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Frederico e Cândida: Liberato já tinha sondado o coração de Frederico, e achara nele o santo amor que o tornaria duas vezes irmão de seu amigo. A idéia de uma imposição era estranha por certo ao ânimo de Florêncio da Silva, e não pairava no de Plácido Rodrigues, que amava a afilhada quase tanto como ao filho; ambos, porém, faziam votos ao céu para que desabrochasse no coração de Cândida o terno sentimento que começava a aditar o coração de Frederico. Nenhum dos generosos interessados nesse projeto inspirado pela amizade tinha dele falado a Cândida; ela, porém, adivinhara com o instinto de mulher os desejos e combinações de seus pais e de seu padrinho e guardara para si o segredo que havia descoberto, quando seu irmão adotivo já estava na Europa. Cândida amava desde a sua primeira infância a Frederico, e nessa época preferia-o até a Liberato, que era menos condescendente com os seus caprichos de menina; continuou sempre a amá-lo com expansão suave, porém só com amor de irmã. Aos treze anos de idade, ao tempo em que Lucinda tinha já encetado as maliciosas e desmoralizadoras explicações de sua natureza e da sua missão de mulher, Cândida se apercebera da terna afeição, do amor que não era mais de irmão, que ela havia inspirado a Frederico: não ouvira a este nem falas apaixonadas, nem ternas promessas, e ainda mais ternas rogativas de sonhada e desejada união em breve futuro; mas em certo constrangimento respeitoso, no ardor do olhar, na contemplação suave, na doçura do falar, no leve tremor da mão que apertava a sua, reconhecera que era amada. A mocinha deixara-se amar assim, e sorria docemente a Frederico, embora não o achasse bonito: logo depois a retirada dos dois jovens, que seguiam para a Europa, interrompeu o desenvolvimento, e deixou no berço esse amor apenas nascente. Frederico dissera, chorando, ao abraçar Cândida em despedida: – Oh!... Não te esqueças de mim, Cândida! E então não a chamou irmã.. 112 Cândida, no fim de três dias lembrava-se de Frederico somente como seu irmão adotivo. Passados três anos voltaram enfim da Europa os dois mancebos. Aos vinte e dois anos Frederico chegara ao seu completo crescimento físico e à perfeita e firme determinação de seu caráter: o viço mais fulgente da juventude não lhe engraçara a figura, mas robustecera-lhe a têmpera nobre e generosa do coração, e dera- lhe à alma, a retidão do juízo e a prudência da reflexão. Cândida, sabendo da chegada de Liberato e Frederico à cidade do Rio de Janeiro, contou com um namorado mais; em breve, porém, só achou em Frederico um cavalheiro que respeitoso e discreto a amava sem falar-lhe de amor, e como que estudando-a, e esperando para cair-lhe aos pés uma hora, que a razão estava encarregada de marcar ao amor. A vaidosa ressentia-se do que lhe parecia frieza. Também a leviana donzela, estimando sempre muito a Frederico, julgou-se incapaz e muito longe de poder amá-lo; alguns dias de convivência na casa de seu pai, ou na de seu padrinho a convenceram de que esse jovem podia e devia ser o seu melhor amigo, seu irmão, como dantes; porém nunca seu marido. Cândida via bem que Frederico era feio, malfeito, desengraçado; mas habituada desde a infância ao seu aspecto desagradável, perdoava-lhe fácil e sem esforço os senões da figura, admirando- lhe a energia persistente do caráter, e às vezes a força física evidente do deforme Alcides; não era pois a fealdade do mancebo que fechava a este o coração de Cândida. Mas a bela e severa inteligência de Frederico, a profundeza do seu juízo, uma certa gravidade varonil já dominando os arrojos da idade impetuosa, impunham a Cândida respeito, invencível reconhecimento de superioridade, que contradiziam o sentimento do amor no ânimo 1eve, inconsiderado, imprudente e viciado pelo sensualismo da mucama, e pelas degradações do namoro. A irrefletida moça, pensando em Frederico, sentia como uma espécie de temor daquele homem tão sério: menos ligeira e precipitada acharia no desenvolvimento desse sentir, que se lhe afigurava temor, a fonte puríssima do amor que lhe parecia impossível e que se basearia na estima perfeita das grandes e nobres qualidades do amado; ela, porém, afastava do seu espírito a imagem daquele feio moço-velho, e sonhava com um marido bailarino, apaixonado de saraus e de teatros, escravo de seus caprichos, complacente, primeiro incensador de sua vaidade, e até cúmplice louco ou cego com a ostentação de sua formosura exigente de cultos na sociedade elegante. De seu lado Frederico não compreendeu a donzela que amava; viu-a com os olhos, julgou-a com as apreciações de seu pai, padrinho perdido de amizade pela afilhada, e de Liberato, irmão extremoso e exaltado; julgou-a por si mesmo com as lembranças da inocência da infância da menina, e adorou-a com o suave, mas deferente culto que é devido à pureza. Esse modo de exprimir amor chegava tarde à alma daquela moça de dezesseis anos: em vez de beatificá-la, atormentou-a; anacrônico e involuntariamente cruel, despertou em sua consciência o primeiro remorso. Era um amor que envergonhava e vexava a namoradeira: não podendo rir-se de Frederico, a louca, experimentando na santidade daquele amor virtuoso e reverente uma punição da sua imodéstia e garridice, odiou-o, por não lhe ser possível desprezá-lo. Odiou-o ainda mais, porque o respeito indomável a que a obrigava a estima em que tinha, e a espécie de temor que lhe inspirava Frederico, levou-a forçadamente a esquivar-se dos namoros, que em todas as reuniões provocava, a resfriar as flamas, a escassear as liberdades, que tolerava seus galanteadores, e a afetar o recato que aliás nunca devera ter esquecido. 113 Fazendo sobre si mesma essa violência, que atestava por certo o poder e a influência do feio moço-velho, Cândida em breve revoltou-se contra ele, e o aborreceu, ou supôs aborrecê-lo pelas privações que se impunha. Estes sentimentos contraditórios, esse respeito e espécie de temor, e esse ódio pelo flagelo da consciência, esse recato obrigado e esse suposto aborrecimento pela privação de levianos e indesculpáveis gozos, provam que uma hora de reflexão em Cândida, dez minutos de mais experiência da vida artificial das nossas sociedades, e das exigências vaidosas da imaginação da donzela formosa e leviana em Frederico, fariam encantada e como que milagrosamente realizar de súbito os benignos e generosos planos de Florêncio da Silva e Plácido Rodrigues. No respeito, na espécie de temor, no ódio, no suposto aborrecimento que Cândida estava confusamente votando a Frederico escondia-se, aprofundava-se o amor mais sereno e mais seguro, aquele amor que não arrefece nunca, o amor que fica e não voa, o amor que se consagra pela estima. Frederico poderia ter encantado Cândida. Mas não houve quem falasse à pobre moça, quem a esclarecesse, quem dirigisse. Em seu quarto de dormir e ao lado do seu toucador ela tinha a mucama escrava a impeli-la para o mal: nos salões, nas reuniões, ela tinha a turificação da sua vaidade e o tormento das reservas medrosas, que aumentava o preço e a magia dos turíbulos arredados. E ainda nos salões de reunião, e fora deles nos colóquios de amizade quase fraternal, Frederico, procurando com escrupulosa delicadeza inspirar e merecer o mais terno sentimento, sem o pensar deprimia Cândida, exaltando-a pelos tesouros morais que ela já não possuía, e amedrontava-a com apreensões da vida tranqüila, séria, e nobremente recatada, que o dever e a virtude regulam e que a leviandade desama. Tudo pois concorria para afastar Cândida de Frederico. XVI Não tinham faltado festas e obséquios aos dois mancebos recém-chegados da Europa que eram pelos pais apresentados com orgulho. Liberato e Frederico deviam demorar-se apenas quatro meses com seus pais, seguindo depois para a América do Norte, onde durante