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A filosofia de Henri Bergson na obra de Alfred Jarry

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A FORMA E OS MOVIMENTOS DE PAI UBU COMO PRODUTORES DE COMICIDADE
RIO DE JANEIRO
Outubro de 2018
A forma e os movimentos de Pai Ubu como produtores de comicidade
Introdução
Em 1896 o movimento artístico vigente na França era o simbolismo, e foi dentro desse contexto que Ubu Rei, peça de Alfred Jarry (1873-1907), foi escrita. Jarry foi um excêntrico escritor vanguardista, que, quando tinha aproximadamente 15 anos, desenvolveu, junto com seus colegas de escola, a peça Les polonais. Essa peça tinha como inspiração para o personagem principal o professor de física dos estudantes, Sr. Hébert, e foi pensada para ser apresentada em um teatro de marionetes. Les polonais deu origem mais tarde a Ubu Rei e o Sr. Hébert, a Pai Ubu. Muito da estética de Ubu Rei vem da tentativa de Jarry de manter as características dos personagens na caracterização dos atores quando, na verdade, a peça foi projetada para ser encenada por marionetes. 
A estreia de Ubu Rei ficou marcada pela enorme rejeição da plateia, que se deparou com uma uma produção que ia contra praticamente tudo que era conhecido e aceito como teatro. Jarry apresenta aos espectadores um cenário precário, nenhum esforço em representar a realidade, inclusive nos figurinos ou no roteiro. Com isso, o autor afasta-se do simbolismo em alguns aspectos, como por exemplo, ao defender um cenário falso e improvisado, e antecipa movimentos artísticos que se consolidariam mais a frente, no século XX. 
A peça é uma paródia de Macbeth e, por isso, segue todos os moldes do teatro clássico, necessariamente realista. Mas na verdade, como a obra vanguardista que é, utilizou-se desses moldes para desconstruí-los. Assim, Jarry apresentou, através, principalmente, de uma estética grosseira e um roteiro non-sense, um teatro que se revela como artifício, rompendo com o realismo e abrindo as portas para o modernismo. Utilizando-se disso faz críticas à sociedade burguesa, que é nada mais que seu próprio público. Ubu Rei inaugurou “uma forma inédita de humor, baseada na incongruência das ações e na incoerência das falas do protagonista” FERNANDES, S. Ubu Rei . Prefácio. in JARRY, A. Ubu Rei, 1º. ed. São Paulo: Peixoto Neto, 2007, pág.11..
Antes da primeira apresentação e da publicação da primeira versão de Ubu Rei, Jarry foi aluno de Bergson, entre os anos de 1891 e 1892. Henri Bergson, filósofo francês, tinha o riso e sua relação com a sociedade como um de seus temas de estudo, sendo uma de suas obras mais marcantes intitulada O Riso, publicada pela primeira vez em 1900. O filósofo acreditava que o fenômeno do riso dependia de três princípios: a) a humanidade (características do que é humano), b) a insensibilidade e c) a sociedade (conjunto de pessoas). É certo que o contato com Bergson e suas ideias influenciou bastante as produções de Jarry. Vemos em Ubu Rei, além de outros elementos que demonstram isso, um personagem principal que canaliza, e pode-se dizer até que leva ao extremo, os fatores necessários para que o riso seja produzido segundo o filósofo. 
O objetivo desse trabalho é, portanto, apontar como a imagem e as ações do personagem Pai Ubu, aliadas aos três princípios do riso defendidos por Bergson, são elementos importantes para a produção da comicidade dentro da obra de Alfred Jarry. Para isso, foram utilizados como base o primeiro capítulo do livro “O riso: Ensaio sobre a significação do cômico”, de Bergson, no qual o autor reúne três artigos onde discorre sobre os métodos de produção do cômico, e também a peça Ubu-Rei, de Jarry.
As formas e os gestos de Pai Ubu
Bergson, já nas primeiras páginas de seu livro, indica ao leitor onde deve-se buscar a comicidade. O cômico, para existir, deve respeitar os seguintes princípios: ser humano, não causar comoção e ser compartilhado. Partindo do primeiro desses princípios, podemos dizer que, em Ubu Rei, só é possível que o personagem Pai Ubu cause o riso dos espectadores porque é essencialmente humano, mesmo que sua figura e atitudes sejam pouco compatíveis com a realidade.
Alguns exemplos dessa mescla entre real e fictício na figura de Pai Ubu, que ajuda na produção do riso são: o figurino de Pai Ubu: “Terno com colete cinza cor de aço, sempre uma bengala enfiada no bolso direito, chapéu melão” (JARRY, 2009, pág.37); a aparência do personagem, ilustrado pelo próprio autor como um homem grande e redondo, com uma espiral desenhada no meio de sua barriga; e o neologismo “merdra”, repetido inúmeras vezes durante a peça, que tira o peso do uso de palavras de baixo calão, dando em troca comicidade à falta de educação do personagem. Esses exemplos ilustram como Pai Ubu, por meio de sua forma (suas roupas e seu corpo) e de seus gestos/ movimentos (a repetição da palavra “merdra”) produz comicidade. 
Ainda pensando em como essas características são capazes de criar comicidade, não seria possível a construção do cômico se Pai Ubu apenas possuísse um formato de corpo exageradamente redondo, usasse palavras que não existem, formulasse frases sem sentido, ou possuísse um caráter surrealmente cruel ou ignorante. O importante é que, apesar de todos esses exageros, ainda é possível enxergar nesse personagem a forma de um homem gordo, as palavras de um homem burro, a personalidade de um homem de caráter ruim. Enfim, características humanas.
Um detalhe importante é que a comicidade da forma de Pai Ubu existe porque ela revela uma rigidez da alma, que no caso do personagem é sobretudo a gula. A medida que percebemos que suas ações acontecem em função de sua gula, percebemos o motivo de sua forma. Da mesma maneira, a comicidade do gesto de Pai Ubu, no exemplo dado, consiste na repetição mecânica da palavra “merdra”, que é proferida sempre que algo causa a insatisfação do personagem e sempre acompanhada de certa violência e/ou falta de sentido, como podemos ver nas seguintes falas do personagem: “Rapaz da minha merdra, se eu acreditasse em você, faria o exército inteiro dar meia-volta [...]” (JARRY, 2009, pág.124) e “Cotice, Pile, respondam, sacos de merdra! [...] Quem está falando? Não deve ter sido o urso. Merdra! Onde estão meus fósforos? Devo ter perdido na batalha.” (JARRY, 2009, pág.146). Essa repetição da palavra se torna risível porque “[...] a vida bem ativa não deveria repetir-se. Onde haja repetição ou semelhança completa, pressentimos o mecânico funcionando por trás do vivo.” (BERGSON, 1983, pág.20). Ou seja, tudo que é mecânico denuncia algo de não natural em nossas atitudes e ao repetirmos mecanicamente alguns gestos, não estamos sendo nós mesmos. 
Considerando agora o segundo princípio apresentado por Bergson, apesar de ser possível enxergar o que há de humano no personagem, é preciso que exista um afastamento entre ele e quem o observa. Para o autor, é preciso que nos afastemos temporariamente de nossos sentimentos para aproveitarmos a totalidade do efeito do cômico (BERGSON, 1983). Essa insensibilidade por parte do espectador, também necessária para a produção da comicidade, acontece com o esvaziamento da personalidade de Pai Ubu. Esse esvaziamento, por sua vez, acontece por meio dos vícios presentes na forma e movimentos do personagem. 
O protagonista da peça, assim como sua esposa, é apenas um sujeito grosseiro e violento, incapaz de demonstrar qualquer profundidade, ou seja, ele não possui outras características que sirvam para balancear essas, o que o transforma em nada além de um arquétipo de pessoa má. Com isso, é muito difícil que uma pessoa se conecte com o personagem a ponto de se comover com suas dores ou sentir seus sofrimentos. “Isso porque o vício cômico, por mais que o relacionemos às pessoas, ainda assim conserva a sua existência independente e simples” (BERGSON, 1983, pág.12). O que acontece aqui é que a violência, a gula e a grosseria de Pai Ubu são seus vícios, que deformam e enrijecem suas atitudes, ou seja, que simplificam seus movimentos. 
Vemos um exemplo desse esvaziamento da personalidade dos
personagens cômicos quando a Mãe Ubu pergunta a seu marido: “E quem o impede de massacrar a família inteira e tomar o lugar de todos?” (JARRY, 2009, pág. 48), deixando claro que ela não possui qualquer senso ético. Outro caso é quando Pai Ubu, se dirigindo à Mãe Ubu, diz: “Mãe Ubu, você está bem feia hoje. Será porque temos visitas?” (JARRY, 2009, pág.51), onde notamos que ele não é capaz de demonstrar afetividade nem mesmo à sua esposa. Essas falas afastam os espectadores/ leitores dos personagens principalmente por irem contra normas de convivência básicas dentro da sociedade. A partir disso, Pai Ubu e Mãe Ubu mostram ser apenas uma representação do que há de mal no ser humano, e não a representação de seres humanos completos.
O ambiente natural do riso
O riso não poderia ser criado em outro ambiente que não fosse dentro da sociedade. Um homem sozinho não é capaz de criar o riso, pois não haveria ninguém com ele para compartilhá-lo. Para Bergson, “o cômico surgirá quando homens reunidos em grupo dirijam sua atenção a um deles, calando a sensibilidade e exercendo tão-só a inteligência” (BERGSON, 1983, pág.9). Essa é a terceira condição de existência do cômico, que vai de encontro à condição de existência do próprio teatro, o qual também precisa estar inserido na sociedade e ser compartilhado para funcionar. 
Tudo isso porque o riso, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, carrega uma função social. Os que riem juntos o fazem por concordarem que o que é observado quebra alguma norma da sociedade e, justamente por fugir à normalidade, é considerado cômico. O riso aqui é então, acima de tudo, causado pelo fato do grupo de espectadores concordarem que, dentro da sociedade, aquilo que está sendo observado é um ato falho, um erro no padrão. Por isso mesmo que o cômico não tem o mesmo efeito sobre diferentes grupos, ele precisa que o grupo concorde com uma ideia de normalidade. Vemos isso quando os artistas da vanguarda francesa foram capazes de encontrar a comicidade em Ubu Rei, ao passo que o público rejeitou a comédia.
É importante notar que o riso só é possível, também, porque os personagens desconhecem seus próprios vícios. No caso de Pai Ubu, ele não se entende como desumano ou mal-educado, e essa ignorância sobre si mesmo faz com que seja cômico observá-lo. Como diz Bergson, “quando o efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico” (BERGSON, 1983, pág.11). O riso causado pela rigidez estética e comportamental de Pai Ubu, invisível a ele próprio, possui a função social de reprimir o que o personagem representa. Seu caráter é inflexível, está engessado, e isso torna o personagem excêntrico, causando sua comicidade. Por isso ele será julgado através do riso, mas apenas por quem enxergar desvios em sua personalidade.
Considerações Finais
Ubu Rei foi uma peça inovadora, que rompeu definitivamente com o realismo, antecipando movimentos como o modernismo e o surrealismo. Além disso, faz inúmeras críticas à sociedade burguesa. Essas críticas são produzidas justamente fazendo com que os personagens capazes de produzir comicidade sejam os que representam membros da burguesia. Com isso, Jarry faz com que o espectador olhe para esses personagens e identifique neles as anomalias de suas atitudes e personalidades, que mesmo que apareçam de forma exagerada na atuação, possuem suas correspondências com a realidade; até porque, caso contrário, não seriam cômicas. 
A peça de Jarry foi extremamente chocante na época por causa, principalmente, de sua estética. O cenário e o figurino “toscos” e despreocupados em ser verossímeis foram considerados ofensivos por um público acostumado com o teatro clássico. Acompanhando essas rupturas com o realismo e até com o simbolismo, o personagem principal da peça aparece como mais um elemento transgressor, agressivo e carregado de críticas: 
Ubu é a caricatura selvagem de um burguês estúpido e egoísta visto através dos olhos cruéis do colegial, mas seu tipo rabelaisiano, sua ganância e covardia falstafiana é mais do que uma simples sátira social. É uma imagem terrível da natureza do homem, sua crueldade e desumanidade. [...] Ele é baixo, vulgar e incrivelmente brutal, um monstro que apareceu burlescamente exagerado em 1896, [...] (ESSLIN, 1973, p. 5)
A construção desse personagem, que ganhou tanta força e significado, assim como a de outros, foi possível em parte graças à influência de Henri Bergson e seus estudos sobre o cômico na literatura de Jarry, que foi seu aluno. Por isso encontramos em Ubu Rei, até de maneira exagerada, os elementos que Bergson apresenta como essenciais à produção do cômico. Além disso, encontramos na obra de Jarry as teorias de Bergson sobre a comicidade das formas e dos movimentos (e outras) funcionando como instrumentos que ajudaram na construção de uma comédia irreverente e inovadora. 
Bibliografia 
AMARANTE, Dirce Waltrick do. "Da utilidade do teatro de Alfred Jarry". In: Teatrojornal. Disponível em: <http://teatrojornal.com.br/2015/05/da-utilidade-do-teatro-de-alfred-jarry/> Acessado em: 20 de Outubro de 2018.
BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação do cômico. Trad.: Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1983.
ESSLIN, Martin. Alfred Jarry - O centenário: Ubu-Rei. Cadernos de Teatro, Rio de Janeiro, v. 58, p.5-6, 1973. 
JARRY, Alfred. Ubu Rei. Trad.: Sergio Flaksman. São Paulo : Peixoto Neto, 2007.

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