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SONHOS NÃO ENVELHECEM
Mia Couto 
Sou de um tempo e lugar em que os comboios eram lentos, tão vagarosos 
que pareciam arrependidos da viagem. Na estação, não havia despedida. Nada de 
separação traumática, o golpe definitivo da partida. Tudo era tão lento e 
esfumado que se convertia em irrealidade. A despedida como repentina ruptura 
eu aprendi mais tarde, no meu primeiro aeroporto. Voar é o sonho da própria 
poesia. Mas o voo tem despesas de afeto muito pouco poéticas.
Nasci e vivi entre meandros de rios, preguiçosas águas que se apegavam 
às margens. A estação ferroviária obedecia a essa líquida paisagem. O comboio 
era um barco e eu entendia porque se chamava "cais" àquela plataforma onde as 
mães agitavam os lenços brancos. Para mim, os modos lentos do comboio não 
resultavam de incapacidade motora. Eram, sim, gentileza. Uma afabilidade para 
com essas pequenas mortes, que são as despedidas.
Muitas vezes me desloquei para a estação dos caminhos-de-ferro com o 
fim de não me deslocar para lado nenhum. Ficava no banco de madeira a olhar a 
gente transitando. E me abandonava naquele assento durante horas, sem que o 
tempo me pesasse. Talvez eu viajasse mais que os próprios passageiros que 
chegavam e partiam. A minha cidade era pequena, tão pequena que os 
domingos, com seu tédio antecipado, não eram notados. Eu inventava os meus 
tempos fora do Tempo, ali na arrastada azáfama da estação ferroviária.
Não tive propriamente uma educação religiosa. Apenas de quando em 
quando eu entrava em recinto de igreja. Fazia-o porque havia ali um sossego que 
me refrescava a alma. Qualquer coisa parecida com o que eu encontrava na gare 
ferroviária. Com a diferença de que a estação me facultava um recolhimento do 
lado de dentro da Vida, um resguardo entre as pessoas e as almas que eu nelas 
inventava. Os fantasmas da igreja moravam na sombra fria. Os da estação eram 
solarentos, riam alto e falavam línguas que eu desconhecia.
Algo me ficou desse estacionamento de alma, como se eu ganhasse 
residência perene nas velhas estações de todo o mundo. Afinal, essa 
contemplação me trouxe como que um irreparável vício: ter um banco de madeira 
onde eu possa ver desfilar pessoas em flagrante viagem.
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