeiros tempos, e me refiro à época denominada Período da Realeza, de 753 a.C. a 510 a.C., a propriedade do solo, por exemplo, sofria duas das mais sérias restrições: esta inalienável e indivisível. As razões, como já dissemos, eram religiosas. O prédio familiar se ligava ao culto dos antepassados, que nele se enterravam e permaneciam. § 905. [Limitação da propriedade] O direito do proprietário de um prédio estende-se ao espaço sobre a superfície e aos recursos sob a superfície. O proprietário não pode, todavia, opor-se a trabalhos que sejam empreendidos a tal altura ou profundidade, que não tenha ele interesse algum em impedi- los. (FIUZA, 1999, p. 314) Gonçalves elenca que hoje no Brasil existem vários órgãos que cuidam desses normativos: inúmeras leis impõem restrições ao direito de propriedade, como o Código de Mineração, o Código Florestal, a Lei de Proteção do Meio Ambiente etc. Algumas contêm restrições administrativas, de natureza militar, eleitoral etc. A própria Constituição Federal impõe a subordinação da propriedade à sua função social. (GONÇALVES, 2012, p. 164) Baseando-se no estilo exercido no império romano e no apontamento de Gonçalves (2012), relatando o modelo dos dias de hoje, com leis e normas, neste 33 item serão mostradas essas regulações, denominadas Restrições ao direito de propriedade. Essas restrições podem ser legais, quando diretamente ligada às leis, ou voluntárias, no cenário em que o proprietário delimita o direito de acordo com seu desejo. Dentro do grupo das restrições voluntárias se apresenta as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. Nas palavras de Fiuza as restrições legais são: [...] as impostas por lei, dentre elas os direitos de vizinhança; o usucapião; as restrições de Direito Agrário; as servidões legais; a proteção especial pelo PoderPúblico a documentos, obras e locais de valor histórico artístico e cultural, monumentos e paisagens naturais notáveis, por meio de tombamento e desapropriação; as limitações ao espaço aéreo e ao subsolo; as restrições ao uso do solo urbano; e outras mais. (FIUZA, 1999, p. 314) As restrições legais são formadas por bens pertencentes ao domínio público, compreendendo os bens públicos (bens de patrimônio do estado), bens particulares de interesse público e os bens de fruição geral (que não podem ser objeto de apropriação individual, mas seu uso se refere a uma coletividade). Estes recebem um tratamento diferenciado pela lei, pois, este campo de atuação do poder do Estado visa o bem comum, e para isso pode existir a possibilidade de restringir e limitar o direito de propriedade. Gonçalves (2012, p. 164) cita que: todo esse conjunto, no entanto, acaba traçando o perfil atual do direito de propriedade no direito brasileiro, que deixou de apresentar as características de direito absoluto e ilimitado, para se transformar em um direito de finalidade social. Fiuza (1999, p. 314) ainda cita a definição de restrição legal e a congruência com a função social. As restrições legais procuram proteger os direitos "do outro", dentro do espírito de que o exercício do direito de propriedade não deverá prejudicar terceiros. Mas não é só esse o intuito do legislador, que busca promover a função social da propriedade, em prol do interesse público. 2.2.1 Cláusula de Inalienabilidade Entende-se cláusula de inalienabilidade como uma proibição de alienação de um bem por parte do proprietário em função da vontade do alienante, isto é, mesmo sendo detentor de um bem esta cláusula não permite que o mesmo seja 34 envolvido em outras negociações, como por exemplo, um veículo que já esteja em um trâmite de alienação. Para Fachin (2006), existem três teorias que explicam a natureza jurídica desta cláusula: a primeira é a que leva em conta a incapacidade do proprietário. Essa teoria considera o sujeito incapaz de alienar o bem, de dispor da coisa [...]. Considera a restrição em relação ao proprietário, e não em relação ao bem. Este é suscetível de alienação, mas seu proprietário é que não o pode alienar [...]. (FACHIN, 2006, p. 116-117) Percebe-se que a citação acima coloca o foco da restrição de propriedade no proprietário do bem e não em si no objeto a ser alienado. Ainda explica que neste caso o objeto pode ser alienado desde que por outra pessoa. A segunda doutrina que pretende elucidar a natureza jurídica da cláusula em questão é a da obrigação de não fazer, que ―parte da distinção entre indisponibilidade real e a simples proibição de alienar‖. A proibição gerada pela cláusula torna-se um compromisso de conduta negativa (non facere) imposto ao herdeiro ou legatário, constituindo-se em mera obrigação de não alienar. A inexecução do dever de abstenção acarretaria apenas a indenização por perdas e danos, o que frustraria a intenção do testador quando da inserção da cláusula ora analisada em seu testamento, pelo que essa teoria pode não merecer o prosperar. (FACHIN, 2006, p. 116-117) A citação acima remete a impossibilidade de alienação do bem por parte de pessoas que assumam este através de herança ou legado. Na teoria da indisponibilidade da coisa, terceiro modo de ver esse tema, a cláusula grava o bem de ônus real, sendo a inalienabilidade inerente à coisa. O proprietário do bem fica privado do jus abutendi, e qualquer afronta legítima à cláusula, considera-se nula, com inteira razão. (FACHIN, 2006, p. 116-117) Esta última citação, ao contrário da primeira teoria, mostra o bem como impossibilitado de alienação proibindo, assim, qualquer tipo de alienação utilizando o bem, isto é, o proprietário pode alienar quaisquer bens menos os que estejam sob esta cláusula. A cláusula de inalienabilidade não pode ser invalidada por atos judiciais, mesmo assim ainda permite algumas exceções, hipóteses em que a mesma deixa de ser aplicada: no caso de expropriação por necessidade ou utilidade pública, estando aí englobada a desapropriação por interesse social e no caso de execução de dívida ativa de impostos devidos em função do próprio imóvel‖ (FACHIN, 2006, p. 120). Na mesma linha, Fachin apud Fiuza (1999, p. 315) mostra que ―por força da inalienabilidade ou inalterabilidade, fica o bem protegido do próprio titular que o não poderá alienar, seja por tempo determinado ou vitaliciamente.‖ 35 Existem ainda os frutos que, segundo o autor, não são alienáveis. ―Resta acrescentar que a inalienabilidade não se estende aos frutos. O apartamento é inalienável, mas os aluguéis que dele o dono receba não o são.‖ (FIUZA, 1999, p. 316) 2.2.2 Cláusula de Incomunicabilidade Esta cláusula corresponde à proteção dos bens quanto existe meação (regime de comunhão universal de bens). Estes bens incomunicáveis não farão parte da meação do cônjuge em qualquer regime que tenha sido escolhido pelo casal. Para melhor entendimento da questão pode se citar a definição de Fiuza (1999, p. 315) para a questão. Pela incomunicabilidade, o bem fica protegido do cônjuge do titular. No casamento em comunhão universal de bens, todos os bens adquiridos pelos cônjuges, salvo algumas exceções, se comunicam, ou seja, passam a integrar o patrimônio comum do casal. Isso não ocorre com os bens incomunicáveis, que só pertencerão a um dos cônjuges. Se uma pessoa deixa sua herança gravada com cláusula de incomunicabilidade, somente seu filho herdará, em nada participando o consorte deste. Logicamente, a incomunicabilidade estende-se aos frutos. A cláusula de incomunicabilidade serve, basicamente, para que o cônjuge se proteja no caso de realizar o casamento com a comunhão universal de bens. Esta proporciona a proteção contra uniões por interesse, por exemplo, o famoso caso do ―golpe do baú‖. 2.2.3 Cláusula de Impenhorabilidade A restrição voluntária, cláusula de impenhorabilidade serve para proteger o patrimônio (bem) de dívidas adquiridas/contraídas pelo seu proprietário. Todos os bens sob essa cláusula não poderão ser objeto de disputas judiciais que fazem com que se quite dívidas por penhora, por arresto, e outras. ―A impenhorabilidade tem por escopo proteger o bem dos credores do titular, que não o poderão executar por dívidas. Diferentemente da inalienabilidade, a impenhorabilidade estende-se aos frutos.‖ (FIUZA, 1999, p. 315) 36 Esta Cláusula tem como fator importante a proteção ao bem quando este é um bem de família. Pode-se dizer que existem função social intrínseca neste item, pois, por exemplo, no caso de uma família necessitar de sua casa para moradia esta não permite que este bem seja penhorado, mesmo esta família tendo diversas dívidas. A garantia do direito a moradia traz a função social para esta cláusula. 2.2.4 Súmulas e Leis de Convergência das Cláusulas de Restrições Voluntárias Neste item citam-se algumas convergências dessas três cláusulas dentro de leis e súmulas. A cláusula de inalienabilidade está presente na cláusula de impenhorabilidade de acordo com o Art. 649, I, do Código de Processo Civil (2002): art. 649. São absolutamente impenhoráveis: I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução; Este item mostra proibição quanto à execução de bens que não sejam alienáveis (inalienáveis) e mostra a convergência entre duas cláusulas de restrição de propriedade voluntárias. A súmula Nº 49 do STF também faz essa convergência de cláusulas. Ela cita a importação da cláusula de incomunicabilidade por parte da cláusula de
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