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A ESCRAVIDÃO NEGRA SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO NO BRASIL IMPERIAL1 Adriane Eunice de Paula Roos DEDICATÓRIA Ao meu filho, Marco Antônio, ao meu marido, Jorge, e ao professor, mestre dos mestres, Wilmar Taborda. RESUMO O presente estudo aborda o tratamento que a legislação imperial brasileira deu à escravidão negra. Trata da escravidão negra no Brasil e da legislação codificada do século XIX. Palavras-chave: escravidão negra – legislação imperial – legislação codificada do Século XIX. SUMÁRIO: 1 O tratamento dado à escravidão na legislação imperial; 1.1 Antecedentes da legislação imperial; 1.2 Lei Diogo Feijó, de 7 de novembro de 1831;1.3 Lei Eusébio Queirós, Lei n.º 581, de 4 de setembro de 1850; 2 A questão da emancipação; 2.1 Leis emancipacionistas; 2.1.1 A Lei do Ventre Livre, Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871; 2.1.2 A Lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de 1885; 2.2 As cartas de alforria na prática forense; 3 A escravidão negra e a legislação codificada do século XIX; 3.1 A Constituição de 1824; 3.2 O Código Criminal do Império e a Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835; 3.2.1 A escravidão e a 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão do Curso de Direito orientado pela Professora Doutora Maren Guimarães Taborda e apresentado à Banca Examinadora composta pela Professora Mestre Ligia Mori Madeira e pelo Professor Plínio Saraiva Melgaré. 2 pena de morte – Joaquim Nabuco e a defesa do preto Tomás; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO O estudo buscou subsídios para a constatação de que os textos das leis da época não contemplavam a escravidão e quando a ela se referiam, pareciam tratar de leis de exceção, que se refletiram nas desigualdades sociais e econômicas que perduram ainda hoje. 1 O TRATAMENTO DADO À ESCRAVIDÃO NA LEGISLAÇÃO IMPERIAL 1.1 Antecedentes da legislação imperial O tratamento legal dado à escravidão remonta ao Direito Romano: em Roma, a liberdade é a regra; a escravidão, a exceção. Várias eram as causas da escravidão, e segundo Moreira Alves, pode-se dividi-las em dois grupos: as do ius gentium e as do ius civile – as primeiras perduraram durante toda a evolução do Direito romano, e as outras sofreram modificações. As causas do ius gentium eram duas: o nascimento e a captura pelo inimigo.2 No Brasil, a escravidão dos negros se dava pelo tráfico, antes de 1831, ou pelo nascimento, antes da promulgação da Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871. Conforme ensina Kátia Mattoso, “a prática jurídica brasileira, como a de todas as sociedades de regime escravista, manda que o filho da escrava nasça escravo, mesmo se o pai é um homem livre: 'Partus sequitur ventrem'”. Prossegue a mesma autora: “a criança gerada por obra do senhor é livre após a morte de seu pai. Mesmo assim é preciso que tenha sido reconhecida [...]”.3 Na opinião de Joaquim Nabuco, o partus sequitur ventrem, máxima do Direito romano, “é o incentivo à luxúria dos brancos. Pouco se importam estes em engrossar o patrimônio dos amigos com filhos seus, que jamais reconhecerão”.4 Em face da escassa legislação relativa a escravos, tanto na legislação portuguesa como posteriormente na legislação imperial, ao Direito Romano se recorria como subsidiário ao nosso para a resolução de casos que surgiam no foro envolvendo escravidão. A legislação civil pela qual o Brasil colonial se regia era 2 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 99. v. I. 3 MATTOSO, Kátia M.de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 176. 4 NABUCO. Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 76. 3 desordenada, sem sistema, sem nexo e omissa, ou defeituosa, em uma infinidade de assuntos da ciência legislativa, e por isso convinha indicar as fontes às quais se deveria recorrer, enquanto não existisse um Código Civil. Trigo de Loureiro indica duas fontes, ou seja, as fontes com força de lei e as subsidiárias.5 Embora a obra de Teixeira de Freitas seja o primeiro Código Civil brasileiro frente à previsão na Constituição de 1824, que dispunha, no artigo 179, inciso XVIII, que se deveria organizar um Código Civil e Criminal fundado nas sólidas bases de justiça e eqüidade, Trigo de Loureiro sistematizou o Direito Civil brasileiro, que precedeu à Consolidação das Leis Civis, publicada em 1858. Quanto à aplicação do Direito romano como fonte subsidiária de Direito, o autor diz que: O Direito Romano constitui entre nós a mais copiosa fonte subsidiária da nossa jurisprudência civil, já porque as Ordenações Filipinas expressamente o mandão observar em muitos casos, já porque a citada Lei de 18 de agosto de 1769 o declarou subsidiário de direito pátrio nos casos omissos nele, ou incompletamente providenciados, uma vez que, na espécie sujeita, ele seja conforme a boa razão, ou direito natural, e não se baseie em motivos supersticiosos, e peculiares ao povo romano, ou em costumes, máximas, ou princípios rejeitados pela civilização moderna.6 No mesmo sentido, Agostinho Marques Perdigão Malheiro: Remontemos aos romanos, de cujo Direito teremos de socorrer muitas vezes como subsidiário ao nosso, mas bem entendido, segundo o uso moderno, quando conforme a boa razão, ao espírito do Direito atual, às idéias do século, costumes e índole da nação.7 Como já referido, a codificação civil brasileira somente passou a existir em 1858 com a Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas da qual o mérito 5 “Entre estas fontes, arrola as Ordenações dos Filipes, de Espanha, datadas de 1603, que D. João IV, de Portugal, revalidou por sua Lei de 29 de janeiro de 1643. Esse corpo de leis condensa quase toda a matéria de Direito Civil no Livro 4 e, com as alterações sofridas, atravessou o período do Império e chegou à República, quando foi revogado pelo Código Civil de 1916 (artigo 1.807). Acrescentou as Leis Extravagantes, Regimentos, Decretos, Alvarás e Resoluções vigentes até 21 de abril de 1821, data que marca o retorno de D. João VI a Portugal, e mais os decretos das Cortes Portuguesas especificados e mandados observar pela lei do Brasil independente, de 20 de outubro de 1823. Conclui com a legislação promulgada por D. Pedro como regente do reino unido a Portugal e, após o sete de setembro, na condição de imperador”. Quanto às fontes subsidiárias coletadas, Trigo de Loureiro, além do Direito Romano, registra os assentos da Casa de Suplicação, os usos e costumes, as opiniões dos Jurisconsultos e os arestos, concluído com as leis das nações cultas e civilizadas. (LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil brasileiro. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004. v. I, p. 23 a 26. 6 LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Op. cit., p. 27. v. I. 7 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil (Ensaio histórico, jurídico, social. 3. ed. (2. ed. integral), Petrópolis: Vozes Ltda. (em convênio com o Instituto do Livro), 2 v., I, § 149 e respectiva nota n.º 818). 1866 , p. 93. 4 histórico é realçado pela repulsa ao escravismo manifestada pelo próprio autor nas notas introdutórias desta obra: Cumpre advertir, que não há um só lugar do nosso texto, onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas esse mal é uma excepção, que lamentamos; condemnado á extinguir-se em época, mais, ou menos, remota; façamos também uma excepção, um capitulo avulso, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podemservir para a posteridade: fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As Leis concernentes á escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas á parte, e formarão nosso Codigo Negro.8 O referido Código Negro nunca existiu. É sensível a omissão a respeito das disposições concernentes à escravidão no Código Civil de 1858, uma vez que ela deveria abranger, por motivos políticos e de ordem pública, uma lei especial que nunca foi escrita e que, na época, era suprida pela transferência da escravidão antiga para a escravidão colonial moderna, operação bem adequada à mentalidade de juristas formados na tradição européia de Direito comum. Mais do que resolver os casos concretos de delicadas questões que este assunto oferecia na justiça, tais regras pareciam legitimar a condição escrava. Quanto ao Direito Penal, anterior à legislação imperial, se faz necessário observar a influência que as leis portuguesas tiveram no Brasil. Formalmente, a lei penal que deveria ser aplicada no país, naquela época, era a contida nos 143 títulos do Livro V das Ordenações Filipinas, isto se explica porque “no momento em que a escravidão estava desaparecendo na Europa Ocidental, a descoberta da América revitalizaria a escravidão”9. Orientava-se no sentido de uma ampla e severa criminalização, com drásticas punições. Além do predomínio da pena de morte, utilizava-se outras sanções cruéis, como açoites, amputação dos membros, as galés e o degredo, entre outras. Não se adotava o princípio da legalidade, ficando ao arbítrio do julgador a escolha da sanção aplicável.10 8 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. Prefácio de Ruy Rosado de Aguiar. Brasília: Senado Federal. Conselho Editorial, 2003, p. XXXVII. (Coleção história do direito brasileiro. Direito Civil, 2 v.). A transcrição respeita a linguagem da época. 9 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história – Lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 344. 10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 41. v. 1. 5 O Livro V das Ordenações Filipinas vigora no Brasil até a edição do primeiro Código Criminal, em 16 de dezembro de 1830.11 Apesar da grande influência estrangeira, o Código Criminal foi inovador em vários aspectos, entre eles a exclusão da pena capital para crimes políticos, fixava um esboço de individualização da pena e previa a existência de atenuantes e agravantes, estabelecia julgamento especial para menores de quatorze anos e polemizava quanto à pena aplicada aos escravos prevista no artigo 60.12 1.2 Lei Diogo Feijó, de 7 de novembro de 1831 A vinda dos negros africanos para o Brasil deu-se pelo tráfico, até 1850. Em 7 de novembro de 1831, o Brasil promulgou a Lei Diogo Feijó, a qual foi um ato de caráter internacional, com o objetivo de acabar com o tráfico no continente africano, de acordo com os tratados de 19 de fevereiro de 1810, 22 de janeiro de 1815 e 28 de julho de 1817, entre as coroas da Grã-Bretanha e do Brasil, para que o Brasil desse à Inglaterra decisivas intenções da fiel observância do último tratado firmado em 1817. Convém reproduzir o artigo 1.º da Lei de 7 de novembro de 1831, do seguinte teor: “Todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”.13 Entende-se que este artigo extinguiu no Brasil a escravidão por importação, todavia a realidade era outra, porque, aqui chegando, os negros eram escravizados. A Lei Diogo Feijó, que declarou livres todos os escravos vindos de fora do império e impôs penas aos importadores dos mesmos escravos, ficou sem execução, e aqueles que ela declarou livres continuaram em cativeiro, porque “a Lei 11 O Código Criminal sofreu influências das idéias européias vigentes na época: princípios liberais do Iluminismo e algumas idéias de Bentham, autor que não via na crueldade da pena um fim em si mesmo, iniciando um progressivo abandono do conceito tradicional, que considerava que a pena devia causar muita dor e sofrimento. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 38). As influências legislativas mais importantes foram do Código Francês de 1810, Código Napolitano de 1819. 12 Código Criminal, artigo 60, verbis: “Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o juiz designar. O numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta” (BRASIL. Código Criminal do Império. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em <http://www.2camara.gov.br/legislação/ publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em: 7 out. 2006). 13 BRASIL. Lei Imperial de 7 de novembro de 1831. Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, Rio de Janeiro, Livro 1º de Leis, fl. 98, 15/11/1831. Disponível em: <http://www.2camara.gov.br/ legislação/publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em: 7 out. 2006. 6 de 7 de novembro, num período de 52 anos após a sua promulgação, nunca foi invocada em favor da liberdade”.14 Segundo Evaristo de Moraes, embora houvesse a penalidade e o empenho de autoridades superiores na aplicação da lei, ocorreu o que sempre acontece quando o meio social não está preparado, “mormente quando fortíssimos interesses colidem com o cumprimento de qualquer determinação legal”.15 O poder do tráfico era irresistível, e “até 1851 não menos de um milhão de africanos foram lançados em nossas senzalas. A cifra de cinqüenta mil por ano não é exagerada”.16 1.3 Lei Eusébio de Queirós Tratava-se da Lei n.º 581, de 4 de setembro de 1850, que estabelecia medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império e, por influência da Lei Bill Aberdeen, decretou no artigo 4.º que a importação de escravos no território do Império a partir da vigência daquela lei seria considerada pirataria.17 Cabe aqui ressaltar que, pela Convenção de 1826, o comércio de africanos devia, no fim de três anos, ser equiparado à pirataria, mas a lei que finalmente os equiparou só foi editada em 4 de setembro de 1850. Segundo Joaquim Nabuco: “Nessa questão do tráfico bebemos as fezes todas do cálice”.18 No texto legal, havia previsão de serem aplicadas penas, inclusive para tentativa de tráfico, bem como da cumplicidade. Eram considerados cúmplices, segundo o artigo 3.º, parte final, da Lei n.º 581, a equipagem e os que atuassem como coadjuvantes no desembarque de escravos no território brasileiro, ou aqueles que concorressem para ocultar os autores do fato da autoridade, bem como quem 14 Lei de 7 de novembro de 1831, artigo 2.º, verbis: “Cominava aos importadores de escravos a pena corporal do artigo 179 do Código Criminal (referente a reduzir à escravidão pessoa livre) e mais a multa de 200 mil réis por cabeça de escravo importado, além do pagamento de despesas com reexportação para qualquer parte da África [...]. Os infratores responderão cada um por si, e por todos” (MORAES, Evaristo de. A escravidão africana no Brasil – das origens à extinção. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933, p. 52. 15 MORAES, Evaristo. Op. cit., p. 52. 16 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Publicações LCC eletrônicas. Disponível em: <http://www.bibvir.futuro.usp.br/textos/autores/joaquimnabuco/abolicionismo_textohtml>. Acesso em: 6 out. 2006.(a) 17 BRASIL. Lei n.º 581, de 4 de setembro de 1850. Coleção das Leis do Império do Brasil. Lei Eusébio de Queirós. Chancelaria do Império, Rio de Janeiro,5 set. 1850. Disponível em: <http://www.2camara.gov.br/legislação/publicações doimperio/coleção3.html>. Acesso em: 7 out. 2006. 18 NABUCO, Joaquim. Op. cit., on-line.(a) 7 impedisse que os autores do tráfico fossem presos no mar ou em ato de desembarque em momento de perseguição. O artigo terceiro desta lei dá, ainda, a definição de quem são aos autores do crime de importação ou de tentativa de importação: “São autores do crime de importação, ou de tentativa de importação o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga”. Mais uma vez, a tentativa de extinguir o tráfico por meio de lei não deu certo, porque até 1854 as atividades de importação de negros continuaram. Em Porto de Galinhas, Pernambuco, a lei era facilmente burlada, porque a carga de escravos chegava da África sob a denominação de “Carga de galinhas de Angola” e a partir dali, era distribuída. Mudava-se o nome para a prática costumeira: tráfico. Segundo Lenine Nequete, em 1871, foi levantada por parte do Judiciário a dúvida de que com a promulgação da Lei Eusébio de Queirós estaria prescrita a Lei de 1831, por falta de aplicação desta lei por mais de meio século, tratando-se de centenas de milhares de pessoas a quem devia ter sido aplicada e, por desuso, não foi. O entendimento do Judiciário se dividia, não se chegando a um consenso naquela época. O entendimento de uns era o de que a Lei de 7 de novembro de 1831 nunca esteve em esquecimento, porque se, em 1871, alguém importasse escravos deveria ser punido não pela Lei de 4 de setembro de 1850, mas pela Lei de 1831, uma vez que o vigor desta Lei tanto na parte criminal como na civil ainda era manifesto por não haver outra depois dela com as espécies ali definidas. Outros, no entanto, consideravam a Lei de 1831 caduca por sua não-execução e desuso e, ainda, inexeqüível pela dificuldade de provas.19 O que se constata pela Lei de 4 de setembro de 1850 nos artigos 1.º, 4.º e 9.º é que esta lei suscitou a observância da Lei de 1831, reconhecendo-a em vigor, completando-a com o disposto nos seus artigos 1.º, 2.º e 3.º, o que leva à conclusão de que o argumento do desuso é infundado. A Lei Eusébio de Queirós não faz nenhuma referência aos escravos importados desde a data da Lei de 1831, talvez porque depois de 1831 não devessem existir mais escravos. A Lei de 1850 invocou a de 1831, uma vez que subsistia na de 1850 a razão de ser daquela outra, que era a proibição do tráfico, a punição do traficante e a conseqüente libertação do africano, objeto do tráfico, isto é, 19 NEQUETE, Lenine. Escravos e magistrados no 2º Reinado: aplicação da Lei n.º 2.040, de 28/9/1871. Brasília: Fundação Petrônio Portela, 1988, p. 187. 8 a destruição da mercadoria do contrabando. A importação não havia cessado em 1850, e por isso a Lei Eusébio de Queirós tomou providências mais enérgicas contra a repressão do tráfico. 2 A QUESTÃO DA EMANCIPAÇÃO 2.1 Leis emancipacionistas 2.1.1 A Lei do Ventre Livre – Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871 Lenine Nequete diferencia a Lei n.º 2.040, promulgada em 28 de setembro de 1871, das anteriores editadas em 1831 e 1850, dizendo que aquela foi a primeira que direta e exclusivamente tratou da emancipação dos escravos no Brasil, enquanto estas foram somente leis de repressão.20 Ainda, segundo Lenine Nequete, a Lei do Ventre Livre foi uma brilhante conquista jurídica: porque não legislou, note-se bem para escravos realmente existentes na realidade extra-uterina, nem mesmo na realidade intra-uterina; sim para escravos mentalmente existentes, escravos do futuro, e no presente representáveis pelo ventre vácuo da mulher escrava; isto é, pelo ventre materno em possível produção de filhos, produção incerta em função da esterilidade também possível da mulher.21 Neste ponto, o autor esclarece que, em Direito romano, libertar escravos nascidos é manumissão (manumissio), denominada, no Direito brasileiro, como alforria, cujo sentido é de libertar escravos ainda não nascidos, mas concebidos no ventre da mulher: Libertar, porém, escravos nem nascidos nem ainda concebidos no ventre materno, que ato será, que nome deve ter? Libertação do ventre é o nome deste ato novo, dessa delicada criação jurídica, que não sabemos por quem foi pela primeira vez escrito ou pronunciado. Esta riqueza é nossa, é do Século XIX, é da história das Colônias Americanas; mas seu germe sem dúvida herdamo-lo do Direito Romano, que, tomando a parte pelo todo, designa a mulher grávida pelo seu ventre pleno e a curadoria do póstumo por curadoria do ventre.22 20 NEQUETE, Lenine. Op. cit., p. 187. 21 Idem, ibidem, p. 126. 22 Idem, p. 128. 9 A beleza do texto de Lenine Nequete repousa no sentido de que se via uma mulher livre no seu ventre livre, uma mulher escrava no seu ventre escravo, até que, com a promulgação da Lei do Ventre Livre, se passaria a conceber um futuro ventre livre de mulher escrava. “Como naturalmente conceber-se sem a mulher inteira o ventre da mulher? Como supor-se na parte de um todo indivisível, uma qualidade que o todo não tem?”. E ao fazer essas indagações, o autor refletia: O Direito brasileiro realizou a divisibilidade local por suas leis da libertação do ventre, nada menos do que a mulher livre no ventre, escrava no resto de seu corpo. Bem se vê que as leis podem mais que a natureza – que o mundo das leis é mais opulento que o da natureza.23 O artigo 1.º da referida lei dispõe que “os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre”.24 Desta lei presume-se que a escravidão tem por limite a vida do escravo nascido na véspera da lei. No entanto, a aplicação da Lei do Ventre Livre tornou evidente, também, que entre a lei e a prática da lei havia uma boa diferença. Na prática, o ingênuo, nascido liberto pela Lei, devia permanecer sob a tutela do senhor de sua mãe até a idade de oito anos completos. Chegando a criança a esta idade, o proprietário de sua mãe teria a opção de receber do Estado a indenização de 600$000 réis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de vinte e um anos completos. No primeiro caso, o menor ficaria sob a tutela do Estado, mas a grande maioria dos senhores das mães dos ingênuos optou pela utilização dos serviços deles. Já que os haviam criado até os oito anos, idade a partir da qual começavam a ser realmente úteis, era natural que quisessem conservá-los e usufruir de seus serviços até que completassem vinte e um anos. Misturando-se com a senzala, no dia-a-dia, os ingênuos não eram diferenciados dos escravos e recebiam o mesmo tratamento que estes, tendo sido muito freqüentes as suas queixas, ou de seus familiares, pelos castigos e maus-tratos que lhes eram indevidamente aplicados. Ainda que o artigo 18 do Regulamento de 13 de novembro de 1872 desse aos responsáveis pelos ingênuos o direito de infligir-lhes castigos corporais, desde que 23 NEQUETE, Lenine. Op. cit., p. 128. 24 Idem, ibidem, p. 128: “Esta lei está salva, frutificou entre nós por aplicação nova; porque, se nascem escravos os filhos de escravas com ventre escravo, nascem livres os filhos de escravas com ventre livre. Esta regra também está salva porque, se o parto é escravo seguindo o ventre materno, o parto é livre seguindo o ventre livre”. 10 não fossem “excessivos”, foram muitos os casos de abuso desse direito.25 Serve de exemplo de tais abusos o caso registrado pelo jornal “Dezenove de Dezembro”, de Curitiba, em1.º de junho de 1881: “[...] em Guarapuava, Domingos Mendes Machado infligiu excessivos castigos ao ingênuo Lucrécio, filho de sua escrava de nome Benedita. Procedidas as devidas diligências, foram os autos encaminhados à autoridade competente”.26 Os emancipacionistas viam na Lei o procedimento correto e adequado a uma política abolicionista legalizada, gradual e eficiente para gerar tranqüilidade nas senzalas, acalmar os abolicionistas e manter os direitos dos senhores, no tocante ao acesso à indenização. No entanto, conforme a historiografia vem demonstrando, a chamada Lei do Ventre Livre trouxe no seu bojo muito mais que um simples sancionamento legal em relação à libertação do escravo. Em torno dela foi edificada uma estratégia política de avanço e recuo em relação aos objetivos históricos que a referida legislação pretendia alcançar.27 2.1.2 A Lei dos Sexagenários – Lei n.º 3.270, de 28 de setembro de 1885 Segundo Joseli Mendonça, a Lei n.º 3.270, de 28 de setembro de 1885, inserida em um conjunto jurídico que buscava orientar o processo de abolição, não tinha como objetivo único encaminhar a extinção da escravidão. Ao contrário, essa lei, de forma bastante marcante, procurava também delimitar e compor as relações sociais na “sociedade livre” e, por certo, qualquer projeto de abolição não poderia, naquele momento, deixar de colocar em evidência tantas questões relativas à liberdade e à organização do trabalho livre. Dessa forma, parte significativa e 25 Em linguagem da época: “Art. 18: Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas, antes de atingirem elles a idade de 21 annos, se, por sentença do juízo criminal, reconhecer-se que os senhores das mãis os maltratam, inflingindo-lhes castigos excessivos. (Lei – art. 1º, § 6º)”. BRASIL. Decreto n.º 5.135, de 13 de novembro de 1872. Approva o regulamento geral para a execução da Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871. In: Coleção das Leis do Império do Brasil. Disponível em: <http://www.2camara.gov.br/legislação/ publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em 1 mar. 2007. 26 GRAF, Márcia Elisa de Campos. Cidade, cidadania e exclusão: a lei e a prática. Disponível em: http. <http://www.utp.br/proppe/X%20seminario_pesquisa/Artigos%20completos/FCHLA/CIDADE,% 20CIDADANIA%20E%20EXCLUS%C3O.%20A%20LEI%20E%20A%20PR%C1TICA.doc>. Acesso em: 7 fev. 2007. 27 PAPALI, Maria Aparecida C. R. A legislação de 1871, o Judiciário e a tutela de ingênuos na cidade de Taubaté. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/RevistaJH/vol2n3/09-Papali.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2007. 11 fundamental da lei de 1885 esteve relacionada às relações entre libertos e ex- senhores.28 Na Câmara, por ocasião dos Projetos Dantas e Saraiva, os deputados debatiam a respeito da necessidade de proteção de que necessitaria o escravo liberto, principalmente no que se referisse à liberdade dos escravos sexagenários, uma vez que se tratava de velhos escravos que, além dos defeitos que a escravidão lhes imprimira, teriam, pelos limites da idade, muito mais dificuldades para suprir sua sobrevivência. Dizia um dos debatedores que o negro velho liberto, com a liberdade, abandonaria de forma imediata a casa de seu ex-senhor e se lançaria na mendicidade, para gozar esta liberdade na vagabundagem em decorrência de não ter noções de justiça, não ter conhecimento do mundo, ser ignorante e incapaz de resistir a vícios, além de tornar-se um produto da imprevidência dos legisladores, por isso considerava mais humanitário deixar os velhos escravos nas fazendas. Um outro deputado nessa mesma discussão dizia não entender que tipo de felicidade a liberdade traria aos escravos sexagenários, se esta liberdade seria vivida na ociosidade e na mendicância. Os opositores ao projeto Dantas invocavam o argumento de que a liberdade seria um mal aos libertos velhos, os quais estariam condenados a morrer nas estradas, à míngua, porque a liberdade para quem não pudesse gozar dela era um presente cruel. Neste ponto há de ser considerado que a liberdade como sinônimo de desproteção não estava restrita somente aos sexagenários, embora em relação a eles a questão fosse mais preocupante. Se o liberto precisava de proteção, e neste ponto surge uma questão fundamental no que se refere ao encaminhamento do processo de abolição, havia de ser definido o âmbito no qual essa proteção seria exercida. A incapacidade do Estado para viabilizar qualquer medida nesse sentido era um argumento ao qual se recorria, porque bastava analisar e trazer para o debate o destino que tiveram os filhos de escravos libertos pela lei de 1871. Os ingênuos que não estavam no domínio dos senhores de suas mães, porque foram vendidos ou porque as mães faleceram, fazendo com que os senhores se desfizessem dos filhos, por abandono ou por venda, quanto a estes, o Estado não dispunha de meios de dar-lhes proteção, por não ter estabelecimentos que pudessem receber os menores. Nesse 28 MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Unicamp; Centro de Pesquisa em História Social e Cultura, 1999, p. 45. 12 sentido, a incapacidade do Estado para prover proteção era um forte argumento quando se colocava em questão a liberdade dos sexagenários, porque sem o amparo de seus senhores e sem o amparo do Estado, os sexagenários transformados em libertos seriam deixados à própria sorte. Sobre a questão da proteção, Joseli Mendonça diz que a relação de dependência era parte daquele mundo de senhores e escravos, de ex-senhores e libertos, os quais eram livres do ponto de vista jurídico, mas que mantinham com os ex-senhores relação de dependência, favorecimento e gratidão e não cortar estes laços de dependência que por tanto tempo a escravidão mantinha significava para os senhores manter sua dignidade senhorial.29 Derrotado Dantas, seu projeto de reforma da “questão servil” foi substituído pelo Projeto Saraiva. Este projeto foi aprovado. Encaminhado ao Senado, em nada foi modificado e sob a liderança de um político conservador, o Barão de Cotegipe, o "projeto do elemento servil" transformou-se na Lei n.º 3.270, de 28 de setembro de 1885, sancionada por D. Pedro II, (p. 35-36) apelidada “Lei dos Sexagenários”, mas também denominada “Lei Saraiva-Cotegipe”, que alforriava os escravos idosos, mas estipulava aos libertandos a obrigatoriedade da prestação de serviços pelo espaço de três anos ou até os 65 anos.30 Essa lei foi geralmente negligenciada pela historiografia, que se ocupou muito mais da abordagem da lei de 1871 e da própria lei de 1888. Segundo Joseli Mendonça, o período de prestação de serviços pelos escravos sexagenários foi um mecanismo que tornou possível manter uma relação de domínio para além dos limites da liberdade e, dessa forma, tratando de liberdade, a lei de 1885 tratou sempre de escravidão. Conforme a mesma autora, “ainda que a liberdade pudesse trazer aos escravos a igualdade jurídica, havia de se assegurar que desigualdades fossem mantidas”.31 Burlar a lei era uma possibilidade que existia para os senhores e esta, entre outras considerações, decorre dos fatos narrados em relação à Lei dos Sexagenários. A primeira delas é que a liberdade para um sexagenário não era favorecimento algum, já que este escravo velho não teria vantagem em ser livre com 29 MENDONÇA, Joseli M. N. Op. cit., p. 80. 30 BRASIL. Lei Imperial n. 3.270, de 28 de setembro de 1885. Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Rio de Janeiro, 1º out.1885. Disponível em: <http://www.2camara.gov.br/legislação/publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em: 7 out. 2006. 31 “Nesse sentido, a lei de 1885 tentou prover os senhores de mecanismos que tornassem possível uma relação de domínio para além dos limites da liberdade” (MENDONÇA, Joseli M. N. Op. cit., p. 118). 13 tal idade. Uma segunda consideração diz respeito ao favorecimento dos senhores do ônus de manterem escravos improdutivos nos seus domínios, os quais poderiam ser abandonados em nome da liberdade que a lei lhes garantia. Constata-se que perder escravos velhos ou moços por determinação da lei não era das coisas mais agradáveis para o senhor e este, por meio de dispositivos jurídicos, procurava manter escravos no seu domínio e, quando este domínio tivesse de ser rompido por determinação da lei e não pela sua vontade, a indenização era um elemento do qual não estava disposto a abrir mão32 2.1.1 As cartas de alforria na prática forense As ações de liberdade envolviam procedimentos jurídicos utilizados para a requisição da emancipação de algum cativo perante o Judiciário brasileiro da época. Os atos do processo de liberdade abarcavam grandes complexidades e sutilezas. Os aplicadores do Direito viam-se diante da difícil tarefa de equilibrar-se entre, de um lado, o reconhecimento das negociações entre escravos e senhores e, de outro, a preservação do Direito patrimonial. Na dúvida sobre a interpretação das leis, os juízes da época poderiam recorrer ao Conselho de Estado que, com base em suas atribuições, respondia às questões levantadas, o que garantia a aplicação uniforme das leis e sua interpretação, limitando- se, como se acreditava, os poderes do juiz a simplesmente declarar a lei aplicável ao caso concreto, sem inovar nem criar. A dúvida chegava ao Conselho em forma de Consulta e a resposta tomava a forma de um Aviso.33 Um fato concreto que suscitava dúvida e ao qual se recorria ao Conselho é fornecido pela própria Constituição que garantia a propriedade em toda sua 32 MENDONÇA, Joseli M. N. Op. cit., p. 201-206. 33 Segundo Reinaldo Lopes, o Conselho de Estado era uma instituição característica da monarquia oitocentista. No Brasil houve três Conselhos, dos quais o terceiro atuou durante o segundo Império. O Conselho era ouvido em questões que dissessem respeito ao Poder Moderador e pronunciava-se em "conflitos de jurisdição entre as autoridades administrativas e entre estas e as judiciárias"; sobre decretos, regulamentos e instruções "para a boa execução das leis". Opinava ainda sobre propostas que o poder executivo enviasse à Assembléia Geral e sobre "abusos das autoridades aclesiásticas". (LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 322-325). 14 plenitude, no artigo 179, inciso XX.34 Este dispositivo constitucional indica a dificuldade da tarefa dos magistrados ao enfrentarem, no cotidiano da Justiça, pleitos cada vez mais diversos e imprevistos. Em várias ocasiões, o aplicador do Direito precisava refletir detidamente sobre a solução a ser empregada, para que a vontade senhorial e o princípio da propriedade privada não fossem maculados.35 Quanto às cartas de liberdade, estas carregavam consigo vários sentidos, além da outorga da liberdade a um escravo, e muitas vezes tal concessão transformava-se em uma espécie de compromisso tácito de lealdade entre o senhor e seu escravo. A efetividade desse mecanismo exigia o cumprimento dos atos pactuados. Cabia, então, ao sistema judiciário não apenas os reconhecer, como também e, principalmente, legitimar e proteger esses atos, no caso de serem desrespeitados por alguma parte ilegítima interessada em violar a vontade senhorial. A intervenção da Justiça somente se justificava em caso de impasse. As ações de liberdade impetradas após a vigência da Lei do Ventre Livre pertencem a uma época de crescente agitação abolicionista e de leis e de decisões judiciárias indicativas da necessidade de reformas no sistema. Movidos pelo desejo, e, muitas vezes, pela necessidade de criar uma situação mais justa, os cativos exploravam o espaço institucional disponível na busca de alternativas inexistentes na relação pessoal com seu proprietário. Os escravos para arrancar do senhor alguma vantagem, recorriam à submissão e à subserviência como estratégias e quando tais alternativas não alcançavam êxito, o Judiciário convertia-se numa instância de enfrentamento e desgaste da vontade senhorial. 34 “É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização”. (BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Contitui%C3%A7ao24htm>. Acesso em: 11 out. 2006). 35 "Na Comarca de Vitória, ES, Venâncio Gomes Loureiro, por exemplo, quis beneficiar com a liberdade seu afilhado Sebastião, filho de Efigênia, escrava do finado Francisco Pinto Ribeiro. O padrinho do escravo, não obtendo o consentimento do tutor e curador geral dos órfãos, requereu, em juízo, o arbitramento do valor para depósito. O Juiz encarregado avaliou o ingênuo em cinqüenta mil réis e Venâncio juntou ao processo um talão de depósito da quantia ajuizada. Em 1851, a sentença foi favorável ao pleito: 'Julgo por liberto ao menor Sebastião, filho de Efigênia, escrava dos órfãos filhos do finado Francisco Pinto Ribeiro'”. (CAMPOS, Adriana Pereira. Escravidão e liberdade nas barras dos tribunais. Disponível em: <http://72.14.205.104/search?q=cache:Jk8CixqeXtcJ:www.historica.arquivo estado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao09/materia03/texto03.pdf+escravos+%C3%B3rf%C3%A3os &hl=pt-BR&ct=clnk&cd=26&gl=br>. Acesso em: 10 mar. 2007). 15 De modo geral, os escravos tentavam estabelecer, previamente, um ajuste consensual pela alforria. Apenas ocasionalmente, quando de um impasse, requisitava-se a intervenção do juízo da localidade. 3 A ESCRAVIDÃO NEGRA E A LEGISLAÇÃO CODIFICADA DO SÉCULO XIX 3.1 A Constituição de 1824 A Constituição de 1824 consagrou a declaração dos direitos individuais no seu ordenamento, inspirando-se no exemplo francês e separando os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros no artigo 179. Mencionou o cidadão ativo, titular de direitos políticos (artigos 90 e 91), mas os direitos de igualdade e de liberdade ficaram prejudicados na prática, uma vez que no contexto social prevalecia uma discriminação quase generalizada de direitos. A Constituição de 1824, a qual, dita “liberal”, em seu Título 2.º, artigo 6.º, referente aos cidadãos brasileiros, no parágrafo I, diz: “São cidadãos brasileiros os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação”. Entretanto, a Lei Costumeira, a que realmente vigorava, revelava uma outra realidade, aquela em que o ingênuo e o liberto estavam longe de poder fazer valer a sua cidadania, o que explica os muitos estratagemas utilizados, por uns e por outros, para tornar suas existências possíveis na sociedade em que viviam. As contradições começam na própria Constituição. Logo no Título 4.º, Capítulo VI, das Eleições, o artigo 94 refere: Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos os que podem votar na Assembléia Parochial. Exceptuam-se: I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentosmil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego. II. Os Libertos. [...].36 36 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Contitui%C3%A7ao24htm>. Acesso em: 11 out. 2006. 16 Os ingênuos, assim como os escravos libertos, estavam enquadrados em categorias jurídicas específicas que não lhes davam acesso a direitos iguais aos das pessoas nascidas livres.37 A Constituição de 1824, no Título 8.º, que trata das disposições gerais, das garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, sem mencionar as palavras “escravo” ou “escravidão”, no artigo 179, refere: A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis.38 Segundo Reinaldo Lopes, "dizia-se que os senhores de escravos eram legítimos proprietários e que a abolição significava simplesmente desapropriar sem indenizar, o que era inconstitucional".39 Ainda segundo o mesmo autor, este era um argumento de caráter jurídico, bem localizado no artigo 179, parágrafo XX, da Constituição do Império, que garantia o direito de propriedade, que serviu tanto para os abolicionistas quanto para antiabolicionistas. No Titulo 8º – Das disposições gerais, e das garantias dos direitos civis, e políticos dos cidadãos brasileiros –, em linha evidentemente liberal, se constata: Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação. (grifou-se) A concepção da propriedade contida no texto da Carta Imperial, no artigo acima referido, também pode ser relacionada à indenização mencionada nos textos das leis do Império, conforme visto na Lei dos Sexagenários, por exemplo, por isso 37 Ingênuos, eram os filhos de mulher escrava libertados ao nascer ou na pia batismal. A prática da libertação do nascituro já era antiga e havia sido incorporada ao costume, sobretudo para resolver muitos casos de filhos bastardos, fruto das relações entre os proprietários, ou os filhos destes, e suas escravas. (GRAF, Márcia Elisa de Campos. Op. cit., on-line). 38 Tendo em vista enfocar o caráter histórico deste trabalho, optou-se por manter a ortografia da época na transcrição textual do artigo da Constituição. 39 LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 345. 17 as defesas que se faziam nos recintos parlamentares em torno das indenizações podem ser ligadas à tentativa de manutenção do domínio senhorial, ou seja, ao aludirem à necessidade de que todo e qualquer senhor devesse ser indenizado por todo e qualquer escravo alforriado, os parlamentares estavam tentando preservar as condições de legitimidade do exercício do domínio senhorial, prevista no artigo constitucional acima reproduzido, a ponto de que fosse possível a continuidade das relações de escravidão. Na escravidão, o poder senhorial era absoluto e a intervenção da lei no direito de propriedade, como aconteceu nas leis de 1871 e 1885, tendia a provocar desgastes e fissuras na base do sistema.40 3.2 O Código Criminal do Império e a Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835 Em 1830, já com previsão constitucional, foi editado o Código Criminal do Império, que de certa forma não foi pensado em relação aos preceitos constitucionais, uma vez que o artigo 14 estabelece: Será o crime justificável, e não terá punição dele: [...] § 6º Quando o mal consistir em castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos, e os mestres a seus discípulos; ou desses castigos resultar, uma vez que a qualidade dele não seja contrária às leis em vigor. [grifou-se] Ao longo da história, foram denunciadas diferentes modalidades de violência a que eram submetidos os negros durante a escravidão, as quais foram denunciadas pelos abolicionistas em larga escala, na época em que as mesmas ocorriam, e pelos registros históricos que chegaram até os dias atuais. Quando o artigo referido menciona como requisito para crime justificável “castigo moderado”, entende-se que todos os castigos eram moderados e, portanto, todos os crimes justificáveis, o que fez com que a lei não correspondesse à realidade para a qual foi criada, e a prática tornou o senhor soberano, uma vez que a justiça certamente não penetrava nas propriedades, para que os escravos pudessem queixar-se de castigos imoderados, e era inútil a queixa de um escravo à autoridade, porque o escravo, para queixar-se do senhor, “precisa a mesma força de 40 MENDONÇA, Joseli. Op. cit., p. 137-147. 18 vontade e resolução que para fugir ou suicidar-se, sobretudo se ele deixa algum refém no cativeiro”.41 Como se percebe, a violência estava institucionalizada, porque a tortura pública não era impedida, mas aplicada em nome da lei. O castigo público não excluía outras penas, tais como o calabouço, a palmatória, o ferro para marcar, as correntes, entre outros. Com a publicação da Lei n.º 4, de 10 de junho de 1835, passou a vigorar no ordenamento jurídico brasileiro a pena de morte para crimes violentos de escravos contra seus senhores, conforme se constata no artigo 1º: Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento ou ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.42 No Conselho de Estado foi proposta a revogação do artigo 60 do Código Criminal, que criou a pena de açoites, e a Lei de 10 de junho. Sustentando uma e outra abolição, iniciada pela Comissão da qual era relator, o Conselheiro Nabuco fez algumas considerações assim resumidas na ata da sessão de 30 de abril de 1868: O conselheiro Nabuco sustenta a necessidade da abolição da lei excepcional de 10 de junho de 1835. Que ela tem sido ineficaz está provado pela estatística criminal; os crimes que ela previne têm aumentado. É uma lei injusta porque destrói todas as regras de imputação criminal, toda a proporção das penas, porquanto os fatos graves e menos graves são confundidos, e não se consideram circunstâncias atenuantes e agravantes como se os escravos não fossem homens, não tivessem paixões e o instinto de conservação. Que a pena de morte, e sempre a morte, não é uma pena exemplar para o escravo que só vê nela a cessação dos males da escravidão. Que o suicídio freqüente entre os escravos, e a facilidade com que confessam os crimes, e se entregam depois de cometê-los, provam bem que eles não temem a morte.43 Por esta afirmação pressupõe-se que o pensamento abolicionista da época mostrava a escravidão como ela era e para a qual o suicídio ou a mortepareciam 41 NABUCO, Joaquim. Op. cit., on-line.(a) 42 BRASIL. Lei Imperial n.º 4, de 10 de junho de 1835. Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, Rio de Janeiro, Livro 1º de Leis, fl. 142v., 15/6/1835. Disponível em: <http://www.2camara.gov.br/ legislação/publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em: 7 out. 2006. 43 NABUCO, Joaquim. Op. cit., on-line.(a) 19 para o escravo a cessação dos males decorrentes do cativeiro e um incentivo para o crime. Joaquim Nabuco posicionou-se a respeito da pena de açoites da seguinte forma: É um castigo que não corrige, mas desmoraliza. É além disso, uma pena que não mantém o princípio da proporção das penas, sendo que o mesmo número de açoites substitui a prisão perpétua, a prisão por 30, 20 e 10 anos. As forças do escravo é que regulam o máximo de açoites e pois o máximo vem a ser o mesmo para os casos graves e os mais graves. Que a execução dessa pena dá lugar a muitos abusos, sendo que em muitos casos é iludida, em outros tem causado a morte.44 A pena de açoites vigorou até 22 antes da abolição da escravatura, mesmo que juridicamente não pudesse ser aplicada na lei penal brasileira, uma vez que a Constituição de 1824, no artigo 179, inciso XIX, aboliu esta pena por considerá-la cruel. 3.2.1 A escravidão e a pena de morte – Joaquim Nabuco e a defesa do Preto Tomás No aspecto legal, Joaquim Nabuco considerava a escravidão como um crime contra a humanidade, sendo ilegal perante até o direito de propriedade, e que a legislação, criando dois tipos de sanção – em relação ao senhor e em relação ao escravo –, acirrou o conflito entre as duas ordens sociais.45 Para “lutar corpo-a-corpo com a escravidão e a pena de morte” um dia, o jovem acadêmico apresentou-se para defender perante o Júri de Recife um escravo assassino. Tratava-se de um réu confesso e seu crime tinha todas as agravantes: o preto Tomás, para vingar-se de ter sido açoitado na praça pública, havia 44 NABUCO, Joaquim. Op. cit., on-line.(a) 45 Joaquim Nabuco começou seus estudos de Direito em 1866, iniciando-os na Faculdade de Direito de São Paulo, mas terminando-os na de Recife. São Paulo e Recife eram as duas únicas academias de Direito no Brasil. Em 1869, Nabuco voltou ao Recife, para cursar o quarto ano acadêmico. Desde moço o jovem estudante revelou posição marcantemente abolicionista, época em que escreveu “A Escravidão”, livro que nunca chegou a ser publicado, nem terminado porque faltou escrever-lhe o último capítulo. O próprio Joaquim Nabuco na maturidade escreveu a cerca de sua obra: “No meu 5º ano no Recife levei a preparar um livro que ainda guardo, uma espécie de Perdigão Malheiro inédito, sobre a escravidão entre nós”. (NABUCO, Joaquim. Minha formação. Disponível em: <biblio.com.br/conteudo/JoaquimNabuco/minhaforma%E7%E3o.htm>. Acesso em: 11 mar. 2007). 20 assassinado o seu ofensor, premeditadamente, com um tiro à queima-roupa. Mais tarde, conseguiu fugir da cadeia, matando um guarda. Depois, cercado pela polícia em um quarteirão central de Recife, defendeu-se de seus captores por mais de 24 horas, homiziando-se nas casas e subindo nos telhados, deixando a população sobressaltada com os disparos que fazia contra os que tentavam capturá-lo. A cidade, conta Carolina Nabuco46, não dormiu, enquanto não teve notícia de sua prisão. “Não era mais um homem, era um tigre”, reconheceu Joaquim Nabuco.47 Ao abordar o caso do Preto Tomás, réu de morte defendido por ele no júri do Recife, embora não quisesse fazer um paralelo entre a escravidão e a pena de morte, com este fato verídico, Joaquim Nabuco protesta ao mesmo tempo contra a escravidão e contra a morte. O preto Tomás foi condenado a galés perpétuas; posteriormente, em Olinda, foi-lhe confirmada a pena de morte. Joaquim Nabuco foi o advogado do negro Tomás e o caso foi relatado pelo próprio defensor do caso no livro “A escravidão”.48 Joaquim Nabuco se indagava qual a razão de ser da pena de açoites, uma vez que o legislador, ao limitar os açoites a cinqüenta por dia, não tinha a intenção de que esta pena atentasse contra a vida do escravo. Quem se degrada na praça pública, o que açoita ou o que é açoitado? Não é este. Profundamente aviltante, esse castigo só serve para destruir o resto de pudor que uma natureza escrava possa ter e quando esse pudor não se gasta, redobra; torna-se em uma paixão, em um desejo insaciável de vingança, e, ainda assim, principalmente a lei não alcança seu fim.49 Depreende-se do relato do caso que Tomás foi preso com muita dificuldade, uma vez que era homem muito forte. O Tribunal de Olinda, anteriormente, já havia condenado o escravo à morte. A defesa de Joaquim Nabuco, em Recife, seria uma das mais difíceis, já que praticamente o réu estava condenado à morte antes mesmo desse julgamento, e o Imperador, devido ao Poder Moderador, estava acostumado a comutar a pena capital em prisão perpétua, no entanto abstinha-se nesses casos, ou 46 NABUCO, Joaquim. O réu escravo. Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo. Série Grandes Causas. Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/o-reu-escravo>. Acesso em: 1º mar. 2007. 47 NABUCO, Joaquim. Op. cit., 1999, p. 42. 48 Idem, ibidem, p. 41-46. 49 Idem, ibidem, p. 40. 21 seja, quando o escravo matava o feitor ou o senhor. Os fazendeiros reunidos exigiam castigo exemplar ao escravo Tomás no Tribunal do Júri.50 Na origem desse processo havia dois crimes sociais, a escravidão e a pena de morte. Fora a escravidão que levara Tomás a praticar o primeiro crime e a pena de morte que o levara a perpetrar o segundo. Referiu Nabuco: Obrigado pela lei natural a conservar uma vida que não era da sociedade, mas de Deus, tentara evadir-se quando o quiseram prender de novo para o cadafalso; foi então o seu segundo crime; ou por medo invencível ou por vindita atroz, aniquilou ele um homem que o agarrara pelas costas para sujeitá-lo à pena da lei e isso quando ele estava a entrar no gozo da liberdade pela fuga.51 Diante dos jurados, Joaquim Nabuco exclamou: “Não cometeu um crime, removeu um obstáculo!”, frase que provocou grande vibração na assistência, demonstrando ser conhecedor da arte da oratória, que dominava bem, com grande mestria.52 O réu foi condenado a galés perpétuas, que era o menor castigo que se poderia esperar para o caso, e o discurso de Nabuco foi incluído no rol dos acontecimentos que passariam para a História. Em 28 de novembro de 1870, Nabuco recebeu o grau de bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas. A título de curiosidade, o escravo Tomás durante suas peripécias de fuga, dados os adjetivos que a população utilizava em relação a ele, tais como “notório facínora”, “tão revoltante acusado”, permitem que se faça um breve questionamento a respeito do dano, mais especificamente, quanto à reparação do dano cometido por escravo, crime cuja reparação estava prevista no Código Criminal. (grifou- se). No capítulo IV, o artigo 21 do Código Criminal dispõe quanto à satisfação do dano, verbis: “O delinqüente satisfará o damno, que causar com o delicto”. E, quanto a escravos, estava expressamente previsto no referido Código, no artigo 28, 50 Por esta afirmação entende-se que o escravo Tomás era visto como um problema de segurança pública e também se percebe o envolvimento das elites locais com o crime e a criminalidade e que a violência e a tortura são os meios mais aprovados para serem utilizados pelo Estado na manutenção da ordem social e política.Transportados para a nossa época, percebe-se que hoje ainda esta questão é atual quando se pensa em afirmação do Estado de Direito, respeito aos direitos humanos e consolidação da cidadania no país. (KOERNER, Andrei (Org.). História da Justiça Penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCRIM, 2006, p. 137-149). 51 NABUCO, Joaquim. Op. cit., 1999, p. 43. 52 Idem, ibidem, p. 43. 22 parágrafo 1.º, verbis: “Serão obrigados á satisfação, posto que não sejam delinqüentes: 1.º O senhor pelo escravo até o valor deste”. Fica bastante claro nos citados artigos que quem causa prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano. Este é um princípio que evoluiu no tempo e está consagrado nos dias atuais, mas que não teve origem no Código Criminal do Império. As Ordenações Filipinas, Livro V Título 86 parágrafo 5.º53, já impunha ao senhor a obrigação de pagar o dano, ou de dar o escravo e, pelo preço da venda, ser pago o dano. Na Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas54, no Código Civil de 191655 este príncípio também foi incorporado, bem como está presente no Código Civil de 2002.56 A elaboração deste princípio foi feita com base nas disposições da Lex Aquilia, lei que vigorou, provavelmente, no século III a.C., e dispunha no primeiro capítulo que: "quien matase injustamente a un esclavo ajeno, una esclava ajena o ganado cuadrúpedo, será condenado a pagar al propietario tanto dinero cuanto fuera su valor máximo en ese año".57 Originariamente, a sanção da Lex Aquilia só se aplicava a dano causado por ato positivo e consistente em estrago físico e material da coisa corpórea. Assim, quanto ao primeiro requisito, não constituía dano, perante aquela lei, deixar sem alimento um cavalo, causando, com isso, sua morte. Quanto ao segundo, não era considerado, pela Lex Aquilia, como dano deixar fugir o animal alheio, porque não ocorria estrago físico e material. Além destes requisitos, a Lex Aquilia exigia que a danificação fosse feita iniuria, isto é, contra a lei. 53 Livro V Título 86, parágrafo 5.º: E se achar culpado no pôr do fogo, de que se seguir o dano, algum escravo, seja açoitado publicamente, e ficará na vontade de seu senhor pagar o dano que o fogo fez, ou dar o escravo para se vender, e do preço se pagar o dito dano. (ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livro V Título 86, parágrafo 5.º Disponível em: <http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/14p863.htm>. Acesso em: 25 fev. 2007). 54 Artigo 799 da Consolidação das Leis civis, verbis: “Todo o delinquente está obrigado á satisfazer o damno, que causar com o delicto” (FREITAS, Augusto Teixeira de. Op. cit., p. 484). 55 Artigo 159, verbis: "Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano". (BRASIL. Código Civil e legislação civil em vigor. Theotonio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa. 22 ed. atual. até 13 jan. 2003. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1.367). 56 No novo Código Civil de 2002, o dano aquiliano foi incorporado no artigo 186, verbis: "Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" e no que se refere à responsabilidade civil, no artigo 927, verbis: "Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Parágrafo único: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". 57 DOMINGO, Rafael (Coord.). Textos de Derecho Romano. Lex Aquilia de damno iniuria dato. Navarra: Editorial Aranzadi, 2002, p. 256. 23 Mais tarde, os jurisconsultos entenderam que a palavra iniuria não significava apenas o ilícito, o contrário à lei, mas implicava, também, a culpabilidade do autor do dano.58 Outrossim, as sanções da Lex Aquilia aplicavam-se, mais tarde, a outros casos de danificação, além das restrições originárias, como aos prejuízos causados por omissão ou verificados sem o estrago físico e material da coisa.59 No cálculo do valor do dano, originariamente, se limitava a estabelecer o valor objetivo da coisa, mas no período clássico incluía-se todo o interesse do proprietário relativamente a ela. Assim, desde essa época, o cálculo do dano incluía, além do dano efetivo e material (damnum emergens), também a perda de lucro (lucrum cessans) sofrida pelo proprietário por causa do ato ilícito do ofensor.60 Segundo Perdigão Malheiro, do fato criminoso do escravo resulta para o senhor a obrigação de indenizar o dano ao ofendido, segundo o artigo 28, § 1.º do Código Criminal, mas somente até o valor do mesmo escravo. Refere ainda que esta reparação não pode ser pedida senão por ação cível61, que prescreve em trinta anos62. É a Ação Noxal63 dos romanos, e já conhecida do Direito brasileiro (Ordenações Livro 5º, Título 86, § 5º). Mas se o escravo morresse, se fosse 58 O elemento da iniuria incluía a antijuricidade e a intencionalidade; esta última se apreciava em razão da situação que tipicamente a envolvia. A jurisprudência fez uma interpretação progressivamente extensiva desta lei, incluindo a comissão por omissão e por negligência e apreciando uma causalidade imediata (DOMINGO, Rafael. Op. cit., p. 372). 59 A partir da Lex Aquilia, embora de forma primitiva, a noção de culpa pela primeira vez passou a ser esboçada como fundamento da responsabilidade civil, de forma com que o agente não seria responsável pelo dano, se agisse sem culpa. Esta lei introduziu o damno iniuria datum, ou melhor, prejuízo causado a bem alheio, empobrecendo o lesado, sem enriquecer o lesante. Esta teoria que se propagou pela Idade Média deu início à responsabilidade civil subjetiva na qual o fator culpa é determinante para a existência da indenização, assim como o dano e o nexo causal. Dessa forma, o Dano Aquiliano foi incorporado à época atual pelo Código Civil de 1916, no artigo 159, e pelo Novo Código Civil de 2002, nos artigos 186 e 927, verbis: “Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Parágrafo único: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (BRASIL. Código Civil e legislação civil em vigor. Op. cit., p. 166). 60 MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito Romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 136-137. 61 Lei n.º. 261, de 3 de dezembro de 1841, artigo 68, que derrogou o artigo 31 do Código Criminal e o artigo 269, § 5º do Código de Processo Criminal, verbis "A indemnização em todos os casos será pedida por ação civil, ficando revogado o Artigo 31.º do Código Criminal, e o § 5.º do artigo 269.º do Código de Processo. Não se poderá porêm questionar mais sobre a existencia do facto, e sobre quem seja o seu autor quando estas questões se achem decididas no crime". 62 Artigo 36 da Lei de 1841, verbis: "A obrigação de indemnizar prescreve passados trinta annos, contado do dia em que o delicto for commetido". (BRASIL. Lei n.º 261, de 3 de dezembro de 1841. In: Coleção das Leis do Império do Brasil. 1841. Tomo 4.º, Parte 1ª, Secção 32.ª. Disponível em: <http://www. 2camara.gov.br/legislação/publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em: 15 maio 2006). 63 Noxa: daño, perjuicio, delito; hijo o esclavo que causa el daño o comete el delito. (DOMINGO, Rafael. Op. cit., p. 456). 24 condenado em pena capital ou perpétua, como foi o caso de Tomás, se o senhor o entregasse,ficaria liberado? Perdigão Malheiro entendia esta questão da seguinte maneira: “[...] dispunha o Direito Romano e a nossa lei anterior; caso em que, recebido pelo ofendido o escravo ou seu produto, tem-se preenchida a satisfação, como quer a lei (Código Criminal, artigo 28, § 1º)”.64 Prossegue Perdigão Malheiro: [...] se podem levantar outras hipóteses; porquanto sendo o falecimento um sucesso fatal, e os outros fatos conseqüências ou efeitos da condenação, todavia o ofendido nenhuma indenização receberia, se o senhor não fosse obrigado, o que parece opor-se ao determinado no Código Criminal, artigos 21 e seguintes, e mesmo no artigo 28, que declara o senhor subsidiariamente responsável, embora seja esta responsabilidade limitada ao valor do escravo, e não à pessoa deste.65 Quanto à indenização de dano, trata-se principalmente na reparação do mal causado ao ofendido, a qual deve ser a mais completa que se possa, independente da punição e da criminalidade. Segundo Teixeira de Freitas, em tais casos o senhor não fica obrigado, sobretudo se tem feito abandono de escravo; porque seria iníquo, como se decide em várias leis romanas, que, além de perder o escravo, pagasse ao ofendido quantia igual ao valor dele, quando já semelhante valor ele não conserva.66 Ainda, no pensamento de Teixeira de Freitas, cabe esclarecer que este autor considerava ter sido mal interpretada a norma constitucional que mandava organizar o quanto antes um Código Civil e Criminal (artigo 179, parágrafo 18, da Constituição de 1824), uma vez que foi elaborado o Código Criminal em 1830 sem haver um Código Civil, o que considerava um erro, “transgressão do sábio pensamento da Legislação Fundamental”.67 CONCLUSÃO Este trabalho descritivo de reconstrução histórica, ao abordar o tema da escravidão negra no Brasil, deparou-se com o distanciamento entre as leis 64 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Op. cit., p. 18-19. 65 Idem, ibidem, p. 18-19. 66 FREITAS, Augusto Teixeira de. Op. cit., p. 487. 67 Idem, ibidem, p. 485. 25 disponíveis e a prática social. Isso foi constatado pelo encadeamento de leis e decretos que pouco a pouco, num processo lento e gradual, levaram o país à abolição total da escravidão em 1888. Pode-se dizer que desde a Lei Diogo Feijó, de 1831, que pretendeu abolir o tráfico de escravos, até Lei dos Sexagenários, de 1885, que declarava livre todo escravo com mais de sessenta anos, se as normas não eram sumariamente ignoradas, seus detalhes faziam com que fossem absolutamente inócuas na prática. Destes fatos, percebe-se que o problema central sobre o qual a escravidão negra se situava na legislação da época se dava em razão do direito de propriedade dos senhores em relação aos seus escravos. A Constituição imperial, entre os direitos individuais inalienáveis, registrava o direito de propriedade e isto se tornava um problema difícil de ser resolvido porque nem os abolicionistas sabiam como extinguir a escravidão sem indenizar os senhores pelo seu “direito adquirido”. REFERÊNCIAS ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. I. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. BRASIL. Código Civil e legislação civil em vigor. Theotonio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa. 22. ed. atual. até 13 jan. 2003. São Paulo: Saraiva, 2003. ______. Código Criminal do Império. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em: <http://www.2camara.gov.br/legislação/publicaçõesdoimperio/coleção3.html>. Acesso em: 7 out. 2006. ______. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Contitui%C3%A7ao 24htm>. 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