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________________________________________________________________ HERMENÊUTICA POR: RICARDO FERREIRA SACCO ________________________________________________________________ 3ª EDIÇÃO ROTEIRO DE CURSO 2013 2 HERMENÊUTICA Na lei tem-se o intelecto sem paixões, porém, em situações indeterminadas, a lei primeiro educa os homens e depois autoriza-os a decidir. Segue-se assim que é preferível que a lei governe (Aristóteles - sec. IV a.C.; Política, Livro III). 1 - Introdução: Começamos o estudo perguntando: o que é Direito? Seria o conjunto de normas jurídicas escritas e consuetudinárias ou é a leitura que se tem da norma no tempo e no espaço? (VIEITO, 2000: p.23) Konrad Hesse, citado pelo Prof. Aurélio ressalta que a Constituição está condicionada pela realidade histórica, e podemos acrescentar também que está intimamente ligada ao fenômeno político produzido pela vida em sociedade, da qual não pode se afastar das condições concretas de seu tempo (VIEITO, 2000: p.32). 1.1 - Compreensão do significado do vocábulo “Hermenêutica”: Hermenêutica deriva do vocábulo grego hermeneuein, entendida esta como filosofia da interpretação. Tal fato tem ligação íntima com o deus grego Hermes (Mercúrio para os romanos), o deus mensageiro, que trazia notícias dos demais deuses aos homens, sendo capaz de desvendar tudo o que a mente humana não compreendesse, permitindo se alcançar o significado das coisas. Com a rapidez de suas sandálias divinas (aladas), tornou-se o mensageiro predileto dos deuses, pois executava suas tarefas não somente com a astúcia e a inteligência que lhe eram características, mas principalmente com a gnose e a magia (conhecimento - sabedoria), dessa forma era “o vencedor mágico da obscuridade”, porque “sabe tudo e, por isso, pode tudo” (mestre dos magos). Hermes é o Deus do Hermetismo e da Hermenêutica, do mistério e da arte de decifrá-lo. Hermes seria então um “intérprete", eis que era a entidade divina dotada de capacidade de traduzir e decifrar o incompreensível, o hermético. 3 O vocábulo Hermenêutica é aplicado não só no Direito, mas também na teologia protestante, substituindo a expressão latina ars interpretandi, ou arte da interpretação, como sendo a doutrina da arte da interpretação. 1.2 - Definição de Hermenêutica: É um erro tentar definir Hermenêutica como pura interpretação, e um erro maior ainda tentar tratá-las como sinônimos. A interpretação é a aplicação da Hermenêutica. A Hermenêutica descobre e fixa princípios que regem a interpretação, sistematizando processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. Podemos dizer que a Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, que se faz aproveitando conclusões da Filosofia Jurídica. A interpretação é na verdade a aplicação da Hermenêutica, outrossim, podemos definir sinteticamente Hermenêutica como sendo o conjunto de regras científicas que orientarão a interpretação. Essa teoria formada pelas regras científicas é algo complexo, talvez o capítulo menos seguro e mais impreciso da ciência do Direito. De pronto podemos concluir que é um erro substituir uma palavra pela outra, eis que Hermenêutica não é sinônimo de interpretação. Carlos Maximiliano ensina que o vocábulo alemão Auslegung abrange o conjunto de aplicações da Hermenêutica, que em inglês se resumiria em dois termos técnicos: Interpretation and Construction, que seria mais preciso do que a palavra portuguesa correspondente - Interpretação. Desta feita, para os alemães tornou-se comum o uso de Hermeneutik e Auslegung, assim como entre nós o de Hermenêutica e Interpretação. A interpretação busca achar o verdadeiro sentido de um grupo de palavras, enquanto a construção autoriza a sair do texto e procurar uma solução que os constituintes previram, mas não tornaram suficientemente clara. A construção é, portanto, imprescindível para o Direito Constitucional. Hermenêutica é conditio sine qua non para o entendimento da norma jurídica. A fim de obter um esclarecimento maior, partamos para a definição de Interpretação: a Interpretação é a explicação e o esclarecimento; é exprimir por outras palavras um pensamento exteriorizado, mostrando o sentido verdadeiro de uma expressão, extraindo de frase, sentença ou norma o seu conteúdo. A interpretação é, portanto, o ato de explicar o sentido de algo. Interpretar uma expressão do Direito não é tão somente torná-la clara no respectivo dizer, mas é, sobretudo, a revelação do sentido apropriado para a vida real. Interpretar não é uma arte para simples deleite ou passatempo, muito 4 pelo contrário, é uma disciplina eminentemente prática e útil à atividade diária do operador do Direito. Na verdade toda regra jurídica pode ser considerada como uma proposição que subordina, a certos fatos, uma consequência necessária, incumbindo ao exegeta descobrir e aproximar da vida concreta, não somente as condições implícitas no texto, mas também as soluções que este liga às mesmas. Essa atividade interpretativa é uma só, embora desdobrada em uma infinidade de formas diferentes, como veremos. Regra jurídica → Fatos → Consequência necessária A Hermenêutica foi tratada por diversas correntes filosóficas que buscavam valores distintos: algumas o valor segurança, outras o valor justiça e outras a conciliação de ambos. Após a Revolução Francesa surgiu a chamada Escola da Exegese, trazendo o entendimento que a lei esgotava toda a realidade; o Estado era o único autor do Direito e a busca da vontade do legislador eram postulados básicos. Caberia ao jurista apenas a análise gramatical e da lógica formal do diploma legal, sem procurar soluções fora dele. Nada escapa à lei e se o intérprete substituísse a intenção do legislador pela sua estaria invadindo a esfera de competência do Legislativo. Esta escola foi rompida com a aplicação do método histórico-evolutivo, que buscava uma interpretação mais atualizada, perquirindo a mens legis em detrimento da mens legislatoris. Por este novo método, a lei após criada se desligava do legislador e passava a ter vida própria (autônoma), recebendo influências do meio social em que se encontra, adaptando-a às exigências do momento. Hoje os elementos extra legem se tornaram imprescindíveis à Hermenêutica moderna. 2 - Aplicação da Hermenêutica Não há preceito absoluto; o hermeneuta exerce uma verdadeira arte guiada cientificamente, eis que a ciência elabora as regras, traçando diretrizes e condicionando o esforço, mas não suprimindo o coeficiente pessoal com seu valor subjetivo, eis que se assim o fosse, o investigador seria um autômato. Muito antes pelo contrário, o investigador precisa assumir uma postura proativa dentro das regras científicas reconhecidas, construindo a norma jurídica. 5 De acordo com o Prof. Aurélio Agostinho (2000, p. 43): As considerações expostas sobre a vontade do legislador não podem nos levar à concepção oposta de total liberdade de interpretação, pois isto seria o germe de destruição da Hermenêutica jurídica, tendo em vista que a norma jurídica tem como função primordial estabelecer limites na conduta social e, via de consequência, segurança nas relações jurídicas. Se tudo for possível, não haverá mais como antecipar os negócios jurídicos, já que nenhuma das partes poderá gozar do privilégio de poder antecipar, com uma certa margem de tranquilidade, a decisão judicial, a respeito do caráter lícito ou não de suas condutas. Este campo impreciso queconstitui a Hermenêutica está longe de ser exato, não dispondo de expressões precisas nem definições infalíveis ou completas. Embora possa parecer clara a linguagem, é forçoso verificar o que se encontra por detrás da letra da lei, que deve ser encarada como obra humana, com todas as deficiências e fraquezas. Por mais capazes que sejam os elaboradores de uma lei, logo depois de promulgada surgem às dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos que são aparentemente bem redigidos. Fato é que as situações, os negócios, os interesses que determinada norma visa regular transformam-se com o passar do tempo, eis que surgem fenômenos imprevistos, novas idéias e a própria ciência revela coisas até então imprevisíveis quando da elaboração do texto normativo. Nem por isso se deve censurar o legislador ou simplesmente desconsiderar sua obra. Quando esclarecido pela Hermenêutica, o operador do Direito descobre na Lei a locução implícita mais diretamente aplicável a um fato do que o texto expresso. Desta feita multiplica a utilidade de uma obra, podendo afirmar em determinadas situações o que o legislador decretaria se previsse o incidente e o quisesse resolver, ou seja, intervém como auxiliar prestimoso à realização do Direito. O intérprete descobre determinações, não por meio de novos dispositivos materializados, mas sim pelo desdobramento de preceitos formais que não perturbem a harmonia do conjunto e nem alterem as linhas da obra. Descendo aos alicerces, extrai idéias apenas latentes até aquele momento. Com seu trabalho dissipa obscuridades, afasta contradições aparentes e falta de precisão. Ao operador do Direito deve restar claro que todo ato jurídico ou lei é dividido em duas partes que são o sentido íntimo e a expressão visível, partindo- se da segunda para se atingir a primeira, ou seja, através dos vocábulos atinge- 6 se a idéia. Fato é que a norma deve ser compreendida em sua “verdade” a fim de aplicá-la na vida real. Para se aplicar corretamente uma norma jurídica é insuficiente o esforço localizado apenas ao propósito de lhe conhecer o sentido e significação verdadeira. Há casos em que esta se adota com maior amplitude, e outros em que se exigem restrições cautelosas (interpretação extensiva e interpretação restritiva). Ex.: Vide Art. 103-A da CF/88. Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. Estariam os órgãos da Administração Pública distritais afastados do efeito vinculante dessas súmulas? A Hermenêutica vem, pois, oferecer os meios de se resolver na prática as dificuldades, permitindo ao hermeneuta descobrir o alcance e a extensão de um preceito. Isto decorre do fato de que, a palavra, quer considerada isoladamente ou combinada a outras, formando a norma jurídica, ostenta uma rigidez exterior ilusória, pois sua natureza é elástica e dúctil, variando seu significado com o transcorrer do tempo e a evolução da sociedade. Vejamos o exemplo do art. 215 do Código Penal que na redação vigente até 2005 dizia: "Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude". Agora, conforme a Lei 11.106/2005, a redação do art. 215 passou a ser a seguinte: "Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude". A expressão "mulher honesta" constituía elemento normativo do tipo, e a exigência de honestidade impunha tratamento de natureza nitidamente discriminatória. O parâmetro de mulher honesta de quando da redação do Código Penal em 1940 seria o mesmo de 2005? A interpretação da norma decorre da compreensão de sua efetividade, de forma alguma levando ao entendimento de que qualquer pessoa possa usá-la com interesses variados. A liberdade não é de forma nenhuma absoluta, além de haver também critérios hermenêuticos criados por lei,- fato é que faz-se importante a compreensão de que as regras de interpretação têm cunho científico. Deve o juiz interpretar a lei em conformidade com uma interpretação adequada e metódica que leve a solução mais justa entre todas as possíveis. 7 2.1 - Regras de interpretação criadas por lei No que se refere a critérios hermenêuticos criados por lei, muitos autores entendem que as regras de interpretação são de cunho científico, não sendo apropriada a sua regulamentação. Contudo havendo previsão legal é importante ter em mente que uma das características da norma é a imperatividade, eis que determina e não apenas aconselha. Do ponto de vista científico não é apropriado que sejam estabelecidas regras de interpretação através de leis, eis que tal matéria é própria da ciência. Um exemplo de regra de interpretação criada por lei se encontra na chamada Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42) em seu art. 5º. Vejamos: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Na verdade isto se trata de um mero critério de orientação, sem impedir que o intérprete procure outros meios de interpretação. 2.2 - Hermenêutica Constitucional A fim de se compreender a Hermenêutica Constitucional são necessárias algumas observações a saber: muitas são as formas de interpretação necessárias à compreensão do real significado da norma, ou seja, a compreensão do espírito da lei, sendo que muitas vezes são utilizadas em conjunto. É necessário compreender também as circunstâncias sociais, políticas e econômicas que levam ao entendimento da vontade da lei, havendo inclusive o elemento histórico que busca as raízes históricas da norma, analisando-se o processo de formação e peculiaridades da época. No que se refere à Hermenêutica Constitucional, é de fundamental importância a compreensão de uma pluralidade metodológica, sendo que a análise teleológica ou finalista é excepcionalmente necessária, eis que estatuto político e jurídico, extremamente sensível a questões sociais, políticas e econômicas. Seu conteúdo finalista fica claro quando vista como instrumento de governo e transformando-se em amparo à liberdade a aos direitos fundamentais. A letra permanece e o sentido se adapta às mudanças que a evolução impinge à vida social. Tal fenômeno merece ser estudado pormenorizadamente, como será feito com relação às mutações constitucionais (vide artigo sobre mutações constitucionais e STF e entrevista com Luis Roberto Barroso). A preocupação com a efetividade da Constituição é um dos temas mais importantes no Direito contemporâneo. As Constituições foram feitas para durar 8 e sua longevidade é fundamental para se fundar um espírito de respeito a ela, eis que somente com uma Constituição forte ter-se-á instituições jurídicas respeitadas, e sem elas, não há possibilidade de cidadania. A interpretação é ponto primordial para a permanência de uma Constituição. O que o Direito Constitucional contemporâneo entende é que um texto escrito não impede o surgimento de uma jurisprudência constitucional. A interpretação evolutiva objetiva exatamente adequar a prática constitucional às mudanças que ocorrem na sociedade. A interpretação constitucional precisa acompanhar essas mudanças, entretanto nem sempre se torna necessária a alteração formal da Constituição para que esta tenha uma atualização constante e permanente. As referidas mutações constitucionais conferem um caráter dinâmicoà Constituição, procurando conciliar o sistema constitucional originário com as transformações que ocorrem na realidade social. 2.2.1 - Interpretação evolutiva Busca adequar a Constituição às mudanças históricas, políticas e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes a fim de mantê-la viva e em sintonia com o tempo presente, sem, contudo, modificar os seus termos literais. Trata-se da já analisada mutação constitucional. Este processo é mais simples nas constituições sintéticas, mas também ocorre nas constituições analíticas. É importante reconhecer o significado jurídico atual da lei e não seu significado histórico. Este processo ocorre de forma bem clara na Constituição Americana de 1787, que entrou em vigor em 1789, sendo um texto jurídico de notória longevidade, apesar da estrutura social que ela regula ter mudado extraordinariamente. Como exemplo histórico temos a evolução dos direitos dos negros americanos, sem que o texto fosse alterado. Vejamos: 1787 - A Constituição permite o regime de escravidão; 1787 - Caso Dred Scott vs. Sandford: A Suprema Corte chegou a negar a condição de cidadão a um escravo. Determinou que as pessoas de ascendência africana, quer fossem ou não escravos, não estavam protegidos pela Constituição e nunca poderiam se tornar cidadãos daquele país. Decidiu também que o Congresso não tinha autoridade para proibir a escravidão nos territórios da União. Declarou que, como os escravos não eram cidadãos, não poderiam requerer em tribunais e, assim como os bens móveis ou propriedade imóvel privada não poderiam ser retirados de seus donos sem o devido processo legal; 1865 - Após uma guerra civil é promulgada a 13ª Emenda, que aboliu a escravatura; 9 1896 - Caso Plesy vs. Fergusson: a Suprema Corte endossou a doutrina equal but separate, que permitia uma forma dissimulada de discriminação em muitos estados. A partir de 1868 alguns estados americanos aprovaram leis que favoreciam a segregação de negros em escolas e outros ambientes, o que ia contra a emenda de igualdade (equal protection. As leis de segregação que ficaram conhecidas com “Leis de Jim Crow”, aplicadas em ambientes como escolas, banheiros, bebedouros públicos e transporte público. Em 1890, uma lei do Estado de Louisiana estabeleceu que as estações ferroviárias devessem providenciar vagões separados e iguais para negros e brancos. Após alguns anos, um fato levou ao caso Plessy vs. Ferguson, que chegou à Suprema Corte Americana em 1896. Nele, um senhor de nome Homer Plessy, pele escura, ou colored, como eram chamados os negros norte- americanos, havia comprado uma passagem de trem para a primeira classe. Após sentar-se no vagão foi intimado pela polícia a sair, pois estava em uma área reservada somente as pessoas brancas. Se recusou a deixar o local e acabou sendo preso por violar a lei do Estado que denominava aquela área do transporte coletivo somente para a utilização de pessoas brancas. 1954 – Caso Brown VS. Board of Education: a Suprema Corte considerou inconstitucional a segregação de estudantes negros nas escolas públicas, em decisão que se tornou um marco na política de integração racial. Observa-se que na vigência da mesma Constituição evoluiu-se de uma interpretação que permitia a discriminação total para uma discriminação atenuada e, depois, para a não-discriminação. Outro ponto que se observa foi a cláusula da equal protection, inserida na 14ª emenda à Constituição Americana em 1868, que veio estender aos estados a aplicação do devido processo legal. Originalmente, o objetivo dessa previsão era garantir os direitos dos negros (recém libertos da escravidão) frente a discriminações efetuadas pelos governos e legislativos estaduais. A Suprema Corte deu à 14ª emenda uma interpretação extremamente restritiva da cláusula do equal protection. Por ela, talvez em atendimento aos anseios da maioria da sociedade branca e conservadora da época, permitiu-se que a segregação racial fosse praticada de forma ostensiva até 1954 e extirpada na década de 1960, quando do movimento pelos direitos civis dos negros liderado por Martin Luther King. O que dizia a 14ª Emenda: Seção 1: [...] "Nenhum estado editará ou aplicará leis que restrinjam os privilégios e imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem privarão qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade sem um devido processo legal; nem negarão a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis." (Gunther, Constitutional Law, p. A-11). 10 2.2.2 - Supremacia constitucional A Constituição é o fundamento de todas as leis e, numa visão kelsiana a validade das normas está fundamentada na Constituição. No que se refere a sua interpretação sistemática, há se ressaltar que esta se dá apenas no âmbito interno da própria Constituição, em virtude de seu status de norma superior. Mesmo nos casos de normas de eficácia contida, que permitem a restrição ou redução da norma constitucional por intermédio de leis ordinárias, haverá a predominância das normas constitucionais, posto que continuarão a ser fundamento de validade das demais normas. 2.2.3 - Unidade da Constituição A Constituição deve ser vista como um todo, e não um aglomerado de normas. Na visão de Norberto Bobbio, a Constituição deve ser interpretada como o termo unificador das normas que compõem o ordenamento jurídico, pois sem ela as normas constituiriam um amontoado e não um ordenamento. Geralmente as Constituições democráticas congregam um pluralismo de interesses que muitas vezes aparentam-se antagônicos, por ser resultado de um amplo consenso na sociedade. Estes interesses, que por vezes são contraditórios, devem ser adequados pelo intérprete de modo a atingir o espírito da unidade, como o Direito de propriedade e a função social da propriedade. A Constituição precisa ser encarada como um todo harmônico e sistemático, pois não pode ser interpretada exclusivamente a partir de si mesma. É importante ficar claro que as antinomias que porventura sejam apontadas não são antinomias reais, mas antinomias aparentes, sendo solucionadas através da busca de um equilíbrio entre as normas. Muitas vezes a solução demanda a utilização da ponderação entre bens e valores. Identifica-se o bem jurídico tutelado das normas em aparente contradição e conjuga-os a determinados valores dando preferência às normas que consagrem o valor dos princípios fundamentais. Busca-se, pois, o equilíbrio entre os interesses em conflito. 3 - Sistema clássico de Hermenêutica: Escola da Exegese O sistema primitivo ou tradicional de interpretação teve denominações várias, sem que fosse sensivelmente alterada a essência. O método tradicional da Escola da Exegese é o mais conservador e primitivo de Hermenêutica. Buscava-se restringir o Direito aos textos rígidos e aplicá-lo com a vontade verificada ou presumida do legislador há muito sepultado. Busca-se, pois, entender o pensamento do autor de um dispositivo a 11 fim de esclarecer o sentido deste, incorrendo no erro de generalizar este processo a todas as situações. A interpretação dogmática do Direito teve seu apogeu na Revolução Francesa de 1789, pela concepção de um Direito natural oriundo da razão e com atributos especiais de imutabilidade e universalidade. Neste cenário surge em 1804 o Código de Napoleão, entendido como uma obra perfeita. Por tal fato o intérprete deveria ater-se ao texto legal como a fonte genuína e única de Direito. Neste cenário o único elemento utilizado era o filológico e posteriormente os trabalhos legislativos preparatórios para se descobrir a mens legislatoris. Sua construção deveu-se ao uso exacerbado do Direito Romano. Este apegoà formalística transformou o aplicador da lei em um autômato, cheio de minúcias, geometricamente preciso, obcecado pela arte dos silogismos forçados, interpretando um texto como se vivesse há cem anos, imobilizado e indiferente ao progresso. Este apego demasiado à forma se aproximava dos métodos romanos, que fora chamado de Pandectologia, fazendo referência às compilações justinianas. Bem falou Jhering, citado por Carlos Maximiliano: “Através do Direito Romano, mas também acima e além do mesmo”. Esta escola evolui e por fim começa a aceitar o método sistemático, tendo em vista que a legislação é um todo orgânico, devendo as leis ser interpretadas em conjunto. Contudo é possível dizer que neste caso o objetivo dos referidos elementos de interpretação continuava sendo descobrir a mens legislatoris. O fetichismo legal e o Estado como único autor do Direito são postulados básicos desta escola, além de sua vinculação exacerbada à vontade do legislador. Na verdade, da vontade primitiva do legislador consegue-se, quando muito, verificar o sentido desta, e jamais o alcance, eis que nunca preestabelecido e impossível de prever. Não se pesquisava o fator teleológico do Direito, a lei representava e continha toda a realidade social e não havia a menor preocupação do intérprete em atualizá-la. O princípio in claris cessat interpretatio foi adotado em sua íntegra pela Escola da Exegese. Esta escola vinha também expor a matéria dos códigos, artigo por artigo, facilitando a localização da vontade do legislador. Prevalece ainda hoje a linha de exposição sistemática, contudo o jurisconsulto serve-se do conjunto de disposições, com a finalidade de construir, com materiais esparsos em centenas de artigos, um todo orgânico. Seria, pois, o nascimento do método sistemático, também chamado de científico. 12 3.1 - Evolução do sistema clássico a) Método histórico-evolutivo: Insurgiu-se o método histórico-evolutivo contra a concepção dogmática do Direito proclamada pela Escola da Exegese, eis que cabe ao intérprete realizar uma interpretação atualizada da lei. A velha escolástica cede lugar ao método histórico-evolutivo. Tentam alguns conciliar o passado com o presente, admitindo a exegese progressiva sobre a base da dogmática. Insistem ainda em inquirir a vontade geradora dos dispositivos legais, com a diferença de não se ater apenas no que o legislador quis, mas também perguntando o que ele quereria se vivesse no meio atual, enfrentando determinado caso concreto. Busca-se, pois, o Direito com uma forma dúctil, adaptando-o, pela interpretação, às novas exigências sociais. Cumpre ao intérprete “fecundar a letra da Lei na sua imobilidade, de maneira que se torne esta a expressão real da vida do Direito”. O intérprete não cria disposições e nem posterga as existentes, mas sim deduz nova regra para um caso concreto através do conjunto de disposições vigentes. Maximiliano cita o jurisconsulto romano Paulo: “da regra não se extraia o Direito, ao contrário, com o Direito, tal qual na essência ele é, construa-se a regra”. A escola histórico-evolutiva conseguiu generalizar o método teleológico e a preocupação dos fins sociais nos trabalhos de Hermenêutica, conciliando este processo com a antiga dogmática. Matou de vez o apego ao método gramatical ou filológico de interpretação muito combatido por Jhering e seus discípulos. Eliminou os brocardos latinos In claris cessat interpretatio e o Fiat justitia, pereat mundus (Faça-se justiça, ainda que o mundo pereça). Combateu o excesso de erudição clássica e o desprezo pelos fatos econômicos na educação do jurista. Deu, enfim, o golpe de misericórdia à escola da Exegese. b) Método da livre investigação científica do Direito. Proposto por François Gény que buscava um método capaz de possibilitar ao operador do Direito uma maior liberdade diante das lacunas da lei. Afirmava que o operador, depois de esgotados os recursos da lei, da analogia e dos costumes, poderia encontrar a solução segundo o que percebesse na organização social, política e econômica sem, contudo, ir contra a jurisprudência e a doutrina dominante. François Gény, citado por Carlos Maximiliano, autoriza, portanto o juiz agir como legislador, mas após esgotados os recursos da lei. Exemplo disso pode ser encontrado no art. 1º do Código Civil Suíço. Vejamos: 13 Aplica-se a lei em todas as questões de Direito para as quais ela, segundo sua letra ou interpretação, contém um dispositivo específico. Deve o juiz, quando se lhe não depara com preceito legal apropriado, decidir de acordo com o Direito consuetudinário, e, na falta deste, segundo regra que ele próprio estabeleceria se fosse legislador. Inspira-se na doutrina e na jurisprudência consagradas. É interessante observar também o que determina o art. 4º do Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de introdução ao Código Civil brasileiro): “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito”. c) Corrente do Direito Livre Representaria a busca pelo Direito justo, defendida por Armínio Kantorowicz, como dentro ou fora da lei, na ausência desta ou a despeito da mesma. Seria decidir praeter e também contra legem. Pregava desprezar qualquer interpretação, construção ou analogia, inspirando-se preferencialmente em dados sociológicos. Em síntese, buscava um ideal de justiça, ainda que contra a lei. 4 - O juiz e a aplicação do Direito No passado houve uma tendência a reduzir o juiz a uma função puramente automática. Hoje, muito pelo contrário, o Direito vive pela jurisprudência e dela depende para sua evolução. Pela jurisprudência o Direito evolui ante a uma legislação às vezes imóvel. Nas palavras de Carlos Maximiliano, Embora o princípio da divisão de poderes, observado sem restrições... extinga o papel criador do Direito, atribuindo à jurisprudência o dever de decidir litígios, sejam quais forem as deficiências da lei escrita, força a magistratura a reivindicar, em parte, a sua velha competência e assim tornar-se, de fato, uma aperfeiçoadora e dilatadora das normas rígidas. Ao juiz não é lícito abster-se de julgar alegando ser a lei ambígua, omissa, obscura ou não ter a mesma previsto as circunstâncias particulares do caso. Caso assim o fosse, a ordem social ficaria seriamente ameaçada. Prevalece, portando, a exigência de onde não existe um texto explícito, o 14 magistrado utilizar-se dos meios regulares, como os costumes, a analogia e a equidade. Vejamos o que diz o Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de introdução ao Código Civil) que foi alterada pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010): “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito”. No art. 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Tais meios regulares são maneiras de preencher as lacunas da lei. No caso da analogia utiliza-se de uma norma que regula uma situação semelhante àquela que não possui a norma regulatória. Costumes são comportamentos sociais reiterados e tidos como corretos. Os princípios gerais de Direito são as bases norteadoras dos doutrinadores e juristas. Na verdade o magistrado não formula o Direito, apenas o interpreta, mas assim mesmo é reservado a ele um campo vastíssimo de atividade autônoma, independentemente das deficiências dos textos positivos. Exerce, pois, função relativamente criadora, formulando uma regra ad hoc, entretanto, há uma tendência em aplicar em processos novos a solução achada, o que por óbvioforma jurisprudência. A bem da verdade, o juiz crê apenas aplicar a lei e o legislador produzi-la. A diferença entre os dois é somente em grau e em método. O primeiro atende à espécie e o segundo generaliza. O juiz olha para o passado, enquanto o legislador olha para o futuro. É claro que este trabalho criador tem limites, pois Montesquieu já observava que todos os poderes constitucionais tendem a exagerar as próprias atribuições e invalidar o campo da jurisdição alheia. Maximiliano afirma: “a ditadura judiciária não é menos nociva que a do executivo, nem a onipotência parlamentar”. Carlos Maximiliano afirma também, de maneira inteligente, que existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que existe entre o dramaturgo e o ator. Deve o ator atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo, porém, se é um verdadeiro artista, não se limita a uma reprodução pálida e servil, dando ao contrário, vida ao papel, encarnando de forma particular o personagem, imprimindo um traço pessoal à representação, emprestando às cenas um certo colorido. Desta feita, o juiz não procede como um insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos, porém como órgão de aperfeiçoamento destes, um intermediário entre a letra morta dos códigos e a vida real. 15 No passado, ao juiz não era lícito sequer interpretar a lei, apenas aplicá- la. Vejamos o que dizia a primeira Constituição do Brasil em 1824: Art. 15. É da attribuição da Assembléa Geral I. Tomar Juramento ao Imperador, ao Principe Imperial, ao Regente, ou Regência. [ ... ] VIII. Fazer Leis, interpretal-as, suspendel-as, e rovogal-as. (sic) (BRASIL, 1824). Atualmente a autonomia do juiz no aplicar da lei prevaleceu como algo fundamental à celeridade e retidão na distribuição da justiça. A lei é uma norma jurídica geral, enquanto a regra firmada pelo juiz é uma norma jurídica individual. É importante ficar claro que a busca por ideal de justiça do magistrado a qualquer preço, dentro ou fora da lei, na ausência desta – ou a despeito da mesma, ou seja, praeter legem e também contra legem é algo inconcebível. Tais escolas, como a da Livre indagação, do Direito Livre, do “Direito achado na rua”, etc., possuem um discurso muitas vezes convincente e aparentemente “justo”, mas arrasam a segurança jurídica e a previsibilidade das relações. Se o próprio juiz se sentir a vontade para não aplicar dispositivos legais aos casos ocorrentes, como os prestigiar e impor à massa? A atuação deve recorrer aos princípios gerais e a equidade, mas apenas para compreender e completar o texto, e não para lhe corrigir disposições injustas segundo o critério pessoal do julgador, pois senso de justiça cada um possui o seu. A despreocupação com os textos, desprezando qualquer interpretação, o olhar demasiado para o foro íntimo e as amarras ideológicas são por demais nocivas à aplicação da lei. O texto interpretado oferece dupla vantagem: é útil para o povo e protege o juiz. Sua função com relação aos textos é dilatar, compreender e completar, porém não alterar, corrigir ou substituir. Pode melhorar um dispositivo graças à interpretação hábil e técnica, porém não negar a lei e decidir o contrário do que a mesma estabelece. Claro é que quando se fala em interpretação hábil e técnica está se incluindo também a análise da norma em face da Constituição, verificando sua compatibilidade e analisando se é ou não constitucional. Trata-se de norma existente e vigente anteriormente à promulgação da Constituição, a análise se fora ou não recepcionada pela mesma é essencial. A própria existência de normas jurídicas importa no reconhecimento oficial da necessidade de uma direção e em proclamar que a vida social não pode prescindir de regras obrigatórias, ou seja, de um elemento de autoridade. 16 O jurista Carlos Maximiliano cita uma forma original de Direito Livre em um tribunal de primeira instância de Château-Thierry, presidido pelo ”bom” juiz Magnaud. Este magistrado, imbuído de idéias humanitárias redigia sentenças mostrando-se clemente e atencioso com os fracos e humildes, mas também enérgico e severo com os poderosos. Na sua mão a lei variava segundo a classe, mentalidade religiosa ou inclinações políticas dos indivíduos submetidos à sua jurisdição. Não jogava com a Hermenêutica, usava linguagem de orador ou panfletário, empregava apenas argumentos humanos e sociais, dando razão a este ou àquele sem se preocupar com os textos de lei. Do “bom” magistrado Magnaud concluiu-se que foi apenas uma “retumbante manifestação de ideologia pessoal”. Certo é que “quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria. Ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses”. Este é um dos piores cenários para o advogado, eis que não faz diferença seu conhecimento, habilidade ou raciocínio. Não faz diferença para o cliente contratar um advogado brilhante e com vasto conhecimento ou um medíocre, pois não serão aspectos técnicos que resolverão a lide. Há desta feita um nivelamento por baixo dos profissionais. Tal fato tem ocorrido hoje em alguns de nossos vizinhos na América Latina, prejudicando muito as carreiras jurídicas e levando a uma insegurança jurídica que afasta investimentos, que são redirecionados para onde a previsibilidade das relações é maior e, consequentemente, os riscos são menores. O papel do magistrado não é guiar-se pelo sentimentalismo, mas sim manter o equilíbrio dos interesses e, dentre eles distinguir os legítimos dos ilegítimos. Não se prega só o lado material, ou só o lado moral; deve, conquanto, fundir os dados econômicos e os eminentemente sociais a fim de assegurar o progresso dentro da ordem, mantendo as condições jurídicas de coexistência humana. É importante ter em mente que não é lícito usar o Direito contra o Direito, eis que haveria a subversão do mesmo, que deve constituir um sistema harmônico. Carlos Maximiliano de maneira lapidar assevera: O furação revolucionário, ou leva por diante as instituições vigentes, ou passa, deixando sempre, entre os males transitórios que suscita, alguma semente útil para germinar depois. Sim, o demolidor impressiona, granjeia simpatia e abala o prestígio da teoria dominante com escalpelizar erros, cobrir de ridículo os preconceitos, esvurmar chagas sociais mais ou menos ocultas ou toleradas; porque ele descobre os males; engana-se apenas quanto aos remédios: parte da verdade clamorosa e irritante para o devaneio doido, ou plano sinistro. 17 4.1 - Jurisprudência Denomina-se jurisprudência o conjunto das soluções uniformes dadas pelos tribunais às questões de Direito relativas a um caso particular. Costuma ter três funções muito nítidas que foram se desenvolvendo lentamente, quais sejam: a) Aplicar a lei; b) Adaptar a lei, pondo-a em harmonia às idéias contemporâneas e às necessidades modernas; c) Função criadora, que se consiste em preencher as lacunas da lei. O estudo da jurisprudência também serve ao progresso, na medida em que prepara reformas legislativas, apontando defeitos nas leis, eis que o julgador sempre deplora por ter que julgar contra o Direito e a equidade. A jurisprudência demonstra porque a letra antiga não pode mais adaptar-se às exigências sociais do presente e vale, sobretudo, pelos seus fundamentos. Outro aspecto da jurisprudência é o fato de evitar que uma questão doutrinária fique eternamente aberta e dê margem a novas demandas, diminuindo, portanto, os litígios e colaborando para a segurança jurídica, porque de antemão faz saber qual será o resultado das controvérsias. É preferível chamar jurisprudência ao constantee uniforme pronunciamento sobre uma questão de Direito por parte dos tribunais e simples precedentes as decisões isoladas. O STF ocupa o primeiro lugar como autoridade em jurisprudência eis que guardião da Constituição, mas fica um alerta: o argumento científico deveria ter mais peso que a autoridade. Certo é que um só julgado não constitui jurisprudência e também por si só isolado não possui valor decisivo e absoluto. Os julgados são bons auxiliares de exegese, quando manuseados criteriosamente, criticados e comparados; examinados à luz dos princípios constitucionais. Logo, a citação mecânica de acórdãos não pode deixar de conduzir a erros graves. Maximiliano recorda que “a ciência dos arestos tornou-se a ciência daqueles que não tem outra ciência; e a jurisprudência é uma ciência facílima de adquirir: basta um bom índice de matérias”. A decisão não bem fundamentada é uma simples afirmação e, em Direito, não se afirma; prova-se. Conclui-se que a jurisprudência auxilia o trabalho do intérprete, mas não o 18 substitui nem dispensa. Não deve o juiz, com facilidade, afastar-se da autoridade dos casos constantemente julgados de forma semelhante. 5 - Elementos ou processos de interpretação Os elementos de interpretação são essências a interpretação das leis, assim como da Constituição, sem prejuízo de seu caráter superior que lhe dá problemas interpretativos diferenciados, mas que essencialmente acabam sendo iguais aos da lei comum, pois para a sua interpretação também são utilizados critérios gerais da interpretação que a seguir serão analisados. As expressões interpretações gramatical, literal, histórica, sistemática e etc., são equivocadas para alguns porque dão a idéia de distintos procedimentos que se anulam mutuamente. O que deve ser compreendido é que eles intervêm globalmente para se ter uma visão mais completa da norma. Muitos são os elementos ou processos de interpretação para se buscar o resultado que tenha correspondência com o espírito da lei, devendo ser usados em conjunto. O elemento gramatical visto a seguir é a primeira linha de abordagem de um texto legal. 5.1 - Elemento (ou Processo) Gramatical ou Filológico O processo gramatical leva a uma interpretação literal e preocupa-se em extrair o significado verbal que resulta do texto segundo as regras gramaticais. Muito usada na Escola da Exegese, que lhe dava absoluta preferência, mas passou a ter cada vez menor importância no Direito moderno, atento apenas aos aspectos exteriores do texto. As dificuldades são muitas. Podemos citar: o significado conforme a época, os regionalismos, as linguagens próprias dos indivíduos, o emprego de um mesmo vocábulo, ora no sentido vulgar, ora no sentido técnico-jurídico. Tudo isso gera dificuldade e controvérsia. Para a sua análise é fundamental o estudo das palavras empregadas no texto, bem como sua analise de pontuação e sintaxe. A linguagem é o veículo do pensamento do legislador ou da vontade da lei, mas pecam aqueles que dão valor absoluto à letra da lei independentemente do seu significado no contexto e dos resultados com base na realidade. Indiscutível é que sempre pensamos melhor que escrevemos, e isso não seria diferente com relação ao legislador. Muitos ficam indignados com a não aplicação da literalidade de um texto legal e acham que a única interpretação é aquela que revela o que já está resolvido na clareza das palavras, ainda que o resultado leve ao absurdo, com o que não podemos concordar. 19 Ao analisar um texto, a primeira linha de interpretação irá usar o elemento gramatical e para tal algumas considerações são importantes: a) O Direito Público utiliza mais vocábulos técnicos do que o Direito Privado, que os utiliza mais na acepção vulgar. O juiz muitas vezes atribui aos vocábulos o sentido resultante da linguagem vulgar, eis que presume haver o legislador usado expressões comuns, porem, quando são empregados em termos jurídicos, deve-se preferir a linguagem técnica. O Direito possui a sua linguagem e tecnologia próprias, devendo o intérprete levar isso em conta. b) Presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas. Todas devem ser reconhecidas como escritas para influir no sentido da frase respectiva. Os lapsos ou enganos na redação de um dispositivo precisam ser demonstrados claramente. A linguagem tem por objetivo despertar em terceiros pensamento semelhante daquele que fala, presumindo-se, pois, que o legislador se esmerou em escolher expressões claras e precisas. Por tal fato, não tendo elementos de convicção em sentido diverso, deve o intérprete respeitar a letra do dispositivo. c) Embora a máxima atribuída a São Paulo,- a letra mata, o espírito vivifica -, nem por isso é menos certo, em alguns casos, o juiz afastar-se das expressões certas da lei. Um abandono desmedido da letra da lei constitui um perigo para a segurança jurídica. Por outro lado, o apego à letra dos dispositivos pode significar o sacrifício das realidades morais, econômicas e sociais, que constituem o fundo material e efetivo da vida jurídica. É importante atentar para o fato de que “Quem só atende à letra da lei, não merece o nome de jurisconsulto; é simples pragmático”. d) A letra não traduz a idéia na sua integralidade em cérebro alheio, apenas um produto semelhante, jamais idêntico. A experiência mostra que todos pensam melhor que escrevem. A linguagem sempre se revela transmissora imperfeita de idéias. Além disso, o legislativo funciona com intermitência; deliberam às pressas, não atentam somente para os ditames da sabedoria (?), deixando passar, sem exame sério, muitas matérias. e) Deve o juiz se atentar para o fato de não aplicar parágrafos isolados, e sim princípios jurídicos cristalizados em normas positivas. De fato, a interpretação meramente filológica (gramatical) é incompatível com o progresso e conduz a um formalismo retrógrado. Não é inútil insistir sobre a crescente desvalia do processo filológico, incomparavelmente inferior ao sistemático. Aproveitamos o aforismo do jurisconsulto Celso: “saber as leis é conhecer-lhes, não as palavras, mas a força e o poder”. O apego à interpretação gramatical levou ao brocardo In claris cessat interpretatio, o que é inconsistente, eis que nem sempre a clareza gramatical 20 revela a mens legis. Acreditavam seus defensores que a interpretação deveria ser usada apenas quando a lei estivesse obscura ou defeituosa. 5.2 - Elemento lógico É um passo a diante em relação ao elemento gramatical para a descoberta da mens legis. Foi apreciado pela Escola da Exegese por ser um elemento hábil para a descoberta da vontade do legislador sem os riscos de utilização dos elementos extra legem. Sua falha, contudo, está no fato de não fornecer elementos suficientes para uma interpretação compatível com as exigências do momento da aplicação da lei. Este elemento consiste basicamente em procurar descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito sem o auxílio de nenhum elemento exterior, utilizando elementos da lógica geral. Pretende do simples estudo das normas em si, ou em conjunto, através do raciocínio dedutivo, obter a interpretação correta. Com certeza o pensamento deve prevalecer sobre a letra. Há se ressaltar que, segundo Miguel Reale, citado por VIEITO (2000) “não é fácil perceber qualquer distinção entre a interpretação lógica e a sistemática, pois são antes aspectos de um mesmo trabalho de ordem lógica, visto como regras de Direito devem ser entendidas organicamente, estando umas dependentes das outras”. Na verdade o elemento lógico está presente no sistemático, e podemos dizer ainda que na verdade está presente em todos os métodos, pois sem lógica não se compreendenada. 5.3 - Elemento sistemático Passou a ser utilizado em uma fase mais avançada da Escola da Exegese, eis que apesar de não estar preso ao sentido literal, como ocorre no elemento gramatical, passou a ser utilizado para impedir contradições. Este elemento é utilizado após a primeira linha de abordagem da lei ser iniciada, ou seja, após a análise do elemento gramatical e da estrutura interna do texto, abrem-se os horizontes comparando-a a outros dispositivos legais e inserindo-a no contexto normativo. O elemento lógico e o sistemático passam a ser usados conjuntamente, permitindo a visão sistêmica, ou seja, do conjunto. Consiste em comparar o dispositivo em análise com outros da mesma lei ou em leis diversas referentes ao mesmo objeto e também o submetendo à Constituição. Por umas normas se colhe o espírito de outras. O ordenamento jurídico deve ser encarado como um todo harmônico que guarda sintonia entre as partes, pois do contrário seria um amontoado de leis e não um sistema de preceitos coordenados como o é. Portanto, o Direito não é 21 um conglomerado caótico de preceitos, mas constitui uma vasta unidade, um organismo regular, um sistema que representa um conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica. Em toda ciência o resultado do exame de um só fenômeno adquire presunção de certeza quando confirmado ou contrastado pelo estudo de outros; pelo menos casos próximos ou conexos. O processo sistemático encontra fundamento na “solidariedade” entre fenômenos coexistentes. Não se encontra um princípio isolado em ciência alguma, pois se acha cada um em conexão íntima com outros. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem-se consequências, eis que uns e outros se restringem reciprocamente. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo, por isso o exame em conjunto representa bastante luz para o caso em apreço. Verifica-se o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular e dessa forma se obtém esclarecimentos preciosos. O preceito submetido a esse exame, longe de perder a sua própria individualidade, adquire realce maior. Essa idéia não é nova. Não se admitia em Roma que o juiz decidisse mirando apenas uma parte da lei, pois a ele incumbia examinar a norma em conjunto. Celso, no Digesto: “É contra o Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma”. Hoje se aplica este processo (ou elemento) com uma amplitude ainda maior, eis que se analisa a conexidade entre as partes do dispositivo, entre este e outras prescrições da mesma lei, ou de outras leis, bem como a relação entre uma ou várias normas, além, é claro, da análise completa diante da Constituição, que irá condicionar, em última análise, a aplicação da norma. 5.4 - Elemento teleológico: É o processo que dirige a interpretação conforme o fim desejado pelo dispositivo ou pelo Direito em geral. Grande avanço se deu na Hermenêutica com as teorias de Rudolf Von Ihering, que ressaltaram a idéia do fim como característica essencial do Direito. Considera-se hoje o Direito como uma ciência primariamente finalística, por isso a sua interpretação deve ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei e o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. Deve descobrir o escopo da lei, que é a síntese entre o occasio legis e a ratio legis, pois não se pode concebê-la em uma interpretação fria e fora de sintonia com o bem comum. 22 É possível concluir que o fim da norma jurídica não é constante, eterno, absoluto e único, estando sempre em transformação. Cabe ao intérprete atualizar o fim intrínseco da norma jurídica interpretada, com base na idéia central de que ela tem uma finalidade social. Os meios devem estar adequados aos fins, e estes às necessidades sociais, pois não é possível e nem lógico uma lei iníqua. O próprio Direito positivo já deixa clara essa busca na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42) em seu art. 5º. Vejamos: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Importante destacar que a análise teleológica da Constituição é essencial, pois esta deve ser vista como um estatuto jurídico-político, sensível às questões sociais, políticas e econômicas. O Estado democrático de Direito tem seu fundamento na liberdade, sendo a finalidade primeira protegê-la, respeitados os demais valores que precisam ser compreendidos como fazendo parte do todo. Para o filósofo grego Heráclito de Éfeso “as coisas estão em constante transformação”, para ele não é possível nem mesmo “banhar-se duas vezes em um mesmo rio, pois as águas já passaram e haverá outras”. Desta feita ele já não será mais o mesmo. 5.5 - Occasio Legis Significa o conjunto complexo de circunstâncias específicas atinentes ao objeto da norma e que formaram o impulso exterior à sua emanação. Podem ser descritos como as causas mediatas e imediatas, as razões políticas e jurídicas, as necessidades que levaram a promulgá-los; o momento histórico, ambiente social, condições sociais e psicológicas sob as quais a lei surgiu e que contribuíram para a sua promulgação. Resumindo, consiste nas causas que deram origem ao texto legislativo e nos fatos de época que impulsionaram sua criação. Nenhum acontecimento surge isolado, e explicar a sua razão de ser, origem e ligação com outros resulta em compreender melhor ele próprio. No que se refere à Constituição, esta é um instrumento cuja flexibilidade e generalidade permite-a adaptar-se a todos os tempos e circunstâncias, devendo ser interpretada levando-se em conta não apenas as condições e necessidades existentes no momento de sua promulgação, mas também condições econômicas, sociais, políticas e culturais no momento em que é interpretada, a fim de que seja possível o cumprimento dos grandes fins que inspiram e orientam a lei suprema de um Estado. 23 O constitucionalista Luis Roberto Barroso ao ser questionado sobre a necessidade de contínuas emendas à CF/88 afirma: [...] É verdade que a vida política não se move por modelos ideais, e sim por modelos possíveis, mas o modelo ideal é que um partido liberal possa governar com essa Constituição, um partido trabalhista possa, e que sirva também ao governo de um partido conservador. Cabe à Constituição estabelecer os direitos e valores fundamentais de uma sociedade e deixar o restante para a política. Parte disso também é culpa do que eu gosto de chamar de narcisismo constitucional. Cada um que chega ao poder quer uma Constituição à sua imagem e semelhança. A Constituição resume as tensões sociais, políticas e econômicas, por isto a compreensão de seu espírito é fundamental. 5.6 - Elemento histórico: É aquele que compreende as raízes históricas da norma objeto da interpretação para ter consciência do presente e projetar-se para o futuro. Dessa forma é fundamental que se conheça o processo de formação da lei para aplicá-la segundo as peculiaridades de sua época e antecipar as consequências futuras. Neste elemento encontram-se trabalhos preparatórios dos atos legislativos, como as mensagens dirigidas pelo executivo ao legislativo, memoriais, pareceres, votos, debates da tribuna, etc. Para os seguidores da teoria subjetiva este estudo é muito relevante na descoberta da vontade do legislador (mens legislatoris). Para os objetivistas o valor dos trabalhos preparatórios é relativo, eis que se filiam à busca do fator teleológico, estudando os fins colimados pela lei. Por tal razão, os materiais legislativos tem seu prestígio em decadência,desde que a mens legislatoris cedeu primazia ao sistema de normas objetivadas. 5.7 - Elemento sociológico: É aquele que busca a aplicação do texto conforme as necessidades da sociedade contemporânea, olhando menos para o passado e mais para o 24 futuro, tornando o intérprete um operador consciente do desenvolvimento jurídico. Um primeiro alerta se faz necessário: este método levado às últimas consequências chega ao Direito Livre, havendo na verdade uma subversão do Direito, transformando-o ao bel prazer do operador. O Direito não pode isolar-se do meio em que vigora e deixar de atender às outras manifestações da vida social. Se as normas positivas não se alteram na proporção em que se altera a sociedade, conscientemente ou inconscientemente, o hermeneuta adapta o texto às condições emergentes e imprevistas. A própria jurisprudência constitui um fator importante do processo de desenvolvimento geral. Por tal fato a Hermenêutica não pode se furtar à influência do meio a fim de evitar o descompasso entre o sentido literal das palavras e a realidade social. O bom intérprete sempre foi o renovador insinuante e cauteloso, mesmo que de forma inconsciente, das disposições escritas; um verdadeiro sociólogo do Direito. É importante citar Geoges Ripert. Para ele “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”. Um segundo alerta se faz necessário: a aplicação do método sociológico deve ser feita com reserva e circunspecção, a fim de se evitar que prevaleçam as tendências intelectuais do intérprete sobre as decorrentes dos textos. 6 - Interpretação A interpretação feita pelos juízes é ato de conhecimento que apenas declara o Direito ou é um ato de vontade que cria norma jurídica? As concepções modernas defendem uma posição voluntarista, a qual concebe que a determinação de uma interpretação correta entre as várias interpretações possíveis é um ato de vontade. Nesta visão temos como expoente máximo Hans Kelsen. A validade de uma norma encontra-se fundamentada em outra norma de superior hierarquia, até nos depararmos com a norma fundamental. Dessa forma cabe ao intérprete encontrar a norma individual aplicável a fatos concretos das normas gerais. A norma é para Kelsen uma moldura na qual várias possibilidades de execução se oferecem, sendo esta indeterminação proposital ou não. A interpretação é, portanto, a averiguação do sentido da norma aplicável, e o resultado dessa atividade é a identificação na moldura do que ela representa, eis que dentro dela há várias possibilidades. O operador optará por uma interpretação, embora todas sejam válidas. Não há apenas uma decisão certa. 25 Resumindo: para Kelsen a interpretação é mais um ato de vontade do que de cognição e, quando o juiz decide por uma das diversas possibilidades interpretativas, esta escolha se dá fora da esfera teórica, no âmbito da política do Direito, pois o legislador deixou uma margem de possibilidades para a aplicação de uma lei em face de um caso concreto. O sentido não é unívoco. Kelsen rompe com o método tradicional de interpretação, que acredita ser possível descobrir o sentido único e correto de uma norma jurídica, pois para ele sempre há um resultado apenas possível e nunca um único correto. A norma jurídica oferece um leque de possíveis significados, havendo muitas maneiras de se interpretar a lei. O Ordenamento deve ser caracterizado de maneira hierarquizada, conforme exposto por Hans Kelsen, como uma pirâmide, que possui em seu vértice superior a Constituição. NORMA HIPOTÉTICA FUNDAMENTAL (TOPO DA PIRÂMIDE) DECISÕES JUDICIAIS (BASE DA PIRÂMIDE) 26 A norma hipotética fundamental é um pressuposto fático-jurídico para a existência do ordenamento jurídico; Na democracia a norma hipotética fundamental se origina de um contrato social e a partir disso se tem um Estado de Direito; Para Kelsen as decisões judiciais são normas; A subordinação entre as normas é o elemento que dá hierarquia entre elas; A norma hierarquicamente inferior extrai da norma hierarquicamente superior seu fundamento de validade; É dentro da teoria de Kelsen que podemos saber se a norma é constitucional ou inconstitucional. Neste caso é quando não há submissão da norma infraconstitucional à Constituição. A Interpretação é uma só, contudo, segundo Kelsen, há duas espécies de interpretação. Ele atribui duas denominações conforme o órgão do qual procede: a) Realizada por um órgão jurídico, que para ele seria a interpretação autêntica, em que se escolhe um dos caminhos possíveis revelados pela operação de conhecimento da norma jurídica; b) Realizada por uma pessoa privada, chamada por ele de interpretação doutrinária ou científica, que é um ato puramente cognoscitivo, cabendo a ela estabelecer apenas possíveis significações da lei. Apresenta-se como produto livre da reflexão Kelsen ressalta que o ato que permitirá a escolha das interpretações possíveis é um ato político, feito pelo juiz que escolhe entre as várias possibilidades e sua escolha é uma norma jurídica individual. 7 - Interpretação quanto à origem A interpretação pode ser classificada de acordo com o intérprete que a realizou. Vejamos: 7.1 - Interpretação Autêntica: 27 Entende-se por Interpretação autêntica aquela que emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela declara. É realizada pelos legisladores através da lei. A Interpretação autêntica fora outrora a de maior prestígio, sendo a única permitida, sob o fundamento de que na democracia o povo elege representantes, que elaboram as leis por delegação, não cabendo a ninguém mais interpretá-las, pois o povo somente delegou poderes ao legislador. Na verdade, a interpretação autêntica arranha o princípio da tripartição de poderes, no qual Montesquieu afirma que ao legislador cabe fazer as leis e ao aplicador (executivo e judiciário), interpretá-las. O Imperador romano Justiniano, por exemplo, repelia qualquer exegese que não partisse dele próprio e generalizou o seguinte preceito: “Interpretar incumbe àquele a quem compete fazer a lei”. Entretanto, em suas próprias compilações autorizou a analogia, abrindo margem para a interpretação. A Interpretação autêntica vincula o juiz e transforma o legislador em um próprio juiz, transformando-o naquele que toma conhecimento de coisas concretas e procura resolvê-las por meio de uma disposição geral. A tendência então passou a ser o de dilatar o campo da interpretação doutrinal e de restringir o da autêntica, hoje, exceção rara nos países civilizados. A exegese se dava de forma obrigatória, por via de autoridade, realmente vinculando os próprios juizes. O Direito tornava-se ossificado e incompatível com a realidade, que exige dele cada vez mais dinamismo. Por mais hábeis que sejam os elaboradores de um Código, logo depois de promulgado, surgem dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos bem redigidos, e por mais lúcida que fosse a visão dos legisladores, estes não conseguiram prever a infinita variedade de conflitos de interesses entre os homens. A interpretação autêntica tornou-se incompatível com uma visão dialética do mundo, que está em constante e em intensa modificação. Hoje a Interpretação autêntica sofre um processo de questionamento. Alguns jurisconsultos respeitados acham-na digna de consideração, de exame respeitoso por parte dos tribunais, porém não os obriga. Tomam-na apenas por valor científico dos próprios argumentos. Muitos outros avançam mais, afirmando que a interpretação autênticaé algo inconstitucional. Nossos tribunais não comungam com essa tese e a entendem compatível com nosso sistema jurídico. É importante verificar que, se o Poder Legislativo declara o sentido e o alcance de um dispositivo em uma lei posterior, o seu ato, embora reprodutivo e explicativo do ato anterior, é uma verdadeira norma jurídica, e somente por isso é que tem força obrigatória. Alguns defendem a possibilidade de retroatividade 28 da lei interpretativa, que remonta ao Direito Romano. Outros entendem que se houver uma lei interpretativa esta somente se aplicará a casos futuros. O entendimento mais correto é que, tratando-se de lei nova e, portanto, obrigatória, devem ser aplicados os critérios presentes no art. 5º, XXXVI da CF/88 e o art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil. Vejamos: XXXVI - a lei não prejudicará o Direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o Direito adquirido e a coisa julgada. É necessário ressaltar que há decisões dos tribunais favoráveis e contra a retroatividade da lei interpretativa. Quando o legislador tenta exprimir por meio de uma lei o conteúdo de outra, restringe a atividade do hermeneuta, que deve ter uma atividade livre e não receber pronta a interpretação de um poder político. O ideal do Direito é a certeza, embora relativa e a interpretação autêntica é contrária a ciência. Transforma o legislador em juiz, amplificando deste modo a atividade e autoridade legislativa, vulnerando o sistema de freios e contrapesos, a pedra de toque de nossas instituições políticas. Em síntese: se a lei tem defeitos de forma, é obscura, confusa ou imprecisa, faça-se outra com caráter claro de disposição nova, revogando a anterior, mas sem efeitos retroativos, conforme ressaltado. Para ser feita a interpretação, é necessário um profundo conhecimento de todo o ordenamento jurídico, compreensão sólida e conhecimento da história das instituições, além é claro, da experiência, da sabedoria, da lógica, discernimento e bom senso. 7.2 - Interpretação Doutrinária: É aquela realizada pelos juristas e apresenta-se como produto livre da reflexão, possuindo grande respaldo nos estados integrantes da família romano- germânica. O intérprete adapta os dispositivos legislativos às exigências modernas, o que lhe concede ampla liberdade na aplicação do Direito. A interpretação doutrinária adquire grande prestígio quando uniforme, duradoura e confirmada ou defendida por jurisconsultos de valor, brilhantes advogados, catedráticos e escritores. 29 7.3 - Interpretação Jurisprudencial: É Jurisprudencial ou judicial a interpretação que se fundamenta no conjunto das soluções dadas pelos tribunais, às questões do Direito relativas a determinada matéria jurídica. Resumindo, é aquela realizada pelos juízes no exercício de sua função jurisdicional. A Interpretação jurisprudencial é uma grande renovadora do Direito, na medida em que extirpa e erradica idéias até então dominantes e retrogradas. Apura, depura, corrige e consolida as idéias que tem fundo de ciência e utilidade em geral, por isso, a Interpretação jurisprudencial é sempre proveitosa. Ela preenche lacunas, utiliza da analogia e os princípios gerais do Direito, permitindo uma adaptação, que consiste em por a lei em harmonia com as idéias contemporâneas e as necessidades modernas, realizando como que uma atividade criadora, destinada a preencher as lacunas da lei. Entretanto, existe uma minoria que lhe nega o valor científico. A Interpretação jurisprudencial não tem efeito compulsório, entretanto todo magistrado acha meritório não ter suas sentenças reformadas. Por isso, a Interpretação jurisprudencial isolada não tem valor decisivo e absoluto, pois essa é formada tanto por decisões brilhantes como por sentenças de colégios judiciais onde reinam a incompetência e a preguiça. Portanto, uma Interpretação jurisprudencial de uma decisão tomada de maneira equivocada, tornar-se-á uma interpretação equivocada. Uma decisão isolada não pode ser chamada de jurisprudência, esta decisão é na verdade um precedente, o conjunto uniforme de precedentes forma a jurisprudência, e dela deriva a Interpretação jurisprudencial, que segundo alguns autores, é a mais importante, principalmente nos estados que se filiam à corrente da revisão judicial dos atos de autoridade (Judicial Review) ante aos juízes ordinários, segundo o exemplo dos EUA ou mesmo perante um tribunal especializado em matéria constitucional, como ocorre na Áustria e Alemanha. 7.4 - Interpretação Administrativa É a Interpretação estabelecida pelos órgãos da Administração. De certa forma, despachos, decisões, circulares, portarias, instruções ou regulamentos das autoridades administrativas, indicam a interpretação que elas dão à lei ou ao regulamento. Quando constantes temos jurisprudência administrativa. Na verdade, essa interpretação não é obrigatória, pois os tribunais dão sempre a última palavra, eis que o contencioso administrativo não exclui a competência do 30 Poder Judiciário de apreciar a matéria objeto da discussão nos processos tramitados nos órgãos públicos, conforme dicção do art. 5º , XXXV da CF/88. 8 - Interpretação quanto ao resultado: Os diversos tipos de Interpretação podem levar o intérprete a resultados nem sempre semelhantes à interpretação gramatical, que é a interpretação obtida com base na letra da lei, naquilo que está efetivamente escrito. As palavras podem revelar com exatidão a mens legis, e sendo adequadas, cabe ao intérprete apenas realizar uma interpretação declarativa, não ampliando e nem restringindo o alcance do dispositivo em relação aos seus termos. Havendo imprecisão nos termos, será necessário conformá-los ao espírito da lei. Se os termos abrangem menos situações que as determinadas pela mens legis, cabe ao intérprete estender o alcance da lei em relação aos seus termos; se, ao contrário, os termos abrangem mais situações do que as desejadas pela lei, cabe-lhe restringir o alcance da lei em relação aos seus termos. Realmente existem leis que falham na adequação das palavras em relação ao seu escopo, cabendo ao intérprete ajustá-las. Isso não quer dizer que a interpretação é realizada apenas quando houver defeito, obscuridade ou contradição nas leis. É importante também se registrar a polissemia linguística que exige do intérprete a adequação dos múltiplos significados à mens legis. No que se refere à norma constitucional, interpreta-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais, como aquelas que favoreçam classes ou indivíduos, excluem outros, estabelecem incompatibilidades, asseguram prerrogativas ou cerceiam a liberdade ou garantias da propriedade. Na dúvida, segue-se a regra geral. A idéia de que se deve realizar interpretação literal da Constituição quando se refere a limitações aos direitos individuais e garantias da liberdade não deve ser vista com rigor. Hoje se admite a interpretação lógica e teleológica mesmo de tais disposições, com exclusão da analogia. Ora o significado verdadeiro é mais estrito do que se deveria concluir do exame exclusivo das palavras ou frases interpretáveis; ora sucede ao inverso, eis que vai mais longe do que parece indicar a moldura visível da regra. A relação lógica entre a expressão e o pensamento faz discernir se a lei contém algo de mais ou de menos do que a letra parece exprimir. As circunstâncias extrínsecas revelam uma idéia fundamental mais ampla ou mais estreita, eis que o texto oferece apenas uma diretiva geral. Explícita ou 31 implicitamentese reporta a fatos, definições e medidas que o juiz deve adaptar à espécie trazida a exame. 8.1 - Interpretação declarativa: É a Interpretação que coincide com a interpretação gramatical, ocorre quando o legislador escreveu com palavras exatamente aquilo que quis efetivamente dizer, dosando-as com adequação aos significados que desejou imprimir na lei. Apóia-se no brocardo In claris cessat interpretatio. Frase inserida no código de Napoleão em 1804. A interpretação é inerente ao processo do Direito. Ela é importante sempre, eis que o que é claro para um, pode não ser claro para outro. 8.2 - Interpretação extensiva: A interpretação extensiva consiste em realçar as regras e princípios não expressos, porém contidos implicitamente nas palavras da lei. Para se alcançar este objetivo dilata-se o sentido ordinário dos termos adotados pelo legislador. O texto menciona o que é mais comum e constante, dando âmago à idéia que o intérprete desdobra em aplicações múltiplas. O legislador pode ter usado com pouca propriedade os termos, dizendo menos do que queria afirmar. Ocorrendo essa hipótese, é necessário ao intérprete estendê-la, de modo a restabelecer sua correspondência com o sentido da Lei. O interprete alargará o campo de incidência da norma, em relação aos seus termos. Visa extrair do texto mais do que as palavras parecem indicar. Não se trata de acrescentar coisa alguma, e sim atribuir à letra o significado que lhe compete. Como exemplo, podemos citar a chamada doutrina brasileira do habeas corpus, conforme cita Luis Roberto Barroso. 8.3 - Interpretação restritiva: Ocorre quando o legislador é infeliz ao redigir a lei, dizendo mais do que queria dizer. Cabe ao intérprete eliminar a amplitude das palavras. Cabe a ele declarar o sentido verdadeiro e o alcance exato. 32 9 - Disposições contraditórias As incompatibilidades e antinomias não se presumem nas normas jurídicas. Se alguém alega a existência de disposições inconciliáveis, deve demonstrá-las. Não é raro que, ante um primeiro exame, duas expressões entrem em contradição, porém, se examinadas atentamente, descobre-se um nexo que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico e descobrir a correlação entre regras aparentemente antinômicas. Sempre que descobre uma contradição deve o intérprete desconfiar de si e presumir que não compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos, sobretudo quando se encontram em uma mesma lei. Incumbe-lhe primeiro fazer a tentativa de harmonizar os textos. Se existe antinomia entre a regra geral e a particular, utiliza-se a particular. Em primeiro lugar deve-se verificar se os trechos não se referem a hipóteses diferentes ou espécies diversas, o que faz cessar o conflito. Deve também o intérprete encarar as duas expressões de Direito como partes de um só todo, destinadas a complementar-se mutuamente. Se uma disposição é secundária ou até mesmo acessória e é incompatível com a principal, a principal prevalece. Na interpretação sempre prevalecerá o trecho mais lógico, claro e verossímil, mais harmônico com a lei em conjunto e com o sistema e ainda de maior utilidade prática. Além de tudo, o trecho deve estar de acordo com as condições normais da coexistência humana. Por óbvio, nos casos de antinomia entre a Constituição Federal e a Estadual, prevalece a primeira, assim como prevalece a Constituição Estadual em face da Lei Orgânica do Município. As leis prevalecem sobre os decretos, instruções, portarias e avisos. As leis trabalham dentro de sua competência determinada constitucionalmente, ou seja, não há hierarquia entre leis ordinárias e leis complementares, mas sim um campo de atuação definido pela própria Constituição. Há matérias determinadas que são da atribuição de leis complementares. Se houver uma lei ordinária posterior incompatível com a lei complementar exigida, a lei complementar irá prevalecer. 33 Se houver uma matéria para a qual a Constituição não exija lei complementar, mas mesmo assim ela venha a ser regulada por lei complementar, e posteriormente houver uma lei ordinária específica sobre a matéria, a lei ordinária neste caso irá prevalecer, eis que mais nova, portanto carrega a presunção de ser mais perfeita. Uma observação importante é que não há hierarquia entre leis federais, estaduais e municipais, eis que cada uma deve ser elaborada de acordo com as competências constitucionalmente determinadas para cada ente federativo. Se houver choque entre elas, é porque alguma invadiu a esfera de competências da outra. Prevalecerá, então, aquela que fora criada nos limites da competência da entidade federativa. 10 - Direito e Moral Direito e moral possuem órbitas diferentes, eis que muita coisa fulminada pela ética é tolerada pelas leis. Por outro lado, tudo o que os textos exigem ou protegem deve estar de acordo com o senso moral médio da coletividade, ou seja, não pode haver Direito contra a moral, embora nem todos os ditames desta encontrem vedação nas leis. De tal fato é possível concluir que leis positivas, usos, costumes e quaisquer atos jurídicos devem ser interpretados de acordo com a ética, e exegese contrária jamais prevalecerá, pois cabe-se dilatar ou restringir o sentido do texto a fim de que este respeite os princípios da moral. Se é certo que o Direito não impõe a moral, também é certo dizer que se opõe ao imoral. Não estabelece a virtude como um preceito, mas reprime atos contrários ao senso ético de um povo em determinada época. Por esse processo negativo indireto condena a má fé e os dispositivos para burlar a lei e os homens, - prestigia os bons costumes e concorre para a extinção de hábitos reprováveis. O Direito não busca uma idéia superior e virtuosa de moral, e sim o senso ético médio do povo em geral, da época em que foi feito o ato ajuizado. Seria a “moral da vida”. A ética exerce papel preponderante na evolução jurídica e, por meio da exegese, consegue alterar o sentido primitivo dos textos de modo que os deixe de acordo com as idéias modernas de moralidade e solidariedade humana. Vejamos: O Direito de propriedade e a liberdade de contratar, por exemplo, são condicionados pela necessidade superior de fazer prevalecer o bem de todos 34 sobre o do indivíduo. Incumbe à Hermenêutica seguir o curso da consciência moral que se modifica dia a dia em uma mesma sociedade. Portanto, os hábitos e a moral constituem uma fonte jurídica mutável, progressiva e inesgotável de boa doutrina jurídica e, dessa forma, amparam, guiam e ajudam o hermeneuta, fazendo brotar, da letra morta, idéias novas, adiantadas e dignas de aplicação. Os romanos já seguiam esta regra de interpretação que se fundava no honesto e no útil. 11 - Fiat justitia, pereat mundus O Direito ampara de modo direto e indireto a atividade produtiva, facilita o progresso e não embaraça o esforço honesto. O Direito nasce na sociedade para a sociedade. Faça-se justiça, ainda que o mundo pereça, - que outrora teve grande popularidade, deve ser substituído pelo pensamento de fazer justiça e deixar que o mundo prossiga. O Direito é um meio para se atingir os fins colimados pelo homem em atividade, e sua função é eminentemente social e construtora. O excesso de juridicidade é contraproducente e afasta-se do objetivo superior das leis. Faça- se a justiça, porém do modo mais humano possível, de sorte que o mundo progrida, jamais pereça. Vai assim perdendo apologistas na prática a frase de Ulpiano: Durum jus, sed ita Lex scripta est, ou seja, “duro Direito, porém assim foi redigida a Lei. Poder-se-ia
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