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Faculdade de Tecnologia de Sorocaba
	
Apostila de Português
	
Profª Flora Cardoso da Silva
	
Janeiro 2015�
Os meninos-lobo�
“Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo”
	No velho conto de Rudyard Kipling Mogli, o Menino-Lobo, o autor descreve uma criança que, adotada por uma loba, cresce sem jamais haver usado uma só palavra humana, até ser encontrada e se integrar à sociedade. O conto é atraente, mas cientificamente absurdo. Porém, houve outros casos supostamente reais, de crianças criadas por animais. E também casos reais (até recentes) de crianças que cresceram isoladas e sem oportunidades de aprender a falar.
	Faz tempo, meninos-lobo e outros jovens criados sem interação humana despertaram o interesse da psicologia cognitiva e da linguística. A razão é que seria um experimento natural que permitiria responder a uma pergunta crucial: esses jovens, sem conhecer palavras, poderiam pensar como os demais humanos?
	A questão em pauta era decidir se pensamos porque temos palavras ou se seria possível pensar sem elas. Como os meninos-lobo não conheciam palavras, se podiam pensar, teria que ser sem elas. Nos diferentes casos de crianças criadas em isolamento, ficou clara a enorme dificuldade de ajustamento que elas encontraram ao serem reabsorvidas pela sociedade. Muitas jamais se ajustaram, fosse pelo trauma do isolamento, fosse pela impossibilidade de pensar humanamente sem palavras. Mas o fato é que não desenvolveram um raciocínio (abstrato) classicamente humano.
	O interesse pelos meninos-lobo feneceu. Mas se aprendeu muito desde então, e hoje não se acredita que o pensamento sem palavras seja possível – pelo menos, o pensamento simbólico que é a marca dos seres humanos. Ou seja, Mogli não seria capaz de pensar.
	“Vivemos em um mundo de palavras”, diz o celebrado antropólogo Richard Leakey. “Nossos pensamentos, o mundo de nossa imaginação, nossas comunicações e nossa rica cultura são tecidos nos teares da linguagem... A linguagem é o nosso meio... É a linguagem que separa os humanos do resto da natureza.” Para o neuropaleontólogo Harry Jerison, precisamos de um cérebro grande (três vezes maior do que o de outros primatas) para lidar com as exigências da linguagem.
	Portanto, se pensamos com palavras e com as conexões entre elas, a nossa capacidade de usar palavras tem muito a ver com a nossa capacidade de pensar. Dito de outra forma, pensar bem é o resultado de saber lidar com palavras e com a sintaxe que conecta uma com a outra. O psicólogo Howard Gardner, com sua tese sobre as inteligências múltiplas, talvez diga que Garrincha tinha uma “inteligência futebolística” que não transitava por palavras. Mas grande parte do nosso mundo moderno requer a inteligência que se estrutura por intermédio das palavras. Quem não aprendeu bem a usar palavras não sabe pensar. No limite, quem sabe poucas palavras ou as usa mal tem um pensamento encolhido.
	Talvez veredicto mais brutal sobre o assunto tenha sido oferecido pelo filósofo Ludwing Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento”. Simplificando um pouco, o bem pensar quase que se confunde com a competência de bem usar as palavras. Nesse particular não temos dúvidas: a educação tem muitíssimo a ver com o desenvolvimento da nossa capacidade de usar a linguagem. Portanto, o bom ensino tem como alvo número 1 a competência linguística. 
	Pelos testes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica ( Saeb), na 4ª série, 50% dos brasileiros são funcionalmente analfabetos. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), a capacidade linguística do aluno brasileiro corresponde a de um europeu com quatro anos a menos de escolaridade. Sendo assim, o nosso processo educativo deve se preocupar centralmente com as falhas na capacidade de compreensão e expressão verbal dos alunos.
	Ao estudar a Inconfidência Mineira, a teoria da evolução das espécies ou os afluentes do Amazonas, o aprendizado mais importante se dá no manejo da língua. É ler com fluência e entender o que está escrito. É expressar-se por escrito com precisão e elegância. É transitar na relação rigorosa entre palavras e significados.
	No conto, Mogli se ajustou à vida civilizada. Infelizmente pra nós, Kipling estava cientificamente errado. Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo.
Interpretação de texto:
Quais são as citações de outros autores que Cláudio Moura e Castro utiliza para buscar apoio a sua afirmação?
Autor Citação
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Por que ele diz que o conto de Kipling é cientificamente absurdo?
Por que o aparecimento de meninos-lobo despertou interesse?
O que você sabe sobre a teoria das inteligências múltiplas?
Qual a avaliação que o autor faz da educação brasileira? Em que indicadores se baseia?
Transcreva as três afirmações contidas no penúltimo parágrafo e que resumem a essência das habilidades requeridas pela comunicação, segundo o autor do texto. 
Qual a tese central do texto?
Problemas da Linguagem Escrita
 Pasquale Cipro Neto
Exemplos tirados de textos da imprensa
Exemplo 1: “Deputados tentam ‘limpar’ obras com irregularidades”.
Explicação: a ordem pode determinar o sentido da frase ou, pior ainda, dificultar a compreensão do texto. Que fizeram os deputados? Tentaram “limpar”, no sentido de “legalizar”, as obras irregulares ou, com pretexto de “limpar”, praticaram atos irregulares? A inversão da expressão “com irregularidades” seria uma das saídas: “Com irregularidades, deputados tentam ‘limpar’ obras”. Outra saída seria substituir a locução “com irregularidades” pelo adjetivo “irregulares”: “Deputados tentam ‘limpar’ obras irregulares”. Antes de dar o texto por encerrado, é preciso lê-lo e relê-lo.
Exemplo 2: “A Casa Branca garante que haverão novos atentados”.
Explicação: usado com sentido de “ocorrer”, o verbo “haver” não apresenta a flexão de plural. Assim como se diz “Há atentados” (e não “Hão atentados”), deve-se dizer “Haverá atentados”. Isso vale para qualquer tempo e modo em que se conjugue o verbo “haver” com o sentido de “ocorrer”, “acontecer” ou “existir”: “Caso haja atentados...”; “Se houver atentados...”; “Os atentados que houve...”; “Havia muitas pessoas na fila...”.
Exemplo 3: “Com o início do horário de verão na próxima segunda-feira, a bolsa de valores passará a funcionar das...”
Explicação: um dia, aprendemos na escola que “vírgula é para respirar”. Santa bobagem! A vírgula não é um bálsamo pulmonar; é um instrumento sintático-estilístico. Na frase em questão, a vírgula fez a expressão temporal “na próxima segunda-feira” indicar quando começaria o horário de verão. O que se queria informar, no entanto, era que, a partir da segunda-feira seguinte, a bolsa passaria a funcionar em determinado horário. Isso seria conseguido com a mudança de posição da vírgula (“Com o início do horário de verão, na próxima segunda-feira a bolsa de valores passará a funcionar das...”). Não se colocam as vírgulas como quem salpica orégano em uma pizza.
Exemplo 4: “A osteoporose é uma doença que fragiliza os ossos, quebrando-se com facilidade”.
Explicação: seé tão fácil quebrar a osteoporose, por que preocupar-se com ela, como sugere a peça publicada? Verdadeira praga, o gerúndio é um dos mais perigosos aliados da ambigüidade. Por não constituir oração independente, o gerúndio gravita em torno da oração principal, cujo sujeito, no caso, é “a osteoporose”. Moral da história: é ela, a osteoporose, que se quebra com facilidade. Que fazer? Usar o gerúndio com todo o cuidado do mundo. No caso, o melhor mesmo é desistir dele: “A osteoporose é uma doença que fragiliza os ossos e os torna facilmente quebráveis”.
Exemplo 5: “Perguntou Judith Exner, uma das incontáveis amantes de Kennedy, que simultaneamente mantinha um caso com o chefão mafioso Sam Giancana”.
Explicação: o pronome relativo “que” foi mal empregado. A provável intenção do redator foi dizer que Judith Exner tinha um caso com Kennedy e outro com o mafioso. Ele teria conseguido isso se tivesse posto o “que” depois de “Exner” (“...J. Exner, que era uma das incontáveis amantes de Kennedy e simultaneamente mantinha...”). Estruturalmente ambígua, a frase do redator levanta suspeitas sobre a sexualidade de Kennedy. A ambigüidade é um dos mais graves problemas do texto escrito.
Exemplo 6: “O partido só concorda em negociar se o governo retirar do Congresso o polêmico projeto de lei, suspender as negociações com o FMI e repor as perdas salariais dos funcionários públicos”.
Explicação: por influência dos dois verbos anteriores (“retirar” e “suspender”), o verbo “repor” foi conjugado como se fosse regular. “Repor” deriva de “pôr” e segue sua conjugação. A forma adequada é “repuser”. A correta conjugação de verbos irregulares é item obrigatório na linguagem escrita culta.
Pecados Capitais da Linguagem Oral
Por Reinaldo Polito
Exemplo 1: “Haja visto o progresso da ciência...”
Explicação: a forma “haja visto” não se aplica a este caso. O correto é “haja vista”, e não varia. “Rubens Barrichello poderá ser campeão, haja vista o progresso que tem feito com o novo carro”.
Exemplo 2: “Para mim não errar...”
Explicação: “mim não pode ser sujeito, apenas complemento verbal (“Ele trouxe a roupa para mim”). Também pode completar o sentido de adjetivos: “Fica difícil para mim...”
Exemplo 3: “Vou estar enviando o fax...”
Explicação: embora não seja gramaticalmente incorreto, o gerúndio é uma praga. É feio e desnecessário. Melhor dizer “Vou enviar o fax...”
Exemplo 4: “Ir ao encontro de...”, “Ir de encontro a...”
Explicação: muita gente acha que as duas expressões significam a mesma coisa. Errado. “Ir ao encontro de...” é o mesmo que estar a favor. “Ir de encontro a...” significa estar contra, discordar.
Exemplo 5: “Eu, enquanto diretor de marketing...”
Explicação: também é inadequado. Melhor dizer “Eu, como diretor de marketing...”
Exemplo 6: “Fazem muitos anos...”
Explicação: quando o verbo “fazer” se refere a tempo, ou indica fenômenos da natureza, não pode ser flexionado. Diz-se: “Faz dois anos que trabalho na empresa”, “Faz seis meses que me casei”.
Exemplo 7: “A nível de Brasil...”
Explicação: “a nível de” é uma expressão inútil. Pode ser suprimida ou substituída por outras. Em vez de “A empresa está fazendo previsões a nível de mercado latino-americano”, use “A empresa está fazendo previsões para o mercado latino-americano”.
Exemplo 8: “Não tive qualquer intenção de errar”
Explicação: não se deve usar “qualquer” no lugar de “nenhum” em frases negativas. O certo é dizer “Não tive nenhuma intenção de errar”.
Exemplo 9: “Há dez anos atrás...”
Explicação: redundâncias enfeiam o discurso. Melhor dizer “Há dez anos” ou “Dez anos atrás”. “Há dez anos atrás” é o mesmo que “um plus a mais”.
Exemplo 10: “Éramos em oito na reunião”
Explicação: não se usa a preposição “em” entre o verbo ser e o numeral. O correto é dizer “Éramos oito”.
A Maldição da Falta de Clareza
	O brasileiro frequentemente depara com laudos, pareceres, relatórios e outros documentos escritos de forma incompreensível. O uso de jargão não é desculpa para a redação obscura. 
	Abaixo, dois exemplos da vida real, um de um médico, outro de um advogado. As sugestões para melhorar são de Maria Elyse Bernd, do Curso Permanente de Português, de Porto Alegre.
Texto: laudo médico
Ultra-Sonografia Pélvica e Transvaginal com Dopler Colorido
Comparativamente ao exame anterior de 16.04.2001 observa-se que:
Houve redução nas dimensões do ovário direito medindo cerca de 3,2 cm por 1,8 cm observando-se atualmente imagem hipoecogênica arredondada medindo cerca de 1,7 cm por 1,2 cm, que entre as possibilidades diagnósticas pode estar relacionada a área cística com material denso possivelmente hemático observando-se vasos sangüíneos somente em sua periferia identificando-se índices de resistências que variam de 0,47 a 0,57 em algumas artérias detectadas. Este achado ecográfico pode estar relacionado a redução das dimensões com processo de resolução da área cística descrita com aspecto hemorrágico no exame prévio. A este critério clínico sugerimos controle ecográfico após ciclo menstrual.
Principais Problemas: falta de vírgulas, período longo demais, excesso de gerúndios, erro de crase.
Sugestão para melhorar: “Houve redução das dimensões do ovário direito. Observando-se a imagem ecogênica arredondada, constata-se que o órgão passou de 3,2 cm por 1,8 cm para 1,7 cm por 1,2 cm. Essa redução pode ser fruto de um adensamento de material hemático nas áreas císticas. O exame constatou vasos sangüíneos somente na periferia, com índices de resistências que variam de 0,47 a 0,57 em algumas áreas detectadas. A critério clínico, sugerimos controle ecográfico após ciclo menstrual”.
Texto: contrato redigido por um advogado
As partes ora pactuantes resolvem que o regime de total e absoluta SEPARAÇÃO DE BENS se aplicará aos bens que cada cônjuge adquirir, a qualquer título, na constância do casamento, portanto, os bens que o marido adquirir, a qualquer título, na constância do casamento, pertencerão com exclusividade, a ele, serão de propriedade integral dele, não se comunicarão com os bens da esposa, e os bens que a esposa adquirir, a qualquer título, na constância do casamento, pertencerão, com exclusividade, a ela, serão de propriedade integral dela, não se comunicarão com os bens do marido.
Principais problemas: prolixidade, redundância, má colocação de vírgulas
Sugestão para melhorar: “As partes ora pactuantes resolvem que o regime de total separação de bens se aplicará aos bens que cada um dos cônjuges adquirir, a qualquer título, na constância do casamento. Portanto, os bens que o marido e a mulher obtiverem, a qualquer título, na constância do casamento, pertencerão integral e separadamente a cada um deles”.
Teste do professor Pasquale
	Assinale com um “C” as frases gramaticalmente certas e estilisticamente aceitáveis na norma culta e com um “E” as erradas
Tratam-se de contratos onde as cláusulas contêm graves imprecisões.
De acordo com a meteorologia, podem haver fortes pancadas de chuva à tarde.
Ele é um dos doze ministros que participarão da conferência.
A proposta da chapa é ótima e vem de encontro aos nossos interesses, por isso votaremos nela.
De acordo com os juristas, a lei só poderia vigir no ano que vem.
O novo presidente da filial brasileira da Carbuncex, declarou que a empresa não pretende investir mais dinheiro no país.
Ele entrou na sala de supetão.
Nessa época, ela escreveu uma obra em cujas páginas se registram as mais importantes pesquisas daquele período.
Quem for à igreja e vir o estado em que se encontram as obras barrocas certamente ficará chocado.
Mesmo que for adotado algum tipo de ajuste fiscal imediato, o Brasil ainda estará longe de tornar-se um participante ativo do jogo mundial.
A maioria dos deputados que aprovaram a emenda é governista.
Nenhum dos deputados ouvidos pelos jornalistas presentes quiseram confirmar o voto.Se deixar de ser teimoso, convocar os jogadores certos e manter o esquema tático adotado na última partida, o técnico poderá conquistar a confiança de todos.
Vossa Senhoria sabe que vosso parecer é muito importante para nós.
Fez poucos dias frios no último inverno, por isso as roupas de lã não saíram das lojas.
Se o governo contrapropor algo que supere os 5%, os trabalhadores certamente interromperão a greve.
Deviam fazer cinco minutos que ela saíra.
Mil reais são poucos para uma família de quatro pessoas.
A toda-poderosa ministra britânica interveio imediatamente.
Esse capítulo da lei dá margem à muitas interpretações.
A correspondência tinha extraviado-se. O correio não assumiu a responsabilidade pelo extraio, porque as cartas não tinham sido registradas.
Com a intervenção da advogada, a empresa reaveu o terreno.
Não serão aceitas as inscrições dos candidatos cujas as fichas não estiverem corretamente preenchidas.
Foi enviado duas cópias do contrato ao diretor. Se ele assiná-las hoje, será possível efetuar o pagamento amanhã.
A fábrica garante o produto contra todos os defeitos de fabricação, exceto os decorrentes de uso indevido.
Depois dos atentados nos Estados Unidos, a economia mundial entrou em forte recessão, onde as bolsas de valores sofreram grandes perdas.
Convidamos Vossa Senhoria e família para a cerimônia que realizar-se-á na Igreja de Santo Antônio.
Não quero saber se foi fulano, sicrano ou beltrano.
Ele não explicou por que não compareceu.
Ele não explicou porque não compareceu.
O ministro não o convidou porque ele é de outro partido.
Enviamos à Vossa Senhoria o documento a que nos referimos em nossa última conversa.
Deputado fala da reunião na TV Cultura.
Os peritos constataram que o gás vazava havia dias.
Amo-o como um pai.
Uma ação que além de vã é frívola
Roberto Pompeu de Toledo
	Já não basta ficarem mexendo toda hora no valor e no nome do dinheiro? Nos juros, no crédito, nas alíquotas de importação, no câmbio, na Ufir e nas regras do imposto de renda? Já não basta mudarem as formas da Lua, as marés, a direção dos ventos e o mapa da Europa? E as regras das campanhas eleitorais, o ministério, o comprimento das saias, a largura das gravatas? Não basta os deputados mudarem de partido, homens virarem mulher, mulheres virarem homem e os economistas virarem lobisomem, quando saem do Banco Central e ingressam na banca privada?
	Já não basta os prefeitos, como imperadores romanos, tentarem mudar o nome das avenidas cruciais, como a Vieira Souto, no Rio de Janeiro, ou se lançarem à aventura maluca de destruir largos pedaços das cidades para rasgar avenidas, como em São Paulo? Já não basta mudarem toda hora as teorias sobre o que engorda e o que emagrece? Não basta mudarem a capital federal, o número de Estados, o número de municípios, e até o nome do país, que já foi Estados Unidos do Brasil e depois virou República Federativa do Brasil?
	Não, não basta. Lá vêm eles de novo, querendo mudar as regras de escrever o idioma. “Minha pátria é a língua portuguesa”, escreveu Fernando Pessoa pela pena de um de seus heterônimos, Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego. Desassossegados estamos. Querem mexer na pátria. Quando mexem no idioma, põem a mão num espaço íntimo e sagrado como a terra de onde se vem, o clima a que se acostumou, o pão que se come.
	Aprovou-se recentemente no Senado mais uma reforma ortográfica da língua portuguesa. É a terceira nos últimos 52 anos, depois das de 1943 e 1971 – muita reforma, para pouco tempo. Uma pessoa hoje com 60 anos aprendeu a escrever “ideia”, depois, em 1943, mudou para “idéia”, ficou feliz em 1971 porque “ideia” passou incólume, mas agora vai escrever “ideia”, sem acento.
	Reformas ortográficas são quase sempre um exercício vão, por dois motivos. Primeiro, porque tentam banhar de lógica o que, por natureza, possui extensas zonas infensas à lógica, como é o caso de um idioma. Escreve-se “Egito”, e não “Egipto”, mas “egípcio”, e daí? Escreve-se “muito”, mas em geral se fala “muinto”. Segundo, porque, quando as reformas se regem pela obsessão de fazer coincidir a fala com a escrita, como é o caso das reformas da língua portuguesa, estão correndo atrás do inalcançável. A pronúncia muda no tempo e no espaço. A flor que já foi “azálea” está virando “azaléia” e não pode se dizer que esteja errado o que todo o povo vem consagrando. Poder se pronuncia “poder” no Sul do Brasil “puder” na Pefelândia, onde fica o Brasil do Nordeste. Querer que a grafia coincida sempre com a pronúncia é como correr atrás do arco-íris, e a comparação não é fortuita, pois uma língua é uma coisa bela, mutável e misteriosa como um arco-íris.
	Acresce que a atual reforma, além de vã, é frívola. Sua justificativa é unificar as grafias do português do Brasil e de Portugal. Ora, no meio do caminho percebeu-se que seria uma violência fazer um português escrever fato quando fala facto, ou recepção quando se fala receção, da mesma forma como seria cruel fazer um brasileiro escrever facto ou receção (que ele só conhece, e bem, com dois S, no sentido de inferno astral da economia). Deixou-se então que cada um continuasse a escrever como está acostumado, no que se fez bem, mas, se a reforma era para unificar e não unifica, para que então fazê-la? Unifica um pouco, responderão os defensores da reforma. Mas, se é só um pouco, o que adianta? Aliás, para que unificar? O último argumento dos propugnadores da reforma é que afinal ela é pequena – mexe com 600, entre cerca de 110.000 palavras da língua portuguesa, ou apenas 0,54% do total. Se é tão pequena, volta a pergunta: para que fazê-la?
	Haveria outros argumentos contra a reforma, mas nenhum tão importante quanto esboçado acima, de que a língua é como pátria, e em pátria não se mexe, ou pelo menos não se mexe toda hora. Fala-se que a reforma simplifica o idioma e assim torna mais fácil seu ensino. Engano. A língua é um bem que percorre as gerações, passando de uma à outra, e será tão mais bem transmitida quanto mais estável for, ou, pelo menos, quanto menos interferências arbitrárias sofrer. Não se mexa assim na língua. O preço disso é banalizá-la como já fizeram com a moeda, no Brasil.
O Brasil profundo em debate
Roberto Pompeu de Toledo
	Uma discussão no Senado revela a ideia de sociedade que cada senador tem no íntimo
	O senador Eduardo Suplicy (PT – SP): “A prisão especial viola o princípio da igualdade perante a lei”.
	O senador José Ignácio Ferreira (PSDB – ES): “A prisão especial não é privilégio”.
	Ainda há bons debates no Congresso. Debates em que se impõem ideias, não o “é dando que se recebe”. No dia 12 de março, o Senado discutiu e votou projeto do senador Eduardo Suplicy que pretendia abolir o instituto da prisão especial.
	O senador Romeu Tuma (PSL – SP): “Como jogar uma pessoa (com direito a prisão especial) numa prisão comum, no estado em que se encontra o nosso sistema carcerário?”.
	O senador Ademir Andrade (PSB – PA): “Que dizer dos milhões e milhões de brasileiros (sem direito a prisão especial) que são jogados nesses mesmos cárceres desumanos?”.
	A prisão especial surgiu em 1941 com o Código de Processo Penal. Dela se beneficiam ministros, governadores, senadores, deputados, magistrados, militares e detentores de diploma universitário em geral. Quando submetidas à prisão preventiva, e enquanto não houver condenação definitiva essas pessoas têm direito a um lugar melhor do que as celas comuns.
	O senador Eduardo Suplicy: “Se os parlamentares, os juízes, os professores, os jornalistas, os advogados, os engenheiros, as pessoas com nível superior, fossem submetidas como os demais cidadãos brasileiros, às atuais condições carcerárias, não estaríamos todos nós, e a sociedade brasileira, lutando para que o sistema carcerário tivesse condições de maior dignidade?”.
	Estamos citando as anotações taquigráficas do Senado. O debate é precioso porque revela, a partir de uma questão muito específica, e talvez menor, completas visõesde mundo. Num Congresso poluído pela multiplicidade de partidos e interesses, tudo é quase sempre obscuro. Aqui, ao contrário, a clareza é soberana. Para o senador Tuma, que, como relator, se colocou contra o projeto, a prisão especial tem por objetivo evitar uma “dor inútil” às “categorias sociais relevantes”. Segue-se que da “dor inútil” não precisam ser poupadas as categorias menos relevantes, mas, em vez de denunciar o elitismo do senador, o que se quer aqui é louvar-lhe o mérito de explicitar sem medo o que pensam, com medo, muitos brasileiros de sua condição. O senador Roberto Freire, que pensa diferente, apontava uma inversão de valores no instituto da prisão especial.
	O senador Roberto Freire (PPS – PE): “Aquilo que poderia ser agravante é atenuante: quem teve toda a capacidade de receber da sociedade condições de se educar, de discernir, de não ser marginal, de não ser criminoso, recebe a comodidade de celas especiais, de tratamento diferenciado”.
	Havia uma direita e uma esquerda delineadas com a nitidez de suas propostas históricas, naquele dia no Senado. Por uma vez, a esquerda, representada por Freire ou Suplicy, apresentava-se com sua bandeira de origem a defesa do igualitarismo. Foi uma exceção nestes tempos em que as privatizações e as aposentadorias acabaram por incliná-la para o lado dos privilégios corporativos. A direita, capitaneada por Tuma, levantava o argumento de que tratar igualmente os desiguais é uma forma de ser desigual. Seria injusto, então, tratar um magistrado como um qualquer. A esquerda respondia que o princípio segundo o qual desiguais merecem tratamento desigual deve ser usado para a promoção do mais fraco, não reforço do mais forte. Vale para dar tratamento melhor à mulher, por exemplo, ou ao menor.
	Havia também um centro, representado pelo senador Geraldo Melo, para quem seria justo revogar a prisão especial, mas não seria “oportuno” fazê-lo agora.
	O senador Geraldo Melo (PSDB – RN): “Enquanto não acabarmos com a fome, com o desemprego, com a doença (não se deve) modificar institutos e criações que, sejam ou não de privilégios, estão incorporados à nossa cultura”.
	Caso se quisesse ser maldoso com o senador Melo, podia-se lembrar de que no Império, muitos diziam que, embora a favor da abolição, julgavam-na inoportuna – mas não é caso de ser maldoso. O debate foi aqui apresentado pelo que foi: um momento em que os senadores expuseram com clareza como veem e desejam a sociedade brasileira. A questão era pequena, mas profunda, porque revolvia as entranhas do ordenamento social do país. E o resultado do debate revela o ponto em que estamos, quando questões dessa ordem são postas na mesa. A proposta de Suplicy perdeu 45 votos contra 12.
O Brasil já não está preparado para ser desigual
Roberto Pompeu de Toledo
	Temos violência porque não somos capazes, como outrora, de manter uma desigualdade social mansa e pacífica.
	Manhã de Domingo. Avenida Angélica, bairro de Higienópolis, São Paulo. Um menino bem vestido, de seus 10 anos, pele e olhos claros, aproxima-se do senhor que de tênis e de agasalho, se exercitava em sua caminhada de fim de semana, e pergunta: “O senhor sabe se o ônibus Butantã – USP passa deste lado da rua ou do outro?”. O senhor de tênis não sabia. Nada mais distante de seu universo do que ônibus e seus itinerários. “Não sei, deixa ver... Olha, você vai tomar ônibus sozinho?”.
	O menino ia, e o senhor começa a se preocupar: tão bonitinho esse menino, e tão desprotegido, assim, solitário na cidade. Poderia ser meu filho, pensou. Meu sobrinho, o filho de um amigo. Em suma: é dos nossos. Da turma dos meninos bonitos, limpos, calçados. O senhor de tênis disse: “Olha, se você quiser... Eu vou ter que ir para aqueles lados, mesmo. Posso levá-lo. Moro aqui perto, vou pegar o carro”. O menino aceitou.
	O senhor de tênis não tinha de ir para aqueles lados. Não tinha de ir a lugar algum, na verdade. Mas achou de seu dever e responsabilidade conduzir aquele garoto são e salvo a casa – ele era dos nossos, e se “eles” o apanhassem no meio do caminho? Fazia uma semana, dois jovens, um rapaz e uma moça, haviam sido assassinados num bar de um bairro bom e saudável como este. O crime lembrou os habitantes da parte boa de São Paulo de que estamos na Bósnia.
	Corrija-se logo: isso é exagero. Não se trata de guerra civil. Mas também não se invocou aqui a Bósnia apenas porque a imagem é literariamente atraente. Tal como lá, somos uma sociedade dividida em que as partes litigantes moram muito perto umas das outras, compartilham as esquinas e estão a todo momento se cruzando. Bons tempos aqueles em que o inimigo era o outro país. Hoje ele mora ao lado. Não nos dividimos como na Bósnia, em sérvios, croatas e muçulmanos, uns com tanta raiva dos outros que saem atirando mesmo quando tinham sido colegas de escola, ou velhos conhecidos de bar, de escritório, de fábrica ou de bairro. Nossa divisão é de outra natureza, é econômica e social. “Eles”, os inimigos, reais ou potenciais, são os que estão do outro lado da fronteira da desigualdade. O senhor de tênis reconheceu no menino um seu companheiro de trincheira. Assim como faria um muçulmano ao reconhecer outro, na Bósnia, solidarizou-se com ele e protegeu-o.
	Já que se falou em desigualdade, apressemo-nos em desfazer um possível mal-entendido. Sim, este artigo vai versar sobre a violência nas grandes cidades brasileiras e sim, não foi por outra razão que se começou com o problema da desigualdade. Mas, antes que o leitor desista e, com justo tédio, jogue a revista para o lado, advirtamos: este não será mais um artigo a denunciar as desigualdades brasileiras e dizer que é por causa disso que temos violência. Tampouco – e este ponto é fundamental – vai-se defender que o problema da criminalidade tem origem exclusiva na desigualdade e que por isso deve-se ser leniente ou compreensivo com os criminosos. A tese que se quer defender é: Não estamos mais preparados para ser desiguais. Ou, por outra: Não estamos mais preparados como já estivemos para ostentar uma desigualdade mansa e pacífica.
	Preparado para a desigualdade estava o velho Vilaça. Vilaça era o empregado do patriarca Afonso da Maia, personagem do romance Os Maias, de Eça de Queiroz. Durante mais de trinta anos ele serviu o patrão com dedicação e fidelidade, cuidando mais ou menos de tudo, velando por tudo o que proporcionasse o conforto e as homenagens às quais julgava o patrão naturalmente credenciado. Um dia, depois do almoço, Vilaça sentiu umas tonturas. Logo era a visão que se embaciava, e caiu de bruços no sofá.
	Estava morrendo de apoplexia. Mas ainda assim, fulminado pela pior das sortes, o golpe definitivo, que fez Vilaça? Balbuciou ao filho um par de recomendações sobre uns serviços que deixava pela metade. E depois, como já não tivesse forças, a título de despedida da vida, murmurou: “Saudades ao patrão!”. Era o tempo em que os criados sabiam o seu lugar. Pobre era pobre, rico era rico, remediado era remediado, uns estavam no mundo para servir, outros para ser servidos, e estamos conversados. Era a ordem natural das coisas.
	O cientista político Bolívar Lamounier é o autor da ideia que inspira este artigo – a de que pior que a desigualdade em si, que apesar de não ser o único é fator decisivo, para efeitos de desencadeamento da criminalidade, é a desigualdade num tempo em que acreditar na justeza e na fatalidade das hierarquias sociais é tão fora de moda como acreditar no direito divino dos reis. Lamounier defendeu-a num trabalho que, publicado no Jornal da Tarde de 28/4/1996, é como um mote que aqui se glosa.
	Também capturando na literatura um exemplo dos tempos em que a hierarquia social era incontestável como a lei da gravidade, Lamounier invoca Françoise, a empregada da família do narrador de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Françoise escreveu Proust, votava “um comovido respeito às altas classes”. Ainda em Proust, Lamounier foi buscar a noção de que a sociedade francesa do tempo daquele escritor– o começo do século – guiava-se pela “ideia um tanto indiana” de que se dividia em “castas fechadas”, onde “cada qual se via, desde o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde nada podia nos tirar”.
	Sempre será preciso um gênio para dar às coisas o nome certo: a concepção “algo indiana” da sociedade, eis um achado. E eis o que se requer, para a desigualdade dar certo. Na Índia há talvez tanta desigualdade quanto no Brasil, e seguramente mais miséria, mas não há tantos assaltos e assassinatos do tipo que se tem aqui. Há a violência do fanatismo religioso, do confronto entre hindus e muçulmanos, mas essa é outra história. Por que não há na Índia a violência do nosso tipo, a trivial violência do latrocínio e do sequestro? É que lá ainda vigora a concepção “indiana” de que o mundo é dividido em castas porque tem de ser assim: e ponto. A Índia continua preparada para a desigualdade. Por isso, convive bem com ela.
	O Brasil já conviveu melhor. Até irritantemente melhor. Monteiro Lobato denunciava a passividade do Jeca Tatu. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, tomou emprestada uma expressão do escritor Ribeiro Couto para definir o brasileiro como o “homem cordial” – caracterizado pela “lhaneza no trato, hospitalidade, generosidade”. A conversa do país não violento, da “índole pacífica do nosso povo”, da perfeita convivência entre as raças – tudo isso continha muita mentira, mas também um pouco de verdade, na medida em que o Brasil se banhava no doce conformismo dos países atrasados.
	Um estrangeiro como o austríaco Stefan Zweig, no livro Brasil, País do Futuro, do início da década de 40, escreveu que nenhum país conseguiu resolver tão bem o “problema central” das nações, qual seja, o da convivência pacífica entre diferentes “raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões”, como o Brasil. “A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar”. Éramos não só atrasados, como não achávamos nada de mais em sê-lo. Reproduzia-se no nível das nações a mesma resignação que caracterizava os indivíduos e as camadas sociais. Se um país era “essencialmente agrícola”, como se dizia do Brasil, por isso mesmo destinado a um lugar apenas na mesa dos serviçais no banquete das nações, paciência.
	Ocorre que o tempo atual é o da denúncia das fatalidades. Das fatalidades e das hipocrisias que elas encobrem, bem como das ingenuidades que as nutrem. Ocorre também que este é o século da força irresistível da democracia, ou pelo menos da ideia da democracia, e desta sua filha incômoda, a igualdade. Também é o século da comunicação veloz – da televisão, da propaganda, do apelo embriagador do consumo. O Brasil foi apanhado entre dois fogos. Tem a cabeça no Ocidente e o corpo na Ásia. Ou, por outra, rege-se pelo ideal ocidental do desenvolvimento, da liberdade e do individualismo, mas tem a sociedade mergulhada numa estrutura de subcontinente indiano.
	Há incompatibilidade entre uma coisa e outra. Há uma estranheza e um conflito. O resultado é que a desigualdade deixou de ser mansa e pacífica. Passou a ser impossível sermos desiguais e felizes. Ou, cedendo a palavra a Bolívar Lamounier: “O problema é que continuamos como uma sociedade profundamente desigual sob o aspecto objetivo e ao mesmo tempo dinâmica, individualista, iconoclasta, utilitária, competitiva – moderna, enfim – no aspecto subjetivo, ou, melhor dizendo, no tocante aos nossos valores e conhecimentos. Esta é uma combinação terrível”.
	A desigualdade sem resignação, sem submissão a uma ordem hierárquica que a apazígue – ou, como quer Bolívar Lamounier, sem o “apoio em valores e comportamentos deferenciais” – eis uma realidade que vai refletir-se tragicamente na questão da violência, embora, repita-se, não seja seu único desencadeante, e muito menos dispense a repressão ao crime. Resta, para consolar, a esperança de que seja entendido o sinal aí contido – o de que, se não há mais resignação para com a desigualdade, é porque ela já não nos serve. Ou, em outras palavras, se não estamos mais preparados para a desigualdade, que nos apressemos a desvencilhar-nos dela. Nos últimos anos do regime militar, costumava-se dizer que o Brasil não cabia mais no modelo autoritário. Ficava-lhe curto nas mangas, apertado na cintura. Hoje, não cabe mais no modelo da desigualdade imensa e descabida.
A ‘griffe’ e o aviãozinho
Roberto Pompeu de Toledo
	A sugestão de facilitar aos jovens das favelas a compra de artigos da moda esconde um apelo desesperado.
	Que há em comum entre a ‘griffe’ e o “aviãozinho”? Pelo menos, há uma coincidência histórica: ambos surgem na mesma época, em algum ponto da década de 80. A ‘griffe’ sabe-se o que é: “garra”, em francês. Ou, no nosso tempo e no nosso mundo, a marca de um produto comercial, tão forte, ou tão fortemente trabalhada, junto à cabeça do consumidor, que pega como garra. O aviãozinho, segundo gíria que, do Rio de Janeiro, se espalhou pelo país, é o menino que, a mandado dos traficantes, leva e traz a droga. Faz tempo que, na História e na mitologia, a criança é associada a mensageiros. A criança Éros é um mensageiro do amor. Os anjos da tradição judaico-cristã também são mensageiros e, na pintura – a barroca, por exemplo, são quase sempre crianças. Os três – Éros, os anjos da Bíblia e o aviãozinho – têm ainda em comum o fato de portar asas – ou, no caso do aviãozinho, invocar engenhos alados. A diferença é que os anjos e Éros são mensageiros do céu e do Olimpo. O aviãzinho vive também num lugar alto, o morro, mas o destino mais freqüentemente o precipitará aos infernos da violência, da casa de correção, da morte prematura.
	A afirmação de que a ‘griffe’ e o aviãozinho surgem ambos na década de 80 requer explicação. Não que a ‘griffe’ inexistisse antes. A da moda, que aqui nos interessa mais de perto, existe pelo menos desde Chanel e Dior, ou seja, desde os longínquos primórdios do século XX. Mas a explosão da ‘griffe’, sua massificação e vulgarização, é recente. Chanel e Dior só faziam sentido para o mundo dos ricaços, poucos e fechados em si mesmos. Nos anos 80, a ‘griffe’ rompe as últimas barreiras. Seu poder sedutor deixa de agir só sobre um grupelho de privilegiados. A droga, e mais especificamente a cocaína, também vinha de longe. Mas sua explosão ocorre nos mesmos anos, e de tal forma que seus pontos-de-venda se multiplicam pelos morros, e dão origem a figuras como a do aviãozinho.
	Estas considerações vêm a propósito de uma reunião realizada no Ministério da Justiça, entre autoridades do governo, inclusive o próprio ministro da Justiça, e representantes de comunidades de favelados do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. O objetivo era discutir medidas que sirvam ao plano antiviolência em elaboração no governo. Um dos presentes, o carioca Celso Peres, líder comunitário no Morro da Mangueira, sugeriu que se instituísse uma espécie de bolsa para que os jovens favelados pudessem comprar os produtos da moda. É por cobiçá-los, argumentou, que eles se envolvem com o crime. O jornal O Estado de S. Paulo noticiou a sugestão numa nota cujo título era “Surrealismo”.
	O governo instituir uma bolsa para que os meninos e meninas do morro comprem tênis X, camiseta Y e jeans Z, vá lá, seria surrealismo. Mas o diagnóstico de Celso Peres aponta para uma questão crucial. Que são as crianças do morro nascidas a partir dos anos 80? São seres expostos à confluência de dois fenômenos então recentes: a universalização da televisão e o maciço investimento da indústria e do comércio no consumidor juvenil. A TV, àquela altura presente em cada recanto, mesmo na favela, traz o apelo ao consumo por via das novelas, dos anúncios ou da Xuxa. E entre os artigos que oferece, ao contrário dos tempos de Chanel, em que moda era coisa para pessoas maduras, e só para elas, inclui-se uma vasta gama de itens direcionados aos jovens. A ‘griffe’, e em especial a ‘griffe’ quefala aos jovens, é uma deusa tão presente que se insinua até pelas frestas do barraco.
	Na explosão simultânea da ‘griffe’ e da cocaína há mais que uma coincidência histórica, na verdade. Há uma colisão. A ‘griffe’ vinha de um lado, a cocaína de outro, e ambas produziram uma pororoca que estourou na cabeça do aviãozinho. Engana-se, no entanto, quem pensa que a ‘griffe’ é apenas uma ‘griffe’. Não, o tênis da marca da moda não é apenas um tênis. É o título de sócio de um clube. É a maneira de proclamar aos outros, e ao mundo, e a si mesmo, que se tem pelo menos o pé no time dos melhores, os mais bem-sucedidos, os bacanas. Não são poucos os que se aventuram pelos riscos do ofício de aviãozinho, e daí para o crime, movidos pelo desejo de entrar nesse time.
	Ao estabelecer a relação entre o apelo do consumo e a opção pelo crime, entre os jovens, não se está aqui oferecendo novidade alguma. Novidade é que Celso Peres, o representante da Mangueira, propõe: um subsídio que substitua o tráfico, como meio de o jovem ter acesso aos artigos da moda. De certa forma, é uma rendição ao consumismo. Um segundo caminho seria oferecer aos jovens outros valores como alternativa, mas talvez esse seja ainda mais complicado, e até surrealista, para repetir a palavra usada no Estado, dada a força com que já se implantou o consumo. O certo é que por trás do diagnóstico de Peres se esconde uma questão-chave e se insinua um apelo desesperado. Que oferecer aos jovens? Os jovens (e as crianças) pobres são uma presa fácil demais, frágil demais, num mundo em que o glamour das ‘griffes’ se sobrepõe à feia realidade que os cerca.
Sobre a Ecologia
	No ano de 1854, o presidente dos Estados Unidos faz a uma tribo indígena a proposta de comprar grande parte de suas terras, oferecendo, em contrapartida, a concessão de uma outra “reserva”. O texto da resposta do Chefe Seatle, distribuído pela ONU (Programa para o Meio Ambiente) e aqui publicado na íntegra, tem sido considerado, através dos tempos, como um dos mais belos e profundos pronunciamentos já feitos a respeito da defesa do meio ambiente.
	“Como é que pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?
	Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra da floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.
	Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia, são nossos irmãos. Os picos radiosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro, e o homem – todos pertencem a mesma família.
	Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós. O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada para nós.
	Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendemos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.
	Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
	Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.
	Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda.
	Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas, talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.
	O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve se lembrar de que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém. O vento que deu a nosso avô seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa ir saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.
	Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos.
	Sou um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos somente para permanecermos vivos.
	O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontecerá com o homem. Há uma ligação em tudo.
	Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com a vida de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer a terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.
	Isto sabemos: a terra não pertence ao homem: o homem pertence a terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.
	O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida: ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.
	Mesmo que o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos – e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus éo mesmo Deus. Vocês devem pensar que o possuem, como desejam possuir nossa terra: mas não é possível. Ele é o Deus do homem, e sua compaixão é igual para o homem vermelho e para seu homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo que todas as outras tribos. Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.
	Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força de Deus que os trouxe a esta terra e por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o final da vida e o início da sobrevivência.”
(Tradução – Irina O. Bunning)
Isaura e 'Isóla'
Roberto Pompeu de Toledo
	Considerações em torno de uma famosa escrava e o que ela representa, no Brasil e na China 
	É uma injustiça considerar que na China os direitos humanos não têm vez. Os chineses em peso, as autoridades inclusive, há anos dão mostras de uma militância apaixonada em favor dos direitos humanos de alguém muito conhecido dos brasileiros: a escrava Isaura. A novela da Globo que, com Lucélia Santos no papel principal, retomou o clássico romance de Bernardo Guimarães foi, como se sabe, um sucesso de arrasar quarteirão no país de Mao Tsé-tung. Seguiram-se a tradução do romance, a adaptação para fotonovela e outros subprodutos – tudo consumido na escala dos milhões de cópias, como é praxe na China. "Baxi? Isóla, Isóla", costumam dizer, até hoje, vinte anos passados, os chineses, quando identificam nossos nacionais. "Baxi" é Brasil, e "Isóla" é Isaura. Na China, Pelé não está com nada – inclusive porque chinês não é muito de futebol. Isaura faz as vezes de Pelé. 
	Na semana passada, em companhia dos ministros, governadores, parlamentares e empresários que compunham a comitiva do presidente Lula à China, lá estava ela, de novo – Isaura, em pessoa. Ou melhor, Lucélia Santos. Talvez ela não cause mais nas ruas, depois de tantas visitas ao país, o mesmo tumulto que provocava vinte anos atrás. Mas o mito continua vivo a ponto de justificar nova empreitada no ramo da teledramaturgia, uma série com uma história de amor entre uma brasileira e um chinês. A série será filmada no Brasil e na China, e a Lucélia, claro, caberá o papel principal. Ela continua a namoradinha da China. 
	Deixemos Lucélia, que não faz mais que o seu papel. Falemos de Isaura, por quem os chineses derramaram lágrimas que, se canalizadas para o conveniente leito, teriam rasgado um novo Yang Tsé, o rio que corta o país de uma ponta a outra. Isaura é uma personagem tão pitoresca quanto reveladora. Logo no primeiro capítulo do livro de Bernardo Guimarães, publicado em 1875, ela surge tocando piano, na sala da casa. Uma escrava que toca piano! E na sala! O autor a descreve como bela e bondosa. Ficamos sabendo que teve educação esmerada e, entre outras prendas, aprendeu a falar francês. Uma escrava que fala francês! Isso ainda é pouco. A "tez", nos revela Bernardo Guimarães, enquanto a bela continua a encher a sala com os sons do piano, "é como o marfim do teclado". Eis o máximo: Isaura é branca! Uma interlocutora lhe diz: "És formosa, e tens uma cor tão linda que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano". 
	O romance pretendia ser um libelo contra a escravidão. Foi publicado ainda antes que a campanha abolicionista tomasse corpo e nesse sentido lhe cabe, como aos versos de Castro Alves, certo pioneirismo. Guardadas as proporções, exerceria no Brasil a função que exerceu, nos Estados Unidos, A Cabana do Pai Tomás, publicado em folhetins, entre 1851 e 1852, pela escritora H.B. Stowe. Ambos os livros tinham por alvo passar a mensagem de quão infame é a escravidão ao apresentar, para surpresa de muitos, a novidade de que os escravos eram seres humanos. Sim, seres humanos, capazes de sentimento e de nobres atitudes! O Pai Tomás que tanta comoção causou em seu tempo é hoje um personagem desmoralizado. É o protótipo do "preto bom". Não passa de um colaboracionista do sistema escravista. Mas, pelo menos, é negro. Já Isaura nem negra é. Nem nisso conseguimos ganhar dos americanos. Para tornar sua personagem palatável aos leitores, Bernardo Guimarães a criou filha de branco com mulata. A cor da pele não lhe permitiria passar por negra nem pelos frouxos critérios adotados, em seu sistema de cotas, pela Universidade de Brasília. 
	A circunstância de Isaura ser branca, e tão branca quanto as teclas baixas do piano, subverte os propósitos iniciais do romance. No fundo, o autor está reclamando, e convidando os leitores a reclamar com ele, não da injustiça de Isaura ser escrava – mas da injustiça de ser considerada negra. Permeia o romance de Bernardo Guimarães um racismo que nem por ser ingênuo e inconsciente é menos racismo. O autor julgou – e, provavelmente, julgou certo – precisar pintar sua escrava de branco para obter os efeitos desejados. Se negra, ela não mereceria a mesma simpatia e a mesma compaixão. A novela da Globo, um século depois, conservou-a branca. Quem ganhou o papel foi Lucélia Santos, não Ruth de Souza. 
	E os chineses com isso? Por que teriam caído de amores por Isaura? Quem já viu uma representação desse gênero campeão de preferência, no país, que é a ópera chinesa, tem um começo de resposta. As histórias são sempre meio descabeladas e infantis, como a de Bernardo Guimarães. No tempo do comunismo brabo, o regime aproveitou tal preferência popular para sapecar-lhe O Oriente É Vermelho, um épico da adesão ao maoísmo. A peça ficou anos em cartaz, e dela não foram poupados nem os visitantes estrangeiros, a quem se reservava sempre uma noite para vê-la. Com A Escrava Isaura, os chineses acompanharam a luta de certo povo distante – não pelo vermelho, mas pela cor branca. Sem entender bem o que isso significava, gostaram. 
	Romance de Bernardo Guimarães cuja telenovela fez sucesso no Brasil e na China. 
VIVA LA MUERTE!
Roberto Pompeu de Toledo
	Que tempos, para um pai na Faixa de Gaza...Ainda bem que estamos distantes. Ou não? 
	Para se ter uma ideia do que se passa no favelão conhecido como Faixa de Gaza, muito mais úteis do que acompanhar o noticiário sobre mortos e feridos ou conhecer os comunicados de Israel ou da Autoridade Palestina são duas conversas entre pai e filho relatadas numa recente reportagem do jornalista Jeffrey Goldberg para a revista The New Yorker. A primeira tem como cenário a sala coberta de retratos de "mártires" (os homens-bomba palestinos) da casa de Abu Hussein, um dos líderes das brigadas especializadas em disparar foguetes contra o sul de Israel. Abu Hussein é militante do Hamas, o grupo político-terrorista-religioso hoje majoritário entre os palestinos. Enquanto conversava com Goldberg sobre o Hamas (que ele considera estar ganhando a guerra contra Israel) e a qualidade dos rústicos foguetes Qassam (que freqüentemente acabam caindo no próprio território palestino), seu filho de 15 anos se mantinha ao lado, sentado no mesmo sofá. 
	"Sim, nós não temos tanques", dizia. "Mas temos mártires. Olhe para os rostos na parede. Todos nós ansiamos por morrer para ganhar de volta nossa terra. Os judeus preferirão deixar a Palestina a morrer. Essa é a diferença." A certa altura, Abu Hussein estreitou o filho, estudante secundário, num abraço: "Eu quero que ele termine os estudos, mas, se acontecer de ele morrer, não me importo, desde que morra como um mártir e leve alguns judeus consigo. Ficarei feliz, se ele morrer assim". O filho sai da sala e volta com um retrato em que aparececom uniforme de combate e um fuzil AK-47 na mão. "Esta é a minha foto de mártir", explica ao visitante. Se eu morrer, é ela que vai aparecer nos pôsteres em Gaza." Todos os seus colegas de escola têm suas "fotos de mártir", explica o menino. O pai acrescenta: "Nós ficamos felizes em sacrificar nossa família para ganhar essa batalha". O filho ri, achega-se ao pai e comenta: "Eu sou seu filho único, e ele quer que eu morra". 
	Na segunda conversa, o jornalista da The New Yorker está diante de Rafiq Hamdouna, antigo líder da Fatah, a organização rival do Hamas – leiga, mais pragmática e adepta de uma saída negociada com Israel. "A única solução realística é a dos dois estados", diz Hamdouna, afirmando sua oposição à tese da destruição de Israel do Hamas. Ele acrescenta porém que o cerco de Israel e a tentação pela morte violenta entre os palestinos dificultam a aceitação de um compromisso sem ardor religioso nem fantasias de heroísmo. Para exemplificar como os espíritos estão envenenados, conta que seu filho Basel outro dia lhe disse que gostaria de se transformar em mártir. "Tive de ficar calmo", prosseguiu. "Disse a ele: 'Basel, você sabe o que acontece quando você se explode? Você não vai para o paraíso. Você vai para um buraco na terra e se cobre de sujeira'." Hamdouna encerrou o assunto com um comentário desacorçoado: "Todo pai em Gaza tem a mesma conversa com os filhos. Todo pai enfrenta isso". 
	Na Guerra da Espanha, o general Millan Astray, um dos comandantes do lado franquista, celebrizou-se pela divisa "Viva la Muerte!", que usava como grito de guerra. Era um brado "necrófilo e insensato", como disse o filósofo Miguel de Unamuno, corajosamente, na cara de Millan Astray, num famoso episódio. Na primeira conversa, a do militante do Hamas com o filho, a celebração da morte adquire um caráter doméstico, manso e carinhoso que a torna mais tenebrosa do que se tivesse lugar num evento político. Na segunda conversa, o pai se utiliza da ducha fria do racionalismo para combater as ilusões que ameaçam contaminar o filho. Mas o comentário final de que "todo pai enfrenta isso" mostra que ele tem consciência de lutar contra a corrente. As circunstâncias são desfavoráveis demais, os espíritos estão embriagados demais. Ele não se pode deixar levar pela ilusão de que seu argumento conquistou o filho. 
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	Sorte que a Faixa de Gaza seja uma realidade distante para nós, brasileiros. Ou será que, pensando bem... Nos favelões do Brasil, os meninos são atraídos pela legenda dos homens do tráfico. Eles sabem que aquilo não acaba bem. Se a morte escapa de vir da polícia, chegará na guerra entre facções. Um pai (ou mais freqüentemente uma mãe) nos favelões brasileiros não enfrenta situação muito diferente da dos pais de Gaza. Também entre eles as circunstâncias são desfavoráveis demais para a vitória da racionalidade, e os espíritos estão embriagados (ou entorpecidos) demais. O "Viva la Muerte" cativa também os seus filhos.
Flutua, astronauta, flutua
Roberto Pompeu de Toledo
	O simpático Marcos Pontes estrelou um show caipira e fraudulento ao custo de 10 milhões de dólares 
	Pouco antes de o programa entrar no ar, o coordenador técnico-científico da Agência Espacial Brasileira, Raimundo Mussi, informou: "Recomendei ao Pontes para flutuar o máximo possível". Era o começo da noite de quarta-feira, e dali a instantes o astronauta brasileiro Marcos Pontes iria aparecer no vídeo, para uma conversa com o presidente Lula. A recomendação do coordenador técnico-científico, transformado naquele momento em diretor de cena, conferiu chancela oficial ao que já se desconfiava: que o objetivo verdadeiro da missão de Marcos Pontes era encenar um showzinho para impressionar os habitantes do trecho do planeta Terra situado entre o Monte Roraima, nas vizinhanças da linha do Equador, e a curva mais meridional do arroio chamado Chuí. Que graça teria, se ele não flutuasse? Se a "videoconferência" do presidente, como foi chamada, com boa dose de licença poética, fosse com Robinho, o diretor de cena recomendaria: "Não se esqueça de pedalar". Se fosse com Carmen Miranda: "Não se esqueça do abacaxi na cabeça". A fala de Mussi vazou pelos microfones esquecidos abertos. O astronauta não poderia se esquecer de flutuar, bambo como palmeira ao vento, instável como bêbado no caminho de volta a casa. 
	Duda Mendonça foi embora, mas a marca marqueteira continua a impregnar o Brasil da era Lula. O tenente-coronel Marcos Pontes até que é um bom sujeito, simpático, e o menos culpado de tudo, mas o fato é que foi escalado para o papel de café-com-leite, na brincadeira de gente grande montada na Estação Espacial Internacional. O trabalho para valer ficou com os russos e americanos. Para ele, sobrou plantar feijão. Nas poses em conjunto, os outros astronautas olhavam entre condescendentes e atônitos para o brasileiro, que, como modelo que se esfalfa para expor o mais possível sua grife, apontava para a bandeirinha gravada na roupa, quando não desfraldava a bandeira que trazia sempre à mão. O que a missão do astronauta brasileiro teve de mais científico foi a tentativa de plantar a semente do ufanismo no coração dos compatriotas. Lula disse que ao ver Marcos Pontes com a bandeira na mão lembrou de Ayrton Senna. Só faltou a locução, inebriante de amor à pátria, de Galvão Bueno. 
	Mas não faltou a Rede Globo. Os apresentadores dos telejornais foram possuídos da euforia das jornadas épicas. Tal como o desfile das escolas de samba e a Copa do Mundo, o astronauta era da Globo. E assim se sucederam as entrevistas exclusivas, anunciadas entre os sorrisos que, como se sabe, são obrigatórios na emissora, para ajudar os distraídos a se convencer de que a notícia é boa. Numa delas, o titular do Jornal Nacional, William Bonner, aventurou-se pelo delicado caminho da "modificação na forma de enxergar a vida, a mudança na espiritualidade", que "muitos astronautas" contrairiam ao enxergar o planeta lá do alto, "girando devagar", e perguntou se Pontes já fora tocado por algo parecido. Foi uma tentativa de acrescentar à história um toque à Paulo Coelho. Noutra ocasião, a irmã e o irmão do astronauta foram postos em contato com ele para dizer do orgulho da família, inclusive do pai octogenário. A Paulo Coelho, somava-se a tentativa de produzir confissões em voz embargada e, se possível, lágrimas. 
	Marcos Pontes saiu-se de tais armadilhas com dignidade. À questão da espiritualidade, respondeu que andava com a cabeça muito tomada de outras coisas para pensar no assunto. Para seu crédito, não ousou dizer que vira o dedo de Deus a fazer girar o planeta nem que vislumbrara a sombra de um anjo a cruzar a galáxia. Com os irmãos, manteve diálogo sóbrio e econômico. Esteve longe do choro, aquele momento que a Globo preza tanto quanto o sorriso dos apresentadores – momento em que a câmera se fecha sobre o rosto do entrevistado, numa apoteose de jornalismo impregnado de telenovela. 
	A brincadeira de mandar um astronauta ao espaço custou ao Brasil 10 milhões de dólares. Foi uma "carona paga", segundo o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Ennio Candotti. Nos meios científicos, o ufanismo não pegou. "O vôo de Marcos Pontes é na realidade uma grande jogada eleitoreira do governo", escreveu o astrônomo Ronaldo Rogério de Freiras Mourão. O biólogo Fernando Reinach, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, calculou que, com 10 milhões de dólares, o Brasil poderia formar 290 novos doutores, em universidades do país, ou 150, em universidades estrangeiras. "Cento e cinqüenta doutores foram para o espaço", era o título do artigo. Em acréscimo à constatação de que feijão pode crescer no espaço, da mesma forma como num algodão embebido em água, como sabem as crianças, o Brasil colheu dois resultados com a aventura espacial do coronel Pontes. Primeiro, a fama de otário que paga 10 milhões para fazer figuração num foguete. Segundo, o show caipira e fraudulento em que a mera presença de um simpático brasileiro no programa espacial dos outrosera apresentada como grande conquista da pátria. 
Histeria, patetice e rock'n'roll
Roberto Pompeu de Toledo
	A infausta passagem pelo Brasil de dois famosos conjuntos de rock deu ensejo a que os meios de comunicação em geral, a televisão em particular, se dessem com gosto e empenho a uma de suas práticas prediletas – a de incitar a histeria e/ou idiotia da população. "O que você vai sentir quando eles entrarem no palco?", perguntava a repórter, esticando o microfone para um grupo de mocinhas, instantes antes do show do grupo U2. "Vou morrer", disse uma. "Vou surtar", disse outra, tudo entre gritinhos e pulinhos. Era o que a repórter queria ouvir. Morrer, surtar – que delícia! Volta para o estúdio, e os apresentadores do telejornal sorriem, satisfeitos como um político do PSDB depois de esvaziar uma garrafa de Amarone della Valpolicella, corte Sant'Alda, safra 1995, no restaurante Massimo. 
	Dias antes dos shows, como é de rigor, já havia pessoas acampadas nos locais onde aconteceriam. Imagina-se o desconforto desse novo povo das ruas, a dormir mal, comer pior e sofrer os efeitos dramáticos da falta de um banheiro. Alguém dotado de um mínimo de espírito humanitário procuraria encaminhar essas pessoas a um tratamento psicológico. Não os meios de comunicação. Estes se deleitam diante de tais faquires do universo pop. "Há quanto tempo vocês estão aqui?", pergunta-lhes o repórter. "Dois dias? E o outro lá – três? E o outro – cinco?" E é um maravilhamento só. "Vale a pena?" "Vale, qualquer sacrifício vale." E a televisão exalta o exemplo desses jovens que deixam tudo, conforto, estudo, trabalho, em honra dos ídolos. São os nossos muçulmanos, em tempo de hajj, quando vale qualquer sacrifício, inclusive morrer pisoteado, para visitar os lugares do profeta. 
	O líder dos Rolling Stones marcha com passos enérgicos de um lado para outro do palco, move os braços de modo decidido, nunca sorri. Abstraia-se o som infernal e, se aquilo fosse cinema mudo, teríamos a cena de um recruta que se perdeu do regimento e procura desesperadamente o rumo, no meio do campo de batalha. Ou, então, a ação de uma dona-de-casa enraivecida, andando de um lado para outro da casa, a mostrar à faxineira como ela fez tudo errado. Não, ninguém está lá para tapar os ouvidos e brincar de cinema mudo. Na verdade essas pessoas estão lá para algo que vai além de ver ou escutar – adorar. "Agora ele se aproxima do público", conta o repórter. "Vai ser o delírio." É o delírio. Se não fosse a presença das câmeras de TV, talvez não se configurasse delírio tão delirante. A TV e o delírio têm tudo a ver. 
	O líder dos Rolling Stones, na boa tradição do rock, é um nulo em matéria de política. Um "alienado", como se dizia, numa ofensa pior do que xingar a mãe, na época em que ele era jovem. Já Bono, do U2, se entrega à militância em favor de todas as boas causas, tantas que alguém lhe precisaria dizer: "Calma, rapaz! Assim nem Madre Teresa de Calcutá..." Ele considera que o presidente Lula está fazendo muito para diminuir a fome e a pobreza no mundo. Com isso, aumentou em 100% a quantidade de pessoas que partilham desse pensamento – agora ele se soma ao próprio Lula. Ao ir ao encontro do presidente brasileiro, Bono disse que visitar Brasília sempre fora seu sonho. Como? Alguém pode ter o sonho de visitar Brasília? Ou o rapaz está mal, muito mal de sonhos, ou foi insincero. E, se foi insincero nesse ponto, será que também nas causas que defende... 
	Não. Afastemos as suspeitas descabidas. Importante é que ele chamou uma mocinha de Volta Redonda para dançar no palco. "Que sortuda", exclamou a apresentadora do telejornal. A apresentadora aparentemente gostaria de estar no lugar da mocinha. Ou talvez não. Talvez o que ela quisesse era mostrar que também estava no clima. Não cabiam dissensões. A TV empenhava-se em fazer crer que era saudável, bonito e razoável que todos os brasileiros reagissem com efusões desmesuradas, quanto mais desmesuradas melhor, à presença dos ídolos do rock. O marido da mocinha de Volta Redonda disse que não teve ciúme, nem quando ela afagou o queixo do cantor, bem apertadinha, nem quando lhe sapecou um beijinho na boca. "Fã é assim mesmo", disse. A mocinha, naquele momento, era o retrato do ser humano subjugado. Desceria aos infernos com seu ídolo, o seguiria nas batalhas mais espinhosas pela justiça no mundo, juntaria à dele a voz pelo hexa do Brasil e pela glória da irredenta Irlanda. Fã é assim mesmo. 
	Bono, portento de tolerância que é, uniu os símbolos do cristianismo, do judaísmo e do Islã na mesma faixa enrolada à testa. Em outro momento, recitou os nomes dos países da América Latina e, quando falou "Argentina", o público vaiou. A platéia provou que, em matéria de tolerância, não é digna de Bono. Em compensação, os coleguinhas de escola do filho brasileiro de Mick Jagger, o homem dos Rolling Stones, mostraram que estão no clima. Quando Jagger apareceu por lá, causou tumulto. Provou-se que as lições da TV estão sendo bem aproveitadas. A histeria e a parvoíce já se implantaram entre as novas gerações. Com isso está garantida sua continuidade.
Em torno da mesa, com Homero ou Machado
Roberto Pompeu de Toledo
	A bonita história de jovens de escolas públicas que se reúnem em círculos de leitura 
	"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro." Reunido em torno de uma mesa, um grupo de jovens lê o conto O Espelho, de Machado de Assis. Cada um lê um trecho e cede a vez para o jovem ao lado continuar. "Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja." A prosa de Machado vai circulando em volta da mesa. A qualquer momento, a leitura pode ser interrompida para um comentário. Que segunda alma seria essa de que fala o autor? No fim da leitura, trava-se uma discussão em que se tenta chegar a uma síntese das idéias suscitadas pelo texto. 
	Estamos numa das reuniões dos Círculos de Leitura, projeto desenvolvido pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, um centro de pesquisa e debates com sede em São Paulo. Quando se dedicava a pesquisas sobre a violência em Diadema, município da Grande São Paulo, o americano Norman Gall, diretor executivo do instituto, teve reforçada sua convicção de que nenhum trabalho de promoção social, nesse ou em qualquer outro município, chega a algum lugar sem passar de algum modo pela escola pública. Sua mulher, a psicanalista Catalina Pagés, espanhola da Catalunha e radicada no Brasil há quarenta anos, tinha experiência de coordenar leituras com os internos do Manicômio Judiciário. E se ela fizesse o mesmo com os alunos das escolas públicas? Nasceu assim uma bonita e bem-sucedida iniciativa, hoje no seu sétimo ano de existência. 
	Os Círculos de Leitura vêm ao socorro de um dos mais gritantes defeitos da educação brasileira: não ensinar a ler. Ou, mais precisamente: produzir alunos capazes de recitar as palavras contidas numa sentença, mas incapazes de captar-lhes o sentido. Hoje eles se multiplicam por 24 escolas dos bairros mais problemáticos de Diadema e dos vizinhos municípios do ABC paulista. Os jovens de 13 a 17 anos neles reunidos já foram apresentados a clássicos como a Odisséia, de Homero, O Banquete, de Platão, Romeu e Julieta, de Shakespeare, e O Velho e o Mar, de Hemingway. Quando o ex-chefe de governo espanhol Felipe González esteve no Brasil, para um seminário no Instituto Fernand Braudel, reservou uma tarde para ler e debater, com um dos grupos, O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, ele falando espanhol, os meninos e meninas, português. Um grupo recente chegou à conclusão de que o final de Huckleberry Finn, de Mark Twain, era artificial e inconsistente com a evolução experimentadapelo personagem ao longo do livro. Impuseram-se então como tarefa criar desfechos diferentes. 
	Não se imagine que os círculos se constituam na base da boa vontade amadorística. Eles se estruturam em regras e critérios dos quais dependem sua eficácia e durabilidade. Uma tarefa delicada é manter com os professores e diretores das escolas um relacionamento que lhes evite a pecha de invasores da seara alheia. Sob a orientação de Catalina ou de sua parceira Patrícia Guedes trabalham os chamados "educadores", jovens em geral na faixa dos 20 anos que, muitas vezes formados nos próprios círculos, se encarregam de coordenar os diferentes grupos. Os educadores são auxiliados pelos "multiplicadores", escolhidos entre os próprios alunos e que entre outras tarefas têm a de escrever um "diário de bordo" sobre o andamento de seus grupos. Tanto educadores como multiplicadores são remunerados. Como regra, as reuniões se dão nas próprias escolas. Os alunos que mais se destacam são convidados a integrar grupos que se reúnem em São Paulo, coordenados muitas vezes pela própria Catalina. 
	Dado o sucesso que os círculos vêm experimentando, há uma demanda que pressiona por seu crescimento. Prefere-se no entanto ir devagar, para não comprometer a qualidade. Para arcar com os custos, conta-se com o apoio do Instituto Unibanco e da Fundação GE. Além da remuneração de educadores e multiplicadores, há despesas com livros e com o transporte dos jovens que se deslocam a São Paulo. Todos eles são pobres, muitos filhos de migrantes. Catalina enfrenta situações como a de uma mãe que queria levar o filho de volta para o Nordeste, o que significaria abandonar a escola e os Círculos de Leitura. Essa mãe foi chamada para conversar e convencida de que era um pecado truncar o desenvolvimento de um filho que mostrava talento e vontade de aprender. Os Círculos de Leitura têm descoberto, nos meios pobres, meninos e meninas de incomuns qualidades. Por um lado, isso traz o conforto de saber que existem meios de ajudar a evolução de jovens nascidos em ambientes ingratos. Por outro lado, joga luz sobre a tragédia brasileira, quando se dá conta de que os grupos de Catalina e de Norman Gall são apenas um pingo d'água no deserto de desperdício de talentos imposto pela pobreza e pela falta de oportunidades. 
Entre um Machado de Assis e outro
Roberto Pompeu de Toledo
	Contrastes entre o autor e o homem suscitados por uma nova biografia do grande escritor 
	Esse Machado de Assis... Um clássico, segundo Italo Calvino, é uma obra que nunca esgota o que tem a dizer. É o caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro. Mas também uma vida, e especialmente a vida dos autores de clássicos desse porte, nunca esgota o que tem a dizer. O Machado de Assis que ressurge na biografia escrita pelo jornalista Daniel Piza (Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro) nos diz coisas diferentes do Machado das biografias anteriores. Esta é a primeira biografia em que o grande escritor aparece já em plena posse da condição de crítico social a que foi ungido por estudos como os de Roberto Schwarz ou Raimundo Faoro. O Machado de Daniel Piza apresenta-se numa interação com seu tempo muito maior do que na biografia pioneira de Lúcia Miguel Pereira, de 1936, ou na de Raimundo Magalhães Júnior, de 1981. Nas palavras do novo biógrafo, Machado "conseguiu descrever um mundo e, ainda, revelar sua dinâmica subjacente". 
	Esse Machado... Como aqui não é lugar de resenha literária, fiquemos com sugestões menos graves trazidas pela leitura do livro, rico de informações e análises, de Daniel Piza. Esse Machado... Como todo ser humano de boa cepa, ei-lo um poço de contradições. Em certa época, exerceu o cargo de examinador dos textos que se candidatavam à montagem nos teatros. Quer dizer: foi um censor. E a seu lápis não faltou rigor contra as situações "vulgares" e os termos "impróprios". O mesmo Machado, na crítica que escreveu, em 1878, a O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, mostra-se escandalizado com a "concupiscência" das personagens. Eis um autor severo e moralista. No entanto, moralismo por moralismo, a adúltera Luísa de O Primo Basílio acaba condenada por Eça à desgraça e à morte. Já as adúlteras de Machado escapam ilesas – seja a Virgília das Memórias Póstumas, seja a Capitu do Dom Casmurro, a considerar que foi mesmo adúltera. 
	O Machado dos livros prima por um ceticismo vizinho da anarquia. Brás Cubas é um anárquico já a partir da dedicatória de suas memórias, em louvor "ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver". Já o Machado da vida real tinha a vocação da ordem. Foi um exemplar funcionário do Ministério da Agricultura. Um de seus chefes, Francisco Glycério – feito ministro já no período republicano –, pintou-o como um subordinado que se desfazia em mesuras. Era tão amigo das instituições que não escapou à tentação de institucionalizar a literatura, fundando a Academia Brasileira de Letras. Depois, opôs-se ao ingresso nela de tipos como o poeta satírico Emílio de Meneses, conhecido pela língua indomável e pelos hábitos boêmios. Machado dissecou, em seus livros, a sociedade do privilégio e do pistolão que era a sociedade do Segundo Reinado. Ele próprio, no entanto, agarrou-se ao que ela poderia lhe dar. Cultivou relações com os políticos mais importantes do período, e a alguns, como o visconde do Rio Branco, se ligou intimamente. 
	Na obra, o ceticismo visceral levava-o a rir dos regimes políticos. É famosa a passagem do livro Esaú e Jacó em que o dono da Confeitaria do Império tem o azar de mandar pintar uma nova tabuleta para seu estabelecimento justamente às vésperas da proclamação da República. E agora, que fazer? Trocar o nome para Confeitaria da República? Mas... e se sobreviesse nova reviravolta política? Uma idéia foi adotar o nome "Confeitaria do Governo". Mas, nesse caso, as oposições não poderiam vir a apedrejá-la? O jeito foi rebatizar a casa com o nome do proprietário. Virou a "Confeitaria do Custódio". 
	O Machado de Assis pessoa física primou pelo respeito tanto à Monarquia quanto à República. Na mocidade, escreveu versos em louvor de dom Pedro II. Na maturidade, foi condecorado pela princesa Isabel. A proclamação da República chocou-o, ainda mais do jeito como se deu – por um golpe militar que expulsou do país um imperador já velho e doente. Logo, porém, conciliou-se com o regime. Em 1897, compareceu à festa de inauguração do Palácio do Catete como sede da Presidência da República. Em sua crônica seguinte, considerou que o evento deixou "impressão forte e profunda" e caracterizou-se por "raro esplendor". 
	Não se tomem os contrastes entre vida e obra, aqui alinhavados meio ao desalinho, como desrespeitosos ao mestre. Já não fosse que artista algum tem a obrigação de viver de acordo com a obra, considere-se que suas reações são de alguém que nasceu na pobreza, com pele mestiça, e, ao contrário de seus personagens ociosos, teve de batalhar cada centímetro de avanço na vida. Se aqui se registraram os vaivéns entre o homem e o escritor, foi para justificar uma conclusão suscitada pelo livro de Daniel Piza: que prato não seria o Machado de Assis de carne e osso para o escritor Machado de Assis! Que grande personagem de Machado de Assis não é o Machado de Assis de verdade que viveu no Rio de Janeiro, escreveu livros, amou Carolina e não teve filhos: não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
"Se não comparecerdes..."
Roberto Pompeu de Toledo
	Considerações sobre a relação entre o pronome "vós" e as diabruras do Estado brasileiro 
	Uma pessoa humilde, ora pleiteando sua aposentadoria junto ao INSS, em São Paulo, recebeu a seguinte "carta de exigências" da instituição. Os nomes, tanto da pessoa que pleiteia a aposentadoria quanto de quem assina a carta, serão omitidos. O texto vai em sua conturbada e sofrida

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