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CLASTRES, Helene - Terra Sem Mal

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TERRA SEM MAL
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Ensaios de Almanaque
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1
helene clastres
TERRA SEM MAL
Tradul'ao: Renato Janine Ribeiro
D
eeillora brasillense
1978
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I
Revisao:
Maria Alayde Carvalho
Capa,
desenho guarani. represenlando dourado. pacu
com borbolela. ema e martim·pescador; diagramacao
de Ci<;a Fitlipaldi.
Titulo do original em frances:
"LA TERRE SANS MAL"
(c) Editions du Seuill975
Q
editora .rasillense soc. an.
COLt:'CA.o1042 - ru~ bario de ita~tininga. 93
- U sao paulo - brasil
O,;,CAil AC:}]10
,
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SUmarlO
Nota sobre a grafta dos termos guaranis
Introdu<;ao
I - Povos sem superstil'oes
II - Paj.s e Caralbas
III - 0 discurso dos profetas e seus efeitos
IV - "Kandire"
V - Iuslil'a do Homem
VI - As ultimas geral'0es
Concluslio: 0 Profelismo
Palavras relativas ao esqueleto do bastao insignia
Palavras dos ultimos dentre os eleitos
7
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120
I
NOTA SaBRE A GRAFIA DOS
TERMOS GUARANIS
Mantivemos, na tradu,iio brasileira, a gratia dos termos guara-
nis seguida por Helene Clastres e que e adotada por muitos estudiosos
do idioma. 0 leitor estranhani que certos nomes com os quais esUi fa-
miliarizado venham grafados de outra maneira: e 0 caso, por exem-
plo, de Ana, que melhor conbecemos como Anhanga. Duas observa-
,oes, portanto, impoem-se:
1- A gratia utilizada vem-nos do Espanhol, ou melhor, do Para-
guai; e portanto compreensivel que procure reduzir os sons guaranis
aos da lingua castelhana. Assim, emprega fi onde utilizariamos 0 .lOS-
so nh: Nanderu, Nandesy, por. exemplo.
2- Estamos mais familiarizados com os nomes tupis (e devemos
acrescentar: dos seculos da colonia), enquanto a autora - ao abordar
os fenomenos da lingua - examina principalmente os guaranis. Ocor-
rem, portanto, divergencias de pronimcia, representa,iio e lexica:
como, por exemplo, a freqiiente queda da silaba tinal, transformando
o tupi poranga no guarani porii, ou 0 Anhangd tupi no Afiii guarani.
Assinalamos, para certas ·palavras, 0 equivalente usual em Portu-
gues: taia,u e caititu, por exemplo, para os termos guaranis tajasu e
taytetu. E s6 num caso nos permitimos recorrer a forma vernacula
corrente, em vez da gratia recomendada pela autora: escrevemos Tu-
pii, ja que outra escrita discordaria demais dos nossos usos.
Para um estudo mais pormenorizado de lingiiistica comparada do
Tupi e do Guarani, seria conveniente 0 leitor refeTir-se ao livro de
Frederico G. Edelweiss, Tupis e Guaranis, estudos de Etnonimia e
Lingiifstica, Publica,oes do Museu da Bahia n~ 7, Secretaria da Edu-
ca,iio e Saude, Salvador, 1947.
o Tradutor
I
j
TERRA SEM MAL 9
INTRODU<;Ao
"Gente sem fe" - disseram dos tupis os seus primeiros obser-
vadores. "Teologos da America do Sui", escrevia-se recentemente a
respeito dos guaranis. Quatro seculos de historia separam esses dois
juizos opostos: a conquista e, para os guaranis, cento e cinqiienta
anos de vida nas "redu~oes" dos jesuitas. Nao existe nenhuma medl-
da comum, aparentemente, entre os povos rao despreocupados com 0
sagrado que os cronistas nos descreveram e os misticos que saohoje
os guaranis. Se corrsiderassemos isoladamente esses dois momentos
da sua hisroria, pareceria rao marcado 0 contraste que quase poderia-
mos perguntar se se trata da mesma cultura. Sera 0 caso de dizer que
a conquista e a coloniza~ao subseqiiente introduziram uma ruptura
definitiva, a ponto de tornar impossivel - para entender 0 que os gua-
ranis dizem hoje - que se recomponham os fios da sua tradi¢o?
No sOculo XVI, os tupis-guaranis distribuiam-se por uma area geo-
grafica muito vasta. Os tupis ocupavam a parte media e inferior da
bacia do Amazonas e dos principais afluentes da margem direita. Do-
rninavam uma grande extensao do litoral atlantico, da embocadura do
Amazonas are Cananeia. as guaranis ocupavam a por~ao do litoral
compreendida entre Cananeia e 0 Rio Grande do SuI; a partir dai, es-
tendiam-se para 0 interior are aos rios Parana, Uruguai e Paraguai.
Da confluencia entre 0 Paraguai e 0 Parana, as aldeias indigenas dis-
tribuiam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelas
duas margens do Parana. Seu territorio era limitado ao norte pelo rio
Tiere, a oeste pelo rio Paraguai. Mais adiante, separado deste bloco
pelo Chaco, vivia outro povo guarani, os chiriguanos, junto as fron-
teiras do Imperio Inca.
De todas estas sociedades, as do litoral sao de longe as mais conhe-
cidas. Do seculo XVI, viajantes e missionarios, testemurrhas de urna
cultura enrao intata, deixaram-nos descri~oes - algumas delas no-
taveis. Como a de Jean de LOry: e em 1555 que 0 discipulo de Calvi-
no empreende a viagem ao Brasil. Nessa data, urn cavaleiro de Malta,
Villegaignon, havia fundado uma modesta colonia na baia do Rio de
Janeiro: atraira a "Fran~a Antartica" pastores huguenotes e 0 proprio
LOry (enrao estudante de Teologia), mediante a prome"a de ~ue 0
culto reformado poderia ser praticado livremenie. Sabe-se " que acon-
teceu·. E um ano antes de LOry que 0 cosmogra:fo do rei, Andre The-
vet, antigo frade franciscano, visita os tupinambis. Tambem ele Je
del¢m na regiao do Rio de Janeiro e depois - talvez na mesma via-
gem, ou quem sabe numa segunda vez - visita igualmente tribos tupis
situadas muito mais ao norte. Dez anos antes, em 1545, tambem foi
entre os tupinambas da regiao do Rio que um aventureiro alemao,
Hans Staden, residiu varios meses, mas contra a sua vontade, ja que
era prisioneiro dos indios. A Verfdica Hisl6ria I da sua aventura, re-
pleta de observa~oes ingenuas sobre os costumes dos tupinambas, e
(
um documento precioso. Aos relatos de todos esseS viajantes, juntam-
-se os dos missionarios. as primeiros jesuitas chegam ao Brasil em
, 1549. Como evangelizar e seu obj~tivo, deslocam-se sem parar: por
, isso, seus testemunhos referem-se a todos os grupos enrao acessiveis
do litoral.
As socledades do litaral, primeiras a entrar em cantata com os eu-
ropeus, tambem sao as primeiras a desaparecer: bem no come~o do
seculo XVIII, ja nao subsiste uma imica tribo tupi em toda a .faixa
costeira.
a destine dos guaranis ja e diferente. A penetra~ao europeia na sua
regiao come~a no primeiro te~o do seculo XVI, muito local e incerta
durante as primeiras decadas. Assun~ao, fundada em 1537, e apenas
um pequeno fortim. as primeiros jesuitas chegam a Assun~ao em
I588 e visitam a provincia do Guaira: nessa epoca, a evangeliza~ao
est! reduzida a sua mais simples expressao. Os missiomirios nao se
preocupam em residir entre os indios: basta-Ihes atravessar as aldeias,
batizando .is pressas milhares de pessoas. E somente no com~o do
seculo XVII que as missoes come~am a implantar-se. Em 1609,0 rei
de Espanha, a pedido de Hernandarias de Saavedra, enrao governador
do Paraguai, concede a Companhia de Jesus 0 direito de empreender
a conquista espiritual dos cento e cinqiienta mil guaranis do Guaira.
No ano seguinte, dois jesuitas, padres Jose Cataldino e Simon Mace-
ta, conseguem reunir algumas centenas de "selvagens" na primeira
"redu~ao". a padre Antonio Ruiz de !\1ontoya, 0 mais ilustre evange-
lista dos guaranis, fundara onze redu~oes entre 1622 e 1629.
Foi assim que se inaugurou uma realizac;ao surpreendente: 0 que
viria a ser chamado o "reino de Deus na Terra", a "republica cornu-
nista catolica" ou, mais simplesmente, 0 "Estado jesuitico do Para-
guai". Durante mais de um seculo e meio (are 1768, data da expulsao
dos jesuitas), as trinta cidades desse Estado prospero e praticamente
auronomo (sornente 0 papae 0 rei de Espanha tinham autoridade so-
10 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL II
bre ele) iriam isolar os guaranis - mais de duzentos mil indios - do
mundo colonial espanhol. Com a partida dos jesuitas, a dire,ao das
missaes foi conliada aos franciscanos, controlados por administrado-
res: as antigas redu,aes logoforam invadidas pelos colonos e niio tar-
dOll para que 0 sistema econamico coletivista estabelecido pelos jesu-
itas se transformasse Dum impiedoso sistema de explorac;ao. A os mi-
lhares. as guaranis abandonaram as missoes, indo 0 rnais das vezes
instalar-se nas aldeias espanholas. Trinta anos apos a expulsao. me-
nos da metade dos indios vivia ainda nas redu,aes. Mais tarde, vanas
guerras acabaram de arruinar 0 que restara das cidades. as guaranis
que escaparam de tais massacres se estabeleceram em pequenas al-
deias, no Guaini. nao longe do sitio das antigas redu,aes. Mas. em
1848, 0 ditador Carlos Antonio Lopez obrigou esses indios (cerca de
seis mil) a abandonar as suas aldeias para irem viver nas dos para-
guaio.s. Foi esta. resumida em suas linhas gerais, a historia pos-co-
lomblana dos guaranis: protegidos durante mais de cento e cinqiienta
anos da domina,ao dos colonos. posteriormente eles se fundiram
pouco a pouco, na popula,ao paraguaia. '
Contudo. certo ntimero de tribos guaranis tinham escapado dos je-
SUltas e dos colaDas e conservaram a sua autonomia, porque se esta-
beleceram num territorio que durante muito tempo permaneceu ina-
cessiveL dai a denomina,ao de caaiguas ou cainguas (= gente da flo-
resta) que Ihes foiatribuida. Por volta de 1800, os cainguas viviam
nas nascentes do rio Iguatemi, estendendo-se para 0 norte are a cordi-
Iheira de San Jose, perto das nascentes do Ypane. Descendem dos
ca~nguas, provavelmente, os tres grupos guaranis - rubia, chiripa e
palm - que vivem no Paraguai de hoje. Seu ntimero total certamente
nao e superior a tres mil. as mbias vivem, dispersos em pequenas al-
deias, no atual departamento do Guaira, entre Yuty ao suI e San Joa-
quin ao norte. as chiripas estabeleceram suas aldeias ao norte de San
Joaqui.;; os mais afastados sao os pains, ainda mais ao norte. perto
do rio Parana. No comeco deste seculo, eles ocupavam uma regiao
mais vasta~ e tambeffi se encontravam varios grupos de cainguas no
Brasil, entre eles os apapocuvas, estudados por Nimuendaju. Se Ni-
muendaju estimava - em 1912 - 0 conjunto dos cainguas brasileiros
por volta de tres mil, hoje estes praticamente desapareceram.
De maneiras diferentes, mas todas inexoravelmente, as Ires comu-
nidades guaranis do Paraguai se desagregaram: perderam sua autono~
mia politica (alem do "dirigente religioso", sao cheliadas por urn
capitan, que geralmente e imposto pelas autoridades paraguaiasJ e
econ6mica (e verdade que os guaranis ainda cultivam suas proprias
terras "queimadas", perto das aldeias, mas ja sao numerosos os que
trabalham para os paraguaios). Enquanto os mbias conservam sua
lingua, os chiripas hoje falam apenas 0 guarani paraguaio. Em suma,
•
,
"
1
as ~omunidades guaranis estio condenadas a curto prazo: ate hoje,
porem, todas elas conservaram uma tradi~ao religiosa original com 0
maior empenho, porque nela, e so nela, entraram ao mesmo tempo a
razao e 0 meio de resistirem ao mundo dos brancos. Todos os etn610-
gos que, desde Nimuendaju. estudaram os guaranis saO unanimes em
ressaltar a impormncia conferida pelos indios a vida religiosa. Veja-
-~e: por exemp~o. 0 que diz a esse respeito Egon Schaden: "Na super-
flcle da terra nao ha, por certo. povo ou tribo a qtre melhor se aplique
do que ao guarani a palavra evangelica: 0 meu reino mio e des/e
mundo. Toda a vida mental do guarani converge para 0 Alem. "2 SaO
teologos, portanto. Ai esUi 0 problema. Como conciliar essas observa-
caes recentes - e. sem a menor dtivida, indiscutiveis - com 0 quadro
que os .cronistas nos deixaram dos guaranis e dos tupis?
Parece impor-se uma explicac;ao: a intluencia do cristianismo esta-
ria na origem desse desabrochamento da vida religiosa, pouco impor-
tando que tal intluencia date do tempo das "reducaes" ou seja poste-
rior a elas. Dessa forma, J. Vellard, ao comentar algumas rezas
mbias. efetua uma discriminac;ao entre as que. a seu veT, sao evicten-
temente indigenas - por serem pobres e estereotipadas - e as que con-
sidera belas e de espiritualidade elevada, que por essa razao atribui
aos jesuitas, e teriam sido conservadas pela tradicao oral dos mbias.3
Deixemos 0 pressuposto de lado, para so considerar a hipotese que
entra em jogo: os mbias seriam, portanto, os descendentes dos guara-
nis que viveram. antigamente, nas redu,aes. Nada e menos certo do
'lue isso. Tal nao e. por exemplo, a opiniao de Leon Cadogan: depois l
de longas pesquisas, este autor descobriu que os mbias descendem dos !
"selvagens" do Mba'e Vera de que fala Dobrizhotfer na sua His/oria
de Abiponibus e que, segundo 0 testemunho deste padre. viti mas das-
perseguicaes dos espanhois, acabavam justamente de pedir ajuda e
prote,ao aos jesuitas, quando estes foram expulsos;4 de modo que os
mbia~ mal tiveram a possibilidade de' viver nas missOes. Sabe-se,
alias, mais ou menos que lim levou a maior parte dos guaranis que
viviam nas redu,aes: acabaram se misturando com a popula¢o de
colonos, que so esperava a partida dos jesuitas para tomar conta do
Guaira. A rigor, seria possivel admitir que alguns grupos tenham re-
tornado seu antigo modo de vida - mas, ainda ilssim, sob a condi¢o
de pressupor que tais grupos problematicos tivessem mudado para as
missaes, por sua propria iniciativa. pouco tempo antes da destrui,ao
destas. Com efeito, esquece~se com demasiada freqiiencia a transfor-
macao radical da sociedade tradicional, provocada pela nova ordem
que os jesuitas impuseram: a forma da aldeia e das casas, as ativida-
des cotidianas, a economia, 0 sistema de parentesco, as rela,aes inter-
tribais... tudo isso foi transformado. Sobre as ruinas da sociedade an-
tiga, edilicou-se uma sociedade de tipo inteiramente diferente e que ja
Luciana
Realce
Luciana
Realce
12 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 13
estava praticamente instalada por volta de 1660. Torna-se secundaria
a questio. tantas vezes discutida. de saber se os padres fizeram dos
guaranis cristlos autenticos, au so obtiveram uma conversao secun-
daria, haviam-Ihes imposto condic;aes tais de existencia. que e bern
dificil acreditar que as guaranis fossem capazes, ap6s urn seculo. de
regressar simplesmente a floresta. Econtudo 0 que afirma Egon Scha-
den. cuja principal preocupac;ao e decifrar. no discurso dos guaranis
de hoje. a marca do cristianismo, "1a em virtude de diferenciac;aes
anteriores a chegacta do europeu, a cultura guarani, peto isolamento
dos diferentes subgrupos da tribo. possuia apenas relativa uniform i-
dade no tocame a lingua. a religiao. a tradic;ao mitica e a outros seto-
res da cultura. A diferenciac;ao se foi acentuando muito nos tempos
coloniais. quando parle da populac;ao foi submetida. durante rnais de
urn seculo. a tutela jesuitica, retornando, algum tempo apos a expul-
sao dos 'missiomi.rio~. a suas primitivas condi~6es de existencia. "5
A segunda parte dessa asserc;ao nao pode deixar de colocar alguns
problemas. Mas. 0 que pensar da primeir.' E por que Schaden preci-
sa alegar. contra todos as antigos testemunhos. diferenciac;aes ante-
riores a conquista" Talvez para fundamentar melhor (fazendo da apti-
dao a mudanc;a uma dimensao da cultura guarani) as explicac;aes que
prop6e da religiao atual. atraves do sincretismo; au para dar conta da
distinc;ao que estabelece entre os mbias do Paraguai que. diz ele. "pa-
recem haver conservado suas lradi90es na sua pureza original" e to-
des as demais grupos guaranis. cujo "mais superficial exame mostra
que assimilaram uma serie de elementos cristios".6 Contudo. nao pa-
recem tio grandes as diferenc;as culturais entre os subgrupos guara-
nis estudados desde 0 comec;o do secuh basta comparar. por exem-
plo. as danc;as. os ritos de atribuic;ao de nome. 0 grande mito dos
gemeos... entre as chiripas, os mbias e os apapocuvas. Ao contrario:
silo notavelmente homogeneos. A diferenc;a alegada reside. entio. na
maior ou menor assimilal;ao de elementos cristaos? Mas nem sempree facil identificar tais elementos e em todo caso e necessaria uma a-
nalisemenos superficial para avaliar a sua impormncia e significado:
Nimuendaju observava. por exemplo. que 0 "cristianismo" dos apa-
pocuvas era so de fachada. Como decidir') Siilcretismo. ou "pureza
original"'! A priori, nem urn nem outro parece-nos convincente. de-
vido aos pressupostos teoricos que introduzem: 0 prirneiro, porque
pressupae que 0 pensamento religioso dos indios apresenta tao pouca
coerencia que pode admitir quaisquer elementos estrangeiros: 0 se-
gundo. porque pressupae que 0 discurso religioso (discurso sobre 0
homem e 0 mundo - e tambem discurso de uma sociedade sobre si
mesma) pode permanecer imutrivel ao mudar a sociedade . Finalmen-
teo ambos procedem do mesmo enfoque da historia dessas culturas,
pelo avesso. reconstruindo 0 passado dos tupis-guaranis a partir do
I
•
que hoje se sabe, ou se acredita saber, acerca da sua religiao.
Propor 0 problema nesses termos acaba por esquiva-Io. porque
consiste em ja pressupor a sua soluc;ao. Por isso, devemos mudar de
otica, assumimos a postura inversa e optamos por retomar a historia
a partir dos seus primordios. Para isso. dispunhamos de urn fio con-
dutor os guaranis falam hoje da "Terra sem Mal" - ora. trata-se de
um tema muito antigo. cuja presenC;a ja era atestada no seculo XVI
entre todos os tupis-guaranis. Nossa primeira tarefa e, portanto. ten-
tar compreender que significac;ao ele tinha naquele momento, inseri-
do num contexto historico e cultural que nao era 0 de hoje. Naquele
tempo. as sociedades tupis-guaranis eram fortes e livres: hoje. elas
estio morrendo, nos 0 sabemos: mas tambem os indios 0 sabem e di-
zem. Mas. antes disso. qual podia ser 0 seu discurso? E 0 que deve-
mos tentar descobrir, talvez seja possivel entender de outra maneira
as belas palavras que hoje dizem os guaranis e saber se 0 discurso que
proferem e seu ou nao. se mudou e de que maneira. Nada nos obriga.
afinal de contas. a endossar as .afirmac;6es dos antigos cronistas e a
conferir as suas opinioes 0 mesrno credito que as suas afirmal;oes: re-
lendo-os, veremos que nos disseram, sem 0 querer. 0 essencial sobre
a religiao indigena.
Notas
(I) Para as citae6es do texto de Hans Staden, recorremos, das varias tradw;oes da
Wahrhaf/ige His/oria existentes em Portugues, a de Guiomar de Carvalho Franco
(1941), sob 0 titulo Duas Viagens ao Brasil. Segunda edil;3o em 1974, pelas Edito-
ras Itatiaia e da Universidade de Sao Paulo, Belo Horizonte e Sao Paulo. (N. do T.)
(2) Egon Schaden, "0 Estudo do indio Brasileiro ontem e hoje," in America In-
d/gella, vol. XIV, n? 3, 1954, Cidade do Mexico, pags. 233-252.
(3) "Texles Mbiwha recueillis en Paraguay," JSAP, 1937.
(4) L. Cadogan, "Ywyra fie'ery," in Supp/emen/o An/rop%gieo de /a Revis/a del
Ateneo Paraguayo.
(5) Egon Schaden, AspeclOs FUfldamellfais da CIt/fura Guaral/i, 3~ edil;3o. Editora
Pedagogica e Universiui.ria, Editora da Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 1974,
pag. I I.
(6) Egon Schaden. prefacio ao livro de Cadogan, AYI'II Rapyra.
J
Luciana
Realce
Luciana
Realce
TERRA SEM MAL 15
capitulo I
POVOS SEM SUPERSTI<;OES
Quem se refere ao testemunho dos cronistas sobre as crencas
dos antigos tupis-guaranis fica impressionado com a convergencia dos
seus dizeres, uminiJ1les num ponto preciso, os gentios de "alem" niio
tinham "supersticoes . as primeiros relatos a nos fornecerem uma
documentaciio algo pormenorizada sobre estas nac6es ilmerindias, os
relatos dos jesuitas, que cedo vieram a terra brasileira estabelecer as
suas missoes, dizem-nos que eram os tupis gente ignorante de tada
divindade, sem adorar nenhum idolo, sem em nada reconhecer a di-
mensiio do sagrado, agindo em tudo segundo 0 seu bel-prazer, sem
que nenhuma obrigaciio ritual viesse ordenar a sua atividade cotidia-
na nem ritmar 0 seu tempo. "E gente (os tupis do norte) que nenhum
conhecimento tern de Deus, nem idolos." 1 a minimo que certamente
se pode dizer sobre' esta apreciaciio do padre Manuel da Nobrega e ser
apressada, niio fazia mais de quinze dias que 0 missionario chegara
entre os tupis quando a escreveu. Mas,quatro meses mais tarde, bern
pouco modificou sua opiniiio: "Esta gentilidade a nenhuma coisa 000-
ra (trata-se agora dos tupinambas), nem conhecem a Deus; somente
aos trovoes chamam de Tupii, que e como dizer coisa divina."2 E
minima a diferenca: quando muito, ele concede-Ihes agora uma vaga
nociio do sagrado. Entre os tupis, por conseguinte, nem ha crenca,
nem praticas religiosas; nem fe, nem lei, estritamente.
Depois do padre Manuel da Nobrega e dos primeiros missionarios,
todos os viajantes que visitaram as indios corroboraram esta afrrma-
ciio: niio somente eles niio tinham conhecimento algum do deus ver-
dadeiro - 0 que, tratando-se de selvagens, a ninguem surpreendia -
mas tampouco tinham falsas crencas. Esse traco notavel das nacoes
tupis-guaranis espanta - ainda que anime. pelo menos, os missio-
narios: sua tarefa de evangelizaciio ve-se simplificada, por niio terem
de combater crencas ja estabelecidas. Rebeldes a ideia corrente sobre 0
que deviam ser os pagiios - adoradores de divindades multiplas e pra-
ticantes de cultos idolatras - esses indios em nada acreditavam, nao
adoravam astros, nem animais, nem plantas. oem contando com' pa-
dres ou lugares sac~os. Sao. precisamente, sem "supersti<;oes": sem
nada em que se mamfestasse uma preocupaciio qualquer com 0 sobre-
natur~l. Em suma, estavam ate mesmo aquem do paganismo e a di-
mens."o rehglOsa pareclll faltarcompletamente a sua cultura. Esse fa-
to. nao resta a menor duvida, tinha que surpreender. Alias, motivos
de espanto para os cristaos era 0 que niio faltava entre os guaranis:
como podenam aqueles compreender, com efeito, que gente, dona de
uma hngua cUja nqueza, harmonia e complexidade todos admiravam
sem reserva, dotada de suficiente raziio natural para estabelecer Uma
ordem social que distinguia cuidadosamente os nobres dos plebeus ]
pudesse, ao mesmo tempo, viver sem fe nenhuma, praticar a polig~­
fila,. guerrear s~m descanso e, 0 cumulo, comerem-se lins aos outros?
Cltemos aqUl alguns textos sobre os tupinambas: "Por mais que
e~sa ~ente.nca de Cicero, a saber, que niio hii povo tao bruto, nem na-
cao tao barbara e selvagem, que niio tenha 0 sentimento da existencia
de. alguma divindade, seja aceita por todos como maxima indubitavel:
contudo, quando eu considero de perto os nossos tupinambas4 da A-
menca, vejo:me absolutamente impedido de aplicii-la a seu respeito.
POlS, em pnmerro lugar, alem de nenhum conhecimento terem do
verdadetro Deus, estao aquem de todos os antigos pagiios, que tive-
ram a pluraMade dos deuses, e dos idolatras de hoje, e ate mesmo
dos mdlos do Peru... eles nao confessam, nem adoram nenhum deus'
celeste ou terrestre: e, por conseguinte, niio tendo nenhum ritual ou
lugar_determinado de reuniiio para a pratica de algum servico religio-
so, na? oram em forma de religiiio. quer em publico, quer em priva-
d,:" COlsa nenhuma que seja."S E 0 autor vai lamentar, dai a algumas
pagmas, a sorte .dessa "pobre gente" que vive "como besta bruta"
sem a me~or fe. Se preferimos comecar citando - tao longamente :
Jean de Lery, e por ele exprimir de maneira admiravel a opiniiio ge-
ral. Lery. contudo, dlficdmente poderia ser suspeito de etnocentris-
mo. Seu relata e cabal, niio ha vestigio algum, entre os tupinambas,
de crencas em dlvmdades quaisquer, nenhum indicio concreto, gesto,
objeto ou ntu:,l, que permIta supor a existencia de preocupacoes reli-
glOsas, por mlmmas que sejam. Mais ainda. pelo que parece sugerir 0
autor, tais quest6es eram tao profundamente estranhas aos indios
que.. quando ouviam_ os brancos expondo a teologia destes, nada mais
sablllm expnmlr a nao ser uma profundissima estupefaciio: atitude re-
veladora, sugere-se, de que nada existia na sua propria cultura que
pudesse corresponder a urn taldiscurso. as cronistas encontravam
llf~~o boas. raz~es para se mostrarem surpresos: que cultura pode ser
tao pou5Xl mqUleta ~ respeito de simesma, a ponto de niio incluir esta
dlmensao de negativldade que uma religiiio traduz?
Luciana
Realce
Luciana
Realce
Luciana
Realce
Luciana
Realce
'6 HELENE CLASTRES
TERRA SEM MAL 17
Mas prossigamos na leitura: Claude d'Abbeville: "Embora os in-
dionupinambas tenham urn juizo natural bastante bela, nunca s~ v~u
na<;ao mais rebelde ao servi<;o de Deus do que eles. Que ~ovo ha tao
selvagem sob 0 ceu e que na<;ao existe tao barbara, que nao tenha lI-
do se nao a verdadeira religiao, pelo menos, a sombra daquela, uma
va'superslI9!io? ... Nao creio que haja penhumana<;ao no mund,:, sem
alguma especie de religiao, exceto os IndioS tupInambas, que ate hOJe
nao adoraram a Deus algum, nem celeste, nem terrestre, nem de ou-
ro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhuma
outra coisa que seja."6 Mesma observa<;ao e mesmo espanto que 0 de
Lery: gente que nem sequer e paga. Egipcios, caldeus, persas, gregos,
romanos, etc., todos tiveram os seus falsos deuses: em vao se percor-
reria toda a Hist6ria, a procura de uma unica na<;ao completamente
falta de religiao. Unica exc~ao a esta regra geral: os tupis que, pelo
que nos dizem, ignoravam 0 que pudesse ser uma prece ou urn OflCIO
divino e para quem se equivaliam todos os dias; tao pouco solenes
uns quanto os outros.
Contudo - acrescenta 0 autor - eles tern algum conhecimento de
urn deus verdadeiro, a quem chamam Tupa. Observemos aqui urn
primeiro desacordo: pois, quanta a esta ultima afirma<;ao, e bern dife-
rente 0 testemunho de Lery, a nos declarar que foram os brancos, ele
proprio e seus companheiros, que, pretextando 0 medo manifestado
pelos tupinambas ao ouvirem 0 trovao - tupa - pretender~ fosse
este 0 deus de quem Ihes falavam. " ... Quando ouvem 0 trovao, que
chamam de Tupa, ficam muito aterrorizados: se, valendo-nos do seu
estado rude, aproveicivamos esta ocasiao particular para Ihes dlzer
que era este 0 Deus de quem lhes falavamos, 0 qual, para mostrar a
sua grandeza e poderio. assim [azia _tremer Cell e te~ra: a _sua r~olu~
<;ao e resposta era que, se os aterrorizava desta manelra, nao valIa na-
da.") Que os habitantes da "Ilha dos Franceses" tenham sido os pn-
meiros a promover esta acepc;ao do terma indigen,a tupa e~erta~ente
inexato: textos anteriores a viagem dos companhelros de Vlllegaignon
ja a mencionam. E 0 caso da carta, ja citada, do padre Manuel da
Nobrega: ..... aos trov6es chamam de Tupa, que e como dlzer COlsa
divina. E assim nos nao temos Dutro vocabulo malS convemente. para
traze-Ios ao conhecimento de Deus, do que chamar-lhe Pai Tupa."X
Tal foi a sorte que coube a Tupa: sabe-se como os missionarios 0
empregaram em seus catecismos para designar 0 deus cristao e ~on:o,
a longo prazo, acabou tomando este ultimo sentido para os propnos
indios. Na mesma epoca de Lery, urn texto de Thevet parece confir-
mar que Tupa foj uma invenc;ao crista e que as tupis n,ao 0, conf~n­
diam com sua propria no<;ao de I upd (= trovao): "por lSSO e preCISO
saber que eles confessam que ha urn Deus do ceu ... Nao rezam a ele.
nem 0 veneram de forma alguma e dizem que e 0 Deu~ dos (rtq~\{)S
e faz 0 bern para os cristaos e nao para eles. Eles chamam Deus de
Tupa e nao acreditam em absoluto que ele tenha 0 poder de fazer
chover, trovoar ou vir 0 born tempo, nem sequer de lhes trazer fruto
algum."9 Contudo, alguns autores, seguindo Nobrega - e contra-
riando Lery - dao a entender que Tupa ja era uma divindade dos in-
dios e are mesmo 0 seu unico deus: os tupis teriam portanto alguma
luz natural dele, embora nao the prestassem culto algum.
Yves d'Evreux fala, assim, da "cren<;a natural que eles sempre tive-
ram em Deus, nos Espiritos e na Imortalidade da Alma.", 0 Esclare-
<;amos, porem, que sua afirma<;ao funda-se mais na prova cosmologi-
ca da exisrencia de Deus enos escritos dos gregos e dos latinos 1I do
que na observa<;ao dos selvagens. Esclare<;amos ainda que as viagens
dos capuchinhos Claude d'Abbeville e Yves d'Evreux sao de urn secu-
10 posteriores a de Lery, de mais de sessenta anos a de Nobrega e dos
primeiros jesuitas: 0 ensinamento dos brancos tivera tempo para va-
rar 0 seu caminho. Para convencer-se disso, basta leT certa discussao
sobre a natureza de Deus, 12 em que a argumenta<;ao atribuida. por
Yves d'Evreux ao seu interlocutor indigena e a de urn homem que se
diria quase treinado em debates teologicos: Tupa nao poderia ser ho-
mem, por estar em toda parte ao mesmo tempo: Tupa nao poderia
ser homem, ja que criou tudo; se fosse homem, seria necessaria que
outro homem 0 tivesse gerado: Tupa e invisivel, etc. Isto basta para
nos deixar perplexos quanto a origem "natural" - india - de
tal cren<;a, Voltaremos a questio de Tupa que, de CLlmum acordo, os
etnologos (como Metraux) relegaram, talvez dcpressa demais, a urn
papel secundario, cedendo sem duvida a impressao deixada por teste-
munhos tao contraditorios como os que acabamos de citar. Yves
d'Evreux, por sua vez, conclui da maneira seguinte: "Esta e a cren<;a
em Deus que esses selvagens sempre tiveram naturalmente impressa
em seu espirito, sem 0 reconhecerem atraves de nenhuma especie de
reza ou sacrificio." 1.1 Tambem ele, portanto, nota a ausencia de toda
pratica religiosa entre os indios, a sua despreocupa<;ao acerca da di-
vindade. Finalmente, para concluirmos a respeito dos tupinambas, ci-
temos urn ultimo texto, agora do missionario jesuita Fernao Cardim:
"Este gentio nao tern conhecimento algum de seu Criador, nem de
cousa do Ceu, nem se ha pena nem gloria depois da vida, e portanto
nao tern adora<;ao nenhuma nem cerimonias, ou culto divino, mas sa-
bern que tern alma e que esta nao morre ... e tern grande medo do de-
monio, ao qual chamam Curupira ... [mas] nao 0 adoram, nem a al-
guma outra criatura, nem rem idolos de nenhuma sorte." 14
Seria possivel multiplicar ainda mais as cita<;6es: todas concordam.
As mais radicais tornam os indios perfeitos ateus. As outras, que
consentem em creditar-Ihes algum conhecimento do sagrado, veem
neles a imagem da inocencia: e 0 born selvagem, de juizo reto, ainda
Luciana
Realce
18 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 19
mio pervertido peto monturo de supersti'Yoes obscuras: em suma, as
missionarios chegavam no momento exato para fecundar estas almas
virgens. Mas, de relig iao autoctone, nenhum indicio.
Nessa perspectiva, dois relatos talvez mere<;am lugar it parte. Pri-
meiro. 0 de Thevet. tantas vezes ir6nico; [oi ele 0 unico a nos retrans-
mitir pelo menos uma parte da mitologia dos tupinambas, embora
nao hesite em zombar dos indios em cada ocasiao. Pois para ele e cla-
ossimo que nada, nesses contos extravagantes, pode assemelhar-se a
cren<;as religiosas. Seu juizo sobre 0 livro de Lery permite avaliar
bern a medida do seu pensamento: "E aqui que eu devo zombar 00-
quele que foi tao temerario, a ponto de vangloriar-se de haver escrito
urn livro sobre a religiao desses selvagens. Fosse ele 0 unico a haver
estado naqueles paises, facilmente me faria acreditar no que quisesse;
mas sei, por certo, que este povo e sem religiao, sem livros, sem exer-
cicio de adora<;ao e conhecimento das coisas divinas." 15 Aprecia<;ao
ainda mais injusta, porquanto Lery, dessa vez pelo menos, concorda
com a opiniao dele. A despeito desse pressuposto etnocentrista, fica
que a Thevet se deve 0 nosso conhecimento da mitologia tupinamba:
teremos de nos referir cons'tantemente a esse autor.
Outro relato, 0 de Hans Staden, tern pelo menos 0 merito, relativa-
mente aos demais, de designar como religioso 0 que efetivamente 0
era: "Os selvagens creem numa cousa que cresce como uma abObo-
ra." 16 Pouco comprometido com a escolastica - Staden, ao con-
tnirio dos Qutros cronistas, naD era praticamente urn hornem cultiva-
do - nao procura a religiao onde os demais se empenhamem desco-
bri-Ia e aponta, com sua ingenua observa<;ao, para seu verdadeiro lu-
gar, sem contudo suspeitar da profundidade real do contexto religioso
que sustentava 0 "culto" dos maracds. Nao eque Staden tenha sido 0
unico a perceber este fenomeno; todos os cronistas 0 conheceram e
deixaram- numerosas descriyoes suas; reCllsaram-se, todavia. aver
nisso fatos de ordem religiosa. Ao mesmo tempo, sendo impensavel
que os indios nao tivessem pelo menos algumas cren<;as (ja que nao
tinham cultos), so restava aos cronistas 0 recurso de apresentar a cul-
tura tupi como urn conjunto em que estivesse marcado, em baixo-re-
levo, 0 lugar de uma religiao monoteista. Dai as l1utua<;oes de cada
testemunho e as dificuldades que surgem para quem pretende estudar
a religiao tupi-guarani: elas obrigam a uma leitura critica dos textos,
analoga a que pode fazer 0 historiador.
[sso basta quanto aos tupis da costa brasileira. No que diz respeito
aos guaranis do Paraguai. nossas referencias senio menos numerosas.
Com efeito, a documenta<;ao sobre essa parte da America e muito
menos rica do que a relativa ao Brasil. Limita-se praticamente aos je-
suitas - del Techo, Montoya, Charlevoix, Lozano. para citar apenas
os mais impor~ntes, cujos escritos se repetem, literalmente as vezes,
e que, no conjunto, mostram-se menos preocupados em descrever os
costumes dos indigenas do que em narrar com pormenores os pro-
gressos da evangeliza<;ao. Nada· ha, aqui, de comparavel aos grande"
cronistas do BrasiL de modo que nosso conhecimento dos guaranis
dos primeiros tempos da conquista nao equivale, de forma alguma,
"00 que _temos dos tupis. 0 que se sabe dos tupis permitira suprir, em
certa medida, essa ignanincia: mesma assim, parem, e necessaria aglr
com prudencia, pois e evidente que a homogeneidade - verificada
quanta aos tra<;os essenciais - da cultura tupi-guarani mio autoriza
·atribuir automaticamente aos segundos 0 que everdade inconteste pa-
ra os pnmelros.
Voltando aos jesuitas, citaremos, primeiro. Loiano: seu texto e
sem duvida 0 rnais completo.. pois, como historiador da Companhia,
ele acrescenta ao conhecimento direto (ainda que tardio) das missoes
a familiaridade com todos os testemunhos deixados por seus prede-
ceSSores. Veja-se - segundo ele - 0 que eram os guaranis antes de
serem reducl; _. reduzidos a fe crista e a vida civilizada: "Tinham
certo conhecimento de Deus e are mesmo haviam chegado a C01l1-
preender. embora confusamente. que ele era uno. como se pode dedu-
zir do nome que !he deram, Tupd, que significa excelencia superior.·.
Atribuiam-Ihe 0 poder de mandar 0 relampago e de emitir tempesta-
des aterrorizadoras, de que tinham grande temor, pois as tomavam
como 0 efeito da calera dessa excelencia superior; contudo, nunca ten-
tavam acalma-la. nem torna-Ia propicia, par sacrificios ou pniticas de
adora<;ao." J 7 Cren<;a num deus Linico. cujo poderio manifestam 0 tro-
vao e os relampagos.- mas a quem nenhum rito propiciatorio se con-
sagra: os observadores dos guaranis concordam com Nobrega, Yves
d'Evreux e os demais. confirmando _. ate mesmo nesse plano negati-
vo - a homogeneidade da cultura tupi-guarani. Observa<;ao a respei-
to do texto de Lozano: a tradu<;ao do termo lupa, em que ele se ba-
seia para afirmar a cren<;a indigena num deus linico. repousa numa
etimologia pouco convincente (lu = admira<;ao, pa = interroga<;ao);
embora Montoya, de quem Lozano a toma de emprestimo, fosse urn
admiravel conhecedor da lingua guarani, parece sem duvida have-Ia
inventado para as necessidades da causa. Seja como for, acreditando-
-se em todas as testemunhas. os guaranis. da mesma maneira que os
tupis. nao tinham religiao: quando muito. urn conhecimento confuso
e apenas teorico - porque sem nenhum impacto sobre a vida _. de
urn unico deus.
Morhoya. porem, por consagrar sua vida inteira a conversao dos
guaranis, descobrira entre eles fato revelador de uma tradi<;ao religio-
sa original: 0 culto volado aos ossos dos grandes xamas.1 XA certa
distancia de uma redu<;ao recem-fundada e onde a catequese enfrenta-
va grandes dificuldades, Montoya descobriu, isolados em plena 110re'-
Luciana
Realce
20 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 21
tao especies de templos em que eram conservados. dentro de redes en-
feitadas com penas, esqueletos engalanados. Cestas suspensas nas pa-
redes do templo continham alimentos como oferenda. 0 padre proce-
deu imediatamente a urn inquerito, averiguando enta~ que as esquele-
tos pertenciam a xamas recem-falecidos, que numerosos indios os ve-
neravam em segredo e que os xamas vinham a esse lugar para comu-
nicar-se com seus espiritos e revelar suas predil;oes.
Foi gra,as as revela,aes de um jovem indio que os padres foram
inteirados do que acontecia. mio hesitando em pressionar os adullos
para que os levassem ate 0 ponto da floresta em que se erguiam as
templos, ponto distante da redu,ao. ja que dois dias de marcha foram
necessarios para atingi-Io. 0 primeiro templo ja estava vazio quando
eles 0 descobriram: informados do procedimento dos missionarios, as
indios haviam rcmovido 0 esqueleto. Prosseguiu a marcha -" penosa,
em floresta Oluito densa, no dizer da testemunha _. ate urn segundo
templo,oode foram enconlrados dais esqueletos: ..... descobrimos al-
gumas ossadas mal-cheirosas que, embora ornadas com penas de co-
res vivas. nao haviam perdido nada de sua suja fealdade. Um dos cor-
pos perte:lcera a urn grande mago, muito velho..... 19
Quanto ao segundo esqueleto. era de um poi'; morto havia algum
tempo e enterrado pelos cuidados dos missionarios. Os indios 0 ha-
viam desenterrado e removido para esse lugar, pais -- diziam _. eles
o ouviam [alar e lamentar-se todas as noites: "Tirem-me daqui, estou
a,fixiado..... Assim fizeram. Mais adiante. dois outros esqueletos
tambem foram descobertos. E claro que os padres trataram logo de
por urn termo a essas praticas diab6licas, mio sem violencia. Todos os
cadaveres foram queimados em publico. a despeito da hostilidade e da
inquieta,ao manifestas dos indios.
Esse fato nao impede. em absoluto. Montoya de reiterar. no mes-
rno capitulo em que narra a sua descoberta, que os guaranis sempre
foram isentos. gra<;as ao ceu. de idolatria e adora,ao va. E, sem mais
se interrogar. ele atribui a pnitica india a malevolencia de Satamis,
que teria sugerido tal ideia aos indios, a fim de desfazer a obra peno-
samente empreendida pelos padres. "Nunca tiveram idolos, embora 0
diabo come,asse a rmpor-Ihes a ideia de venerar as ossadas de certos
indios que, durante a vida, [oram magos renomados..."20 Assim, nes-
se culto, ele so quer ver urn paganismo embrionario, em vez da ex-
pressao de uma tradi,ao ha muito estabelecida.
o culto dos ossos propae um problema delicado. Com efeito. Mon-
toya [oi 0 tinieo a testemunha-lo21 e mesmo assim so 0 observou nu-
rna unica reduyao. Alern do seu testem4nho, nao se e~contra alusao
alguma a esse fenameno (tambem nada de comparavel, pelo que sabe-
mos. e atestado quanto aos !upis). 0 fato de que nenhuma outra ob-
serva,ao venha corroborar a de Montoya impede-nos de considerar.
com inteira certeza, 0 culto dos ossos como urn rito inteiramente ori-
ginal. Ja assinalamos a reticencia dos jesuitas em se alongarem na
descri,ao dos costumes indigenas; mas, se templos semelhantes aos
que Montoya descreve tivessem sido descobertos em outro lugar, OU
por outros padres, e pouco provavel que a coisa fosse passada sob si-
lencio. Talvez 0 desejo de manter em segredo s'uas praticas religiosas
tivesse conduzido os indios it constrUlr seus teIilplos mUlto longe das
aldeias. a partir do momento em que come,aram a implantar-se as
missaes. 0 que explicaria, a rigor, 0 silencio de nossas outras fontes a
esse respeito, culto e lugares de culto teriam sido envoltos no maior
sigilo, cuidadosamente ocultos aos brancos. Para apoiar essa hipOtese.
convem recordar que Montoya so deveu sua descoberta a denuncia deum neofito. Mas uma segunda hipotese deve ser examinada, a ideia
de construir templos talvez tenha sido sugerida aos indios pelas prMi-
cascristas; 0 templo seria uma adapta,ao das igrejas. Explica-se me-
Ihor. assim, que tal inova,ao so tenha ocorrido num ponto isolado.
Seja como for. mesmo na segundahipotese. h<i pelo menos uma coisa
que podemos considerar como certa, 0 Olllto, enquanto tal, nao podia
resultar de nenhuma inf1uencia externa e, se um elemento estranho
- 0 templo - pade introduzir-se. foi necessaria antes a existencia de
um conjunto em que ele pudesse encontrar lugar. 0 cullo dos ossoS.
em todo caso, perdurou, nos 0 veremos - embora de forma modi-
ficada - are rnesmo entre os guaranis de nossos dias.
Basta essa leitura rapida dos cronistas para convencer-nos de que
viram 0 mundo guarani, e quiseram traduzi-Io, como sendo urn mun-
do radicalmente a-religioso. Para eles, e lugar-comum afirmar que os
tupis-guaranis nao tem religiao, 0 que apenas melhor os capacita a re-
ceber a religiiio dos conquistadores. Seus testemunhos podem parecer
decisivos, ainda mais porque emanam.as vezes, de viajantes que sabi-
damente foram observadores notaveis. Nessas condi,6es, nao pode-
namos contentar-nos em menciona-Ios sem procurar compreende-los.
Impae-se por si mesma uma primeira explica,ao, negligenciou-se,
simplesmente, de prestar alguma aten,ao as cren,as e a mitologia in-
digenas. Quando muito, sao referidas como curiosidades ou anedotas
divertidas (Thevet), ou entao contenta-se (Montoya) em adivinhar ne-
las a obra do demanio, ou ainda em perceber. mais ou menos defor-
mada. a ideia de Deus, e necessario que a prega,ao encontre um pon-
to para ancorar. A primeira razao prende-se, pois, - como era de se
esperar - a _uma atitude etnocentrista: a recusa de le,var a serio as
cren~as indigenas. Mas isso nao e tudo, uma outra explica~ao acres-
centa-se a esta: 0 proprio carater da religiao tupi-guarani, apropriado
a dissimula-la para um olhar ocidental.
Uma religiao e um conjunto de cren,as que podem exprimir-se de
multinlas maneiras, expressao verbal (mitos, rezas, etd, expressao
Luciana
Realce
22 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 23
;J
i;
gestual (ritos, atitudes.. .), expressao material (templos, objetos de cul-
to, representa<;oes figuradas das divindades). POde-se observar que 0
que impressionou as primeiros viajantes - levando-os a dizer que os
indios nao rem religiao, mesmo que possuam uma vaga ideia de Deus
- e a ausencia de todos esses sinais tangiveis da vida religiosa; e sem
duvida esta nao transcorria, entre os tupis-guaranis, nos quadros -
ti~ diversos - cnde eles podiam esperar encontni-la. Pais os cristios
nao careciam de referencias; conheciam os politeismos antigos com
<uas complicadas genealogias de deuses e semideuses; estavam' acos-
tumados aos relatos do Oriente e as descobertas de templos grandio-
sos, povoados de ricos idolos; conheciam 0 mundo africano, mais pri-
mitivo, menos suntuoso, mas em que multiplas cren<;as - supersti-
<;oes- podiam manifestar-se nas modalidades concretas dos fetiches,
amuletos, etc. Diferentes disso tudo, os guaranis nao adoravam visi-
velmente nada, e sua prdtica religiosa nao se inscrevia em nenhum
quadro conhecido; concluir dai que ela era inexistente exigia apenas
urn passo, que foi dado sem maior hesita<;ao.
Os indios nao eram desprovidos, porem, de "supersti<;Oes" ou "fal-
sas cren<;as" e todos os autores 0 exemplificam com largueza. Vamos
recorda-las sumariamente: 0 que elas revelam e, mais do que as cren-
<;as indigenas, 0 "teocentrismo" dos conquistadores. Da rica mitolo-
gia indfgena - tal como nos foi transmitida, parcialmente, por The-
vet - eles so retiveram os temas que lhes eram familiares e que po-
diam interpretar nos termos da sua propria religiao, da verdadeira re-
ligiao, pois nao se deve esquecer que, para os viajantes do seculo
XVI, fossem ou nao missionarios, a verdade das Escrituras nao era
palavra va. E, ja que os indios nao eram idolatras ou fetichistas, res-
tava neles ver cristiios balbuciantes, que so teriam retido de uma anti-
ga reveIa9a"o fragmentos mais ou menos corretamente retransmitidos
de gera<;ao em gera<;ao - por falta de escrita, como sugerem alguns;
fragmentos esses dispersos demais, em todo caso, para poderem gerar
a pratica que normalmente lhes deveria corresponder. As freqiientes
alusoes a "inocencia primitiva" dos indios, a "retidao natural" do seu
juizo mostram que esta foi efetivamente a concep<;ao que predomi-
nou; nao sao pagaos, mas cristiios que se ignoram. Tal concep<;ao foi,
alias, expressa por alguns (Montoya, d'Abbeville) de maneira total-
mente explicita.
Vamos agora enumerar os principais artigos de fe dos tupis-guara-
nis. como os cronistas os guardaram e mterpretaram: a comparac;ao
com a versao de Thevet permite, em alguns casos, restabelecer seu
significado, ao recoloca-Ios no seu contexto.
A lenda de Sao Tome
Sabemos como se propagou entre os brancos a lenda segundo a
qual 0 apostolo Sao Tome teria vindo evangelizar as Indias Ociden-
tais. Os guaranis - diz Montoya - sabem por tradi<;ao ancestral
que Sao Tome, a quem eles chamam Zume, viveu outrora em suas
terras. A mesma cren<;a e atribuida aos tupis. Reportemo-nos ao mito
tupinamba recolhido por Thevet; Sommay22 (= Sume nas fontes
portuguesas), "grande paje e caraiba", e 0 pai dos dois irmaos Ta-
mendonare e Ariconte que, entre outras coisas, provocaram 0 diltivio.
Na ordem do relato, ele e a terceira personagem, depois de Monan e
Maira-Monan. Se seguirmos a analise de Metraux, para quem Mo-
nan, Maira-Monan e Sume seriam os dup.los da mesma persona-
gem2J, Sume e 0 heroi civilizador - a quem as tupis atribuem, em
especial. 0 conhecimento que tern da agricultura e sua organiza<;ao
social. Sume, por conseguinte. ensinou outrora aos homens as artes
da civiiizac;ao: certas pegadas impressas em rochedos constituiam, pa-
ra os tupis, a prova ainda visivel da sua passagem. Perto da baia do
Rio de Janeiro, existia "uma pedra comprida e da largura de uns cin-
co pes, na qual apareciam algumas marcas de vara. ou vareta, e pega-
das de homem, que ele dizia serem do grande Caraiba, que !hes deu 0
conhecimento e 0 usa do fogo ... e juntamente com esse 0 de plantar
as raizes..." 24 Essa historia de pegadas miraculosas viria a conhecer
urn sucesso inesperado entre os cristiios, contribuindo sem dtivida em
grande parte para a forma<;ao da lenda. Para eles, finalmente, 0 mito
podia ser compreendido assim: a essas terras recentemente descober-
tas vIera, outrora, uma personagem, a quem os indios deviam tudo 0
que de civiliza<;ao possuiam. Acrescentemos a isso a semelhan<;a dos
dais nomes - Sume e Tome -- e a fe nas Sagradas Escrituras que
afirmavam que a palavra dos apostolos correria toda a terra; ja basta-
va isso para que a lenda ganhasse consisrencia. Gra<;as a isso, a per-
Cep93.0 do mundo indio se tornani coerente: sera possivel atribuir a
prega<;ao do apostolo as parcelas de verdade que se ere identificar, ca
e la: no discurso indigena. Curiosamente, Metraux ve nessa interpre-
ta<;ao de Sume uma inven<;ao tardia: "A inopinada identifica<;ao so
surgiu assaz tardiamente. Thevet considera Sommay urn caraiba pu-
ramente indigena; do mesmo modo, Yves d'Evreux e Claude d'Ab-
24 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 25
~ i
beville",25 enquanto ele proprio cita essa passagem mais do que ex-
plicita de Manuel da Nobrega, "Dizem eles que Sao Tome, a quem
chamam Zome, passou par aqui. Isto Ihes ficou dito de seus antepas-
sadt>s",26 extraida da InJormar:iio das Terras do Brasil, pag. 154.27
Isso pode demonstrar como, desde os primeiros tempos da conquista,
os brancos apreenderam e relataram as cren~as tupis-guaranis, delas
retendo apenas os motivos que, nos termos da sua propria religiao,
eles podiam reinterpretar.
a Diluvio
Todas as fantes atribuem aos tupis e aos gu~ranis 0 ",conhecimento
do diluviouniversal". Quanto aos .guaranis, Montoya apenas mencio-
na a exisrencia do mito, "Gra~as a sua tradi~ao, estao a par do diluvio
universaL que chamam de iporun. 0 que signifiea inundac;8.o muito
grande." 2g Isso e tudo; nem ele nem as demais fontes antigas rela-
tam 0 cataclisma.
Quanto aos tupis, os autores do seculo XVI sao urn pouco mais ex-
plicitos. Staden, "Alias, nada sabem de particular do inicio do mun-
do. apenas narram que houve uma vez uma vastidao de aguas na qual
todos os seus antepassados morreram afogados. Somente alguns dai
escaparam numa embarca<;:ao e outros sabre altas arvores. Penso que
deve ter sido a diluvio."2Y Cardim e Lery dizem que os tupinamba~
ouviram falar do diluvio mas. por nao disporem de escrita, conserva-
ram dele uma lembran~a confusa e algo deformada, "Este gentio pa-
rece que nao tern conhecimento do principio do mundo. do diluvio
parece que tern alguma Doticia. mas como mia tern escrituras, oem
caracteres, a tal noticia e escura e confusa; porque dizem que as aguas
afogaram e mataram todos os homens e que somente urn escapou em
riba de urn janipaba, com uma sua irma que estava prenhe, e que des-
tes dois rem seu principio e que dali come~ou sua multiplica~ao."30
Quanto as fontes do seculo XVII, sao igualmente laconicas e fazem
pensar que a partir dessa epoca os indios so contavam, sobre seus mi-
tos, 0 que sabiam viria a interessar aos brancos. Assim testemunha 0
informante de Yves d'Evreux, "Eu sei por meus ancestrais a historia
de Noe, que fez uma barca e meteu a sua gente dentro dela... que a
•
terra foi coberta d'agua, que cavou as terras, fez as montanhas, os va-
les e 0 mar, e que de vas nos separou."31 Texto em que urn motivo
indigena e expressamente referido aQ mito cristao,
Ainda ai, e preciso recorrer a Thevet: ele relata nao urn. mas dois
mitos do diluvio. No primeiro, 0 tema do diluvto faz parte de urn mi-
to muito mais amplo: a destrui¢o da primeira terra e da primeira
humanidade que a habitava. 0 criador, Monan, "vendo a ingratidiio
dos homens, a sua maldade e 0 desdem que manifestavam por ele,
que os fizera assim felizes, retirou-se deles: e depois fez deseer tatla,
que e 0 fogo do ceu, 0 qual queimou e consumiu tudo 0 que havia na
face da Terra, "32 A terra, que originariamente era plana de maneira
uniforme entao se teria coberto de dobras e ravinas, tomando suaconform;~ilO atua!. So foi salvo do incendio um homem, Irin Mage,
que suplicou a Monan que apagasse 0 fogo, Este ultimo fez entilO
chover em tal abundiincia que, "nilo podendo as aguas voltar para 0
alto" acumularam-se sobre a terra, formando rios e oceanos. De Irin
MagJ descenderam os que iriam provocar 0 segundo dihivio.
A outra versilo do diluvio e um pouco diferente: nela, 0 cataclisma
e atribuido a uma briga entre os herois Tamendonare e Ariconte, fi-
Ibos de Sume (por sua vez filho de Maira-Monan, primeiro descen-
dente de Irin Mage, de acordo com 0 texto de Thevet). Os dois irmaos
"eram de diversa complei~ao e natureza e por isso se odiavam mor-
talmente," 33 Depois de uma violenta discussao, "Tamendonare ... ba-
teu com tamanha rudeza na terra que desta jorrou uma grande fonte
d'agua, tao alta que em pouco tempo se elevava acima das nuve~ e
assim perseverou are cobrir a terra toda. Vendo isso, os dOlS rrmaos,
preocupados em se salvar, escaIaram as montanhas mais altas de toda
a regiao: e tratavam de se salvar subindo nas irvores com suas mu-
Iberes. E fIzeram assim, isto e, Tamendonare subiu numa irvore cha-
rnada pindo, trazendo consigo uma de suas mulheres; e Ariconte su-
biu com sua mulber numa outra arvore, de nome jenipapeiro ..... 34
Por ocasiiio desse cataclisma, pereceram todos os homens e todos OS
animais, com exce~ao dos dois casais, de quem nasceram dois povos
inimigos: os tupinambas e os tamoios.
Como se pode ver a partir das cita~6es acima, apenas 0 segundo
mito foi mantido. E dificil concordar com Metraux quando sugere
que essas duas versOes do diluvio se repetem.35 Com efeito, 0 pri-
meiro diluvio deve-se a uma agua celeste, 0 segundo a uma agua tec-
tOnica; 0 primeiro articula-se com uma diversidade natural, geografi-
ca: de uniforme que era, achatada e sem agua, a terra adquire relevo e
os elementos se misturam nela; 0 segundo articula-se com a diversi-
dade das sociedades humanas. E a ordem dos mitos sugere que a di-
versidade das culturas s6 podia surgir como conseqiiencia da diversi-
dade dos meios naturais, A primeira humanidade, tao acha~da euni-
"' .:.
Luciana
Realce
Tupa, AiUi, Jurupari.
for~e. quanto a propria terra, so comparece como penhor do advento
da umca humamdade real, que se define pela multiplieidade das soeie-
dades.
Seja como for, esses dois mitos Gncendio e diluvio) silo encontra-
dos na maior .parte das tribos tupis e guaranis de nossos dias.
I
27TERRA SEM MAL
teao ~uarani, alguma outra figura mais capaz de desempenhar tal pa-
pel. E exatamente essa a convic9ao de Alfred Metraux, ao tentar des-
cobrir as razoes de uma escolha que considera pouco pertinente. Sua
reticencia justifica-se com respeito a mitologia: Tupa praticamente
nao aparece no grande mito tupinamba da origem, do qual ja recorda-
mos alguns temas. Nem criador do mundo, nem transformador ou
neroi cultural: nenhum feito, gesta ou inven9ao the silo expressamen-
te atribuidos. Veja-oo 0 texto de Thevet: "0 primeiro conhecimento,
portanto, que esses selvagens rem do que ultrapassa a terra e de urn
[ser] a quem chamam Monan, C..) 0 qual criou 0 ceu, a terra e os pas-
saros e animais que neles vivem, sem todavia rilencionar 0 mar nem
Aman Attupave, que sao as nuvens d'agua..."J6 Se "AmanAttupa-
ve" pode ser interpretado como uma transcri9ao, um pouco falha, de
qmii ha tupiive (= a chuva e 0 trovaol, Tupa so e mencionado aqui
por nao ter sido criado.
A segunda passagem do mito em que ele aparece e 0 epis6dio da
morte de Maira-Monan, que perece numa fogueira feita pelos ho-
mens: " ... a cab"9a !he fendeu" com impeto tao grande e ruido tao
horrivel, que.o som subiu ate 0 ceu e are Tupa: e dai dizem que sao
gerados os trovoes desde 0 come9Q e que 0 relampago que precede 0
som do trovao e apenas 0 significado do fogo pelo qual esse Maira foi
consumido." J7 Isso e tudo; em nenhum lugar volta, depois, a tratar
de Tupa. Vimos que 0 mito narra a cria.,ao e destrui9ao da terra por
Monan; as aventuras dos "gemeos" e como Sume (duplo de Monan,
segundo Metraux) ensinoa aos homens as artes da civiiiza.,ao. E certo
que, nesse contexto da cria.,ao, e nulo 0 papel de Tupa. Foi 0 que le-
voa Metraux a tomar Monan como figara central da religiao tupinam-
bii e a responsabilizar a catequese pela import:incia dada a Tupa.
Egon Schaden e Loon Cadogan rem a mesma opiniao. E, de fato, nos
textos mbias-guaranis, r.ecentemente publicados por Cadogan,J8 a
personagem primeira' e Namandu - aquele que sO aparece em meio
as trevas originais, 0 criador. Contudo, nesses textos mbias, 0 papel
, de Tupa longe esm de ser irrisorio, pois e quem criara a "terra imper-
feita", apos a destrui9ao da primeira terra.
Voltando aos cronistas e ao nosso problema, gostariamos de fazer
algumas observa90es. Antes de mais nada e limitando-nos estrita-
mente ao que se pode saber acerca dos tupis-guaranis gra9as aos auto-
res do seculo XVI, nao hii nenhuma razao para se preferir Monan a
Tupa, ou este aquele, na medida em que os indios nao se preocupa-
yam em venerar nem urn nem outro: nao existia culto algum presta-
do a divindade nenhuma, e 0 que nos dizem todos os autores. Em se-
gundo lugar, se e verdade que Tupa nada e na cria9ao do mundo, por
outro lado esm estreitamente associado aos grandes catac1ismas, que
ele personifica. Se Monane 0 deus criador, Tupa e 0 deus destruidor.
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HELENE CLASTRES26
A essa mesma preocupa.,ao de demarcar entre os indios alguns ras-
tros da verdadeira religiao, deve-se atribuir a assimila9aO deTupa ao
deus cristao, de Anii e Jurupari ao demonio. Ana (= Anhii em Por-
tugues, Aignan em Frances) para os guaranis e os tupinambas Juru-
pari (ou GiropariJ para os tupis do norte, sao efetivamente o~ mais
emine~tes desses espiritos perversos que povoam a floresta, cuja uni-
ca razao de existir e perseguir os indios e vetar ao fracasso os seus
empreendimentos. E a eles que se atribui a responsabilidade tanto do
resultado infeliz de uma eXpedi9ao guerreira, ou da insufi~iencia de
uma co!heita, como ainda das desventuras individuais. Tao presentes
e vivos na vida cotidiana dos indios como 0 diabo na dos missio-
ruir!os, capazes de enganar ate mesmo os xamas e de indl'zi-Ios a: pre-
dl90es falsas, de certa maneira constituem replicas do Maligno - e
era facil assimila-Ios a este.
E~ ~ompensa9ao, merece exame mais cuidadoso a questao de
, Tupa, nao apenas porque os etnologos (Metraux, Schadenl em ultima
amiiise, nela viram somente uma inven.,ao de missiomlrios como
tambem porqu~, para o~ p~oprios indios, for9ados Cloravante a '00 pen-
sar em opoS19ao aos cnstaos, Tupa veio a significar Deus; de modo
que, mesmo se nada perdeu dos antigos atributos (e situado a oeste e
esta ligado ao trovao e as tempestades), nem por isso deixa de ser
pensado, as. vezes, como urn elemento estranho a cultura guarani.
De fato, e eVldente que, para suas prega90es, os missionarios preei-
savam de urn termo capaz de exprimir a ideia de Deus, devendo sua
preocupa9ao primeira ser a de procura-Io na lingua indigena. Viu-se
Como Nobrega justificava a escolha de Tupa; Vasconcelos e outros
rem a mesma.opiniao. Nada permite conte'star, "a priori", que Tupa
fosse para os mdios "coisa divina", sagrada, e que Nobrega tenha dado
a verdadeira acep9ao do termo - 0 que a analise da sua fun.,ao vira
• confirmar. Tambem e impossivel negar que, ao se fazer de Tupa urn
eqU1v~lente d~ Deus, foI-lhe atribuido urn significado que, sem duvi-
aacotrOlt>Coloca-se aqui a questao de saber se existia, no pan-
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Luciana
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Luciana
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28 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 29
Senhor da chuva, do trovao e do raio, e ele a causa direta da .destr~i­
cao da terra pelo incendio e pelo d~tivio: 0 texto de Th~vetnaodeIXa
dtivida algUlna: foi "0 fogo do ceu que consumlU a prunelfa terra e
uma agua celeste que gerou 0 primeiro diltivio. ~ue nesse eplsodlO do
mito nao intervenha 0 nome de Tupa e a decisao de destruIT a terra
seja atribuida a uma vontade distinta da dele nao. muda nada~ chuva,
trovao e raio sao os atributos especificos e excluslvos de Tupa. Basta
nos referirmos ao episadio da morte de Maira-Monan, quando trovao
e rellimpagos sao explicitamente vinculados a .Tupa. E, ja que os in-
dios viam nas tempestades reais a mamfesta9ao tanglvel desse puder
do alto como nao teriam percebido como efeito do mesmo puder a
destrui~ao .mitica da terra pelo fogo e pela a~ua celestes?
Outra razao nos levaria a admitir que Tupa nao ~ra essa flgur!' se-
cundaria que se quis tanto ver nele: ela nos e forneclda pe!a referencl~
a outra cultura guarani - ados guaiaquis. A compar~ao ?ode aqUl
ser esclarecedora (embora se funda apenas numa observa~o recente
desses indios), pais as guaiaquis Dunea estiveram em c~ntato, com os
brancos: a tinica tentativa, efetuada no seculo XVII, de mstala-Ios nas
redu90es dos jesuitas, redundou em fracasso: de uns vinte guaiaqUls
capturados, a maior parte logo consegulU fuglr e ganhar a flor~sta:
morrendo os demais. Ora, nas crenc;as gualaqulS, Chona, 0 trovao, e
a persQ11'1gem mais irnportante, a_ que depois da morte tem 0 enca~go
das almas. A associacao do trovao e das almas dos mortos tambem
nao era estranha aos tupinambas. Citemos, mais uma vez, Thevet:
"Se, quando esses selvagens estiio na agua, produz-se (como tan~
vezes acontecel alguma tempestade ou borrasca, eles pensam que s!'o
as almas dos seus parentes e amigos que dessa manelra os mqUle-
tam... Porem, nao sao grosseiros a ponto de niio lan~rem, para acal-
mar essa tormenta, alguma coisa a agua, como para the fazer dom e
presente de homenagem, estimando que desse meio possa ser acal-
mada a ftiria das tempestades." 39 ., .
Finalmente urn tiltimo argumento para salientar a Importanclll de
Tupa enquant~ personifica a destrui9a<;>: a cren9a gu~rani na destrui-
cao futura da Terra. Essa visao apocahptica esta no amag.o do pensa-
mento dos guaranis de hoje: os mesmos catachsmas que Ja ocorreram
estiio prometidos a Terra: como a primeira terra, ser~ destrUlda a
"terra imperfeita". A essa cren9a' nao se encontra rderencla alguma
nos cronistas. Urna curta passagem de Thevet, porem, menClOna-a:
escreve, a proposito dessas pedras que - supunha-se - conserva-
yam as pegadas de Sume: "E tern esses pobres selvagens a 10uca ~en­
9a de que, se a pedra Ihes fosse roubada.ou quebrada, sena aruma e
aniquila9ao de todo 0 seu territorio."40 E para eVltar ~ catachsma::-
prometido, portanto - que os homens se auto-mstItUlram guardlaes
dessas pedras marcadas com pegadas sagradas, penhores da passagem
dos deuses pelo mundo dos homens. Essas metonimias da divindade
tern, por isso, urn duplo significado: atestam que nao existe ordem
cultural alguma que mio se pense como uma ordem transcendente.
Ao passarmos da ordem natural a ordem da cultura, passamos de urn
tipo de necessidade41 a outro: a primeira necessidade, universal. e
imanente: a segunda, porque instaura a particularidade, nao pode dei-
xar de ser transcendente. Entre a natureza e a cultura, ha 0 lugar do
sobrenatural. A segunda significa9ao das pedras sagradas, cuja guarda
incumbe aos homens, fica, dessa maneira, evidente: elas testemu-
nham que os deuses ainda estiio entre os homens e que 0 mundo (a
sociedadel perdurara enquanto assim for.
Sem dtivida, essa informacao de Thevet e de pouca monta compa-
rada com a importincia que assumiu, entre os guaranis, a crenc;a na
destrui9ao da Terra. Porem, e preciso assinalar que essa cren9a se tra-
duz, nao em mitos (nao existe narrativa alguma do cataclismal, mas
em profecias - e isso pode explicar que seja tiio curta a anota9ao de
Thevet. Esta, contudo, nao bastaria para autorizar-nos a afirmar a
existencia da mesma cren~ entre os antigos tupis-guaranis, se nao
pudessemos relaciona-Ia com seu contexto e, em especial, com a pro-
CUfa da Terra sem Mal, que - sabemos - preocupava os indios an-
tes da conquista. Ora, a busca da Terra sem Mal esta essencialmente
vinculada a convic9ao de que a Terra sera, mais uma vez, destruida.
Voltaremos a esse ponto. Acrescentemos apenas, para concluir, que
se, como tentaremos demonstrar, a pratica religiosa dos tupis-guara-
nis sempre se inscreveu nessa busca da Terra sem Mal, a que eram
levados pela certeza de urn cataclisma iminente, pode-se compreender
que Tupa fosse para eles coisa sagrada dentre todas: enquanto artesao
dessas destrui90es, era ele 0 senhor verdadeiro do destino deles.
Sobre a importancia de Tupii, portanto, os missiomi.rios nao se en-
gar-aram: a figura do destruidor comanda a religiiio guarani, nao a do
criador. Enganaram-se, porem, acerca da sua significa9ao: nada mais
oposto do que esse simbolo indigena a ideia crista do criador. A esse
respeito, Alfred Metraux comete 0 erro inverso ao fazer de Monan 0
deus central da religiiio tupi: Monan e inegavelmente 0 criador, como
seu proprio nome ja indica.42 Metraux niio se engana acerca do signi-
ficado, mas da sua importancia. Vern isso dizer que missionarios e et~
nologos foram vitimas do mesmo preconceito - da ideia de que a re-
ligiao devia ser definida em fun9ao de uma divindade criadora.
Adiantemo-nos e perguntemos se e mesma nesses termos que se deve
colocar 0 problema. Em outras palavras, sera que nos basta procurar
prioridades noconjunto das figuras miticas guaranis, estabelecer a hie-
rarquia dos "deuses" do seu "panteao"? Isso nos autorizani a dizer
que existeuma divindade central, Tupa, figurando a destrui9ao, e di-
vindades secundarias, entre as quai.s Monan, 0 Criador? Essa explica-
Luciana
Realce
Luciana
Realce
Luciana
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A Terra sem Mal
<;ao seria apenas um pouco mais satisfaroria. Em primeiro lugar, Ii-
mitar-se a ela e colocar ainda uma vez 0 mesmo a priori que denun-
ciamos: a ideia de que, por essencia, uma religiao se define numa re-
la<;ao com divindades; de que ela procede de uma disjun<;ao irredu-
tivel, pondo de um lado os deuses, do outro os homens. Mas, princi-
palmente, tal atitude negligencia 0 fato, contudo merecedor de aten-
<;ao, de que culto algum era prestado a uma "divindade" qualquer,
para encerrar-se no paradoxo - que, justamente, deixava tao per-
plexos os primeiros observadores - de uma religilio reduzida a um
saber vago e inutil, porque carente de efeitos. Por isso, e ·necessario
mudar radicalmente de perspectiva:, sugerimos que 0 que constitui a
originalidade da religilio tupi-guarani e que ela nao se desenvolve no
"elemento" da Teologia, do saber dos deuses. E, se for verdade, co-
mo escreve Dumezil, que a religiao e sempre "coisa atual e ativa",
perguntemo-nos qual era a pratica religiosa dos indios, Retomando
dessa maneira a questao pelo outro lado, talvez venhamos a com-
preender melhor suas cren<;as.
Acabamos de aludir a essa cren<;a. A Terra sem Mal e esse Jugar
privilegiado, indestrutivel, em que a terra produz por si mesma os
seus frutos e nao ha morte.
Os cronistas so Ihe fazem breves alusoes e ainda a reduzem a pro-
por<;oes compreensiveis para eles: um "alem" para onde vao as almas
depoisda morte. Seria de esperar que, como aconteceu com 0 resto,
esse tema fosse assimilado ao tema cristao do Paraiso. Curiosamente,
nada disso aconteceu. Fernao Cardim garante-nos que os tupis nao ti-
nham a menor preocupa<;ao em saber se existia recompensa ou casti-
go depois da vida.4.1 Contudo, diz ele, acreditam na imortalidade das
almas, que supoem que "vao a uns campos onde ha muitas figueiras
ao longo de um formoso rio e todas juntas nao fazem outra cousa se-
nao bailar. "44 Segundo Lery, esse lugar de delicias, longe de ser aces-
sivel a todos, era a recompensa reservada aos melhores: ..... acredi-
tam na imortalidade das almas, mas tambem creem firmemente que,
apos a morte dos corpos, as almas dos que viveram virtuosamente,
isto e, segundo eles, que bem se vingaram e comeram muitos dos
seus inimigos, vao para tras das montanhas altas e dan<;am em belos
jardins com as almas dos avos."45 A mesma informa<;ao nos dao
Claude d'Abbeville e Yves d'£'vreux: ascender a terra de :'alem das
montanhas" era reservado aos mais [erazes desses canibais.46
31TERRA SEM MAL
Para todos esses cronistas, em todo caso, a Terra sem Mal nada in-
voca que rtao seja pagao: sao os "campos elisios dos poetas". Por que
os cristaos rtao se apossaram tambem dessa cren<;a e por que, mais
geralmente, por ela manifestaram tao pouco interesse? Pode-se supor,
em primeiro lugar, que essa concep<;iio dionisiaca de uma vida futura
inteiramente composta de dan<;as e bebedeiras devesse parecer impia
" aos brancos. Que tambem os chocasse a ideia de se atribuir ao paraiso
I'. uma localiza<;iio geografica precisa: pois os tupis-guaranis situavam a
Terra sem Mal no seu espa<;o real, as vezes a leste, outras a oeste.
Com maior freqiiencia a oeste, aparentemente, pelo menos para Os
tupis do litoral: as informa<;6es dadas por Yves d'£'vreux e Claude
d'Abbeville confirmam Thevet, e "alem das montanhas" (d'£'vreux e
ate mais preciso: "alem das montanhas dos Andes"), portanto numa
tal dire<;ao do espa<;o que possa ser preservada a ideia de um Jugar
acessivel. Nenhuma informa<;ao disponivel, a esse respeito, sobre os
antigos guaranis: mas talvez as migra<;6es que haviam conduzido os
chirigua~os aos pes dos Andes ja estivessem, pelo menos em parte,
ligadas a procura da Terra sem Mal; sugere-o 0 nome, Candire, que
deram ao Imperio Inca.47 Seja como for, talvez exista uma razao
mais profunda para 0 curioso desdem por essa cren<;a - e preciso
notar que ela foi singularmente banalizada; a ponto de ficar reduzida
a um lugar das almas depois da morte. Morada dos ancestrais, sem
.. duvida, a Terra sem Mal tambem era um lugar acessivel aos vivos,
aonde era possivel, "sem passar pela prova da morte", ir de corpo e
alma. Se tivessem prestado aten<;iio, os cristaos nao teriam deixado de
perceber q'ue eram uma unica coisa a terra de "alem das montanhas",
morada das almas, e esse outro lugar em que a terra produz sem se-
meadura e nao ha morte, que os profetas prometiam aos indios. Te-
riam sido confrontados, entao, com 0 que nao poderia deixar de Ihes
aparecer como escandalo ou incompreensivel loucura: uma religiao
• em que os proprios homens se esfor<;am por se tornar semelhantes
aos deuses, imortais como eles.
Pois que significam a inquieta<;ao que levava os tupis-guaranis a
uma tal procura, a esperanc;a afrrmada de ascender a imortalidade
sem passar pela morte, senao enunciar a questao da possibilidade (ou
da impossibilidade) de serem os homens seus proprios deuses? A que
pensamento remete tal pratica, senao a recusa da Teologia: ho-
mens e deuses vem a ser dois polos que se pretende pensar fora das
categorias da disjun<;ao? Ver nessa religilio um discurso sobre os deu-
ses e nao apenas reduzi-Ia a sua expressao menos significativa, mas
tambell] distorce-Ia pela imposi<;ao de uma logica que talvez nao seja
a sua. E por isso que se pode afrrmar que discutir acerca dos deuses
e, nesse caso, de importancia secundaria.
Atraves dessa rapida leitura dos antigos testemunhos, tentamos
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32 HELENE CLASTRES TERRA SEM MAL 33
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compreender porque os tupis-guaranis puderam aparecer aos primei-
r.o~ observadores como gente "sem supersti~6es", isto e, sem ritos re-
IIgIOSOS, e esb~amos a perspectiva na qual prosseguiremos: dedica-
~os como estavam a busca de uma perfei~o impossivel - e pressen·
tida c?m? tal - os guaranis puderam forjar uma religilio ateia. Dai,
a a~sencla de culto ou de sacrificio, mas rnio de pratica; dai, a origi-
nall~ade de seus "padres", supondo possivel considerar que a religiao
os tivesse, na pessoa dos Carals.
Notas
(I) Carta ao padre Simao Rodriguez. 10 de abril de 1549, in Serafim Leite. Carlos
dos Prim~iros Jesultas do Brasil, Comissao do IV Centemirio. Sao Paulo. 1954.
volume I. pag. Ill.
(2) Informa~do dos terras do Brasil. agosto de 1549. idem. ibidem. volume 1. pag.
150.
(3) Montoya:' "tenian sus caciques. en quieo todos reeonocen nobleza beredada de
sus antepa.~dos. fundada en que habian tenido vasallo y gobernado pueblo", in Con-
qu;sta Espirituol..., pcig. 49.
(4) No original: Toiiopinambaoults. (N. do TJ
(5) Jean de Ury. His/oire d 'un voyage laic/ en 10 terre du Bresil, tomo II. capitu-
lo XVI. pags. 59·60.
(6) Claude d'Abbeville, His/oire de 10 Mission des peres copucins en f'lsle de
Morognan el tures circonvoisines. pags. 321. 322 (capitulo LID.
(7) Lory. op. cif .• tomo II. capitulo XVI. pag. 61.
(8) /njarmorao. in Leite, op. cit .. pag. 150.
(9) A. Thevet, "Histoire de deux Voyages," Les Fronroi!t en Amerique. Paris, PUF.
1953. pag. 264.
(10) Yves d'Evreux. Yoyoge dons Ie nord du Bresil, pag. 278.
(I I) Ibidem. pOas. 279-280.
(I2) Ibidem. pogo 280.
(13) Ibidem. pag. 280.
(14) Fernao Cardim. Trotados da Terra e Gente do Brasil, Companhia Editora Na·
clonal. col~ Brasiliana. volume 168. segunda edicao, 1939, pags. 142-143.
<IS) Andre Thevet, "Cosmographie," in Le-s Franrais en Amerique...• p:igs. 21-22.
(16) Hans Staden. Duas Yiog(;{ns ao Brosil. pag. 173.
(17) P. Lozano. Historia de 10 Conquisla del Paraguay. Rio de la Plata)' Tucu-
man, volume I, pag. 386.
(18) Montoya, Conquista EspirUuol.... pags. 118·120.
(I9) Ibidem. pags. 119·120.
(20) Montoya. op. ci.t., pag. 50.
(21) Jarque e Lozano,que tambem a citam, nio 0 observaram pessoalmente. mas
baseiam-se no relato de Montoya.
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(22) E 0 nome dado por Thevet (N. do T.).
l( (23! Alf~ed Met~ux, A Religitlo dos tupillambds e .'illa,~ r('/ap)('.'i ('/Iln a Ja,~ J(,.
matS tnbus t~pts-guoron;s, tradUl;:ao de Estevao Pinto, Col~ao Brasiliana.
volume 267. Sao Paulo, 1950, Companhia Editora Nacional.
(24) Thevet. op. cit .. pag. 58.
(25) Metraux, op. cit .. pag, 57.
(27) Metraux, op. ci/.. pag. 5,1.
(27) A esse respeito, Serafim Leite as.."inala que tal identifica<;ao e bem anterior a
vind? dos jesuitas. Cita um texto de 1515 (portanto. poueo posterior a des.:obel1a do
Brasil). A Nom Go;:eta da Terra do Brasil. onde se diz que: "Eles (os tupis) tem
tambem record~ao de S. Tome. Quiseram mostrar aos portugueses as pegadas de S.
Tome no interior do pais" (S. Leite. Cartas. ... volume I. pag. 19).
(28) Montoya. op.. dr .. pag. 53.
(29) Staden. op. cif .. pag. 174.
(0) Cardim, op. Cif .. pag. 142.
(31) Yves cfEvreux.op. cit .. pags. 327·328.
(2) Thevet. op. cit .. pag. 39.
(33) Ibidem. pogo 43.
(34) Ibidem, pag. 44.
(35) Metraux. op. cit., pag. 93.
(6) Thevet. op. cit .. pag. 38.
(37) Ibidem. pag. 43.
(38) A)'I'u Ropyta. rextos m/ticos de los Mbyd-(iuaralli del (il/aird. Boletim da .:a-
deira de Antropologia da Faculdade de Filosofia. Ciencias e Letras da Universidade
de Sao Paulo. n? 227. Sao Paulo, 1959.
(9) Thevet. up. cit., p. 96.
(40) Ibidem, p. 60.
(40 Em frances. mfcessiu!. que designa mais precisamente um imperativo. ou uma
ordem nece."saria das coisas, em oposi~ao a beso;/I. utilizado para indicar uma neces-
sidade a ser suprida ou satisfeita. isto e, uma careneia. (N. do TJ
(42) De mona, que significa gerar. Se nos ativermos a terminologia, devemos recusar
a afirmal;ao de Metraux, segundo a qual 0 deus tupi nao e urn criador ex-nihilo. mas
antes urn transformador.
(43) F. Cardim. op. ci/ .• pag. 142.
(44) Ibidem. pogo 142.
(45) Lery. op. cU., tomo II. pag. 62.
(46) D'Abbeville fomece uma precisao suplementar; em tupi este lugar echamado de
"ouaioupia". Seria €Ste 0 nome que designava a Terra sem Mar! Dos cronistas que
consultamos. nenburn outro da 0 termo tupi para a Terra sem Mal. Em compensa-
cao. encontra-se a palavra ouiiioupia, grafada div.ersamente. em varios autores. mas
recebendo acepc;ao algo diferente. Assim. 0 T('som de Montoya ensina que os xamas
eram chamados de guaJ'upia ou g/iaY/lp;a yara (= senhores - yara - do guayu-
pia). 0 Vocabuldrio da Lt"lIglia Brus{/ica diz. no verbele F<'itic<'iro: "0 espirito des-
te (0 feiticeiro born) se chama goajl/pia."· 0 "Ho/l;olw'ra" de Thevet. que e "0 es-
pirito pelo qual eles - os xamas - adivinham 0 que esti par vir". e provavelmente
uma ma transcricao do Olesmo termo. E$.<;3s tres illtimas fontes concordam. portan-
to. e, na impossibilidade de estabelecermos a etimologia de guaY/lp;a. devemos con-
c1uir que d'Abbevilie se enganou. Seu erro e revelador; reduz, ate mesmo no plano
linguistico, a Terra sem Mal a uma morada dos espiritos.
(47) A respeito da significa~ao da palavra kandire. cf. cap. IV.
Luciana
Realce
TERRA SEM MAL 35
capitulo II
PAlES E CARAfBAS
o xamanismo parece oferecer, em toda a America, uma notavel
homogeneidade. Como tantas outras popula~oes amerindias, os tupis-
guaranis dispunham dessas personagens prestigiosas, mediadoras en-
tre 0 mundo sobrenatural e os humanos, capacitadas por seus dons
particulares a desempenhar as mais diversas funQoes: curar os doen-
tes, predizer 0 futuro, mandar na chuva ou no born tempo...
Com os guaranis, contudo, 0 xamanismo e mais e outra coisa do
que isso, ao mesmo tempo: acresce-se de uma dimensao nova e ad-
quire significado e alcance particulares - de ordem religiosa e nao
mais, apenas, magica - que 0 diferenciam sensivelmente do que e
em outros povos.
Entre os apapocuvas-guaranis com quem viveu no come~o deste
seculo, Nimuendaju 1 observou que existia uma especie de hierarquia
vinculada ao xamanismo: os indios repartem-se em quatro categorias,
em fun~ao dos seus dons xamanisticos. A primeira, negativa, reune
os que nao rem nenhum cantico, isto e, os que nao receberam, ou ain-
da nao receberam, inspir~ao; pertencem a essa categoria a maior
parte dos adolescentes e alguns raros adultos decididamente refra-
tarios ao comercio com os espiritos: esses nunca poderao dirigir as
dan~as. A segunda categoria compreende todos, homens e mulheres,
os que possuem urn ou varios canticos - prova de que rem urn es-
pirito auxiliar - sem contudo serem dotados de urn poder suscetivel
de ser utilizado para fins coletivos. Alguns destes (os que se aproxi-
mam da terceira categoria) podem dirigir certas dan~as. Faz parte
desse grupo 0 maior numero dos adultos de ambos os sexos.
A terceira categoria e ados xamas propriamente ditos, os pajlis:
capazes de curar, de prever, de descobrir 0 nome dos recem-nascidos,
etc. A ela chegam homens e mulheres, que rem direito ao titulo de
"Nanderu" ou "Nandesy" (nosso pai, nossa mae). So homens podem
ascender it quarta categoria, ados grandes xamas, cujo prestigio va;
muito alem dos limites da comunidade. Estes se tornam lrequente-
mente os dirigentes politicos do grupo. So eles podem conduzir a
grande dan~a do Nimongarai, a mais importante festa apapocuva. Es-
sa festa era celebrada todo ano, entre janeiro e ma~o, na epoca em
que 0 milho come~ava a amadurecer e destinava-se, entre outras coi-
sas, a proteger homens, animais e plantas das mas influencias susce·
tiveis de ocorrer durante 0 ano. Como toda grande cerim6nia, 0 Ni-
mongarai exigia longos preparativos, ja que se devia dar de comer e
heber a participantes muito numerosos: com efeito, nessa ocasiao (e
so nela) toda a tribo se reunia, pois nao somente todas as aldeias vizi-
nhas eram convidadas, mas tambem regressavam por alguns dias it
comunidade individuos ou familias, que de ha muito tinham renun-
ciado ao modo de vida tradicional para ir trabalhar nas fazendas bra-
sileiras. Festa de primicias, 0 Nimongarai'tambem tinha urn signifi-
cado ao mesmo tempo politico e religioso, como esclarece 0 ritual de
encerramento, em que os dois aspectos se misturavam estreitamente.
Depois de quatro noites de dan~as ininterruptas, na aurora do quinto
dia desenrolava-se uma cerimonia que reproduzia 0 ritual do batismo,
apenas com a exce~ao de que nela nao se dava nome: urn apos outro,
todos os assistentes se apresentavam diante do pajl!, cada urn acompa·
nhado por urn "padrinho" e uma "madrinha".2 A finalidade desse ul-
timo rito era a de selar a alian~a politica, simbolizada pela rela¢o de
Iyvasa, ou compadrio, assim estahelecida entre todos os membros da
tribo." J
A breve evoca~ao dessas festas, hoje desaparecidas (Nimuendaju
assistiu its derradeiras), permite trazer it luz 0 papel verdadeiro desses
grandes xamas - os cara{s - sem a menor duvida curandeiros,
mas antes de mais nada lideres religiosos, e muitas vezes politicos,
das aldeias.
o imenso prestigio desfrutado pelos xamas havia impressionado os
primeiros viajantes e todos foram fascinados por tais personagens,
que suscitaram sentimentos bern diversos, muitas vezes ambiguos,
mas nao os deixaram indiferentes. Donde, sem duvida, as excelentes
descri~6es que eles nos deixaram. Quanto aos missionarios, eram os
menos capazes de se desinteressar ja que, confessam, foi nos xamas
que encontraram os mais serios obstaculos it cristianiza~ao: "Esses
pajlis ou barbeiros, que ocupam entre os selvagens a posi~ao de me-
diadores entre os espiritos e 0 resto do povo, sao os que rem maior
autoridade, obtida pelas suas fraudes, sutilezas e abusos e com mais
for~a detiveram essa gente sob 0 reino do Inimigo da Salva~ao ..." 4
Talvez impostores, mas de genio - de genio maligno - e com quem
era preciso contar - Nobrega, Montoya, Lozano,Yves d'Evreux... to-
dos, com bela unanimidade, denunciaram os xamas como os seus
piores inimigos; e inimigos ainda mais formidaveis

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