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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: lelivros.love ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Diretor Geral: Wilon Mazalla Jr. Coordenação Editorial: Willian F. Mighton Coordenação de Revisão e Copydesk: Alice A. Gomes Revisão de Textos: Bruna Oliveira Gonçalves Arquivo ePub: Tatiane de Lima Capa: Paloma Leslie Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) A Dialética entre valores e forma jurídica / José Marco Miné Vanzella, organizador . -- Campinas, SP : Editora Alínea, 2015. Bibliografia. 1. Dialética 2. Dignidade humana 3. Direitos fundamentais 4. Direito - Filosofia 5. Ética 6. Valores (Ética) I. Vanzella, José Marcos Miné. 14-13507 CDD-170 Índices para catálogo sistemático: 1. Dignidade humana : Ética : Filosofia 170 ISBN 978-85-7516-730-4 Todos os direitos reservados ao Grupo Átomo e Alínea Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.0047 www.atomoealinea.com.br Sumário Apresentação Capítulo 1 O Direito e o Outro: um estudo crítico sobre o caráter imunitário do Direito Castor M. N. Bartolomé Ruiz Breve esboço genealógico do direito objetivo A imunização da ordem contra a ameaça da vida O múnus como dom do comum O direito imunizador A (in)conclusão do direito do outro Capítulo 2 Instituições de Uma Estrutura Social Básica: uma análise comparativa entre a Teoria da Justa de John Rawls e a Constituição Cidadã Brasileira de 1988 Daniel Roxo de Paula Chiesse e Leandro da Silva Carneiro Introdução John Rawls e a Teoria da Justiça Instituições de uma estrutura básica justa A Constituição Federal brasileira de 1988: uma análise comparativa entre as instituições nacionais e a proposta teórica de John Rawls Considerações finais Capítulo 3 Valores Constitucionais de Cidadania, Identidade, Reconhecimento e Efetivação dos Direitos José Marcos Miné Vanzella Introdução Da facticidade e validade ao ponto de partida normativo do direito Identidade, reconhecimento e efetivação de direitos Dos valores e princípios constitucionais da cidadania à constituição material e ao Estado prestacional Conclusão Capítulo 4 Antinomias de uma Ética Antropocentrada Jovino Pizzi Introdução A modernidade frente aos ataques de liquefação O antropocentrismo moderno O abrasileiramento da modernidade Ocidental O Conto do Vigário : antinomias de um ethos abrasileirado A modernidade ligada ao sujeito nominativo Capítulo 5 Repensando o Direito e sua Configuração Burguesa Renato Almeida de Oliveira e Antônio Glaudenir Brasil Maia Introdução A constituição do direito burguês e os seus limites A dupla existência humana e o formalismo jurídico O direito burguês na sociedade contemporânea Considerações finais Capítulo 6 O Marxismo e o Papel dos Fatores Subjetivos na Escolha Moral Enoque Feitosa Escolha moral e vida interior A tradição marxista e os fatores não conscientes na escolha moral A crítica marxista no tocante à questão do inconsciente e os seus limites Capítulo 7 A Ética Pública e a Efetivação da Cidadania Pablo Jiménez Serrano Introdução A ética pública como expressão da filosofia prática A ética pública em face do desenvolvimento social e da efetivação da cidadania Conclusão Capítulo 8 A Dignidade da Pessoa Humana: diálogo entre Teologia, Ética e Direito Lino Rampazzo e José Marcos Miné Vanzella Introdução O pensamento grego: a impenetrabilidade do conceito de pessoa A contribuição da patrística Agostinho: da teologia à antropologia A dignidade da pessoa humana: Ética e Direito Conclusão Capítulo 9 Habermas e a Sociedade Pós-secular: uma perspectiva Ético-Educativa Anderson Menezes Introdução (notas históricas) Tolerância religiosa: entre laicismo e radicalismo religioso Ainda há lugar para a religião na sociedade pós-secular, pós-religiosa O saber hermenêutico como caminho fundamental para as religiões – à guisa de conclusão Capítulo 10 Uma Análise do Semiárido a partir da Ideia de Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen Marcos Fabio Alexandre Nicolau Introdução O novo semiárido brasileiro O semiárido e a pobreza Pobreza, liberdade e desenvolvimento Considerações finais Capítulo 11 A Mulher na Filosofia Materialista de Denis Diderot Paulo Jonas de Lima Piva e Fabiana Tamizari Mulher, natureza, sociedade A matéria e a mulher O caso Suzanne Simonin: a mulher, a natureza e os dogmas morais do cristianismo Conclusão Sobre os Autores Apresentação Esta obra foi produzida com o objetivo de oferecer ao leitor um diálogo profundo, porém conciso, entre o pensamento filosófico dos profissionais do grupo de trabalho de Ética e Cidadania, da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), e a reflexão filosófico-jurídica dos profissionais de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). A dialética entre valores e forma jurídica afirma a dimensão dinâmica da reflexão filosófico- jurídica que se apresenta, ao mesmo tempo, como crítica e autocrítica. Os valores são fontes de inesgotável reformulação da forma jurídica que, embora devendo articular-se de modo sistemático nas constituições e ordenamentos jurídicos, jamais os realiza plenamente. Aqui, o ideal de uma sociedade bem-ordenada de pessoas livres e iguais, vivendo em instituições justas é um desafio que sempre se renova. Trata-se de colocar o poder ao serviço do direito e o direito ao serviço da justiça para todos. Tão nobre desafio, contudo, não pode ser empreendido sem o humilde dobrar-se do direito constituído para ouvir a voz do “outro”, que na existência fora do direito, desprotegidos, gritam por dignidade e justiça. Tanto na Antiguidade como atualmente, eles levantam importantes questionamentos referentes à injustiça escamoteada por trás da ordem, aparentemente, justa. O desafio do pleno reconhecimento da dignidade humana orienta o sentido do movimento prático que pretende articular, com eficácia, ética, justiça e direito. Antes do movimento de efetivação de direitos, este reconhece, em primeiro lugar, a possibilidade do questionamento ao próprio direito estabelecido. Só então se pode pensar, de modo falível, nas propostas de efetivação e ampliação de direitos. Neste sentido, apresenta-se um claro movimento de ampliação da cidadania que não é possível sem o questionamento de formas jurídicas inapropriadas e o pensamento de novas possibilidades de efetivação do direito. Seguindo a lógica desta “dialética aberta”, própria de duas comunidades acadêmicas internamente pluralistas e que, ainda por cima, encontram-se no diálogo interdisciplinar, reunimos as contribuições deste livro em três momentos importantes, que são avessos a uma síntese dialética monológica. Porém, eles podem ser compreendidos como uma trama de três fios que se tecemcom a compreensão do acontecer do debate no tempo, o qual lança pontes, associações e contribuições recíprocas aos que possuem ouvidos atentos. O primeiro deles, composto de um único capítulo, é o desafio, lançado por Castor M. N. Bartolomé Ruiz, com o título O Direito e o Outro: um estudo crítico sobre o caráter imunitário do Direito. Neste artigo, o autor critica o reducionismo biopolítico das categorias direito e indivíduo, presentes e fundantes do direito ocidental e moderno, protegendo a propriedade e imunizando os proprietários contra aqueles que não os possuem. O direito moderno, através da imposição legal de deveres, conserva os laços sociais, esvaziando-os, porém, de seu caráter comunitário. Este, por sua vez, substitui o múnus pelo bônus, o dever para com o outro pelo direito ao próprio. O autor chama a atenção para a necessidade de pensar a responsabilidade pelo outro, excluído política e juridicamente. No segundo fio desta “dialética aberta” encontram-se os capítulos filosóficos que buscam repensar e, em certo sentido, transcender as bases do Direito para promover o reconhecimento do outro, através de seu repensar hermenêutico. Bem como apresentam-se mais os capítulos feitos pelos estudiosos do direito que tratam da preservação, ampliação e efetividade de direitos e garantias. No terceiro e último momento desta “dialética”, por fim, reencontramos a crítica externa ao “direito burguês moderno” em sua matriz marxista. Após o trabalho de Bartolomé Ruiz, Daniel Roxo de Paula Chiesse e Leandro da Silva Carneiro, na perspectiva do segundo fio condutor desta dialética, retomam, em seu capítulo, aquele que foi grande inspirador de Amartya Sem, com o título Instituições de Uma Estrutura Social Básica: uma análise comparativa entre a teoria da justiça de John Rawls e a Constituição cidadã brasileira de 1988. Nesta análise, eles procuram mostrar como os elementos essenciais de uma estrutura social justa, proposta pelo autor, estão contidas em nossa constituição cidadã, ponto de partida para ações de efetivação de direitos, construção da cidadania e de uma sociedade pluralista, justa e solidária. José Marcos Miné Vanzella, com o capítulo Valores Constitucionais de Cidadania, Identidade, Reconhecimento e Efetivação dos Direitos, afirma a importância da compreensão e do debate sobre os valores e princípios constitucionais, como meio de formação de uma consciência ética, identitária, comunitária e pluralista, capaz de fomentar lutas por reconhecimento e efetivação de direitos, fazendo uso das teorias de Axel Honneth e Peter Hërbele. Por sua vez, Jovino Pizzi, no capítulo Antinomias de Uma Ética Antropocentrada, questiona o antropocentrismo das éticas modernas, chamando a atenção para o desafio da vida cotidiana, a superação do ethos “jeitinho brasileiro” e indicando que todos devem participar da superação das injustiças. Com Renato Almeida de Oliveira e Antônio Glaudenir Brasil Maia, por sua vez, retomamos, no capítulo Repensando o Direito e sua Configuração Burguesa, a crítica ao direito moderno. Neste texto é retomada a importância das determinações sociais e condições materiais de existência na sociedade como premissa intransponível para o estabelecimento de princípios jurídicos. Tendo claro o caráter contraditório da sociedade civil burguesa, questiona-se se o ordenamento jurídico pode fazer frente às garantias fundamentais. Por sua vez, Enoque Feitosa apresenta o tema: O Marxismo e o Papel dos Fatores Subjetivos na Escolha Moral. Neste trabalho, declara que a escolha moral está ligada à vida interior, colocando em pauta o debate entre as análises de Freud e de Marx, e mostrando que o segundo é mais otimista quanto ao progresso da humanidade por partir, em suas teorias, do desenvolvimento das forças produtivas. Ele retoma os princípios do determinismo psíquico, afirmando que nada na mente é casual, e o princípio da existência de processos mentais dos quais o indivíduo não se dá conta. Este princípio do inconsciente aplica-se à leitura que o marxismo faz de seu próprio passado através da pulsão de morte, condicionando uma crítica que lhe permite abrir caminho para uma reconciliação do próprio marxismo com o passado que pretendeu assassinar. Pablo Jiménez Serrano, em seu capítulo, A Ética Pública e a Efetivação da Cidadania, procura discutir a correlação necessária entre a ética pública e a efetivação da cidadania no contexto da realidade brasileira e latino-americana através da demonstração do vínculo necessário entre a moralidade administrativa e a concretização dos direitos. Com o intuito de repensar a pessoa como fundamento do direito, contudo, Lino Rampazzo e José Marcos Miné Vanzella, no capítulo intitulado A Dignidade da Pessoa Humana: diálogo entre Teologia, Ética e Direito, retomam o sentido originário de pessoa, reafirmando sua incomparável dignidade e dimensão comunitária. Por seu turno, Anderson Menezes, em Habermas e a Sociedade Pós-religiosa, procura combater o derrotismo da razão, o fanatismo e a intolerância, a partir da exposição e compreensão do diálogo de Habermas e Ratzinger. Marcos Fabio Alexandre Nicolau, em Uma Análise do Semiárido a partir da Ideia de Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sem, procura demonstrar como a pobreza está ligada a falta de liberdades substanciais e como o desenvolvimento econômico pode ser articulado com o gozo das mesmas liberdades. Finalizamos, porém, com uma expressão moderna, que ultrapassa a modernidade burguesa, na afirmação do direito de uma minoria. Trata-se do capítulo de Paulo Jonas de Lima Piva e Fabiana Tamizari: A mulher na filosofia materialista de Denis Diderot. O texto abre importantes caminhos para se repensar a constituição ontológica e psicológica da mulher para muito além dos papéis sociais a ela atribuídos. Tal investigação, ainda, permite uma importante crítica à atual condição social da mulher, bem como o reconhecimento de que o Direito ainda não lhe faz plena justiça. Com este trabalho finalizamos este livro, não recomendado para quem prefere a solução técnica imediata ou quer proteger seus preconceitos ideológicos do amplo diálogo acadêmico. É endereçado, em especial, aos profissionais tanto do Direito quanto da Filosofia que, dispostos a ouvir o outro, prezam pela busca dialógica por uma sociedade fraterna e pluralista que supere seus preconceitos na busca de soluções para seus conflitos. Portanto, este livro é dedicado a todos aqueles que desejam viver em uma sociedade de pessoas livres e iguais, justa e bem-ordenada. Capítulo 1 O Direito e o Outro: um estudo crítico sobre o caráter imunitário do Direito Castor M. N. Bartolomé Ruiz Breve esboço genealógico do direito objetivo O tempo tende a apagar as pegadas da ação humana e o esquecimento induz a naturalização dos comportamentos. A consciência crítica de nosso presente requer a percepção histórica de nossas realizações, pelo que a memória é demandada pelo método genealógico a modo de recurso necessário para interpretar o nosso presente. A compreensão da realidade exige uma certa genealogia de nossas práticas. O Direito é uma dessas práticas que ora se naturaliza, ora se positiva naturalmente. Para pensar criticamente a sua função no presente de nossas sociedades, contudo, é necessário, contudo, um mínimo de memória da sua genealogia histórica. As sociedades ocidentais são tributárias da herança deixada pelo direito greco-romano. Inclusive, nossas sociedades latino-americanasconservaram muito pouco das práticas políticas, jurídicas e costumes das culturas indígenas originárias deste continente, colonizadas pela política e pelo direito ocidental. Cabe destacar o atual esforço de pesquisadores e homens públicos para que se reconheça o denominado pluralismo jurídico. Ou seja, validar as práticas políticas e jurídicas de povos indígenas vigentes em nossas sociedades ainda que diferentes do direito oficial (ocidental) determinado pelo Estado. Sem dúvida, estas práticas mereceriam um estudo específico sobre o tema que nos ocupa, mas, neste ensaio, centraremos nossa análise na crítica do direito oriundo das tradições greco-romanas. Como é sabido, o direito greco-romano se caracterizava pela sua objetividade. Há de se destacar que tal objetividade não provinha meramente da soberania absoluta do pater famílias, que era real, senão de uma peculiar relação entre o direito e o sagrado. Os primeiros espaços do direito são o lar (romano) e a oikos (grega). Este antecede o direito da cidade e só muito tardiamente poderá interferir sobre o direito do lar.[1] A origem do Direito se confunde com o direito soberano do pater famílias, embora dele se diferencie por ter um caráter sagrado que antecede sua vontade soberana. Ainda que o pater famílias fosse soberano absoluto, com poder de vida e morte sobre os domínios do seu lar, ele não era criador do direito. Sua vontade era soberana no lar e na oikos, pois todas as pessoas que habitavam esses espaços lhe deviam submissão, porém, a soberania do pater famílias não tenha a autonomia de negar as leis da casa. Ele é um soberano obrigado pelas leis da casa; sua obrigação como soberano é fazer valer o direito do lar. Esta soberania absoluta limitada pelo direito sagrado do lar, produz um direito objetivo que se impõe aos sujeitos da casa, porém, é diferente da soberania absoluta idealizada por Hobbes em que o arbítrio do soberano é o fundamento da lei. A soberania do pater famílias é absoluta a respeito das pessoas sob sua autoridade, mas é relativa com respeito à lei.[2] A lei é sagrada, ela pertence ao lar e sua origem remete aos deuses da família. O pater famílias não pode inovar a lei, não é legislador, mas deve zelar pelo cumprimento da lei da família, já que é responsável pelo direito específico de seu lar. Ainda que soberano, ele não tem autoridade para modificar as leis que recebeu da família. O conjunto de lares e oikos formaram as cúrias e fratrias, associações em que o direito de cada casa permanecia autônomo e inviolável, embora se constituíssem em novas regras e leis para estas. Por sua vez, elas se agruparam em tribos que deram origem às cidades. Em cada uma das instâncias o direito originário de cada casa foi escrupulosamente respeitado, ainda que elas fossem divergentes entre si. Dessa forma, a objetividade do direito antigo não se fundamenta na vontade soberana do pater famílias ou de qualquer outro legislador, mas no caráter sagrado das leis. A origem sagrada investe as leis de uma objetividade que excede a vontade dos indivíduos, inclusive a do poder soberano do pater famílias. As leis continham algo de imutável. Sua genealogia remetia a um suposto fundador do lar ou da cidade que tivesse aferido ao caráter sagrado das leis. Elas se instituíam concomitantemente com a religião do lar e pertenciam aos deuses da casa. Seu caráter sagrado retirava da vontade humana a potência da sua criação remetendo-a para a vontade divina dos deuses de cada casa, que eram diferentes e independentes entre si.[3] A lei era, então, transmitida por herança junto com o direito de soberania. O filho herdava do pai a soberania da casa, mas também a obrigação de respeitar as leis. Ele era soberano dos habitantes da casa, mas estava submetido às leis da família, consequentemente, ele não podia criar novas leis nem modificar as já existentes.[4] A objetividade do direito advém do seu caráter sagrado muito mais do que da vontade soberana do pater famílias, que só poderá considerar-se fonte do direito quando for conceituada como vontade livre, segundo o modelo de Hobbes. A teoria da soberania de Hobbes, por sua vez, tenta manter o caráter objetivo da lei perante a qual cedem todos os direitos subjetivos. Como é sabido, a tentativa de Hobbes representa um paradoxo na transição para a modernidade, fundamentando a objetividade da lei na vontade absoluta do soberano, porém, submetendo-se a ela os direitos naturais dos súditos. O reconhecimento da existência destes direitos naturais propostos por Hobbes implodirá seu próprio modelo de soberania absolutista para instaurar um novo modelo de direito subjetivo. O direito subjetivo que prevaleceu na modernidade desconstruiu tanto a vontade soberana como a imutabilidade das leis. Já a emergência da subjetividade e dos direitos subjetivos possibilitou a saída das sociedades estamentais e a deslegitimação do poder absolutista de qualquer soberano. Estas são, talvez, duas das maiores conquistas da modernidade. Porém, tal virada trouxe consigo algumas consequências que devem ser analisadas criticamente. Hobbes é o pensador cujo absolutismo foi superado pelo liberalismo, embora seus princípios antropológicos e jurídicos tenham ficado, nele, absorvidos. O conceito de estado de natureza desenhado por Hobbes condensa a concepção naturalista do direito que prevaleceu na modernidade. Hobbes, por sua vez, define o direito como potência da natureza. Cada um tem, por natureza, direito ao que sua potência permite obter e manter, [5] por isso, é ela que define o direito e se identifica com o poder individual. O indivíduo tornou-se o núcleo paradigmático do direito, pois este remete à natureza individual, o que legitima o próprio indivíduo como algo natural. O indivíduo moderno emerge numa estreita simbiose da natureza com o direito: seus direitos naturais constituem a sua natureza individual e ambos naturalizam o indivíduo como um ser autoevidente para a sociedade. Na naturalização do indivíduo, a vida é capturada pelo direito como sua natureza instituinte, ao ponto de Hobbes (1997) definir o direito natural como: "a liberdade de cada homem para utilizar seu poder em benefício próprio, para a preservação de sua natureza, ou seja, da sua própria vida" (p. 110). Hobbes correlaciona o direito com a vida, imbricando ambos performativamente. O direito moderno é correlativo ao modo (biopolítico) de se relacionar com a vida humana. Hobbes vincula a origem do direito com o desejo humano, conatus. A natureza individual se concebe como uma natureza desejante. O desejo (conatus) é um impulso natural que orienta todas as ações dos indivíduos. Porém, tal desejo tem um objetivo específico: a autopreservação. O impulso natural da autopreservação se traduz socialmente na forma de interesse do próprio. O desejo determina o comportamento individual que, por sua vez, impulsiona a procura de nosso próprio interesse como um imperativo da natureza. A origem do direito, então, para Hobbes, está neste caráter natural do indivíduo humano. Entende por direito aquilo que racionalmente a natureza demanda de cada um de nós, ou seja, o conatus, a pulsão de autopreservação que estimula o interesse próprio como valor natural de cada um.[6] Hobbes interpreta o conceito de liberdade como o direito de cada um de apropriar-ser, por natureza, de tudo o que pode obter e conservar por suas próprias forças. A força constitui, desde as origens do direito moderno, o que legitima o direito natural do meu perante os outros. [7] Aigualdade é o direito natural que outorga a todos os mesmos direitos. Essa condição natural faz que, segundo Hobbes, sendo todos impulsionados pelo conatus do desejo do próprio, procuremos, por natureza, o máximo de vantagem para nós em detrimento dos outros. Por natureza, ainda, a igualdade nos torna inimigos, pois o conatus impele a natureza de cada um à procura do próprio. Embora Hobbes tenha sido criticado pela sua proposta política absolutista, sua concepção de direito natural prevaleceu, hegemônica, no direito subjetivo moderno. Os direitos subjetivos modernos são simbolizados como direitos naturais, ou direitos da natureza humana. Atribui-se à vida humana uma série de atributos naturais, que confeccionaram a imagem do indivíduo moderno, de duvidosa evidência. O específico do indivíduo moderno é sua natural inclinação ao interesse próprio. O interesse da preservação em Locke, dessa forma, se legitimará sob a figura da propriedade. É conhecida a vinculação que Locke faz entre o corpo, a propriedade e a pessoa. Segundo o autor, o vínculo biológico do corpo com a propriedade define a pessoa humana como tal e a capacita como ser social. Sua teoria do trabalho também deriva desta relação biopolítica entre corpo e propriedade, que permite à pessoa se dispor, se vender ou se alugar, como algo próprio.[8] O interesse próprio e a capacidade de apropriação se tornaram dimensões naturais do indivíduo moderno, as quais deram origem a uma determinada concepção de direitos naturais. A política moderna fez da vida humana seu objeto de governo tornando-a, cada vez mais, uma biopolítica.[9] Nela, a vida se torna um sujeito formal de direitos e, ao mesmo tempo, um objeto a ser governado. É capturada pelo direito nessa dupla função e individualizada como sujeito de direitos, sendo objetivada como recurso governável na forma de população.[10] O direito moderno se legitima através da naturalização da vida humana. O indivíduo natural, portador de direitos naturais, é a referência que define o direito que, de agora em diante, será subjetivo. Contudo, a natureza que institui a potência do direito é objetivada pelas normas reguladoras do seu modo de viver normalizando-a como indivíduo socialmente inserido e legalmente tolerado. Esta é a função normatizadora do direito, cujo objetivo é normalizar a vida natural. Na sociedade, a vida do indivíduo não poderá ser mais natural e terá que ser normalizada para através da normatização dos seus comportamentos. Esta tensão vira a conformar a função imunizadora do direito subjetivo, como veremos a seguir. A imunização da ordem contra a ameaça da vida Segundo elencamos inicialmente, desde sua origem, o direito existe em relação à vida humana. Ambos se mantêm correlacionados por uma tensão insolúvel em que o direito captura a vida, com a finalidade de protegê-la, ameaçando-a.[11] Além disso, o direito também cuida da vida, normatizando-a. O cuidado da vida humana precisa do reconhecimento do direito, porém, o direito só pode cuidar a vida com aquilo que a ameaça, a violência. Direito e força, portanto, coexistem como elementos necessários.[12] A vida humana, dessa forma, fica presa entre o direito que a defende e a força que a ameaça. Tal pressão tende a normatizá-la dentro das normas do direito decretando as formas normais a serem aceitas e protegidas das que devem ser banidas ou mortas. A sacralidade originária da lei enfatizava o caráter impositivo da norma que se abatia sobre a vida humana como imperativo transcendente à vontade dos sujeitos. O direito objetivo da vontade soberana captura a vida humana objetivando-a ao seu arbítrio. Na soberania, a lei media entre ambos como técnica correlata da vida dos súditos com a vontade soberana. Tal intermediação tem por finalidade capturar a vida humana dentro da ordem social e subjetivá-la como súdito obediente. A vida humana é, portanto, o objeto do direito, cujo objetivo é o de submetê-la à vontade soberana. O direito objetivo atua entre os interstícios da ordem imposta e da vontade soberana que governa. O direito subjetivo moderno tentou superar e desconstruir o caráter autoritário da soberania. A lei foi despojada da objetividade autoritária que a impunha como expressão da vontade soberana. Em seu lugar, foi proposta a lei como norma isonômica que regula as relações sociais. Para efetivar a desconstrução do soberano e seu direito absoluto, utilizou-se o argumento filosófico do indivíduo moderno e seus direitos naturais. O direito subjetivo moderno, então, deslegitimou, em parte, o autoritarismo do poder soberano, porém não superou o paradoxo que vincula o direito à vida. A lei do direito subjetivo, que diz proteger a vida humana através dos direitos naturais e que produziu muitos efeitos positivos em favor da vida humana ao subtraí-la do poder absoluto e da arbitrariedade da vontade soberana, tornou- se também sua ameaça, ainda que de outra forma, como veremos a seguir. Continua a constatar-se que a mesma lei que pretende proteger a vida, a ameaça. Ainda que se tenha suprimido, mas não absolutamente,[13] a vontade soberana do arbítrio da lei, o direito subjetivo continua a funcionar como dispositivo que cuida da vida ameaçando-a. Mais especificamente, cuida da vida normatizando-a, governando-a sob a diversas formas de objetivação e naturalização da vida humana. A vida humana volta a se encontrar comprimida entre o direito e a ordem, entre a normatização e a defesa. Todos os dispositivos de normatização da vida, incluídos os jurídicos, operam inicialmente um processo de sua naturalização a fim de objetivá-la como mera vida natural aquém e além da sua humanidade. Tal tensão aparece explícita no que Roberto Esposito denominou de “paradigma imunitário das sociedades modernas” (Esposito, 2003, 2005). Segundo Esposito, o direito moderno assumiu uma função imunitária que defende a ordem imunizando o corpo social contra as ameaças e os perigos que a ameaçam. Sendo o maior perigo da ordem as vidas perigosas que não se ajustam a suas normas, o direito terá como missão defender as vidas normalizadas das vidas desajustadas, ou, defender a ordem do perigo da vida. A imunização é um dispositivo biológico que previne de um mal inoculando no organismo, em doses adequadas, os mesmos componentes que o ameaçam. A imunização utiliza para sua defesa o mesmo mal que ameaça. Esposito destaca que este dispositivo biomédico vem sendo interiorizado pela modernidade, de muitas formas, como técnica política para neutralizar as ameaças do corpo social, o que torna a política, cada vez mais, biopolítica.[14] Combater o mal com o próprio mal que ameaça, tornou-se uma técnica política de governo, ou seja, uma forma biopolítica de defender o corpo social. A imagem do corpo político, tão cara aos paradigmas modernos da ordem social; torna-se muito mais que uma metáfora. A imagem do Estado como um corpo toma uma densidade não metafórica senão médica. O Estado é a figura do corpo social, a incorporação da ordem; uma corporação orgânica a ser preservada e defendida. Ao tratar a sociedade como um corpo vivo, as formas de defesa de seus inimigos adquirem os caracteres médicos da imunização contra aquilo que ameaça. A sociedade, dessa forma, para defender-se de seus inimigos, deve inocular anticorpos em quantidades certas daquilo que a ameaça. Esta técnica biopolítica de defender a sociedade com os anticorpos que a ameaçam é delicada e complexa. Para tal função, foram criadas várias técnicas, entre elas, o Direito. Este foi convocado especialmente para efetuar essa delicada técnica biopolítica.Para preservar a ordem do corpo social, o Direito deverá injetar, nas instituições, as doses adequadas da mesma ameaça que pretende evitar. Ou seja, deve combater a ameaça da desordem violenta ameaçando com a violência legal, substituindo a ameaça do arbítrio da vontade soberana pela normatização da vida. Uma vez mais, retornamos à violência como recurso intrínseco do direito em relação à vida humana que ameaça a ordem. O múnus como dom do comum Como opera faticamente este dispositivo imunitário do direito? Para responder tal questão devemos retomar as considerações anteriores sobre a naturalização do indivíduo moderno. A função do Direito é proteger e prolongar a vida da comunidade. Ao exaltar a vida natural do indivíduo como fonte dos direitos naturais, o direito moderno uniu mais estreitamente seu destino à defesa da vida humana. Porém, as pretensões formalistas que acreditam que a vida se defende com a mera promulgação de uma lei não se cumprem de fato e, ainda, ocultam a contradição com que o direito ameaça a mesma vida que diz proteger. O direito moderno defende a vida de forma contraditória: imunizando a ordem social contra as formas de vida que a ameaçam, e ameaçando a vida que não se ajusta à ordem social estabelecida. A função imunitária do direito moderno fica evidente a respeito da dimensão comunitária da sociedade. O direito subjetivo moderno operou um esvaziamento da dimensão comunitária do social ao ponto de reduzi-lo a um contrato formal entre indivíduos que cada vez têm mais dificuldades em se reconhecer numa relação não contratual com os outros. A vivência da comunidade cria uma teia invisível de relações que mantém a solidez de uma sociedade além dos meros interesses individuais e das relações contratuais. A qualidade e solidez dos vínculos sociais é correlativa às formas de comunidade que nela se desenvolvem. Para avançar nesta análise crítica, temos que nos perguntar, como opera o processo de imunização das sociedades modernas? Em primeiro lugar, convém delimitar o sentido do termo “comunidade”. Tomando como referência os estudos de Roberto Esposito (2003) sobre este ponto, podemos dizer que o que define a comunidade é o múnus. Este, por sua vez, remete ao ofício ou função que se exerce em relação aos outros. O múnus constitui-se no núcleo constituinte da communitas. A comum-unidade e a unidade do comum se dá pelo imperceptível vínculo do dever para com os outros que o múnus estabelece entre os sujeitos de um grupo. O agrupamento desconexo ou massificado de indivíduos se transforma em comunidade quando, entre eles, cria-se um múnus que os vincula numa relação de dever para com os demais. Caso contrário, a massa de indivíduos poderá ser uma sociedade massificada ou uma organização regulamentada, mas não uma communitas. A comunidade se implementa como tal pela relação de dever para com os outros e não pela exigência do direito próprio. Tal dever é constitutivo da relação social própria da communitas, de forma que o social da relação é inerente ao dever para com o outro. Na comunidade, a intensidade da relação é proporcional ao múnus, ou seja, à densidade específica do meu dever para com os outros, e não à defesa do direito próprio frente aos direitos dos outros. O múnus é o que define o comum da communitas. Contudo, o direito do próprio gera uma consecutiva desapropriação dos vínculos comuns com a consequente erosão das relações comunitárias; o dever para com os outros opera como liame constitutivo que fortalece as relações comunitárias. A communitas existe a partir do seu múnus constituinte, sem ele ficando vazia de sentido, diluindo-se. Pode se dizer, ainda, que a densidade de uma comunidade é proporcional à intensidade do múnus com que os sujeitos se vinculam entre si. Contudo, é conveniente esclarecer que não é qualquer dever que constitui o múnus da comunidade. O dever imposto pela vontade soberana ou pelo direito do lar não constitui comunidade senão que gera submissão. O dever, por si só, não cria a comunidade. O dever do direito absoluto é uma imposição extrínseca ao sujeito; ele submete e sufoca a vontade do sujeito. A vontade soberana impõe um dever de forma extrínseca cujo resultado final não é a construção da comunidade senão a subjetivação do súdito. Os deveres infligidos por vontades soberanas, portanto, anulam quaisquer forma de comunidade. Os liames comunitários são totalmente avessos aos deveres demandados pelas vontades soberanas. O dever imposto é intrinsecamente autoritário e não produz comunidade. A imposição do dever origina dominação do outro e não comunidade. Toda dominação exige um dever infligido que implode os vínculos comunitários trazendo, em seu lugar, a soberania do autoritarismo. Não é o mero dever que produz os laços da comunidade, nem é qualquer dever que gera o múnus necessário para que exista a comunidade. O que nos leva a indagar sobre qual característica do múnus é capaz de produzir tais vínculos. O direito subjetivo surgiu, no marco desta tensão, para combater o dever autoritário. Os direitos subjetivos inerentes ao estado de natureza vieram a desconstruir qualquer legitimidade do direito objetivo da vontade soberana, concretizado na forma de dever e obediência forçada. Por isso, o direito subjetivo e suas figuras políticas – direitos naturais, contrato etc. – são amplamente aceitos e legitimados como as vias políticas que a modernidade encontrou para implementar o exercício da liberdade frente ao autoritarismo da soberania. Contudo, temos que apontar que, no âmago das instituições políticas e jurídicas do liberalismo, veio também um conjunto de contradições que constrange nossas sociedades contemporâneas dentro do paradigma do próprio, da apropriação e da propriedade. Entre elas, cabe destacar a exacerbação do interesse próprio como parte constitutiva do direito subjetivo e o consequente caráter imunitário que este inoculou nas relações sociais. Roberto Esposito (1998), em sua obra Communitas. Origine e destino de la comunitá, analisa que o sentido do termo múnus em que uma comunidade se reconhece não é uma propriedade e nem sequer o sentido de pertença a algo comum. Não é a posse de algo material ou imaterial que cria os laços comunitários. Pelo contrário toda forma de posse ou apropriação dilui a potência do elo comunitário. O vínculo comunitário exige algum tipo de expropriação de si em relação ao outro. É o caráter expropriatório da relação que forma a comunidade. O elo comunitário, então, se constrói pela expropriação através da qual eu entrego algo de mim e recebo do outro o que entrega de si. A expropriação de si inerente ao múnus entra em oposição a todas as formas de apropriação, propriedade ou possessão absolutas. Na relação comunitária, o ponto mais sólido acontece nos processos de desubjetivação do eu em que sua realização como pessoa social acontece tanto ao expropriar algo de si para o outro como ao receber do outro o que não lhe pertence. Na relação expropriatória da communitas há um descentramento do sujeito proprietário que o força a existir na relação de desapropriação de si e coexistir na recepção do outro: o centro do sujeito para a relação com o outro. O eu se torna um alter, alterando-se pela relação através da qual se constitui sujeito social – e como tal sujeito pessoal – na expropriação de si para com o outro. Ao instituir os laços comunitários se constitui permanentemente alterado. O eu não mais existe como núcleo naturalista determinado pelo conatus da autopreservação,senão que se realiza alterando-se permanentemente na relação social com o outro. Seu ser é uma existência que se altera em relação à alteridade que o constitui como sujeito. Na comunidade, a relação com o outro, alter, transcende todas as formas de posse comunitária, seja material ou de identificação. O que une o sujeito com a alteridade é um vazio: o intangível da doação faz do esvaziamento de si a constituição mais sólida do elo comunitário com o outro. A relação de desapropriação de si e o recebimento do outro cria uma espécie de circuito não circular que não desemboca numa síntese de identidades ou posses, mas abre os sujeitos a uma construção permanente. O paradoxo da comunidade é que a consistência dos sujeitos reside no seu esvaziamento de subjetividade.[15] O que vincula as pessoas na comunidade não é a posse de algo, nem sequer a posse de algo comum. Não é o interesse, próprio ou comum, que cria a comunidade, pois todo interesse separa aquilo que está junto em aparência. Esposito destaca que o sentido semântico do termo communis, cuja semântica remete a uma prática histórica, invoca à noção de compartir uma carga, ou seja, um cargo ou encargo (Esposito, 2003). O que caracteriza a comunidade, communitas, não é a propriedade, nem o próprio, mas do dever para com o outro, o dever em comum (múnus). Esta análise nos leva a perceber que o liame da comunidade não é a soma de algo, mas sim o esvaziamento de si. A consistência da comunidade está no vazio que vincula os sujeitos entre si pela doação e não pela apropriação. Esse vazio aparente e consequente não pode ser identificado com algo próprio já que sua principal característica é a expropriação. Ao expropriar-se de si se constrói o comum da comnunitas. Não é o próprio nem a propriedade, como preconiza o direito subjetivo, que cria a comunidade, mas a desapropriação de si que constrói os elos comunitários. Podemos dizer, ainda, que a comunidade tem como fio vinculante a impropriedade que desapropria aos sujeitos de parte de si pelo dever para com os outros. Mas é essa desapropriação circulante que, num aparente vazio impróprio, constrói a solidez dos laços sociais vinculando estreitamente os sujeitos pela expropriação de si para com o outro e pelo dom do outro para si. O caráter comunitário gera-se numa espécie de desapropriação coletiva em que a interação é constitutiva de todo dever para com o outro. A comunidade não é um corpo nem uma corporação resultante da fusão dos indivíduos. Ela mostra sua solidez na consistência do esvaziamento de si que os sujeitos realizam em sua interação com os outros. A impropriedade do comum remete semanticamente à genealogia do donum. Em sua etimologia, o dever do múnus não é uma imposição arbitrária de uma vontade soberana ou de uma lei objetiva, senão que se exerce como donum em relação aos outros da comunidade. "O múnus é ao donum como a espécie ao gênero (Ulp.,Dig. 50.16.194)" (Esposito, 2003, p. 27). O múnus, assim, é um tipo de dom muito particular cuja característica principal se exerce como obrigação para com o outro. O múnus, por sua vez, é caracterizado como um dever que se doa como obrigação. Tal definição, aparentemente aporêtica para nossas subjetividades normatizadas pela hegemonia do interesse próprio, é perfeitamente conjugada como condição própria do múnus. Os estudos de Marcel Maus (2011), em sua conhecida obra Ensaio sobre a dádiva, mostram que nas sociedades tradicionais o dom funciona como mecanismo circular de intercâmbio nas relações sociais. Aquilo que o outro faz para mim como dever, se torna, também, um dever meu para com ele. A dádiva que o outro me oferece voluntariamente opera em mim como elemento gerador de dever para com ele. Os sujeitos se vinculam entre si através da dádiva que provoca um efeito circulante entre todos de forma que o dever de cada um para com os outros é a dádiva que oferece e pela qual ele se torna reconhecido e é também recompensado. As experiências antropológicas narradas por Maus constatam que alguém que aceitou o múnus, também está obrigado a retribuir (ônus) de alguma forma. Constata, ainda, que a superposição que se opera entre dom e dever, entre múnus como donum, constitui um tipo específico de relação social pela qual os laços comunitários se consolidam e perduram ao longo do tempo. A longa erosão imunitária que sofremos nas sociedades modernas nos impede de perceber as possibilidades políticas inerentes ao múnus como dom. Para entender a potência política operativa desse vínculo, temos que realizar uma certa genealogia de algumas práticas. Nesta linha, Esposito (2003) resgata os estudos linguísticos de Benveniste sobre as sociedades indo-europeias. A raiz linguística do- de donum (dar, doação) remete em sua acepção original indo-europeia a uma relação circular de dar e tomar, ou seja, retribuir. Há uma espécie de cruzamento semântico e prático entre o que se doa e o que se recebe. Chegando a constatar que a noção de dom se realiza em si mesma como uma forma de retribuição. O que caracteriza o dom do dever é a falta de constrangimento; ou seja, a espontaneidade do dever é a marca do dom.[16] O dom se realiza como dever sem que exista uma obrigação que o exija. Por isso, o dom é uma categoria que designa tanto o que se dá como o que se recebe. O múnus conserva o caráter de dom pelo dever de ofício que lhe é inerente. Mas a diferença do mero dom é um dever que não pode deixar de ser. O múnus é um dever contraído com o outro e, portanto, deve ser cumprido. O múnus é gerado por um benefício recebido anteriormente, por isso ele também exige um dever. O múnus indica exclusivamente o dom que se dá e não o que se recebe. Ele não apresenta uma dinâmica possessiva ou de apropriação, pelo contrário, exige uma doação do dom recebido previamente. A dimensão doadora do múnus está impregnada de uma função política de longo calado que permite articular institucionalmente as relações sociais. Seu paradigma imunitário, contudo, apagou a potência política do dever-dom reduzindo-o a uma mera categoria voluntária de caráter ético – como se a ética fosse inferior à política – ou impondo-o normativamente como uma prescrição legal. Alguns ecos da potência política do dever como dom ainda podem ser aferidos de obras clássicas como a de Cícero (1980), Dos deveres, em que o autor, um proeminente senador de Roma, pode afirmar como um fato “natural” e “autoevidente” que: "Negócios públicos ou privados, civis ou domésticos, ações particulares ou transações, nada em nossa vida se esquiva do dever: observá-lo é virtuoso, negligenciá-lo, desonra" (p. 26). A espontaneidade atribuída por Cícero ao dever como dispositivo político das ações sociais, contrasta com a naturalização do interesse próprio nas sociedades modernas. Para Cícero, o dever funciona como um elo articulador das ações sociais e legitimador das instituições, mas nas sociedades modernas, tal papel foi atribuído ao interesse próprio. Ainda para Cícero, a espontaneidade do dever é que confere estabilidade às instituições, embora nas sociedades do interesse próprio a garantia institucional esteja no contrato garantido pela violência latente. Contudo, Cícero não é um ingênuo do formalismo do dever e, no seu próprio tratado, compreende que os princípios absolutos do dever nem sempre são justos pelo que a justiça do dever há de se compreender no contexto histórico e suas circunstâncias. Contudo, não prejudicar a ninguém e a procura do bem-comum permanecem como princípiosreitores do dever maior.[17] O dever como dom tem potencialidade política para articular, de forma justa, as relações humanas e as instituições sociais no marco da commnitas. O apagamento da potência política do múnus opera como o artifício legitimador do bônus a modo de conatus natural das instituições modernas. O direito imunizador A comunidade atravessada pelo seu paradigma sofre uma pressão imunológica que dilui o múnus e a torna uma forma vazia de conteúdo Uma communitas sem múnus é uma aporia ambulante. Tal aporia replica no destino do social, pois, uma sociedade sem comunidade está ameaçada de implosão. O direito subjetivo tem por objeto a defesa do próprio, da propriedade, e da capacidade de apropriação. Abandonado a sua própria dinâmica, o incentivo à apropriação e ao próprio torna a comunidade inexistente e a sociedade inviável. No lugar do direito objetivo da vontade soberana, o direito subjetivo colocou a dinâmica centrífuga do interesse próprio. Esta dilui o elo comunitário das relações sociais e ameaça a existência da sociedade. A invocação do próprio e da propriedade como um direito primário fez da apropriação o objetivo do ser em sociedade. A busca do próprio esvazia a sociedade daquilo que a constitui enquanto tal, o múnus. O direito de apropriação retirou da comunidade o múnus colocando em seu lugar a procura do bônus. O bônus identificasse com o benefício próprio. Quando o paradigma do próprio se impõe, o bônus se torna o princípio natural regulador das relações sociais, tornando o múnus uma figura moral secundária. O pretenso naturalismo do bônus confere-lhe uma primazia ideológica sobre a suposta moralidade do múnus. No paradigma do próprio, o benefício suplanta o dom. A procura de benefício próprio se institui como a figura primordial do direito subjetivo, relegando o dom a uma atitude secundária de caráter moral ou religioso. O próprio da apropriação esvaziou o múnus de toda potencialidade política inoculando em seu lugar o bônus. A comunidade esvaziada de seu vazio constituinte, múnus, e estimulada pela procura do interesse próprio, será empurrada, inexoravelmente, à sua desintegração. Ao substituir a desapropriação de si, inerente ao múnus pela procura de si, o sujeito institui seu interesse como centro normatizador do social. Através deste dispositivo, reforça a condição ideológica (histórica e relativa) de sua própria natureza subjetiva como natureza do próprio, da apropriação, da propriedade e da posse. A naturalização do sujeito leva à procura do bônus e impulsiona a dinâmica do benefício próprio como um direito natural a ser perseguido em todas as situações. Tal via conduz a um confronto generalizado de interesses tidos por naturais. O estado de guerra, anunciado por Hobbes, é a figura emblemática do novo paradigma imunitário, e a consequência política inevitável promovida pelo bônus. O grande desafio das sociedades modernas é como manter uma comunidade minimamente estável, porém esvaziada do seu núcleo constitutivo, ou seja, o múnus comunitário. Esposito, dessa forma, desenvolve a tese de que o Direito é conclamado a cumprir a função imunitária de preservar a sociedade daquilo que ele mesmo a esvaziou, o elo comum. Para o autor, a imunização é o paradigma biopolítico que identifica a modernidade. Tal função imunitária tem por objetivo evitar a dissolução da sociedade e sua desintegração total pela força centrífuga do interesse próprio. A incumbência primeira do Direito seria manter os vínculos sociais mínimos, agora esvaziados de múnus, e que conflitam constantemente os indivíduos na procura do próprio.[18] O vazio do múnus comunitário foi ocupado, então, pelo contrato social. O elo do dever para com o outro foi suplantado pela regulação normativa dos direitos. A expropriação vinculante das relações comunitárias foi substituída pela apropriação constitutiva do direito do eu. O direito desenvolve tal função regulando juridicamente, cada vez mais, os espaços da vida que antes estavam vinculados pelo elo do dever espontâneo do múnus. A vida encontra-se paulatinamente invadida pelo direito, normatizada em seus comportamentos como remédio imunitário contra a falta do elo comunitário. O social existe imunizado pelo direito e normatizado pela lei, mas vazio de comunidade. O direito cumpre sua função imunitária inoculando na sociedade, na forma de lei, as obrigações impostas para o respeito do outro. O respeito do outro, inerente ao exercício livre do múnus, agora deve ser normatizado. Há uma espécie de proporção inversa entre a dissolução dos elos comunitários e a normatização da vida. A perda do múnus da communitas é compensada pela ação imunitária da norma que regula as relações sociais e familiares, públicas e privadas. O direito é convocado a normatizar os espaços da vida abandonados pelo dever do múnus. Para tanto, deve impor aquilo que ele pretendia evitar, a obrigação legal externa. A lei invade o espaço vital esvaziado do múnus a fim de regular o comportamento social dos sujeitos e poder manter o que se considera uma convivência mínima. A relação social compreendida como a preservação dos direitos de cada um frente ao outro, passa a requerer cada vez mais a normatização detalhada dos comportamentos. O objetivo de tal normatização é preservar a convivência mínima necessária que impeça a implosão da sociedade. Para tanto, deverá fazer uma constante e maior juridicização do dever para com o outro. O direito, a modo de vacina imunitária, tenta evitar a morte do corpo social, que se desintegraria pela dinâmica do próprio. A (in)conclusão do direito do outro O direito subjetivo traz, para dentro do corpo social, aquilo que pretendia evitar do direito objetivo e da vontade soberana, ou seja, a imposição normativa dos comportamentos. A normatização torna-se a forma necessária para imunizar-se contra a potência autodestrutiva do paradigma da apropriação. O paradoxal de tal efeito é que o direito tem que se utilizar, com doses adequadas, do mesmo que pretende evitar, a imposição legal e a violência. A lei adquire uma função transcendental legitimada pela isonomia de todos os sujeitos, mas vinculante por igual como imposição normativa externa. A lei substitui a vontade soberana; liberta a sociedade do arbítrio do soberano, mas a submete ao imperativo da norma, ainda que seja formalmente isonômica. O direito subjetivo libertou os indivíduos da vontade soberana, mas é convocado a normatizar as vidas regulando os comportamentos dentro da procura do seu interesse, tentando evitar a desintegração geral do corpo social. O direito, no núcleo dessa relação imunitária, encontra a violência como antídoto imunizador da própria violência. O direito subjetivo tem a função de prevenir a violência instaurada pelo estado de guerra natural do interesse próprio. Sua função, entre outras, é legitimar a competição como violência natural aceitável que regula as relações sociais e neutralizar (com violência) aqueles que venham a colocar em risco, de um ou de outro modo, esta nova ordem (violenta). Paradoxalmente, o direito defende a vida com aquilo que a ameaça, a violência.[19] Como eficiente técnica imunitária, se utiliza do mesmo mal que pretende combater. O paradigma do benefício próprio instaura uma violência social latente e explícita em cujo centro se encontra a vida humana. A vida encontra-se protegida pelo direito e ameaçada pela dinâmica do próprio em queos outros aparecem como rivais ou inimigos. O direito que instaurou a lógica da apropriação como direito natural, é o mesmo que deve defender a vida das consequências desse modelo possessivo. O direito é convocado para esta função imunológica. O direito pretende, para si, o monopólio da violência a fim de poder delimitar qual a violência legítima da ilegítima. Se este caráter imunizador a respeito da violência não é específico das sociedades modernas, mas inerente ao direito, ele torna-se especialmente evidente nas sociedades do benefício próprio. Requere-se a força/violência do direito como garantia contra o interesse do outro que ameaça os meus. O Direito impõe uma violência, considerada por ele legítima, para defender-nos da violência, ilegítima, que ameaça nossos interesses. O caráter paradoxal do direito que cuida e ameaça concomitantemente a vida não se supera, simplesmente negando o direito. Se assim fosse, a vida ficaria exposta à pura violência. Também não se defende a vida normatizando-a ao extremo, pois, deste modo, fica objetivada como um recurso e governada como objeto. A redução normalizadora submete a vida a um novo dispositivo biopolítico que a regula e a administra como matéria-prima do corpo social. A vida humana, então, presa entre o direito e a violência, terá que subsistir nessa tensão agônica sem uma solução definitiva. Tal condição agônica obriga a vida a existir ameaçada pelo direito que a defende. Nessa tensão resta como alternativa invadir o direito com a vida, comprimir o direito com o máximo de vida. Para tanto, há de se dar espaço aos dispositivos que expandem a vida contra o direito, como ocorre com o dispositivo do múnus. O dever como dom que me vincula livremente na doação ao outro sem que esteja mediado pela norma se torna uma prática política que efetiva a dimensão ética da relação. O dom que esvazia a vida de si mesma e a expõe como múnus, torna desnecessária a norma para regular a relação vital. A vida esvaziada do próprio expõe-se como doação e invalida a necessidade jurídica de normatizar a relação com o outro. Temos, aqui, as bases preliminares do que poderemos denominar de direito do outro. Também, entre outras consequências desta problemática, podemos apontar a sua importância para a autogestão democrática que tem como base os liames comuns dos sujeitos e não a gestão dos meros interesses individuais como propõe o liberalismo. Podemos prognosticar que o sentido ideal de uma democracia seria o autogoverno coletivo do comum. Quanto mais em comum se governa e quanto mais se governa para o bem-comum, mais a democracia se consolida como forma de autogoverno do comum. A communitas se constitui no substrato da democracia real e opera como dispositivo questionador da democracia formal que nos envolve. Esta diferenciação desenha um outro modelo de autogestão coletiva e democrática do social diferente do atual modelo burocratizado de democracia gerenciada que o liberalismo está implementando. Referências AGAMBEM, G. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ______. Estado de exceção. São Paulo: Biotempo, 2004. BENJAMIN, W. Crítica da violência, crítica do poder. In: ______. Documentos de cultura. Documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 160-175. CÍCERO, M. T. Los deberes. Madri: Espasa Calpe, 1980. COULANGES, F. de. A cidade antiga. Lisboa: Clássica, 1988. ESPOSITO, R. Communitas. Origine e destino de la comunitá. Turin: Einaudi, 1998. ______. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrurtu, 2003. ______. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madri: Amorrurtu, 2005. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martin Fontes, 2000. ______. Segurança, território e população. São Paulo: Martin Fontes, 2008. HOBBES, T. Leviatan. Madri: Altaya, 1997. ______. De cive. São Paulo: Martin Fontes, 2002. LOCKE, J. II Tratado Governo Civil. São Paulo: Martin Fontes, 2001. MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2011. RUIZ, C. M. M. B. A justiça perante uma crítica ética da violência In: ______. Justiça e memória. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 51-86. SCHMITT, C. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. Notas 1. “A família não recebeu da cidade as suas leis. Se há cidade tivesse estabelecido o direito privado, é provável estatuísse normas inteiramente diferentes [...] O direito privado existiu antes da cidade. Quando a cidade principiou a escrever as suas leis, achou esse direito já estabelecido, vivendo, enraizado nos costumes, fortalecido pelo unânime consenso dos povos. Aceitou-o, não pudendo proceder doutro modo e não ousando modificá-lo senão muito tempo mais tarde. O antigo direito não é obra do legislador; o direito, pelo contrário, se impõe ao legislador. Na família tem a sua origem” (Coulanges, 1988, p. 99-100). 2. “A quem competirá a autoridade principal? Ao pai? Não. Porque existe em todas as casas algo que é superior ao próprio pai: a religião doméstica, o deus pelos gregos chamado senhor do lar, estia despoina, e que os latinos conhecem por Lar familia e Pater” (Coulanges, 1988, p. 100). 3. “O antigo direito não é obra de um legislador; o direito pelo contrário, impôs-se ao legislador” (Coulanges, 1988, p. 100). 4. “O processo de feitura das leis antigas surge aqui claramente. Não era um homem que as inventava. Solon, Licurgo, Minos e Numa puderam traduzir para escrito as leis de suas cidades, mas não as fizeram. Se entendemos por legislador o homem que foi autor de um código pelo poder de seu gênio e impôs aos demais homens, tal legislador nunca existiu entre os antigos. A lei antiga não saiu também dos votos do povo. O pensamento de que o número dos sufrágios pudesse motivar a lei muito tarde se criou nas cidades e só depois de duas revoluções as terem transformado” (Coulanges, 1988, p. 232). 5. “A natureza deu a cada um direito a tudo, isso quer dizer que, num estado puramente natural, ou seja antes que os homens se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era lícito da um fazer o que quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse obter” (Hobbes, 2002, p. 32). 6. “[...] cuidar de si mesmo não é uma questão que deva ser considerada com tanto desdém, como seria se não houvesse em nós poder e vontade para agir de outro modo. Pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, [...] pela palavra direito, nada mais se significa do que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas faculdades naturais em conformidade com a razão” (Hobbes, 2002, p. 31). 7. “O modo mais razoável de se proteger contra essa desconfiança que os homens inspiram mutuamente, é a previsão, ou seja, controlar, seja pela força, ou com estratagemas, a tantas pessoas como seja possível, até conseguir que ninguém tenha poder suficiente para por em perigo o poder próprio” (Hobbes, 2002, p. 106). 8. “Cada homem tem uma propriedade sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele” (Locke, 2001, p. 408-410). 9. A temática do governo da vida como eixo central da política moderna foi desenvolvida por Foucault em vários estudos, criando o conceito de governamentalidade, o qual representa o objetivo da política moderna: governar a vida dos outros com o mínimo de resistência e o máximo de consentimento (Foucault, 2000, p. 285-316). 10. Sobre este ponto é notávelo estudo de Foucault (2008). 11. Esta é a tese central de Agamben que, de certa forma, retoma as teses de Carl Schmitt e Walter Benjamin sobre o tema, cujo expoente principal se encontra na figura jurídica da exceção. “O direito não possui outra vida além daquela que consegue capturar dentro de si através da exclusão inclusiva da exceptio, ele se nutre dela, e sem ela, é letra morta” (Agamben, 2002, p. 34). 12. O ensaio de Benjamin (1986), continua sendo uma referência essencial para este debate. Ainda fizemos uma crítica à tese de Benjamin que identifica o poder com violência, o que faz do direito algo essencialmente violento sem conseguir entender o paradoxo do direito, que é o do poder que, sendo violento, também pode ser utilizado como defesa contra a violência (Ruiz, 2009). 13. A questão do poder soberano oculto no estado de direito remete inexoravelmente à tese de Schmitt (2006). Ainda que seja atual, sobre esta temática tornou-se quase clássico o texto anteriormente mencionado de Agamben (2002), em que desenvolve a tese de que o poder soberano permanece oculto no estado de direito sob a figura do estado de exceção. Confira também Agamben (2004). 14. “[...] também nos tratados políticos, mais que ao estado genérico da saúde do corpo político, dirigem-se a essas medidas de caráter profilático preventivas que protegem (o Estado) da infiltração de elementos alógenos” (Esposito, 2005, p. 174-175). 15. “Não sujeitos. Sujeitos de sua própria ausência, de ausência do próprio. De uma impropriedade radical que coincide com uma absoluta contingência...” (Esposito, 1998, p. 31). 16. Tudo o que envolve o humano está perpassado pelo paradoxo e pela complexidade. Não sendo diferente neste ponto, pode-se levantar a questão da existência da servidão voluntária, dos deveres de submissão e servidão aceitos voluntariamente, como já Etienne de La Boétie tinha detectado, e as técnicas de sujeição normalizadora que continuam a implementar. Ainda que essa realidade nos desafie a repensar os dispositivos legitimação do dever, não invalida a tese principal que estamos defendendo. 17. “Há casos e circunstâncias em que, o que parece justo, daqueles que denominamos homens de bem, mas que mudando de natureza, tornam tudo ao contrário; assim a justiça permite algumas vezes não restituir um depósito, não cumprir um compromisso, e outras coisas que interessam à verdade e à boa fé. É indispensável, com efeito, reportar-se a esses princípios de justiça estabelecidos desde o princípio; começando por não prejudicar a ninguém e, em seguida, servir ao interesse comum” (Cícero, 1980, p. 37). 18. “Esta dialética negativa adquire particular relevância na esfera da linguagem jurídica, ou, para ser mais exatos, do direito como dispositivo imunitário de todo o sistema social. Que a partir do século XVIII – como sustenta Niklas Luhmann – a semântica da imunidade tenha se estendido progressivamente a todos os setores da sociedade moderna significa que já não é o mecanismo imunitário função do direito, mas o direito função do mecanismo imunitário” (Esposito, 2005, p. 19-20). 19. Esposito (2005) desenvolve esta tese analisando o caráter imunológico da violência em alguns autores como Walter Benjamin e Rene Girard. Capítulo 2 Instituições de Uma Estrutura Social Básica: uma análise comparativa entre a Teoria da Justa de John Rawls e a Constituição Cidadã Brasileira de 1988 Daniel Roxo de Paula Chiesse e Leandro da Silva Carneiro Introdução John Rawls propôs um modelo de justiça tendo como preocupação principal a justiça social. De acordo com o próprio autor, sua preocupação no modelo proposto é a estrutura básica da sociedade, ou seja, a maneira em que as instituições da sociedade distribuem os direitos e deveres e dividem as vantagens decorrentes desta cooperação social.[1] O pensamento de Rawls é de grande relevância, pois não restringe, como se verá no decorrer do presente trabalho, apenas ao meio acadêmico, mas tem repercussão principalmente na vida prática das pessoas, em especial, no momento em que se discute a efetivação de medidas que inicialmente estavam previstas apenas nas normas constitucionais como normas programáticas, medidas estas que passam a clamar por sua concretização. Com o intuito de demonstrar a existência de alguns pontos de contato entre a teoria de John Rawls e algumas normas da Constituição brasileira, referentes às instituições de uma estrutura social básica justa, a primeira parte deste trabalho apresentará, sucintamente, uma abordagem acerca da obra do jusfilósofo americano, demonstrando-se seus principais fundamentos, sucedida de uma análise da justa estrutura social básica e das suas instituições. Em seguida, este terá por enfoque uma relação comparativa entre as instituições nacionais e a proposta teórica de John Raws, suas influências e as bases admitidas pela atual Constituição brasileira de 1988. O regime democrático brasileiro, instituído pela Constituição Federal de 1988, possui como pilares (estruturas), dentre outros, a consignação de direitos e deveres fundamentais, uma Constituição política com o Judiciário independente, a economia pautada na propriedade privada dos meios de produção e a família, como base da sociedade. Essas são, sobretudo, as estruturas básicas de uma sociedade justa, segundo Rawls, para que se imperem os princípios de justiça. John Rawls e a Teoria da Justiça John Rawls, dentre os filósofos americanos, fora o precursor, ou pelo menos um dos mais importantes destes, nos questionamentos acerca da filosofia política, trazendo à cena acadêmica e política questões ligadas à justiça e bem-estar da sociedade. A grande preocupação que norteou a teoria de Rawls foi a justiça, mas a justiça na cooperação social, tendo como objeto principal a estrutura básica da sociedade. Nas palavras do próprio Rawls (2008): "Nosso tema, porém, é o da justiça social. Para nós, o objeto principal da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou, mais precisamente, o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social. Por instituições mais importantes entendo a constituição política e os arranjos econômicos e sociais mais importantes" (p. 08). Rawls entendia que a sociedade deveria ter uma estrutura básica em que as instituições sociais pudessem garantir a todos o acesso igual às oportunidades, e eventuais distorções, quando ocorressem, deveriam ter como resultado o benefício dos membros menos favorecidos. Para desenvolver sua teoria, John Rawls pressupõe um contrato social hipotético e a-histórico. De acordo com essa construção mental, as pessoas seriam reunidas em uma situação inicial, por ele denominada de posição original, onde deliberariam acerca dos princípios sociais que deveriam reger as relações futuras e organizar a sociedade. Essa reunião, todavia, não poderia ocorrer com pessoas cientes de suas posições na sociedade a qual estariam discutindo. Deveriam desconhecer qualquer elemento acerca das próprias posições, sejam essas sociais, culturais, de sexo, raça, entre outras. A proposta de Rawls quanto ao véu de ignorância vem ao encontro da necessidade de se estabelecerem princípios que sejam igualitários, em que todos possam ter papel ativo na criação e discussão desses mesmos princípios. Imprescindível para Rawls que o véude ignorância possa propiciar aos elementos da posição original condições ideais de igualdade e liberdade na discussão dos princípios. "Parece razoável supor que as partes na situação original são iguais. Isto é, todos têm os mesmos direitos do processo da escolha dos princípios; todos podem fazer propostas, apresentar razões para sua aceitação, e assim por diante. [...] Junto com o véu de ignorância, essas condições definem os princípios da justiça como aqueles que pessoas racionais interessadas em promover seus interesses aceitariam em condições de igualdade, quando não há ninguém que esteja em vantagem ou desvantagem em razão de contingências naturais ou sociais" (Rawls, 2008, p. 23). Nessa discussão inicial, em que as pessoas discorrem sobre as questões preponderantes que regerão as relações futuras, os indivíduos buscam o estabelecimento de regras e princípios básicos, bem como valores básicos comuns a todos. "Rawls pressupõe que tais seres imaginários estão motivados a obter certo tipo específico de bens, que ele denomina 'bens primários'. Os 'bens primários' seriam aqueles bens básicos indispensáveis para satisfazer qualquer plano de vida" (Gargarella, 2008, p. 22-23). Rawls conclui que todos desejam que seja garantido o direito de se favorecerem dos benefícios da cooperação social. O objetivo de toda argumentação entre as pessoas presentes na posição original é encontrar uma concepção de justiça política para as instituições democráticas. Os sujeitos acabariam se comprometendo com dois princípios de justiça: "(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos. (b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer a duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condição de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm que beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade" (Rawls, 2003, p. 60). O princípio da Liberdade Igual (primeiro princípio), conforme Roberto Gargarella, é decorrente da condição do “véu da ignorância” da “posição original”, uma vez que os participantes desconhecem sua condição pessoal naquela situação. "Tais agentes estarão interessados em que, seja qual for a concepção do bem que acabem adotando, as instituições básicas da sociedade não os prejudiquem ou os discriminem" (Gargarella, 2008, p. 25). Já o segundo princípio (da diferença), prevendo a existência de desigualdades sociais e econômicas, está condicionado a duas hipóteses. A primeira é que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades de acesso, ou seja, todos possuam o mesmo direito de disputar em igualdade de condições as oportunidades que a vida dispõe. "O princípio da diferença, tal como está exposto, implica a superação de uma ideia de justiça distributiva, habitual em sociedades modernas, segundo a qual o que cada um obtém é justo se os benefícios ou posições em questão também forem acessíveis aos demais" (Gargarella, 2008, p. 25). A segunda hipótese determina que as desigualdades só tenham lugar caso os menos favorecidos na sociedade venham a se beneficiar dela. "Afirma-se, em contrapartida, que as maiores vantagens dos mais beneficiados pela loteria natural só são justificáveis se elas fazem parte de um esquema que melhora as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade" (Gargarella, 2008, p. 25). A concepção de justiça defendida por Rawls, como se observa, não prevê uma sociedade igualitária, em que todos tenham as mesmas coisas, pois isso não seria o ideal. O que se observa é que a desigualdade é necessária de forma que haja a manutenção da livre iniciativa e da motivação profissional. Na corrida para alcançar os bens disponíveis no mercado, alguns estão passos adiante dos outros. Assim, para igualar as pessoas, Rawls propõe o disposto neste segundo princípio. "A alternativa de Rawls, que ele denomina princípio da diferença, corrige a distribuição desigual de aptidões e dotes sem impor limitações aos mais talentosos. Como? Estimulando os bem-dotados a desenvolver e exercitar suas aptidões, compreendendo, porém, que as recompensas que tais aptidões acumulam no mercado pertencem à comunidade como um todo. Não criemos obstáculos para os melhores corredores; deixemos que corram e façam o melhor que puderem. Apenas reconheçamos, de antemão, que os prêmios não pertencem somente a eles, mas devem ser compartilhados com aqueles que não têm os mesmos dotes" (Sandel, 2012, p. 194). Com os dois princípios de justiça, chega-se à equidade, eis que esta deve ser entendida como a tentativa de equalizar os interesses discrepantes inevitavelmente presentes em qualquer sociedade, ou seja, de uma forma que seja vantajosa para todos. Assim, de acordo com os princípios de justiça elaborados por Rawls, as instituições sociais deverão garantir que os indivíduos possam alcançar os objetivos que escolheram para si e, uma vez que ocorra a desigualdade, aqueles que se beneficiaram se comprometam em relação aos menos favorecidos. Instituições de uma estrutura básica justa "O objeto primeiro dos princípios da justiça social é a estrutura básica da sociedade, a organização das principais instituições sociais em um esquema único de cooperação" (Rawls, 2008, p. 65). Para Rawls, a concepção de justiça tem como objeto a Estrutura Básica da Sociedade. Por estrutura básica, Rawls (2000) entende: "Entende-se como estrutura básica a maneira pela qual as principais instituições sociais se arranjam em um sistema único, pelo qual consignam direitos e deveres fundamentais e estruturam a divisão de vantagens resultante da cooperação social. A constituição política, as formas de propriedade legalmente admitidas, a organização da economia e a natureza da família, todas, portanto, fazem parte dela" (p. 3). Uma vez que os indivíduos, por conta de seus “talentos naturais” obtidos na “loteria da vida” não começam a corrida no mesmo ponto de largada, será através da Estrutura Básica que o Estado proporcionará os meios pelos quais os menos favorecidos possam disputar em igualdade de condições seu lugar ao sol. A sociedade se organiza mediante instituições – políticas, sociais e econômicas –, cada qual com suas mais variadas peculiaridades. As instituições da sociedade podem ser resumidas em: o Estado (e seus regimes políticos); a família; as instituições econômicas; e as associações. Uma sociedade justa, para Raws, deve estar estruturada com base: a. na consignação de direitos e deveres fundamentais; b. numa Constituição política com o Judiciário independente; c. na economia pautada na propriedade privada dos meios de produção; e d. na família (Raws, 2003, p. 13-14). Rawls defende que o regime político capaz de sustentar uma estrutura social básica justa é a “democracia de cidadãos-proprietários”, face aos demais regimes. Isso porque "As instituições de fundo de uma democracia de cidadãos-proprietários trabalham no sentido de dispersar a posse de riqueza e capital, impedindo assim que uma pequena parte da sociedade controle a economia, e, indiretamente, também a vida política" (Rawls, 2003, p. 197). A democracia de cidadãos-proprietários evita o monopólio dos meios de produção nas mãos de uma pequena classe, garantindo a difusão da propriedade de recursos produtivos e de capital humano, isto
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