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Estranhas Entranhas. 
Psicanálise e Depressão na Gravidez 
 
Marcia Zucchi 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2000 
 ii 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ZUCCHI, Marcia Aparecida 
 
“Estranhas Entranhas. Psicanálise e Depressão na 
Gravidez.” 
1. Psicanálise. 2. Feminino. 3. Gestação 4. Maternidade. 5. 
Depressão. 6. Transtornos afetivos na gravidez. 
 
 
 iii 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 À Rita Leucci Zucchi, 
 minha mãe, 
pelo amor da vida inteira 
 
 
 
 
 1
Indice 
 
1. Psicanálise e Depressão na Gravidez. 
Apresentação................................................................................................................2 
 
2. As bordas do caminho. 
Considerações preliminares.........................................................................................16 
Porque uma descrição metapsicológica.......................................................................21 
Método da pesquisa.....................................................................................................24 
 
3. Sobre um dos nomes da tristeza... 
A depressão no campo dos saberes.............................................................................27 
Alguns aspectos epistemológicos da conceptualização da depressão.........................28 
A organização dos saberes sobre o mental em sistemas classificatórios: implicações 
clínicas.........................................................................................................................32 
Os estudos sobre a depressão na gravidez...................................................................35 
Depressão como experiência afetiva...........................................................................38 
 
4. A Metapsicologia da maternidade. 
Proposições freudianas acerca da sexualidade feminina e da maternidade.................42 
 O complexo de Édipo feminino em Freud..................................................................45 
 O estatuto do objeto filho...........................................................................................53 
 
5. À procura da especificidade feminina. 
O debate de 20 e a produção de Helene Deutsch........................................................59 
As divergências com relação a Freud.........................................................................63 
O apoio da função reprodutiva para organização da sexualidade feminina................64 
O afeto deprimido na gravidez....................................................................................68 
Um narcisismo feminino.............................................................................................70 
 
6. A metapsicologia da melancolia como modelo de compreensão do afeto 
deprimido. 
A teoria de Freud........................................................................................................76 
Amor e Melancolia: os domínios do objeto...............................................................82 
Uma concepção metapsicológica da depressão.........................................................87 
 Algumas articulações com a depressão na gravidez..................................................91 
 A dor psíquica, um trabalho de objeto.......................................................................94 
 
7. Estranhas Entranhas. 
Um corpo estranho...................................................................................................102 
Estranhos afetos........................................................................................................108 
Estranhar, uma prática feminina...............................................................................113 
 
8. Considerações finais...........................................................................................119 
 
9. Bibliografia.........................................................................................................123 
 
 
 
 2
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Psicanálise e Depressão na Gravidez 
 
Mulher, como te chamas? – Não sei. 
Quando nasceste, tua origem? – Não sei. 
Por que cavaste um buraco na terra? – Não sei. 
Há quanto tempo estas aqui escondida? – Não sei. 
Por que mordeste o meu anular? - Não sei. 
Sabes, não te faremos mal nenhum. – Não sei. 
De que lado estás? – Não sei. 
É tempo de guerra, tens de escolher. – Não sei. 
Existe ainda a tua aldeia? – Não sei. 
E estas crianças, são tuas? – Sim. 
 
Wislawa Szymborka1 
 
1 SZYMBORKA , “Vietnã”, publicado no Jornal do Brasil de 4 de outubro de 1996. A autora recebeu o Prêmio 
Nobel da Literatura em 1996. 
 3
Apresentação 
 
Ao enunciar o tema deste livro – a depressão na gravidez – tanto no 
ambiente acadêmico como fora dele a reação foi sempre de embaraço, como se aos 
meus interlocutores tal tema desconcertasse. Importante ressaltar que esta reação 
foi muito acentuada nas mulheres. Inicialmente reagiam manifestando um misto de 
espanto e curiosidade, para em seguida demonstrarem uma “familiaridade aliviada”. 
Este alívio parecia se dever à possibilidade de delineamento ou contorno de uma 
experiência vivida, ainda que tal nomeação carecesse de precisão. Chamar de 
depressão o entristecimento que ronda a gravidez, embora soasse estranho, seria 
melhor do que o silêncio que, em geral, permeia esta experiência. Concluí que a 
ligação entre depressão e gravidez despertava, então, algo simultaneamente familiar 
e estranho - Unheimlich2 - a associação dos termos sendo possivel, mas não 
perfeitamente cabível 
 Cabe perguntar se tal estranheza se explicaria exclusivamente pela 
pressão cultural em direção a uma “felicidade na maternidade” como único modo 
possível da mulher viver a gravidez quando desejada. Modo esse que impediria não 
só a expressão, mas o próprio reconhecimento de qualquer sentimento oposto. 
Tomei esta hipótese como um fato pois, ainda que não universalizável, é um dado 
constatável ao nível do senso comum. Uma pesquisa com maior grau de 
detalhamento quanto a esta questão seria pertinente ao campo sociológico, fugindo 
ao âmbito deste livro. Além disso, não seria coerente com as suposições 
psicanalíticas atribuir-se valor de determinação exclusiva a um fator externo à 
subjetividade. 
Permanece, então, a questão: quais seriam os fatores subjetivos 
determinantes desse estranhamento vivenciado, muitas vezes, com o afeto da 
tristeza, podendo chegar até a depressão? Na perspectiva das mulheres que 
engravidam desejando estas gravidezes, a estranheza estaria relacionada ao filho 
ou às proprias mulheres? Se a estas últimas, qual o eixo ou o núcleo da estranheza, 
a “identidade materna” ou a “identidade feminina”? A identificação ao papel materno 
é uma via “normal” do feminino ou sua construção exige algum trabalho específico 
 
2 Das Unheimliche, termo alemão utilizado por Freud no título de sua obra de 1919, referente à experiência de 
estranhamento, onde algo aparece simultanêamente como íntimo e profundamente estranho, por efeito de 
recalque. 
 4
do aparelho psíquico? Qual o estatuto do objeto filho, durante a gravidez? Como 
este é incluído, assimilado, “incorporado”, no eu da gestante? 
O encaminhamentode possíveis respostas a estas questões requer que 
se contextualize, de modo metapsicológico, tanto a maternidade – corolário psíquico 
da gestação desejada -, quanto a depressão – nomeação sob a qual reuniu-se um 
conjunto de experiências subjetivas perpassadas pela tristeza. 
 
A maternidade tem um aspecto enigmático que ora a tem feito participar 
do sacro, ora a torna objeto de atenção científica, além de ser constantemente 
abordada pelas linguagens artísticas. Seja no âmbito do relato jornalístico, na 
poesia, na construção mítica, ou na ciência, a experiência humana da procriação, 
especialmente a vertente da relação entre a mulher e seu filho, é sempre descrita 
como um precipitado extremo de paixões. Alguns exemplos permitem que se o 
constate. O exemplo em epígrafe é um deles. Vivendo uma situação limite, a 
guerra, a mulher em questão perdeu todas suas referências identitárias. Sabe, 
apenas, de sua condição de mãe. Sabe, somente, que aqueles são seus filhos. 
Nada mais. Este é o único saber que a referencia. Há um apontamento, pela autora 
do poema, no sentido da perenidade e força deste vínculo, enquanto ancoradouro 
subjetivo para mulher. 
Roberto Pompeu de Toledo, num Ensaio escrito à revista Veja de 5 de 
agosto de 98, apresenta a confrontação de duas situações extremas, vividas por 
mulheres, onde, em cada uma delas, o leitor é tomado por uma fina e aguda 
sensação de divisão entre o espanto e a amarga ternura. Compara as histórias de 
Christine Malèvre e Roberta Magnani, apresentadas pela imprensa em 98: a 
primeira, autora de uma série de assassinatos a idosos em estado terminal; a 
segunda, uma mulher que após conseguir realizar o sonho de uma gravidez se 
descobre com câncer e abre mão do tratamento e da vida para que a criança nasça. 
Histórias passadas em contextos culturais bastante diferentes, uma numa região 
próxima a Paris, a outra no norte da Itália. Uma, a história de uma enfermeira, a 
outra, a de uma funcionária pública. Ambas guardando uma relação de profunda 
intimidade com o extremo, com o limite, com a lei, mas também com um além dela. 
Ambas protagonizadas por mulheres. 
O estilo do autor, elegante, sensível, contribui muito para evocar os 
sentimentos descritos acima. Há, porém, algo que ultrapassa as questões estilísticas 
 5
e parece advir das realidades descritas. Não que sejam mártires ou heroínas, muito 
ao contrário, as condutas dessas mulheres não deixam de ter um aspecto 
“reacionário”, como lembra o autor, pois decidem, de modo solitário, sobre a vida e a 
morte de outrem, caracterizando um arbítrio, se não um certo “delírio” onipotente. 
Há, porém, algo de semelhante entre essas duas situações, talvez a pungência que 
evocam, a coragem que implicam, certamente o caráter afetivamente extremo que 
portam. 
As duas histórias têm a ver com sofrimento físico e 
morte. Uma delas tem a ver com nascimento. Na soma, cobrem 
os dois extremos da vida, o nascimento e a morte. Não é por 
acaso que são protagonizadas por mulheres.(...)Roberta e 
Christine têm em comum, no entanto, algo de nobremente 
arquetípico. Suas histórias são histórias de mulheres em 
estado visceral, colocadas num extremo, muito delas, de 
paixão e compaixão. São histórias de mulheres. (TOLEDO, 
1998: 162). 
 
 
 
As produções acadêmicas de diferentes áreas retratam, também, a 
pluralidade de aspectos que envolve a mulher e a maternidade. 
Num estudo relativo a representações mitológicas da maternidade, 
CHEVALIER e GHEERBRANT, apontam como as grandes deusas mãe, foram 
também deusas da fertilidade, simbolizando, entretanto, a ambivalência entre a vida 
e a morte: para os gregos, Gaia, Réia, Hera, Deméter, dentre outras; entre os 
egípcios e nas religiões helenísticas, Ísis; para os assírios-babilônicos, Istar; Astart 
para os fenícios e Kali entre os hindus (1988: 580). Os autores discutem as várias 
vertentes da figura simbólica da mãe tanto no cristianismo, como nas religiões 
célticas, e em algumas religiões orientais. No caso do cristianismo, por exemplo, 
afirmam que a simultaneidade da condição da Virgem Maria de mãe e filha de Deus, 
atesta sua dupla vinculação, humana e divina. Além disso, o dogma em torno da 
virgindade de Maria reveste sua maternidade com um duplo contorno: factual 
(histórico) e simbólico. Já nas artes e religiões indianas as deusas são estritamente 
símbolos, porém, também, com aspectos ambivalentes como no caso de Kali com 
sua aparência hedionda, considerada a Mãe Divina e representando, de modo 
concomitante, a criação, a manutenção e a destruição. Ainda nas religiões célticas a 
mulher desempenha simultaneamente o papel de “mensageira Outro Mundo”, e de 
“divindade guerreira” (1988: 581). 
 6
Em diferentes expressões simbólicas, especialmente naquelas oriundas 
das culturas antigas, há uma associação entre a Mãe, a Terra e a Água, claramente 
vinculada aos enigmas em torno das origens e dos destinos, seja do homem, seja do 
cosmo. Na modernidade, no entanto, as associações da identidade feminina aos 
fenômenos “naturais”, especialmente às ocorrências do corpo como a reprodução, 
têm sido duramente criticada pelos estudiosos das questões de gênero3, dado o 
caráter de exclusão da subjetividade da mulher que uma concepção essencialista da 
maternidade pode sugerir. 
É sabido que o sentimento da maternidade é construído na história da 
cultura ocidental (BADINTER, 1981). Mesmo sendo a “chave do estatus feminino em 
cada época histórica, a maternidade não é um fato biológico inalterável cuja 
consideração possa isolar-se das transformações sociais.” (IRIARTE, 1996: 77)4. Os 
significados sociais que a gravidez e a maternidade podem assumir, diferem no 
tempo e espaço, caracterizando, assim, uma especificidade cultural. Mesmo o corpo, 
em sua complexidade biológica e subjetiva - mediatizada pela linguagem -, participa 
de uma realidade historicizável. As manifestações humanas nas diferentes 
expressões semióticas atestam a diversidade das concepções de corpo na história 
da humanidade. 
 
Num interessante estudo antropológico acerca do papel e do valor da 
maternidade na democracia da Grécia antiga, IRIARTE (1996) busca demonstrar, 
através das personagens das tragédias gregas, o papel que a maternidade ocupa 
na sustentação da organização social patrilinear. De algumas das tragédias, a 
autora deduz um desejo masculino de apropriação das funções reprodutivas 
femininas e apoia aí sua tese de que o enaltecimento da reprodução não 
corresponde à valorização da mulher como cidadã. Em suas próprias palavras: 
Do ponto de vista do estatus feminino, a relevância 
que, em nome da paternidade, o discurso político dá à função 
reprodutora, constitui uma faca de dois gumes, pois se a 
intervenção da mulher – concretamente, da mulher-mãe – se 
reconhece explicitamente como imprescindível para definir a 
 
3 Esta não é uma posição hegemônica. Sobre isto ver, por exemplo, Camille PAGLIA (1992) em Personas 
Sexuais. Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson. 
3 Tradução da autora. 
 
 7
empresa política, este reconhecimento implicará um maior 
controle da esposa legítima. (IRIARTE, 1996: 78)5 
 
A autora demonstra que embora a maternidade fosse revestida de caráter 
cívico pois gerava cidadãos para pólis, embora lhe fosse atribuído um estatuto 
heróico tanto pelos sofrimentos implicados no parto (as dores, o risco de morte), 
como pela entrega dos filhos à cidade e à guerra (em Esparta, por exemplo, a 
maternidade era equivalente à experiência bélica), estas representações tão 
valorativas da maternidade não garantiam o direito civil das mulheres em relação a 
seus filhos. Esteanseio feminino era vivido como ameaçador à ordem social e 
política na democracia patriarcal da Grécia antiga. Poder-se-ia considerar que frente 
à potência natural da mulher, expressa em sua capacidade geradora, a organização 
social (patrilinear) frespondia retirando-lhe o poder no campo da cidadania. 
 
Uma outra autora, Silvia FINZI (1996), em seu artigo sobre os mitos de 
origem e suas relações com a construção da identidade feminina, aponta que o 
caráter enigmático de potência geradora é ponto de enlace dos grandes saberes da 
antigüidade. Segundo Finzi, estas produções discursivas se orientam no sentido de 
desvendar e exorcizar poder tão ameaçador. Sem consegui-lo, porém, “como 
demonstra a persistência de um imaginário monstruoso acerca do corpo e das 
funções femininas e a reiteração de uma interrogação insistente”6 ( FINZI, 1996: 
129). A autora supõe a existência de figuras primordiais que participam tanto do 
imaginário da cultura como do imaginário individual. A mãe arcaica seria uma delas. 
Imagem pré-edípica, fantasma de origem que é suposto preceder a experiência 
individual e humana. Suas representações permanecem enigmáticas tanto nas 
expressões individuais como culturais por remeter a algo que escapa à possibilidade 
de transmissão pela linguagem, a linearidade do tempo das narrativas impedindo 
que se as circunscreva. 
 Partindo da constatação freudiana de que as imagens gozam de 
privilégios em relação às palavras quanto à censura, Finzi considera que a 
estatuária pode bem representar a força desta figura da mãe arcaica. Analisa, então, 
as Matres Matutae, um conjunto de estátuas encontradas em Santa María Capua 
 
5 Tradução da autora. 
6 Tradução da autora. 
 8
Vetere, região que foi ponto de ligação entre a antiga Etrúria e a Magna Grécia. Tais 
estátuas, provavelmente construídas entre os séculos VII e IIa.c., representam a 
maternidade em seus vários aspectos. As mais antigas apresentam uma imponência 
fria e distante, aparentando algo de imemorial, atemporal: suas vestimentas são 
apenas esboçadas, o material é aspero, faltam expressões no rosto e gestos; os 
filhos são pequenos e numerosos, também só esboçados. A autora, bem como os 
arqueólogos que a elas se dedicam, as descrevem como tendendo ao inorgânico, 
contendo vida mas sem estarem vivas. Estão esculpidas como se estivessem num 
trono real, e o trono se confunde com seus corpos. Nas palavras da autora, 
“nenhuma mulher se identifica a elas porque representam a alteridade nelas 
mesmas, o radicalmente outro.”7 (FINZI, 1996:142). Arqueólogos consideram que 
estas figuras representam as grandes deusas da fecundidade, amalgamando em si 
o corpo e a terra, a vida e a morte. Por outro lado, as estátuas construídas mais 
recentemente parecem se humanizar. São menores e apresentam gestos e 
expressões plenos de relação e afetividade, como na amamentação. A mulher 
moderna já encontra elementos de identificação com estas imagens. A autora 
ressalta, porém, que estas últimas perdem um pouco de seu caráter enigmático, em 
relação às anteriores. 
 O conjunto destas estátuas parece visar um complexo de representações 
da maternidade, indicando desde o aspecto impessoal e atemporal desta, enquanto 
origem de vida, até sua expressão singularizada na relação entre uma mãe e seu 
filho. Segundo Finzi, a importância da análise da maternidade representada nos 
mitos, é destacar a questão da origem como vinculada à alteridade. 
 
A maioria dos estudos atuais, que enfatizam o caráter histórico da 
maternidade e sua procedência como resultado de operações simbólicas, visa 
desconstruir ideais identitários da mulher apoiados na ilusão de uma singularidade 
sustentada pela experiência da maternidade. Na fuga de uma naturalização 
opressiva da maternidade e do feminino, corre-se, às vezes, o risco da 
ideologização do caráter cultural de ambas. 
 
 
7 Tradução da autora. 
 9
A posição que se pretende manter neste livro é a de sustentar a tensão 
entre os aspectos biológicos e subjetivos da maternidade. Na apresentação que faz 
a Figuras de mãe, coletânea de textos antropológicos, sociológicos e psicanalíticos 
referentes à maternidade, Silvia TUBERT descreve a concepção de maternidade 
sob a qual é construída aquela coletânea e que se aproxima bastante da que se 
quer como fundamento deste livro: 
(...) se é reducionista subsumir a feminilidade à 
categoria da maternidade, também existe a possibilidade da 
redução oposta, que supõe a separação simples e irredutível 
de ambas as categorias. O feminino e o maternal mantêm 
relações lógicas complexas: nem coincidem totalmente nem 
são completamente dissociáveis. 
Se a maternidade não se reduz à transmissão de um 
patrimonio genético senão que se situa no plano da 
transmissão simbólica da cultura, tampouco se pode negar que 
o processo biológico da gestação se realiza segundo uma 
ordem que escapa à vontade da mulher em cujo corpo tem 
lugar. 
Se falamos de uma maternidade assumida pela 
mulher como sujeito desejante, não podemos ignorar que a 
gestação requer a aceitação de uma posição de passividade 
frente ao desenvolvimento embrionário e fetal. O exercício da 
maternidade supõe a articulação do corpo na cultura. A 
autonomia do sujeito feminino se acha limitada em sua 
singularidade quando seu corpo passa a ser lugar de origem de 
outro ser humano; o domínio sobre o próprio corpo – a 
maternidade voluntariamente escolhida -, se acha por sua vez 
limitado por ter sido aquele construído como corpo significante 
pelas práticas e discursos dominantes na sociedade, através 
da linguagem e dos vínculos sociais.” 8(1996: 11) 
 
 considera-se que as pressões modeladoras da maternidade, tanto 
biológicas quanto culturais, sofrerão as marcas distintivas do desejo inconsciente, as 
quais vão caracterizar a particularidade das experiências subjetivas de cada mulher. 
Pretende-se, no entanto, manter no horizonte um fio de indecidibilidade, onde essas 
realidades se tocam. 
 
Camille PAGLIA (1992) num belíssimo ensaio denominado Sexo e 
Violência ou Natureza e Arte, analisa, dentre outras coisas, o extremo 
desenvolvimento da cultura ocidental, o qual considera o resultado da relação 
 
8 Tradução da autora. 
 10 
agonística entre o masculino e o feminino, e, ali, ao referir-se à relação da mulher 
com seu corpo afirma: 
O corpo feminino é uma máquima ctônica, 
indiferente ao espírito que o habita. (...) O corpo da mulher é 
um mar sobre o qual atua o movimento lunar das ondas. 
Indolentes e adormecidos, seus tecidos adiposos encharcam-
se de água, e depois se enxugam de repente na maré alta 
hormonal. O edema é nossa recaída de mamífero no vegetal. A 
gravidez demonstra o caráter determinista da sexualidade da 
mulher. Toda mulher grávida tem o corpo e o ego tomados por 
uma força ctônica além de seu controle. (1992: 21-22) 
 
 Alguns reparos são cabíveis nesta concepção: a máquina ctônica9 sofre 
sim e também provoca efeitos no espírito que a habita, não lhe sendo, portanto, 
indiferente. Entretanto, na concepção do feminino que a autora apresenta, a 
valorização da mulher na cultura não se faz às expensas de sua natureza ctônica, 
mas numa dialética muito mais complexa entre masculino e feminino cujo resultado 
é “a distorção da realidade”, distorção esta promovida pela ótica feminina dos fatos. 
A realidade “deve ser distorcida; quer dizer, corrigida pela imaginação”, segundo 
PAGLIA (1992: 23). Tal concepção se aproxima da concepção psicanalítica do 
feminino que norteia este trabalho. A gravidez, parece ser um ponto de especial 
exemplificação desteentrincamento, na subjetividade da gestante, entre o ctônico e 
o cultural. 
 
O objeto cuja pesquisa resultou neste livro é a ocorrência de afeto 
deprimido em relação à gravidez, que por rigor conceitual e metodológico será 
abordado dentro dos limites do campo psicanálitico. A posição aqui adotada está 
em consonância com a concepção de que os efeitos subjetivos da gravidez se 
inscrevem no trajeto entre os valores imaginários e simbólicos que o filho pode 
assumir para a mulher. Acredita-se, no entanto, que o real do corpo, 
especificamente na gestação, seja um forte propulsor de trabalho psíquico em 
relação à reconfiguração narcísica que a passagem à condição de mãe exige da 
mulher, especialmente considerando-se que pode estar em jogo, alí, um possível 
 
9 O têrmo ctônico é relativo às entranhas da terra . (PAGLIA,1992:17) 
 11 
gozo feminino na maternidade, gozo este que pode ser experimentado como 
“estranho”.10 
 
 Em seu conjunto, este livro se constitui do modo como se descreverá a 
seguir. 
 
O 2º capítulo trata de questões metodológicas gerais envolvidas no 
trabalho de pesquisa, especialmente psicanalítica. 
 Discute-se o reducionismo necessário a toda abordagem teórica, 
especialmente em se tratando de objetos complexos como é o caso da depressão 
na gravidez. Neste segundo capítulo discute-se tanto os esforços de Freud para 
manter sua obra no campo da cientificidade, quanto os limites deste 
empreendimento. 
 A produção de testemunhas fidedignas que atestem a veracidade da 
realidade abordada – as manifestações do inconsciente – não se dá, na psicanálise, 
de um modo que satisfaça os critérios de cientificidade. Entretanto, sua produção 
conceitual, organizada num corpo metapsicológico, é o instrumento de abordagem 
do real, que se dá no exercício clínico. Tal instrumento , quando renovado 
criticamente, permite uma maior eficácia da psicanálise frente às novas realidade 
clínicas. Além disso, por maiores que sejam as diferenças entre as escolas 
psicanalíticas, a metapsicologia enquanto organização conceitual própria da(s) 
psicanálise(s), mantém a possibilidade de distinção entre este campo de saber e os 
outros, possibilitando sua participação nas produções transdisciplinares. 
 
Através da revisão da literatura psicanalítica em torno dos diferentes 
temas que envolvem o objeto em pauta, busca-se descrever a depressão na 
gravidez em termos metapsicológicos, isto é: em termos de operações subjetivas, ou 
níveis de trabalho do aparelho psíquico, implicados no quadro clínico em questão. 
 
A partir de uma questão proveniente da clínica – como uma gravidez 
desejada pode ser vivida com afetos depressivos? – analisa- se, no 3º capítulo, a 
 
10 Imaginário, Real e Simbólico, são categorias destacadas por Lacan quanto à estruturação do aparato psíquico. 
Tais categorias definem os planos de operação da subjetividade e seus limites, representados por outra categoria, 
 12 
propriedade do têrmo depressão para descrição deste evento clínico. Com este fim, 
avalia-se seu uso em alguns contextos teóricos subdivididos em duas grandes áreas 
de abordagem dos fenômenos mentais: as que tem como eixo uma concepção 
orgânica do mental e as que centralizam suas conceituações no aspecto simbólico 
do aparato mental. Embora esta classificação possa correr o risco da imprecisão 
dada sua generalidade, ela parece útil para destacar algumas questões 
epistemológicas que envolvem o problema da depressão do ponto de vista 
conceitual, conforme o contexto de uso. Neste capítulo levanta-se, ainda, as 
principais diferenças entre os estudos epidemiológicos e os psicanalíticos quanto a 
depressão na gravidez. 
 
Passa-se, então, especificamente, ao campo psicanalítico. O 4º capítulo 
trata da metapsicologia da maternidade. Busca-se, ali, apresentar como a 
maternidade se localiza no contexto teórico freudiano. Percorre-se os 
desenvolvimentos da teoria de Freud quanto à femininilidade, enfocando as 
particularidades do complexo de Édipo feminino, em especial as retificações 
posteriores a 1920. Destaca-se o fato da maternidade inscrever-se, na teoria 
freudiana, no plano da identidade sexual, isto é, do “tornar-se mulher”, orientada 
pela lógica fálica. Procura-se salientar, também, os estatutos que assume o filho 
enquanto objeto relativo à subjetividade da mãe. 
 
Como a teoria freudiana da sexualidade psíquica se construiu numa certa 
ênfase de sua modalidade masculina, um efeito imediato, no campo teórico então 
nascente, foi a busca da especificidade da sexualidade feminina. A década de 20 
caracterizou-se pela profusão de produções sobre este tema. No 5o capítulo, toma-
se as proposições de Helene Deutsch, autora deste período, que se dedicou 
intensamente ao estudo da sexualidade feminina. Outros autores como Karen 
Horney, Jones, Brunswick, Lampl de Groot, por exemplo, envolveram-se também 
com esta temática. Porém, a inclusão de Deutsch nesta pesquisa se deve à ênfase 
que a autora dá a aspectos como o narcisismo e a maternidade na subjetividade 
feminina. Além disso, a revisão bibliográfica preliminar nos levou a esta autora como 
primeira referência à depressão na gravidez interpretada psicanaliticamente. Foi em 
 
a de Gozo. O valor de operadores destes conceitos no escopo deste trabalho se escalrecerá em capítulos 
 13 
sua obra que se encontrou um aprofundamento de algumas indicações freudianas 
quanto ao lugar de ideal de eu que o filho pode ocupar para subjetividade da mãe. 
 
No 6º capítulo discute-se a teoria metapsicológica de Freud, sobre a 
melancolia, buscando-se extrair dela os elementos conceituais para compreensão 
do afeto deprimido na gravidez. Parte-se do Rascunho G de 1895, passa-se por Luto 
e Melancolia de 1915, indo até Inibição, Sintoma e Ansiedade [Angústia] de 1926, 
destacando-se as permanências e transformações da teoria freudiana sobre o tema. 
Alguns aspectos da teoria da melancolia são ressaltados, o primeiro deles é a 
questão da chamada “identificação narcísica ao objeto perdido”, onde se busca 
compreender como a relação entre o eu e o objeto pode ser de ordem a inibir a 
diversidade dos comparecimentos simbólicos. 
O segundo aspecto ressaltado é a dinâmica dos ideais como origem de 
estados melancólicos e depressivos. Parte-se da teorização sobre a melancolia, 
proposta por M.C. Lambotte, autora de orientação lacaniana, onde se destacam as 
proposições quanto ao estádio do espelho na abordagem da melancolia. A autora 
extrai destas proposições uma particularidade no caso dos melancólicos, a 
identificação do sujeito ao objeto, porém na sua vertente de resto, ficando o ideal de 
eu deslocado para os objetos. A ausência de um investimento materno desejante 
sobre a imagem do filho, responderia por esta identificação. 
 A partir destes elementos teóricos busca-se estabelecer algumas 
relações com o que ocorre entre a gestante e seu bebê, retomando a indicação de 
Deutsch quanto ao filho ocupar o lugar de ideal de eu da mãe. 
 
Neste ponto da pesquisa, a questão do objeto toma um valor pregnante. 
Considerando-se a precisão conceitual que Lacan oferece à questão do objeto, 
apresenta-se alguns tópicos de suas proposições. 
Passa-se, então para ao terceiro aspecto ressaltado, o problema da dor 
psíquica envolvida nos processos de luto, patológico ou não. A questão 
metapsicológica da dor intrigou Freud durante todo seu trabalho com as diferentes 
formas de luto. A revisão bibliográfica, mais uma vez conduziu a umautor que 
dedica um trabalho exclusivo a esta problemática, J.D.Nasio, cuja produção também 
 
subsequentes. 
 14 
é de orientação lacaniana. Nasio tratará da dor como objeto pulsional, não só na 
perspectiva de um masoquismo perverso, mas, especialmente, como indicador de 
uma quebra fantasística que deixa o eu convulsionado pela desorientação pulsional, 
indicador esse que se situa no limite entre o corpo e o psiquismo. 
 
Finalizando, no 7º capítulo, parte-se especialmente da experiência 
corporal da gestação para desenvolver o sentido de “estranho” que o filho pode 
assumir para subjetividade materna. Toma-se as relações estabelecidas por Freud 
na segunda tópica entre ego e corpo para dali deduzir a faceta de estranheza que o 
filho como objeto pode assumir para o eu materno. 
 O estranhamento é tratado em consonância com a abordagem freudiana 
do tema, apresentada em seu artigo de 1919, O Estranho. Quanto à questão do 
objeto, ela é aqui tratada conforme as proposições freudianas do Projeto..., 
especialmente no que se refere às diferentes formas de trabalho que o objeto 
promove no aparelho psíquico para seu reconhecimento (juízos). Aproxima-se, 
então, este trabalho àquele exigido à subjetividade materna para o reconhecimento 
do filho enquanto objeto simultaneamento idêntico e estranho ao eu materno. 
 
Propõe-se ao final que o “estranhamento” seria uma prática peculiar ao 
feminino. A concepção de feminino formulada por Lacan parece oferecer elementos 
para essa proposição uma vez que ela contempla o ultrapassamento da lógica e do 
gozo fálicos. A dor que algumas experiências de estranhamento podem provocar 
estaria ligada à pressão por inscrição desse gozo na ordem fálica, ou no campo do 
sentido. 
 
No 8º capítulo é apresentado um breve mapeamento do caminho 
percorrido, ressaltando-se tanto os pontos de corte, como os aspectos de ligação 
que definem o território abordado por esta pesquisa. 
 
 
 15 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
As bordas do caminho 
 
 
A porta da verdade estava aberta, 
mas só deixava passar 
meia pessoa de cada vez. 
 
Assim não era possível atingir toda a verdade, 
porque a meia pessoa que entrava 
só trazia o perfil de meia verdade. 
E sua segunda metade 
voltava igualmente com meio perfil. 
E os meios perfis não coincidiam. 
 
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. 
Chegaram ao lugar luminoso 
onde a verdade esplendia seus fogos. 
Era dividida em metades 
diferentes uma da outra. 
 
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. 
Nenhuma das duas era totalmente bela. 
E carecia optar. Cada um optou conforme 
seu capricho, sua ilusão, sua miopia. 
 
 Carlos Drummond de Andrade1
 
1C. D. ANDRADE, (1984: 41-42). “Verdade”. In: Corpo. 
 16 
 
Considerações preliminares 
 
 
A explicitação dos referenciais norteadores de qualquer pesquisa 
demarcam a posição do pesquisador no tocante às possibilidades de produção do 
conhecimento ou de abordagem do real. Isto implica não só o recorte do objeto, 
como a forma escolhida para essa abordagem (método em sua vertente de técnica) 
e, ainda, a finalidade deste conhecimento ou produção. Se, de um lado, uma 
determinada concepção de conhecimento ou de ciência engendra concepções 
específicas de objeto, certos objetos empurram o pesquisador à utilização de eixos 
de compreensão diversos. De qualquer modo, sejam quais forem os referenciais 
adotados, sempre se procederá a uma forma de redução2 ( ATLAN, 1991). Este é o 
caso na presente pesquisa. Falar em depressão na gravidez é falar de um objeto 
híbrido3 (LATOUR, 1994), impreciso em seus contornos e paralelamente complexo 
em suas articulações. Conforme indica MORIN: 
 Pode dizer-se que o que é complexo releva de uma parte 
do mundo empírico, da incerteza, da incapacidade de estar 
seguro de tudo, de formular uma lei, de conceber uma ordem 
absoluta. Releva de outra parte algo de lógico, quer dizer da 
incapacidade de evitar contradições...a complexidade é 
diferente da completude. Julga-se muitas vezes que os 
defensores da complexidade pretendem ter visões completas 
das coisas. Por que o pensariam eles? Porque é verdade que 
pensamos que não se pode isolar os objetos uns dos outros. 
No limite tudo é solidário. Se tendes o sentido da complexidade 
tendes o sentido da solidariedade. Além disso, tendes o sentido 
do caráter multidimensional de qualquer realidade. (1991: 82-
83). 
 
 
 Em se tratando de um estudo acerca de processos subjetivos, mesmo 
que se os compreenda como efeitos complexos das articulações entre linguagem, 
 
2 Atlan se refere ao valor pragmático do reducionismo, de circunscrever o domínio de legitimidade da ciência, 
indicando os limites do procedimento científico, ”o qual só pode progredir obrigando-se a ser reducionista, 
‘jogando o jogo’ reducionista, porém, ‘crer nele’ certamente testemunharia uma grande ingenuidade” 
(ATLAN, op. cit. : 83). 
3Híbrido esta sendo utilizado aqui, no sentido atribuído por Latour: relativo simultaneamente à natureza e à 
cultura. 
 
 17 
biologia e relações sociais, será necessária alguma sorte de redução que permita 
abordá-los. Nesta pesquisa tal redução se fez a partir do referencial psicanalítico. 
 
 As origens da psicanálise estão assentadas no empirismo. O projeto 
freudiano de construção de uma psicologia profunda foi marcado, durante toda sua 
produção, pelo anseio de incluí-lo no campo das ciências. É interessante notar como 
as marcas do método de John Stuart Mill , filósofo da ciência empírica do século 
XIX, aparecem nos trabalhos psicanalíticos iniciais de Freud (este último foi, 
inclusive, tradutor das obras daquele, para língua alemã), onde busca respeitar as 
principais regras de uma produção empírica, os métodos da “concordância”, da 
“diferença”, “da variação concomitante” e dos “resíduos”, propostos por Mill, 
conforme descrito por CASTIEL (1996) num capítulo de sua obra Moléculas, 
Molestias e Metáforas... denominado “Freud e Mill: a histeria e a empiria”. 
Pode-se considerar ainda a adesão freudiana ao empirismo em função da 
prevalência dada à clínica como fundamento epistemológico da teoria. Em um de 
seus últimos trabalhos – Esboço de Psicanálise -, escrito em 1938, FREUD afirma 
num curto prefácio: 
Os ensinamentos da psicanálise baseiam-se em um 
número incalculável de observações e experiências, somente 
alguém que tenha repetido estas observações em si próprio e 
em outras pessoas acha-se em posição de chegar a um 
julgamento próprio sobre ela. (1975: 168). 
 
 
Todavia, a concepção freudiana de ciência foi bem além do positivismo. 
Num dos principais textos metapsicológicos, Os instintos e suas vicissitudes, 
tratando da importância do conceito de pulsão para organização do aparato teórico 
da psicanálise, Freud (1974c) dá absoluta prioridade à formulação do conceito como 
instrumento de abordagem do real, e portanto, como base da construção teórica 
(BOURGUIGNON, 1991). Em suas próprias palavras: 
O verdadeiro início da atividade científica consiste 
antes na descrição dos fenômenos, passando então a seu 
agrupamento, sua classificação e sua correlação. Mesmo na 
fase de descrição não é possível evitar que se apliquem certas 
idéias abstratas ao material manipulado (...) Tais idéias - que 
depois se tornarão os conceitos básicos da ciência- são ainda 
mais indispensáveis à medida que o material se torna mais 
elaborado. Devem, de início, possuir necessáriamente certo 
grau de indefinição; (...) Enquanto permanecem nessa 
 18condição, chegamos a uma compreensão acerca de seu 
significado por meio de repetidas referências ao material de 
observação do qual parecem ter provindo, mas ao qual de fato 
foram impostas. Assim, rigorosamente falando, elas são da 
natureza das convenções – embora tudo dependa de não 
serem arbitrariamente escolhidas mas determinadas por terem 
relações significativas com o material empírico, relações que 
parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e 
determiná-las claramente. (1974c: 137). 
 
 
Este texto parece evidenciar a relação dinâmica entre observação e 
conceituação, que permeia toda obra freudiana. A construção do saber psicanalítico 
se faz num processo dialético entre a clínica (que não é, exatamente, fonte de 
observação empírica no sentido sensorial , porém é empírica no sentido de 
experienciada) e a teorização, cuja finalidade é sempre o retorno à clínica, e assim 
sucessivamente... Conforme indica FREUD em seu artigo de 1926, A questão da 
Análise Leiga: 
 Na psicanálise tem existido desde o início um laço 
inseparável entre cura e pesquisa. O conhecimento trouxe êxito 
terapêutico. Era impossível tratar um paciente sem aprender 
algo de novo; foi impossível conseguir nova percepção sem 
perceber seus resultados benéficos. Nosso método analítico é 
o único em que essa preciosa conjunção é assegurada. 
(1976m,: 291). 
 
L. CHERTOK, e I. STENGERS (1990), conjugando suas respectivas 
experiências de psicanalista e epistemóloga, realizaram um interessante estudo 
acerca do projeto freudiano de cientificidade. Acompanham as origens da 
psicanálise na hipnose, e o processo de sua construção como campo de saber em 
relação às ciências modernas, a partir do abandono da técnica sugestiva pela da 
associação livre e pelo processo elaborativo. Aí demonstram o meticuloso trabalho 
de Freud para garantir condições de produção de um testemunho fidedigno que 
pudesse fazer da psicanálise uma ciência de pleno direito. Comparam, então, a 
evolução da psicanálise à da química, comparação indicada pelo próprio FREUD em 
Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica (1976 a), onde apontam a passagem 
realizada por Lavoisier estabelecendo o estatuto da química como técnica 
experimental ou ciência operatória (em oposição a seus antecessores que lhe 
reservariam o estatuto de arte da experiência). A proposição de criação dos fatos 
químicos e dos protocolos de abordagem destes, visava garantir seu 
 19 
reconhecimento e sua reprodutibilidade por qualquer um que dispusesse destes 
instrumentos. 
Chertok e Stengers julgam que, de modo semelhante, Freud buscou 
estabelecer a psicanálise como um campo de produção científica ao substituir a 
hipnose pelo trabalho de elaboração. A cena analítica viria a se transformar numa 
espécie de laboratório onde o objeto de experimentação seria a neurose de 
transferência. 
Tal como o químico do século XIX “criava seu 
objeto”, em vez de tomá-lo no mundo natural, não mais 
estudando as matérias-primas não purificadas que o artesão 
transformava, o analista “[instaurava] um estado que tem todos 
os aspectos de uma doença artificial”. E essa doença, na 
medida em que tinha por arena única o “campo circunscrito” da 
cena analítica, tornava-se acessível a suas intervenções 
.(CHERTOK e STENGERS, 1990: 76). 
 
 
 Os autores concluem que o objetivo freudiano de fazer da psicanálise 
uma técnica científica de abordagem do inconsciente onde a verdade e a sugestão 
fossem claramente distingüíveis, não se produziu. Afirmam que os textos finais da 
obra de Freud atestam o “fracasso da experiência” de produzir testemunhas 
fidedignas pela cura dos pacientes através da clínica psicanalítica (única a lhes 
permitir um verdadeiro acesso a sua verdade em oposição às técnicas sugestivas). 
Impossibilidade que se revelou freqüente em função das resistências e da 
compulsão à repetição, que impediam os sujeitos de reconhecer e aceitar sua 
verdade inconsciente. Consideram, entretanto, que a posição freudiana frente a este 
“fracasso” foi de valorizar a teoria (o conceito) por esta ser capaz de explicar os 
fracassos da técnica. Os referidos autores pretendem destacar a insistência do 
passo freudiano na busca do caráter científico da experiência analítica. Cabe 
ressaltar que a posição destes autores não é de elogio ao cientificismo, ao contrário, 
pretendem assinalar como o desprezo dos “testemunhos falsos” (como os 
produzidos pela hipnose, por exemplo) pode ser empobrecedor do processo de 
conhecimento. Assinalam que tais testemunhos e fracassos experimentais deveriam, 
na perplexidade que evocam, convocar os cientistas a uma prática da 
transdisciplinariedade. 
 
 20 
Ainda em outro trabalho, Quem Tem Medo da Ciência..., STENGERS 
(1990), referindo-se à esta mesma temática, afirma que o que se põe aos 
psicanalistas como questão é “quais são as práticas a serem produzidas, inventadas 
para trabalhar juntos e transformar um fenômeno em ator de discussão, sem o ideal 
judiciário da testemunha fidedigna que concluirá a controvérsia, que dirá quem tem 
razão e quem está errado.”(1990: 139). Indica, ainda, que o fato dos psicanalistas 
lidarem com “seres que estão interessados na produção de saber operado a seu 
sujeito”(1990: 140), aponta para necessidade de se ultrapassar a diferença entre 
fato e artefato4, uma vez que é inevitável (e não totalmente controlável) a 
participação do analista na produção dos efeitos da análise. Na neurose de 
transferência, a natureza do fato clínico é a de um artefato enquanto criação de uma 
certa realidade - a que implica analista e analisando -, realidade esta que mantêm 
estreitas relações com os fatos ou realidades psíquicas do sujeito em análise. 
STENGERS reafirma sua posição epistemológica de que fazer ciência é 
um processo coletivo, e parece indicar como caminho para a psicanálise a 
ampliação do trabalho conjunto entre escolas e entre campos de saber, “produzindo 
intrigas cada vez mais sutis (...) e ficções cada vez mais pertinentes, cada vez mais 
exigentes quanto aos múltiplos sentidos de seu conhecimento ‘patético’”(1990 : 141). 
 
É na perspectiva proposta por Stengers que este trabalho foi concebido. 
Buscar descrever um dado clínico – o surgimento de afetos de tristeza relacionados 
à gravidez – em diferentes perspectivas da teoria psicanalítica, parece ser um modo 
não só de ampliar as possibilidades de compreensão deste dado, como, também, de 
experimentar-se os limites do aparato conceitual. 
Considera-se, em princípio, que as realidades humanas, individuais e 
sociais, só são compreendidas e/ou explicadas através de recortes teóricos de 
alcance específico e limitado, abarcando diferentes graus de complexidade do real, 
sem que haja diferença de valor entre eles. A pertinência das construções teóricas 
pode ser verificada na coerência interna de suas premissas e categorias - na lógica 
de sua racionalidade5 -, no “interesse”6 que geram entre os pares, bem como na 
eficácia da praxis7 que produz. 
 
4 O artefato é considerado um testemunho extorquido pelo experimentador, portanto cientificamente inválido. 
5 Racionalidade é, segundo MORIN, “o estabelecimento de uma adequação entre uma coerência lógica 
(descrita, explicativa) e uma realidade empírica.”(1990: 121). 
 21 
 
Porque uma descrição metapsicológica. 
 
 
A razão de estabelecer-se que o produto desta pesquisa deveria incluir-se 
no campo da metapsicologia, se deve ao fato de considerar-se que esta define o 
campo onde se organizam os conceitos e as experiências relativas à psicanálise. 
A idéia de que o que Freud produzia era uma metapsicologia (têrmo 
formulado por equivalência a metafísica), estáligada ao campo onde emergem suas 
pesquisas. Voltado para sintomas mentais de origem enigmática, é além da 
consciência que Freud vai buscar a razão destes. Em sua correspondência a Fliess 
(1977) , são vários os momentos em que se questiona, através de seu interlocutor, 
quanto à propriedade deste termo (metapsicologia) para suas construções teóricas. 
No período em torno de 1914/15, Freud realiza um trabalho de sistematização de 
suas proposição referentes ao aparelho psíquico, o qual nomeia explicitamente 
Metapsicologia. Embora declare compor-se de um conjunto de 12 textos, parece ter 
escrito somente 5: Os instintos [pulsões] e suas vicissitudes, Repressão [recalque], 
O inconsciente, Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos e Luto e 
Melancolia. Entretanto, há um certo consenso no campo quanto à pertinência da 
inclusão de outros textos neste conjunto, tais como O Projeto para uma psicologia 
científica, Capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos, Formulações sobre os dois 
princípios do funcionamento mental, O Narcisismo. Uma introdução e O Ego e O Id. 
Como se pode perceber, são considerados metapsicológicos os trabalhos de 
organização conceitual. 
Em 1915, quando escreve sua Metapsicologia, Freud adverte aos seus 
leitores que as descrições metapsicológicas devem envolver três modos de 
descrição dos fenômenos. Uma descrição dinâmica explicando os conflitos 
subjacentes a eles, uma descrição econômica apresentando as vicissitudes das 
forças ou quantidades de excitações que respondem pela formação de tal fenômeno 
e, finalmente, uma descrição topográfica, isto é, a localização das estruturas 
psíquicas envolvidas na produção do fenômeno em questão. 
 
6 Uma das hipóteses desenvolvidas por STENGERS (1992) em La Volonté de Faire Science. À propos de la 
Psychanalyse, é de que o “interesse” que desperta uma proposição científica é condição para que ela possa ser 
considerada “ verdadeira”, no sentido de organizar forças e meios de prova em torno desta proposição. 
7 O termo praxis é utilizado aqui, no sentido dado por Marx, de união entre teoria e prática. A praxis humana 
constituindo o fundamento de toda possível teorização ( FERRATER-MORA, 1986: 2661). 
 22 
Não será descabido dar uma denominação especial 
a essa maneira global de considerar nosso tema, pois ela é a 
consumação [vollendung] da pesquisa psicanalítica. Proponho 
que, quando tivermos conseguido descrever um processo 
psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, 
passemos a nos referir a isso como uma apresentação 
metapsicológica. (FREUD, 1974e: 208).8 
 
 
 O termo ao qual se referiu Freud em 1915, para designar o que a 
descrição nestes tres níveis produz foi – vollendung – “acabamento”. A descrição 
metapsicológica produziria, então, o acabamento, a conclusão conceitual explicativa 
sobre um fenômeno psíquico assim abordado. Entretanto, a teorização psicanalítica 
quando referida à prática clínica, se mostra freqüentemente arredia a estes 
acabamentos. Não só pelas dificuldades de reprodução experimental dos 
fenômenos inconscientes, nem também pela extrema implicação do observador nos 
fenômenos observados, mas pela própria riqueza e variabilidade das produções do 
inconsciente. 
Parece claro que o projeto de organização do campo teórico da 
psicanálise nos termos de uma metapsicologia responde, dentre outras coisas, aos 
anseios freudianos de cientificidade. Conforme esclarece LE GAUFEY: 
Em sua preocupação de tornar a psicanálise 
reconhecida como ciência, Freud por vezes promoveu o ideal 
de uma apresentação conceitual “completa” da psicanálise; e 
só seu respeito pelas imposições inerentes ao objeto de sua 
démarche o afastou constantemente deste ideal.(...) O projeto 
metapsicológico talvez seja o melhor atestado desta tensão 
presente na obra de Freud entre um acabamento conceitual, 
que permitiria à psicanálise alcançar um certo Olimpo da 
cientificidade, e um inacabamento conceitual que é prova de 
um traço fundamental de seu objeto, traço que nenhum 
conceito particular consegue subsumir e que no entanto seria 
fatal ignorar.(1996: 340). 
 
 
A tensão entre o fechamento e a abertura do campo conceitual 
psicanalítico é o que parece caracteriza-lo. É nesse intervalo que a metapsicologia - 
essa “bruxa” como a caracterizou Freud em Análise Terminável e Interminável (1975 
 
8 Importante salientar que ao nomear-se alguns capítulos subseqüentes com o termo “metapsicologia” 
(metapsicologia da maternidade ou metapsicologia da melancolia), foi mantido o caráter descritivo apontado por 
Freud nesta citação. 
 23 
a) -, pode fazer “surgir” respostas especulativas aos limites da clínica, empurrando-a, 
certamente, adiante. 
 
Daniel WIDLÖCHER (1994) num artigo denominado Metapsicologia e 
Auto-Análise, apresenta três concepções da metapsicologia. Na primeira, o quadro 
teórico é compreendido como o organizador dos dados clínicos, permitindo a 
descrição mais precisa possível dos processos que ali ocorrem. Na segunda 
concepção a metapsicologia é um meio de explicar a vida mental. No primeiro caso 
propõe-se uma nova leitura dos fenômenos do mundo a partir do inconsciente; no 
segundo, trata-se de articular a concepção do inconsciente às outras concepções de 
aparelho psíquico (as neurobiológicas, por exemplo). Segundo o autor, estas 
concepções não se opõem. As divergências que produzem só aparecem quando 
articuladas a outros aparatos conceituais de explicação da vida mental. O autor 
ressalta que a metapsicologia possibilita uma interdisciplinariedade. Ressalva, 
porém, os riscos de um reducionismo descaracterizante quando as assimilações são 
feitas de modo simplificador. Entretanto, “explicar o inconsciente” ou “explicar pelo 
inconsciente” são ambas posições encontradas em Freud. 
Widlöcher apresenta, ainda, uma terceira concepção de metapsicologia. 
Partindo da articulação feita por Didier Anzieu quanto à relação entre a auto-análise 
de Freud e sua construção metapsicológica, o autor propõe que, assim como a 
análise de seus próprios sonhos teria fornecido a Freud o complexo teórico básico 
da psicanálise, assim também cada análise fornece uma teoria da vida mental do 
analisante, a qual se constrói na transferência. Toda análise constitui-se, então, 
numa construção metapsicológica. 
 
SOUZA (1998), num artigo no qual discute uma certa tendência atual das 
produções psicanalíticas em direção a questões sociais, aponta o empobrecimento 
do campo conceitual psicanálitico provocado pelo deslocamento do olhar da 
psicopatologia dos sujeitos para psicopatologia do social. Através da análise de 
alguns textos freudianos, mostra a especificidade do modo pelo qual Freud aborda a 
vinculação entre subjetividade e cultura com sua metapsicologia. Na obra freudiana 
não ocorre o deslocamento descrito acima, o que se observa é um movimento 
recursivo entre as dimensões sociais e individuais de produção de subjetivação, “as 
condições contemporâneas de subjetivação desempenham um papel etiológico 
 24 
importante mas não absolutamente decisivo no espectro psicopatológico do qual o 
psicanalista se ocupa.”(1998:86). O autor propõe, então, que a metapsicologia possa 
exercer um papel moderador na avaliação dos psicanalistas quanto à incidência de 
suas práticas na cultura. A “renovação criativa dos conceitos metapsicológicos” é o 
que poderia oferecer aos psicanalistas saídas para os impasses que a clínica 
apresenta, sejam eles movidos por transformações sociais ou não. 
 
 
 
Método da pesquisa 
 
O objeto desta pesquisa – o afetodeprimido durante a gravidez – foi 
resultado de questões sucitadas pela clínica. Embora esta não seja uma pesquisa 
de campo, parece importante salientar que as elaborações conceituais aqui 
estabelecidas sofreram o balizamento desta experiência clínica. 
O objetivo geral da presente pesquisa foi buscar elementos teóricos que 
permitissem a compreensão da ocorrência de afetos deprimidos durante a gravidez, 
a partir das teorias psicanalíticas. 
Para que tal objetivo fosse atingido procedeu-se uma pesquisa básica de 
revisão da literatura psicanalítica. Tal revisão se processou através de fontes 
primárias - a obra freudiana - e secundárias, ou seja: artigos e livros de línguas 
inglesa, francesa, espanhola e portuguesa. O material foi coletado em bibliotecas e 
através de sistema eletrônico de pesquisa (ex.: sistema Medline). A pesquisa deste 
material foi feita em torno de 3 núcleos temáticos9 (Complexo de Édipo/Castração; 
Gravidez/Maternidade/Feminino e Depressão/Melancolia). Estes temas não se 
encontram isolados na teoria, porém foram destacados diferentemente nos vários 
períodos e pelas diversas escolas psicanalíticas. Foi necessário, então, que se 
buscasse suas principais conceptualizações em Freud, bem como algumas 
reformulações teóricas, propostas por autores que tenham contribuído para a 
teorização destas temáticas. 
Alguns outros temas surgiram como contingências dos caminhos 
percorridos na pesquisa. O estudo do feminino e da maternidade conduziu aos 
 25 
diferentes estatutos que o filho ocupa enquanto objeto na subjetividade da mãe. A 
pesquisa em torno da depressão conduziu à questão da formação do eu e seus 
ideais. O anseio de encontrar uma explicação para os afetos deprimidos durante a 
gravidez que não se restringisse a efeitos de uma estrutura neurótica ou psicótica, 
levou à análise do fenômeno do estranhamento, o qual se tornou, por fim, a linha de 
costura do tecido deste livro. 
 
 
 
 
9 Tema é aqui compreendido no sentido descrito por Bardin como “a unidade de significação que se liberta 
naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia de leitura.” (BARDIN 
apud MINAYO, 1992: 208) 
 26 
 
 
 
 
 
 
 
Sobre um dos nomes da tristeza 
 
“Quando me dei conta de que fora vencido pela 
doença, senti a necessidade de, entre outras coisas, 
registrar um protesto contra a palavra “depressão”. 
(...) “Melancolia” pode ainda ser adequada e 
evocativa para definir as formas mais graves da 
doença, mas foi destronada por uma palavra de 
conotações mais brandas, sem ar professoral, usada 
indiferentemente para descrever uma economia em 
declínio ou uma vala na estrada, uma palavra 
realmente sem cor considerando uma doença dessa 
importância. Talvez o cientista a quem geralmente é 
atribuida essa denominação, nos tempos 
modernos(...) – o psiquiatra nascido na Suiça, Adolf 
Meyer – não tivesse um ouvido capaz de captar os 
rítmos mais sensíveis da língua inglesa e por isso 
não percebeu que estava perpetrando um desastre 
semântico quando propôs a palavra “depressão” 
para descrever uma doença tão terrível. Seja como 
for, por mais de setenta e cinco anos a palavra tem 
deslizado inocuamente através da língua como uma 
lesma, deixando poucos sinais indicadores da sua 
malevolência e impedindo, devido à sua extrema 
insipidez, o conhecimento generalizado da terrível 
intensidade da doença quando não é controlada”. 
William Styron1 
 
1 STYRON (1990: 43-44). Perto das Trevas 
 27 
A depressão no campo dos saberes. 
 
O quadro clínico que deu origem a esta pesquisa emergiu da clínica 
psicanalítica. Em alguns casos, mulheres que durante suas análises expressavam 
intenso desejo de engravidar, ao realizarem esse projeto foram acometidas de um 
estado de tristeza, com alterações de sono e apetite, num período que abrangia os 
primeiros meses da gestação. Tal quadro pode ser aproximado àquele classificado 
pela psiquiatria moderna como episódio depressivo ( D.S.M. IV) (AMERICAN 
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1995). O motivo deste estado de tristeza ou dor 
psíquica que se está qualificando como depressão na gravidez não parecia ser o 
bebê – este continuava sendo extremamente desejado, nos casos observados - 
mas algo relativo à própria subjetividade daquelas mulheres em vias de se tornarem 
mães. Cabe ressaltar que as mulheres em questão eram primíparas e não tinham 
diagnóstico de psicose. Chamar-se-á inicialmente este estado afetivo de depressão 
por esta semelhança descritiva. Pretende-se, no entanto, discutir, ao longo do 
trabalho, a adequação (ou não) da utilização desta nomenclatura. 
Embora se reconheça a existência de imensa literatura relativa à 
depressão como quadro psiquiátrico, bem como a profusão de obras referentes à 
melancolia como estrutura clínica, o que se busca, aqui, é poder recortar a 
experiência do afeto deprimido durante a gravidez não como efeito de uma estrutura 
subjetiva melancólica ou deprimida, mas como efeito do processo de subjetivação 
feminino em relação à maternidade. 
 
Uma primeira questão relativa à propriedade do uso do termo depressão 
para qualificar uma ocorrência clínica deste tipo diz respeito a seu caráter 
diagnóstico e à pertinência de seu uso na clínica psicanalítica. O termo depressão 
aparece nas produções psicanalíticas desde seu início, sem que tenha o estatuto de 
um conceito teórico da psicanálise. Nas vezes em que Freud se utiliza deste termo, 
o faz com o caráter que lhe atribui a psiquiatria da época. Todavia, mesmo na 
psiquiatria, a definição do que seja a depressão e sua posição no campo da 
patologia tem sido trabalhosa e permanentemente alterada. 
Seja como entidade nosográfica, seja como experiência fenomenológica, 
a depressão adquire interesse nesta pesquisa, tanto por seu “poder definidor” ou 
“poder explicativo” junto ao senso comum (o têrmo depressão é utilizado de forma a 
 28 
representar quase toda sorte de estados de “dor psíquica”), como pela freqüência 
com que tem sido associada aos mais diversos quadros clínicos, complexificando 
suas explicações etiológicas, bem como sua terapêutica. 
Sabe-se que os fenômenos depressivos são objeto de diferentes áreas do 
saber cujos contornos são, por vezes, muito pouco definidos: as psicologias, as 
psiquiatrias, as psicanálises, as ciências sociais, além da genética, da neurologia e 
outras... (nenhuma delas hegêmonica no domínio do saber sobre o mental ou 
psíquico - este objeto pouco preciso, complexo ou pluriobjeto). Nesse sentido, são 
inevitáveis as intersecções e interfaces (ex.: psiquiatria psicanalítica, 
psiconeuroimunologia, psicobiologia, neuropsiquiatria, etc...) onde os conceitos se 
organizam em sintaxes que se diferenciam tanto das fontes originais (uma psicologia 
ou uma psiquiatria específicas), quanto das possíveis combinações de saberes. 
 
Além da abundância de literatura científica, nas mais diversas tendências, 
acerca do tema depressão, há, também, uma profusa literatura não científica sobre 
este tema. Ele é presença freqüente na imprensa escrita, falada ou televisiva, 
comparece nos discursos dos representantes de qualquer classe social (pelo menos 
nos países cuja cultura é ocidentalizada), é apresentado, inclusive, em home pages 
de redes computacionais. Na última década, a circulação das informações científicas 
tem se dado de forma ampla, independente da qualidade destas ou do quanto de 
incerteza escamoteiam..., e o senso comum vem se construindo sobre esta forteinfluência da divulgação dos saberes científicos (GRANGER, 1993: 16-19). 
 
 
Alguns aspectos epistemológicos da conceptualização da Depressão 
 
Tratar de aspectos epistemológicos é, antes de mais nada, tratar da 
lógica sob a qual um conhecimento se processa. Se o conhecimento só se faz por 
mediação, a razão é o mediador que caracteriza o conhecimento científico. MORIN 
descreve a razão como: 
 (...) um método de conhecimento baseado no 
cálculo e na lógica (na origem, ratio quer dizer cálculo), 
empregado para resolver problemas postos ao espírito, em 
função dos dados que caracterizam uma situação ou um 
 29 
fenômeno. A racionalidade é o estabelecimento de uma 
adequação entre uma coerência lógica (descrita, explicativa) e 
uma realidade empírica. ( 1990: 121). 
 Compreender os périplos da noção de depressão implica reconhecer a 
racionalidade do uso deste conceito em diferentes contextos teóricos. 
 O estudo da depressão coloca o pesquisador - clínico ou teórico - em 
confronto com problemas epistemológicos como o da multiplicidade de definições de 
depressão conforme os referenciais teóricos utilizados. A escolha de tais referenciais 
tem implicações tanto no campo teórico como prático. 
Do ponto de vista epistemológico é importante se ressaltar a diferença de 
recorte do objeto mente ou psiquismo, sede da depressão. Conceber a depressão 
como ocorrência de um aparelho psíquico forjado no embate entre moções 
pulsionais e as pressões culturais, é completamente diferente, por exemplo, de 
compreendê-la como efeito de processos bioquímicos num aparato neuronal. Para 
as neurociências o mental se circunscreve nos processos de cognição e nas 
estruturas cerebrais (ex.: circuitos neuronais, bioquímica cerebral) (ANDREASEN, 
1997: 1586) enquanto nos saberes psicodinâmicos a ênfase do mental está na 
subjetividade, portanto, na organização particular, simbólica, do que quer que seja o 
mental (neurônios, gens, relações sociais ou traços de linguagem). Nesse sentido, a 
categoria ou conceito depressão, sofre os efeitos lógicos de estar vinculada a uma 
ou outra concepção do mental. Não seria necessário demonstrar, portanto, as 
enormes diferenças na clínica da depressão conforme o modelo teórico que se 
utilize. 
Se é possível relacionar o mental orgânico, com o mental simbólico, como 
pretendem, especialmente, os pesquisadores das neurociências (ANDREASEN, op. 
cit.,1586), é necessário que antes se considere os ganhos e as perdas que tal 
junção pode trazer. Essas relações só se fazem através de reduções, que, por 
vezes, custam a perda do objeto em si (SAMAJA, 1992: 15). Por outro lado, a 
finalidade pode justificar esta tentativa. A clínica do mental (e suas dificuldades...) é, 
sem dúvida, um forte estimulante para criação destas interfaces. Porém, aqui 
também (clínica do mental), há diferenças marcantes: umas caminhando no sentido 
da eliminação ou controle dos sintomas e transtornos; outras, considerando os 
sintomas como discursos subjetivos cuja decisão sobre seu destino (eliminação ou 
não) não é devida, nem possível para o profissional que conduz a clínica. 
 30 
Parece importante destacar-se a mudança de perspectiva de um 
fenômeno (a depressão, no caso) quando vinculado a um ou outro desses objetivos, 
de modo que se possa decidir sobre a propriedade de seu uso no contexto clínico 
abordado por esta pesquisa. Tais objetivos, ou sentidos da intervenção clínica, têm 
sua determinação (ao menos em parte...) no privilégio à vertente subjetivante ou 
objetivante da produção de conhecimento. O objetivismo poderia ser sintetizado 
como uma visão do mundo constituído de objetos com características e 
propriedades independentes dos seres que com eles se relacionam, possibilitando, 
assim, seu conhecimento verdadeiro, através de métodos e linguagem claros e 
objetivos como pretendem ser o método e a linguagem científicos. Já o subjetivismo 
compreende o conhecimento dos objetos do mundo através das relações entre os 
seres e os objetos, enfatizando todas as formas de manifestação subjetiva.(LAKOFF 
& JOHNSON, 1980). 
 
Outra questão epistemológica relevante na análise de um conceito é a 
dificuldade em se rastrear as semelhanças ou linhas de continuidade internas a um 
saber, ou entre saberes diversos, no que tange ao uso desse conceito, em função 
das mudanças de estatuto que este sofre no seu contexto de uso. A depressão, por 
exemplo, tem sido tratada ora de modo substantivo ora adjetivo. Conforme descreve 
PALMEIRA, em sua tese de mestrado acerca das relações entre psiquê e cancer: 
 (...) em alguns casos a “depressão” é 
entendida como algo que o sujeito sofre, em outros é 
interpretada como algo inerente à própria natureza do sujeito. 
(1994: 47) . 
 
Uma tentativa de neutralização deste problema tem sido feita pela 
epidemiologia psiquiátrica com seus sistemas de classificação, nos quais estados 
como os de depressão seriam sempre adjetivos, resultado de um somatório de 
sinais. 
 
Na perspectiva mais estritamente neurobiológica, a depressão é 
associada a fatores tais como alterações de processos cerebrais adaptativos 
(ANDREASEN, 1997:1588), ou intercorrências nos sistemas de transmissão 
noradrenérgicos do sistema nervoso central (s.n.c.); ou processo de recaptação da 
serotonina ao nível sináptico do referido sistema (s.n.c.); ou ainda deficiência de 
 31 
dopamina no sistema nigroestriatal ( SIMÕES et alii, 1996: 4-5). Outra vertente da 
pesquisa biomédica associa a depressão a fatores hormonais, como o estrogênio, 
por sua “ação direta e indireta sobre os neurônios do s.n.c.” (SIMÕES et alii, op. 
cit.:5), condição considerada como uma das prováveis responsáveis pela freqüência 
de depressão, duas vezes maior, nas mulheres do que nos homens.(PAYKEL, 
1991). Fica evidenciado, aqui, que a depressão, independente da hipótese que a 
explique, é compreendida como um fenômeno adjetivo, resultante de processos 
neurobiológicos ou genéticos. Os modelos de produção de conhecimento acerca da 
depressão, nestas áreas, são objetivos. Seja o que for, a depressão é suposta 
exterior àquele que a pesquisa. 
 
 
 A depressão como experiência vivida - subjetiva - é tratada pelos 
saberes psicodinâmicos (incluindo aqui os culturais). Seria temerário, entretanto, 
conceber qualquer universalidade nas formas de pensar a depressão, pelas diversas 
correntes de saber que têm as experiências psíquicas como seus objetos. 
 Para os saberes teóricos que descrevem a subjetividade e suas 
manifestações (as psicanálises, as antropologias etc..) a depressão também tende a 
ser vista de modo adjetivo, como resultante de processos - agora não mais 
biológicos - mas psíquicos ou sociais. A pretensão do conhecimento objetivo acerca 
dessa experiência é, no entanto, abandonada e substituida por uma racionalidade 
que supõe encontrar a verdade do fenômeno depressivo intrinsecamente delineada 
no contexto particular , subjetivo, de sua manifestação. 
 Referindo-se às diferenças de racionalidade do saber científico e do 
saber filosófico (não positivista), ATLAN faz afirmações que podem ser úteis para 
esclarecer a racionalidade dos saberes psicodiâmicos: 
 Assim, contrariamente ao ideal das filosofias 
neopositivistas, que procuravam imitar a física e a sua forma 
lógico-mátemática, o papel da filosofia seria falar daquilo que 
não pode ser formalizado, utilizar uma linguagem natural, com 
as suas metáforas, as suas analogias e a indefinição que as 
acompanha, sem, por isso, renunciar a continuar racional; e 
para tal, distinguir as boas das más analogias, as metáforas 
enriquecedoras das metáforas enganadoras, o pouco vago, 
que oculta o que deveria serdito, do demasiado vago, 
potencial de criação. (1991: 101). 
 
 32 
 
A organização dos saberes sobre o mental em sistemas classificatórios: 
algumas implicações clínicas. 
 
 Conforme apresentado no prefácio à edição brasileira da Classificação 
Internacional de Doenças - descrições clínicas e diretrizes diagnósticas - da 
Organização Mundial de Saúde (O.M.S.) CID 10 (1993: XI), o esforço sistemático de 
classificação dos transtornos mentais, orientado por esta entidade, data da década 
de 60 e vem se ampliando e se especificando desde então. 
 Esta última versão de 1992, junto com o Diagnostic and Statistical 
Manual of Mental Disorders (DSM IV -AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 
1994), representam os resultados mais recentes desta tendência taxônomica que 
vem buscando instrumentos que permitam a comunicação entre os diferentes 
profissionais envolvidos na clínica, na pesquisa e na educação em saúde mental. 
 Estas classificações se caracterizam pela descrição de sinais e 
sintomas, com um declarado abandono da noção de doença mental e a opção pelos 
conceitos de episódios e transtornos . Este último é definido como “um conjunto de 
sintomas ou comportamentos, clinicamente reconhecível, associado, na maioria dos 
casos, a sofrimento e interferência com funções pessoais.” (O.M.S. - CID10, 1993:5). 
Outros dois eixos utilizados nas classificações são: a distribuição dos sinais e 
sintomas no tempo (episódica ou recorrente) e sua intensidade (grave, moderada ou 
leve). 
 Esta opção pelo modelo sindrômico em detrimento do modelo 
nosológico se dá, especialmente, em função da ausência de certezas quanto à 
etiopatogenia dos transtornos mentais, e/ou, da complexidade que envolve a 
causalidade do psíquico. O objetivo apresentado para estas categorizações é: 
“melhorar o diagnóstico e a classificação dos transtornos mentais”, facilitando a 
clínica, a pesquisa e a comunicação entre profissionais da área de saúde mental ( 
O.M.S. op.cit.: XI ). Por outro lado, dependendo da finalidade que se atribua a um 
diagnóstico, este esforço classificatório será de maior ou menor valia. 
 ZARIFIAN define um diagnóstico como um instrumento que “permite 
comunicar acerca de um doente, (...) permite comparar grupos de pacientes entre si, 
(...), [não sendo necessário na clínica, entretanto] pois a abordagem é 
essencialmente intuitiva.” (1989: 45-47). Nesta mesma linha LAJEUNESSE afirma 
 33 
que: “o interesse de um diagnóstico fiel e válido é condensar uma informação com 
virtude prognóstica e, por conseguinte, condicionar a orientação terapêutica” (1989: 
72). Segundo este autor, tal “fidelidade” se obtém às custas da retirada das 
sintomatologias puramente subjetivas, quando da descrição das categorias. 
Procedimento que, segundo o próprio autor, não garante a objetividade e, ainda, 
acirra a dicotomia entre os praticantes da clínica do mental (subjetivistas e 
objetivistas). 
 O abandono da posição nosográfica, nos dois sistemas classificatórios 
citados acima, se deve, também, a uma opção pela não utilização de qualquer 
referencial teórico específico, no bojo, ainda, de um projeto de objetividade de tais 
classificações. Se por um lado esta postura “suprateórica” gera a clareza dos 
sintomas descritos, por outro os multiplica de forma progressiva, dificultando sua 
utílização clínica como instrumento de projeto terapêutico (o capítulo dos transtornos 
mentais do CID 9 tinha 30 categorias, a atual versão - CID 10 - tem 100). 
 Quanto à categoria depressão, os organizadores da CID. 10 advertem que a 
atual versão ainda é fonte de muita discordância entre psiquiatras. Supõem, 
entretanto, que tais discordâncias serão dirimidas com “medidas fisiológicas e 
bioquímicas, ao invés (...) de descrições clínicas de emoções e comportamentos.” 
(O.M.S., op.cit.: 13). 
 
 Uma perspectiva nosológica implica modelos teóricos de interpretação 
dos eventos. A “costura” dos dados parece fundamental na própria caracterização 
dos fenômenos. Esta ausência de organização teórica dos sintomas leva, por vezes, 
a situações bizarras, onde qualquer sujeito pode ser incluído sob certos 
diagnósticos. O transtorno depressivo é um caso exemplar deste tipo. Na 
classificação do DSM IV, a depressão é classificada como um transtorno afetivo do 
humor envolvendo episódios depressivos, em um período mínimo de duas semanas 
e mais, pelo menos quatro dos seguintes sintomas: queixas de tristeza, 
desesperança, perda de prazer generalizada, perda de apetite, perturbações do 
sono, alterações psicomotoras, diminuição de energia, sentimentos de desvalia ou 
culpa e pensamentos suicidas (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1994). 
Seria quase impossível encontrar um adulto ocidental que não se enquadrasse 
nestes critérios, especialmente aqueles que vivem nos grandes centros urbanos... 
 34 
 Em relação aos critérios fisiopatológicos, bioquímicos ou genéticos 
como fontes de especificação diagnóstica, é preciso que se destaque a subversão 
que tal caminho pode criar na compreensão (e consequente abordagem) dos 
fenômenos mentais. Sobre isso ZARIFIAN afirma: 
 Os psicotrópicos tiveram papel importante, e 
não inocente, na evolução dos conceitos diagnósticos. 
Responsável por isso é sobretudo o marketing farmacêutico. 
(...) Se bem que os psicotrópicos não sejam senão tratamentos 
sintomáticos e não específicos de uma afecção mental, o 
cenário está armado. As classificações de psicotrópicos 
reforçam a situação. Há antipsicóticos, antidepressivos e 
ansiolíticos: então há psicoses, depressões e ansiedade. ( 
op.cit: 49-50). 
 
 
 Poder-se-ia objetar que as versões atuais dos sistemas classificadores 
minimizam este problema abrindo mão das grandes categorias nosográficas. 
Todavia, a intenção de objetivação através de critérios estritamente biológicos 
permanece, como foi mostrado alguns parágrafos acima. Conta-se, atualmente, 
com instrumentos poderosos para esses fins: além da fidedignidade da bioquímica , 
desfruta-se agora da precisão e do rigor das imagens (tomografia de emissão de 
pósitrons, por exemplo...). Mais ainda, corre-se o risco de identificar fenômenos de 
uma esfera (os afetos deprimidos, por exemplo), com achados de outra esfera (as 
possíveis alterações de imagens tomográficas quando de estados afetivos 
deprimidos), incorrendo em inevitável engano e confusão, com evidentes 
conseqüências clínicas. 
 
 Outra fonte de dificuldades no estabelecimento e uso clínico de um 
sistema classificador são as diferenças culturais. Estas são reconhecidas, nos dois 
sistemas a que estamos nos referindo (DSM.IV e CID.10), porém, dada a 
dificuldade em transformá-las em variáveis indicáveis objetivamente , elas não são 
consideradas. Mais uma vez isso não ocorre sem prejuízo clínico. A esse respeito 
LUTZ afirma: 
Argumentarei, entretanto, que a distinção entre o o 
quê e o como da experiência depressiva (...) somente faz 
sentido no contexto cultural Euro-Americano dentro do qual foi 
desenvolvido(...) O que é mais notável na visão ocidental da 
depressão é a afirmação implícita do carater de oposição à 
alegria, ou pelo menos aos afetos positivos, em relação a um 
 35 
estado normal. (...) O que é particularmente desviante nos 
deprimidos é sua desistência em buscar a felicidade ou o amor 
de si, considerados objetivos básicos e normais das pessoas. 
Estas metas aparentemente naturais são, de fato, moldadas 
culturalmente, em contraste com outras possiveis definições de 
normalidade nas quais, por exemplo, a ênfase pode ser posta 
no cuidado de crianças ou parentes, ou em vivenciar emoções 
de caráter moral, corretas porém não prazeirosas... ( 1985: 63-
70). 
 
 
 Parece então que esta

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