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sentiram outro fogo mais ardente a radiar-lhes nos olhos, que faziam abaixar os olhos. Nunca trocaram palavras; mas falavam tanto um ao outro! Perto de uma das cancelas do campo da fazenda de Domingos Caetano morava em pobre casa Jacinta, boa mulher protegida por Angélica e Florinda que a chamavam a comadre Jacinta, e a quem às vezes iam à tarde visitar. Um dia a comadre Jacinta disse em segredo a Florinda o que esta já sabia. Provavelmente Angélica tinha permitido a confidência. Florinda correu e fugiu sem responder. Em outra tarde Angélica deixou a filha em companhia da comadre Jacinta, e foi ver o pomar da pobre e boa mulher. A comadre Jacinta, aproveitando o ensejo, exaltou o amor e o merecimento de Hermano à comadrinha, que sorria e corava; mas de súbito exclamou: – Aí vem o senhor Hermano! Florinda assombrada e atônita correu a esconder-se no quarto de dormir de Jacinta, pobre quarto de paredes esburacadas, donde se podia ver e ouvir quanto se passava e se dizia na sala. Hermano chegou com efeito: sem constrangimento, pois que se supunha a sós com a comadre Jacinta, fez com ardor o elogio da beleza de Florinda, a confissão veemente do seu amor, pedindo à boa mulher a sua intervenção, e o seu concurso para merecer a gratidão, da donzela amada. A comadre Jacinta ria-se e provocava as falas ternas e apaixonadas do mancebo, quando Angélica chegou, e comprimentando com agrado Hermano, perguntou por sua filha. Florinda teve de sair do quarto contíguo toda trêmula e vermelha de pejo e confusão pelo que ouvira. Hermano estremeceu e corou, vendo aparecer Florinda; mas no íntimo d’alma agradeceu a traição da amizade. Daí em diante o amor dos dois jovens falou docemente sem que os dois jovens amantes se falassem uma única vez. Havia abaixo do rio da fazenda uma figueira silvestre e majestosa, a cuja sombra Florinda se aprazia de ir sentar-se nas tardes dos dias calmosos: na casca dessa árvore enlaçaram-se as iniciais dos nomes de Florinda e Hermano, e a cifra tinha sido obra de duas mãos diferentes, cada uma das quais talhara a inicial de seu nome. Junto à portinha da horta havia um banco, onde Florinda costumava sentar-se quando de manhã e à tarde lá ia passear. Florinda quase sempre achava de manhã uma flor sobre o banco e deixava no mesmo lugar outra flor à tarde. Uma vez, sobressaltara-se a fazenda com a notícia de que uma onça desgarrada andava pelos bosques vizinhos, e em breve Florinda teve de lamentar que fosse ali a primeira vítima da fera uma cabra que ela criara e que amorosa corria para seu lado mal a avistava de longe: dois dias depois soube-se que Hermano perseguira e matara a onça. Outra vez, Florinda chorava a fugida de um sabiá que a enlevava com o seu canto saudoso, e no dia seguinte Jacinta trazia-lhe outro sabia mais cantador ainda, e lho entregava, sorrindo, e sem precisar dizer donde ele vinha. 24 O amor de Hermano e Florinda alimentava-se pois com aromas das flores, e com o canto das aves; sem se encontrarem nunca, tinham os dois amantes o seu terno laço no tronco da figueira, e a imagem querida um do outro nos próprios corações, e mil objetos fora deles, nas flores que se guardavam já murchas, no lencinho branco esquecido no banco da horta e amorosamente furtado à noite, em um pé de sempre-vivas, que surgira de manhã à beira do caminho para o rio, e em todos esses mudos testemunhos de ternura que nada valem e valem tanto, e que na vida campestre são cheios da poesia simples da natureza. Hermano e Florinda amavam-se pois, havia dois anos, sabiam ser amados, correspondiam-se e em dois anos não se tinham falado uma só vez. Era um amor puríssimo. Domingos Caetano e Angélica provavelmente suspeitavam do mimoso segredo de sua filha e não procuravam combater o seu terno sentimento; mas Hermano, não entretendo relações com eles, acanhava-se pela sua pobreza, e não ousava pedir a mão da menina rica. Todavia esse amor era tão santo que abençoá-lo antes de descer à sepultura foi para o extremoso pai de Florinda a última consolação da vida, – o derradeiro riso aberto ao mundo. XVI O verdadeiro merecimento tem seus privilégios. Eram muitos os mancebos que ardiam por valer um olhar e um sorriso de Florinda: talvez alguns se achavam realmente cativos de sua beleza; outros, menos apaixonados pela mulher, ambicionavam-lhe a riqueza; mas não houve um só que desconhecesse o acerto da escolha feita pelo coração da menina. Hermano era brilhante sem jaça: gentil, delicado em seu trato, honesto e laborioso, de gênio suave e de força e coragem provadas, estava talhado para a vida rude do fazendeiro ativo, e para chefe de uma família honrada. O dia do casamento de Hermano e Florinda foi de esplêndida festa na fazenda: embalde a oposição da esposa e da filha, embalde os rogos do noivo, Domingos Caetano o quis assim. – Quero festa e alegria, porque é imenso o favor que mereci de Deus – dissera ele. – Morrer com a certeza de deixar com protetor zeloso e seguro minha mulher e minha filha não é morrer de todo, é viver no futuro, é viver além do túmulo: o mais feliz sou eu! Festejem-me! Alegrem-se: porque é a minha última festa. E como Florinda se alvoraçara dolorosamente com a idéia da última festa, o pobre pai arrependido da verdade, apadrinhara-se com a mentira não-pecado, santa mentira do amor paterno, e rindo mal, e a fingir esperanças, e a zombar de si mesmo, chamara a filha e lhe dissera, embusteiro sublime, com jubilosa voz: – Enganei-me: não será a última... hei de ter outra, quando for o padrinho do teu primeiro filho... depois sim... mas depois de abençoá-lo muitas vezes... morrerei então. E Florinda saíra para chorar às escondidas a enganosa esperança de seu pai; e o pobre velho, ficando a sós, também chorara o triste engano, com que consolara a filha. Enfim o dia das núpcias chegou: o casamento de Hermano e Florinda foi celebrado na capela da fazenda. Domingos Caetano, conduzido em uma cadeira, assistiu a ele, abençoou e abraçou os noivos, e disse gravemente a Hermano: – Meu filho, és mais que marido, és pai desta família. O concurso dos parentes e amigos foi numeroso. 25 Houve festa para todos na fazenda. Os noivos e connvidados tiveram banquete suntuoso e animado baile à noite. O velho paralítico apareceu um instante à mesa para saudar seus filhos, e uma hora ao baile para excitar a dança e a alegria. Todo o mais tempo ficou no seu quarto, e à esposa, à filha, ao genro, a quantos o iam ver, dizia contente: – Estou melhor... muito melhor... este casamento me faz bem... Ele porém sofria sempre e muito: só na alma se sentia melhor. Mas a família, os parentes e os amigos não esqueceram o estado do velho paralítico e penante: às onze horas da noite puseram termo ao baile e dissolveram a reunião. Entretanto a festa era geral na fazenda. Para os escravos dispensados de todo o serviço nesse dia tinham sido mortos quatro bois, e se haviam distribuído em abundância garrafas de vinho e de aguardente. À noite em três senzalas diversas ferviam três fados, e o canto rasgado e alto dos tocadores de viola em desafio ecoava ruidoso. Os sentimentos generosos, o cuidado estremecido da família, dos parentes e dos amigos tinham marcado cedo a terminação do baile. A indiferença brutal dos escravos prolongava os fados, aturdindo a fazenda com a tempestade de suas músicas e de seus cantos selvagens. E de espaço em espaço os escravos gritavam em coro: – Viva sinhá-moça! Esses gritos eram como hinos brilhantes aos ouvidos de Domingos Caetano o qual absolutamente proibira que se perturbassem os folguedos dos escravos que festejavam o casamento da sua Florinda. Bom, mas inexperiente velho! Os escravos aplaudiam sinceramente apenas a carne fresca assada, as sobras do banquete, o vinho