Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
2017 - 02 - 10 Revista de Arbitragem e Mediação 2016 RARB VOL. 50 (JULHO - SETEMBRO 2016) DOUTRINA NACIONAL Doutrina Nacional 1. Arbitragem e litisconsórcio The joinder in arbitration (Autor) ADA PELLEGRINI GRINOVER Professora Titular de Direito Processual na Faculdade de Direito da USP. Sumário: 1 Arbitragem e garantias constitucionais no sistema jurídico brasileiro 1.1 A garantia do devido processo legal na Constituição Federal brasileira 1.2 Processo arbitral e limites à convenção das partes: garantias constitucionais e regras de ordem pública 2 As partes no processo arbitral 2.1 Limites subjetivos da convenção de arbitragem (e da sentença arbitral) 2.2 Sobre o litisconsórcio 2.3 Litisconsórcio e arbitragem 3 Conclusões Área do Direito: Processual Resumo: A arbitragem é submetida às regras do devido processo legal e aos limites da convenção de arbitragem. Ninguém pode ser compelido a integrá-la. O litisconsórcio é o fenômeno de pluralidade de pessoas nos polos ativo ou passivo da relação jurídica processual. No litisconsórcio facultativo, o juízo arbitral prosseguirá, mas a sentença não poderá prejudicar o terceiro que não participou do processo. No litisconsórcio necessário, a arbitragem deverá encerrar-se sem julgamento do mérito, sob pena de nulidade e ineficácia da sentença. Abstract: Arbitration is subject to the rules of the Due Process of Law and to the limits imposed by the arbitration convention. Nobody can be compelled to join it. Joinder of parties is the phenomenon in which several parties join as plaintiffs or defendants in legal proceedings. In a permissive joinder, the arbitral tribunal will proceed, but the judgment will not be able to harm the third one who did not participate in the proceedings. In a compulsory joinder of parties, the arbitration must be concluded without a trial on the merits, under penalty of nullity and invalidity of the judgment. Palavra Chave: Arbitragem - Convenção arbitral - Limites - Devido processo legal - Litisconsórcio facultativo - Litisconsórcio necessário. Keywords: Arbitration - Arbitration Convention - Limits - Due process of law - Permissive joinder - Compulsory joinder. 1. Arbitragem e garantias constitucionais no sistema jurídico brasileiro 1.1. A garantia do devido processo legal na Constituição Federal brasileira O processo civil moderno – quer seja instrumento de atuação da jurisdição estatal, quer seja meio de atuação da arbitragem – é banhado pela cláusula do devido processo legal, assegurada expressamente no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição da República (art. 5.º, LIV). Tal disposição, conforme já tive oportunidade de afirmar, deve ser vista e entendida não apenas sob o enfoque individualista da tutela de direitos subjetivos das partes, mas, sobretudo, como conjunto de garantias objetivas do próprio processo, como fator que legitima o exercício da jurisdição, 1 quer estatal, quer arbitral. Assim é que “A expressão ‘devido processo legal’, oriunda da Magna Carta de 1215, indica o conjunto de garantias processuais a serem asseguradas à parte, para a tutela de situações que acabam legitimando o próprio processo”. Do ponto de vista do autor, que pede, e do réu, que se defende, o ‘devido processo legal’ tutela a posição dos litigantes perante os órgãos jurisdicionais. Mas do ponto de vista do Estado (ou do árbitro), obrigado à prestação jurisdicional, esse mesmo conjunto de garantias vai legitimar toda a atividade jurisdicional. (1). Nesse contexto, para efeito da análise do litisconsórcio no processo arbitral, têm especial relevância as garantias do contraditório e da ampla defesa. Como já afirmei em sede doutrinária, é inquestionável que é do contraditório que brota a própria defesa. Desdobrando-se o contraditório em dois momentos – a informação e a possibilidade de reação – não há como negar que o conhecimento, ínsito no contraditório, é pressuposto para o exercício da defesa. 2 Ainda anotei ser “clássico, entre nós, o conceito de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, no sentido de constituir o contraditório expressão da ciência bilateral dos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariá-los”, lembrando que, na Itália, La China também viu no contraditório, de um lado, “a necessária informação às partes e, de outro, a possível reação aos atos desfavoráveis. Informação necessária, reação possível” 3 (grifei). Consoante também observaram Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens, sem que se lhe propicie a produção de ampla defesa (nemo inauditus damnari potest), e, por via de consequência, esta só poderá efetivar-se em sua plenitude com o estabelecimento da participação ativa e contraditória dos sujeitos parciais em todos os atos e termos do processo 4 (grifei). E, como desdobramento das garantias acima examinadas, decorre a regra conhecida do direito processual segundo a qual a sentença produzida entre as partes, justa ou injusta, não pode prejudicar terceiros. À luz do exposto, não se afigura legítimo – diante das cláusulas da ampla defesa, contraditório e do devido processo legal ( CF, art. 5.º, LIV e LV) – submeter as partes aos efeitos de decisões proferidas em processos dos quais elas não participaram. 1.2. Processo arbitral e limites à convenção das partes: garantias constitucionais e regras de ordem pública Não há dúvida de que a arbitragem é uma das mais importantes das manifestações da autonomia da vontade no âmbito processual. Seus atributos de celeridade, combate ao ritualismo e preservação relativa do sigilo entre as partes, entre outros, revelam que o instituto se conforma à necessidade de uma resposta jurisdicional rápida. Contudo, é também universalmente reconhecido que a autonomia da vontade – própria da arbitragem – encontra limites nos direitos fundamentais e em normas de ordem pública. Como bem observou Carlos Alberto Carmona: Ao incentivar a utilização da justiça privada, ampliando o Estado o próprio conceito de jurisdição, o legislador não pretendeu abrir mão de um certo controle sobre a arbitragem. Com efeito, em todo o texto da Lei 9.307/1996 percebe-se a preocupação do legislador em evitar abusos e iniquidades, garantindo-se às partes o devido processo legal(em sentido processual e em sentido material). Eis aí a limitação à autonomia concedida aos litigantes, que não poderão exceder as raias dos interesses que o Estado quer preservar, já que a garantia da igualdade, da legalidade e da supremacia da constituição são inerentes à democracia moderna 5 (grifei). De forma semelhante, Antonio Corrêa assinalou que “também é causa de nulidade a transgressão aos princípios do art. 21 da lei especial”. Segundo referido autor, a nossa Constituição consagrou como garantia do cidadão o princípio do devido processo legal ou due process of law em processos judiciais ou administrativos. (...) A lei, como corolário da garantia, trouxe também o devido processo para a arbitragem 6 (grifei). Dentre essas garantias, avultam em importância aquelas pelas quais se asseguram às partes o contraditório e a ampla defesa, com os correspondentes conteúdos. e significados. Tais garantias devem estar presentes no processo arbitral, sendo rigorosamente certo que a validade da sentença dos árbitros está condicionada à rigorosa observância do devido processo legal. Isso não apenas pela supremacia das normas constitucionais, mas também porque, nos termos da legislação brasileira que regula a arbitragem, se reputa inválida a sentença arbitralproferida em desrespeito aos princípios de que trata o art. 21, § 2.º daquele texto legal; precisamente os princípios que integram o devido processo legal. Conforme mais uma vez bem lembrou Carmona: Como garantia máxima para as partes de que não serão submetidas a processo injusto, prevê a Lei sejam sempre respeitados os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e do seu livre convencimento. Viola o princípio do contraditório, portanto, a decisão que leva em consideração apenas os argumentos de um dos litigantes, sem dar à parte contrária o direito de apresentar razões em sentido contrário. Garante o princípio a informação de todos os atos processuais, com a possibilidade de reação 7 (grifei). Dessa forma, de acordo com observação de Joel Dias Figueira Júnior: A sentença arbitral estará eivada de nulidade absoluta e, portanto, será atacável por meio de ação anulatória ajuizada pelo interessado perante o órgão do Poder Judiciário competente, quando (...) forem desrespeitados os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento ou, em outros termos, inobservado o devido processo legal. Sendo nula de pleno direito, a sentença arbitral maculada de qualquer desses vícios insanáveis não gera nenhum efeito no mundo jurídico. Por isso, pode ser impugnada através de ação autônoma de natureza declaratória aforada perante o órgão do Poder Judiciário ou, ainda, em embargos à execução de sentença, caso se trate de sentença arbitral condenatória não satisfeita espontaneamente 8 (grifei). Assim também Humberto Theodoro Jr. consignou que A garantia do devido processo legal com os consectários do contraditório e ampla defesa são, modernamente, direitos assegurados no plano constitucional, o mesmo ocorrendo com a exigência de motivação de todas as decisões judiciais ( CF, arts. 5.º, LIV e LV, e 93, IX). Por isso, qualquer que seja o procedimento a prevalecer no juízo arbitral esses preceitos fundamentais nunca poderão ser descurados pelo árbitros, sob pena de nulidade. A matéria é de ordem pública e não se sujeita à disponibilidade negocial na convenção de arbitragem. Sobre o tema, a lei brasileira é expressa: “Serão sempre respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da impessoalidade do bitro e de seu livre convencimento” (art. 21, § 2.º)” 9 (grifei). Edoardo Flavio Ricci, jurista italiano que examinou o sistema brasileiro, anotou que A Lei 9.307, de 23.09.1996, evidencia com particular destaque a necessidade de respeitar-se o princípio do contraditório na arbitragem. O art. 21, § 2.º, menciona que serão “sempre respeitados, no procedimento arbitral, os princípios do contraditório”; e o art. 32 estabelece que a sentença arbitral é nula se “forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2.º desta Lei”. Tem, portanto, razão a doutrina brasileira ao defender que o princípio do contraditório é uma das regras fundamentais do procedimento arbitral” 10 (grifei). A propósito, J. E. Carreira Alvim asseverou ser “também causa de nulidade o desrespeito aos princípios de que trata o art. 21, § 2.º, da Lei de Arbitragem, quais sejam, do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento”; 11 no que é secundado por Álvaro Villaça Azevedo, para quem, No procedimento arbitral devem ser observados os mesmos princípios do procedimento judicial, tais como o do contraditório, o da igualdade das partes e o do livre convencimento do árbitro, como se assenta no § 2.º do art. 21. 12 (grifei). No direito espanhol, Luis Muñoz Sabaté, embora ressaltando a operatividade como principal elemento das previsões processuais contratuais (por ele denominadas “ppc”), reconheceu que seus limites lo constituyen los diferentes segmentos del marco constitucional, particularmente aquellos que se encuadram en el art. 24 CE, debiendo evitarse todo cuanto sea fruto de la resignación del débil frente al podereroso o la conculcación de los llamados derechos fundamentales 13 (grifei). Nesse mesmo contexto, referido autor observa que la constitucionalización del proceso civil significa respetar la proyección en él de los derechos fundamentales (principio de audiência, de contradicción, de oralidad, publicidad y motivación, evitar la indefesión, velar por el derecho a un Juez predeterminado etc.). 14 Portanto, sendo a arbitragem uma forma de solução de controvérsias na qual o árbitro desempenha função quando menos análoga ao do juiz – e hoje considerada jurisdicional –, inegavelmente no processo arbitral hão que se observar as garantias do contraditório e da ampla defesa. Além de se submeter aos ditames da Constituição Federal, cujas regras têm absoluta supremacia perante os demais preceitos normativos contidos no ordenamento, a sentença a ser proferida pelos árbitros, para que seja válida e exequível no Brasil, também deve atentar para regras processuais cogentes e que, portanto, escapam ao poder de disposição das partes; ainda que se tratando de arbitragem. A arbitragem significa talvez a mais importante forma de convenção das partes em matéria processual. Em matéria de interesses patrimoniais disponíveis, podem as partes afastar a jurisdição estatal e atribuir a solução da controvérsia ao árbitro. Contudo, ainda que essa liberdade possa se estender às regras processuais aplicáveis ao processo arbitral, a autonomia da vontade não pode chegar ao ponto de afastar a aplicação de regras cogentes, imperativas e que, antes de tudo, tutelam a ordem pública. Sustento, portanto, que as regras processuais que se entendem cogentes para a jurisdição estatal, ao menos em princípio, também devem ser qualificadas como imperativas para a jurisdição arbitral, não havendo margem para sua alteração ou derrogação pela vontade das partes envolvidas. 2. As partes no processo arbitral μμ_5spp:S:J2.1. Limites subjetivos da convenção de arbitragem (e da sentença arbitral) Para a instituição da arbitragem é necessária uma convenção privada por meio da qual as partes pactuam submeter a decisão do conflito a um terceiro (árbitro). Tal convenção apresenta-se sob duas formas, verificadas em diferentes momentos da evolução da relação entre as partes: a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. A cláusula compromissória consiste na previsão de que futuros e eventuais litígios envolvendo determinada relação serão resolvidos por meio da arbitragem. É uma avença prévia à existência do próprio conflito, pela qual as partes se comprometem a celebrar o compromisso arbitral e instituir o juízo arbitral quando da verificação de alguma divergência em relação ao negócio realizado. Já o compromisso arbitral é ato solene por meio do qual as partes instituem o juízo arbitral para decidir sobre o conflito verificado, definindo o(s) árbitro(s), seu âmbito de competência, o objeto do litígio, além de outros dados, como o prazo em que deve ser proferido o laudo arbitral e a autorização para julgamento por equidade. Conquanto o direito italiano apresente disciplina um pouco diversa do brasileiro em matéria de arbitragem (distinguindo-se o arbitrato rituale do arbitrato irrituale), 15 pode-se afirmar com Proto Pisani que: Fonte dell’arbitrato rituale è un accordo con cui due o più parti convengono di fare decidere da arbitri una o più controversie. Tale accordo può essere stipulato quando la controvérsia è già insorta, ed in tal caso si chiama compromesso (art. 806), oppure prima, in occasione della stipulazione di un contratto, le parti possono convenire nello stesso contratto, oin atto separato, che le controversie future eventualmente nascenti dal contratto medesimo siano decise da arbitri, in tal caso si parla di clausola compromissoria (art. 808) 16 (grifei). Nesse contexto, é fácil perceber que a convenção de arbitragem encontra limite subjetivo nas pessoas que, declarando expressa vontade, se submeteram a essa forma de solução de controvérsias, subscrevendo a cláusula compromissória e/ou o compromisso arbitral. É que, nas palavras de Carmona, como acordo de vontades, [a convenção de arbitragem] vincula as partes no que se refere a litígios atuais ou futuros, obrigando-as reciprocamente à submissão ao juízo arbitral; como pacto processual, seus objetivos são os de derrogar a jurisdição estatal, submetendo as partes à jurisdição dos árbitros. 17 (grifei). Assim também Humberto Theodoro Jr. observou que É de se ressaltar sempre que a justiça desempenhada pela arbitragem é originariamente uma justiça privada instituída pelos contratantes para excluir seus litígios da jurisdição pública. São eles, os contratantes, que afastam, nos termos do contrato, a função estatal e a substituem pela jurisdição de particulares que, nas circunstâncias negociais, assumem a missão de julgar. Daí por que essa limitação subjetiva naturalmente se projeta em relação à decisão do árbitro: “Porque se trata de uma renúncia ao direito de confiar seu litígio à justiça pública, a submissão ao juízo arbitral só obriga às partes que o contrataram” . 18 Essa mesma lição se extrai do pensamento de J. E. Carreira Alvim, para quem A sentença, como ato de autoridade do Estado, proferida por órgão-ente (juízo estatal) ou por órgão-pessoa (juízo arbitral), produz em geral efeitos para as partes as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros; igual extensão tem a qualidade que ela adquire, traduzida no fenômeno a que se denomina de “coisa julgada”. E ainda: Entre as partes e seus sucessores, a sentença produz os mesmo efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário (art. 31, parte inicial, LA), não alcançando, porém, terceiros que não tenham sido parte na convenção arbitral, ou que não tenham, nessa qualidade, participado do processo 19 (grifei). Aliás, limitação dessa ordem é rigorosamente harmônica com as garantias constitucionais antes examinadas, que impedem que alguém tenha sua esfera jurídica afetada, por decisão imutável, sem a oportunidade de ser ouvido. 20 2.2. Sobre o litisconsórcio Como se sabe, e já tivemos oportunidade de observar no âmbito doutrinário, o litisconsórcio “é um fenômeno de pluralidade de pessoas, em um só ou em ambos os polos conflitantes da relação jurídica processual”. 21 A esse propósito, a conjugação de mais de um autor, ou mais de um réu, para litigar em um mesmo processo, pode ter origem em razões de conveniência e economia processual. É o chamado litisconsórcio facultativo, em que, de um modo geral, ao autor “cabe deliberar sobre a formação do litisconsórcio ou coligando-se com outro ou outros para propor a ação, ou propondo a ação contra mais de um réu”, conforme lição de José Frederico Marques. 22 Nesses casos, a lei admite como possível (e, às vezes, até recomendável) a união das partes, em qualquer ou em ambos os polos do processo, mas não impõe – como condição de eficácia da sentença – que assim o seja. Em casos outros, é a própria lei que determina a obrigatoriedade de que diferentes autores ou diferentes réus sejam reunidos para a propositura da demanda ou para que suportem os efeitos da sentença. Trata-se do litisconsórcio necessário por força de lei, em que se estabelecem, de antemão, todos aqueles que necessariamente deverão compor o processo, independentemente da vontade do autor, ou de quem quer que seja. E há hipóteses em que, pela natureza da relação jurídica debatida, é necessária a participação de mais de um réu ou mais de um autor no processo. Nas ações que tenham por objeto uma relação plurilateral ou mesmo nas ações propostas por terceiros, que tenham por alvo relações bilaterais ou plurilaterais, a comunhão de interesses que justifica a reunião de pessoas em um mesmo polo, ensinou Amaral Santos, “se depreende da relação jurídica material posta em juízo. Quando esta é una e incindível quanto aos sujeitos ativos ou passivos, todos eles deverão necessariamente participar da relação processual, porquanto a sentença a todos atinge” 23 (grifei). Nesses casos, devem figurar no processo todos os que são titulares de um mesmo direito subjetivo ou de uma só obrigação , 24 sendo a obrigatoriedade do litisconsórcio definida não pelo direito processual, mas pelo direito material em debate, que determina os titulares e os possíveis afetados pela sentença. É a estrutura interna da relação jurídica – um estado jurídico único – formada pela ligação entre várias pessoas, que torna, senão impossível, ao menos ilegítima a formação de um processo em que apenas uma ou algumas delas esteja presente. 25 Mas, ao lado dos casos de litisconsórcio designados pela lei existem outras hipóteses em que era necessário o ingresso de mais de um participante nos polos do processo, em decorrência das características do direito material controvertido. É justamente o direito material que, regulando a interação entre os indivíduos, ordena quem compõe e como são formadas essas relações. É, portanto, problema de direito material determinar quando há relações compostas por vários sujeitos, vinculados por obrigações, deveres, faculdades ou direitos de tal forma conexos que não possam ser modificados, extintos ou exercitados sem que produzam efeitos diretos e imediatos uns sobre os outros. 26 Paralelamente, o direito processual, quando estas relações vão a juízo, ordenará a presença de todos os interessados, pois não poderá desrespeitar a determinação que o direito material lhe impõe. E assim é porque o processo atingirá (ou, ao menos, deverá atingir) a todos e perante todos produzirá seus efeitos. Nesse contexto, é o direito material que cria a unitariedade, no tocante aos direitos e obrigações substanciais dos indivíduos, e essa unitariedade vai se refletir na lide, determinando a formação de litisconsórcio unitário. Naquele plano se estabelece, portanto, não apenas a necessidade de que todos os participantes da relação compareçam ao processo, mas de que a decisão para todos, no tocante a essa relação, seja a mesma. A incindibilidade da questão jurídica (incindibilidade do direito material) passa a produzir a incindibilidade do processo, e, conforme palavras de Gabriel de Rezende Filho “o que é uno a respeito de mais de uma pessoa não pode judicialmente cessar ou modificar-se senão a respeito de todos os interessados” 27 (grifei). O pedido que se faz e os efeitos buscados, com relação a um dos litisconsortes, de igual modo – e com igual eficácia – deve ser feito para os outros, o que levou a doutrina ao entendimento de que, nestas hipóteses, se está diante não de um cúmulo subjetivo de demandas, mas de uma ação única, que somente pode ser exercida em face de todos os envolvidos. Apesar da pluralidade de pessoas interessadas como autores ou réus, estes e aqueles surgem como partes únicas, tal como se fosse o caso de um processo simples, com um só autor e um só réu. 28 Enrico Tullio Liebman chegou à mesma conclusão, afirmando que a ação, única, tem cabimento apenas conjuntamente contra os vários legitimados passivos necessários, e isso quer dizer que não tem cabimento só contra um ou alguns deles (um bem pertencente a três pessoas não pode ser dividido entre duas delas apenas); movida a alguns, a ação não poderá ser julgada pelo mérito e a rigor deveria, mesmo de ofício, serdeclarada inadmissível 29 (grifei). A invalidade da sentença decorre da impossibilidade “quase mecânica” de produzir efeitos unicamente quanto a um dos litisconsortes, ignorando a situação, que continua válida e produzindo efeitos, daqueles que não participaram do processo. Na lição de Ovídio Baptista da Silva, a ofensa atingiria, talvez até mais do que o processo, a própria relação de direito material. 30 Nesse particular, não será demasiado reiterar a incompatibilidade entre a garantia do devido processo legal e o fato de que pessoas que não participaram do litígio – por sequer terem sido chamadas a integrar o processo – possam ser submetidas aos efeitos da extinção ou modificação dessa relação material. Não se decide a relação jurídica, sem que os interessados se manifestem, também pelas garantias do contraditório e da ampla defesa, que não permitem a expedição de provimentos sem a prévia oportunidade de defesa e participação daqueles que serão por eles afetados (a expedição de provimento assim, violador dessas garantias do Estado de Direito, será sempre ilegítima). 2.3. Litisconsórcio e arbitragem Como visto, no processo de arbitragem vigoram, com toda plenitude, as garantias constitucionais que tutelam o processo e, por consequência, as normas que, no plano infraconstitucional, regulam tais garantias e que, por isso, se afiguram como normas de direito público, cogentes e não derrogáveis pelas partes e tampouco pelo árbitro; ainda que, como se verá adiante, isso represente um óbice à solução arbitral, impondo, como única forma de superação da controvérsia, a solução judicial. Sob um prisma genérico, é correto dizer, com Cândido Dinamarco, que: Não observadas as regras do litisconsórcio necessário, ou seja, faltando na relação processual algum colegitimado que a lei considera indispensável, não se poderá chegar ao provimento jurisdicional demandado (no processo de conhecimento, sentença de mérito). Sem a presença coletiva de todos que participaram da mesma legitimidade necessariamente conjunta, o sujeito que está no processo sem coligação com os demais considera-se parte ilegítima ad causam e, em virtude disso, o caso é de carência de ação (como em todas as hipóteses em que esteja ausente uma das condições desta). Por isso é que tem o juiz o poder-dever, de natureza inquisitiva, de fiscalizar a observância das regras do litisconsórcio necessário 31 (grifei); lição que, mais uma vez, remete às garantias constitucionais das quais aqui se tratou: Ao princípio do contraditório repugna que possa ser ordinariamente atingida pela sentença, seus efeitos e imutabilidade destes, pessoa que não participou do processo nem teve como influir nos seus rumos e no teor do provimento com que culminou. O princípio do contraditório é o fundamento mais sólido das regras de legitimidade ad causam e, especificamente, dessa segundo a qual em certos casos a sentença só será eficaz quando todos os titulares da relação ou situação jurídica controvertida hajam sido partes no processo (necessariedade do litisconsórcio) 32 (grifei). Ora, se isso é certo e se vigora para o processo judicial, igualmente se aplica ao processo arbitral; mas com um diferencial: havendo litisconsórcio necessário – quer pelo caráter unitário da relação jurídica de direito material, quer por força de disposição legal – e não estando todos os litisconsortes sujeitos ao juízo arbitral, forçoso será reconhecer a inviabilidade jurídica da própria arbitragem, visto que, como já examinado à saciedade, só são atingidos pela eficácia da convenção de arbitragem e pela sentença do árbitro aqueles sujeitos que, expressa e voluntariamente, declararam sua vontade para tal finalidade. Aí, portanto, também se aplica a conclusão da “carência” de ação acima explicada por Dinamarco. Assim, conforme lição de Humberto Theodoro Jr., Uma das figuras do processo civil ordinário que deve refletir sobre o processo arbitral é a do litisconsórcio, já que, frequentemente, se verificará, também no juízo particular, o concurso de sujeitos num ou em ambos os polos da relação processual. Na lição desse processualista: A formação do litisconsórcio não pode ser banida do campo do juízo arbitral, visto que ali, tanto como no processo comum, poderão estar em jogo situações em que a lei exige a observância do cúmulo subjetivo. Basta ressaltar os frequentes negócios plurissubjetivos e, principalmente, os completos negociais formados por cessão de direitos ou pelos contratos conexos (ou complexos). É bom lembrar que o litisconsórcio necessário é requisito de validade e eficácia da prestação jurisdicional, envolvendo, pois, questão de ordem pública. 33 De fato, confirmando tudo quanto foi dito aqui a propósito dos limites subjetivos da convenção de arbitragem, Theodoro Jr. bem ressaltou que Como a arbitragem repousa nos vínculos contratuais entre as partes e entre estas e o árbitro, seus liames não se manifestam senão entre os contratantes. A legitimidade de parte para o procedimento arbitral, por isso, só se estabelece entre os sujeitos contratuais. A única via de legitimação, ativa ou passiva, para quem queira participar ou seja chamado a participar da arbitragem condiciona-se à própria convenção arbitral. Pouco importa, portanto, seja necessário ou facultativo o litisconsórcio. Sua formação só será admissível, de forma cogente, entre os que celebraram a convenção arbitral . 34 Assim, prossegue referido autor, Se todos os que devem ser litisconsortes são aderentes à convenção arbitral, tudo se desenvolverá naturalmente dentro da força contratual. Se, contudo, o terceiro, que se deseja incluir no processo, não firmou o ajuste, sua inserção no litisconsórcio, ainda que necessário, somente se tornará possível se ele consentir em aderir ao compromisso. Havendo, pois, recusa de sua parte o árbitro não terá força para submetê-lo à relação processual. Se o caso for de litisconsórcio facultativo, o procedimento da arbitragem terá de prosseguir só com as partes vinculadas à convenção arbitral. Se for necessário o litisconsórcio, só restará ao árbitro encerrar o procedimento sem julgamento de mérito, por falta de integração da convenção de arbitragem. Proferirá sentença terminativa na esfera arbitral, para que a lide possa ser resolvida pelo Poder Judiciário. Diante do caráter voluntário da arbitragem, falece à parte e ao árbitro o poder de impor ao terceiro toda e qualquer espécie de arbitragem forçada. Em relação a quem não é parte da convenção, cabe ao árbitro ouvi-lo, mas não convocá-lo a se submeter a um imperium que não existe. E mais: A não figuração do litisconsórcio necessário dentro da força da convenção arbitral torna-a, por isso mesmo, incompleta e impotente nos moldes do art. 20, § 2.º, da Lei 9.307/1996. Faltará condição de procedibilidade na via especial da jurisdição convencional, porquanto ineficaz é o julgamento que, em qualquer processo, seja proferido sem a presença na relação processual de litisconsorte necessário ( CPC, art. 47, parágrafo único). A jurisprudência brasileira já teve a oportunidade de enfrentar o problema e assentou: (a) a convenção arbitral vinculante “somente é válida e eficaz em relação às partes contratantes”; (b) em havendo litisconsorte que não subscreveu a convenção arbitral não pode ser constrangido a aderir ao “negócio de que não participou” 35 (grifei). Nessa mesma linha, J. E. Carreira Alvim observou que: O tema que mais chama a atenção em termos de litisconsórcio na arbitragem é o que se liga ao litisconsórcio do tipo necessário, especialmente do tipo unitário, porquanto, nessa hipótese, o processo arbitral não pode formar-see desenvolver-se, validamente, sem a participação de todos os interessados. E bem concluiu: Na prática, cumpre distinguir as diversas espécies de litisconsórcio e a potencialidade que tem a sentença arbitral de afetar, ou não, diretos de terceiros, fora da convenção de arbitragem. Se o litisconsórcio for do tipo necessário-unitário – aquele que impõe a participação de todos os litigantes, com sentença uniforme para todos –, ou o terceiro aceita integrar o processo, possibilitando a sentença, sujeitando-se aos seus efeitos, ou não aceita e permanece fora dele, inviabilizando com a sua ausência o processo arbitral 36 (grifei). De forma semelhante, Antonio de Pádua Soubhie Nogueira observa que as regras aplicáveis ao litisconsórcio necessário deverão incidir no juízo arbitral, “mesmo que o compromisso arbitral ou os mecanismos predeterminados eleitos pelas partes não contenham tal regra de organização do processo”, uma vez que inúmeras circunstâncias instarão a convocação de terceiros a lide, para figurar como litisconsorte, pois não se pode admitir valha a sentença para uns e não para outros, quando se cuidar da mesma relação jurídica e que deva ser decidida, na maioria das vezes, uniformemente. Diante disso, anotamos que, havendo ou não expressa previsão de convocação de terceiros, o árbitro não desprezará essas necessárias intervenções da parte, até para manter a eficácia de sua decisão, concluindo que: na hipótese de a parte litisconsorcial discordar do processamento do litígio (o qual deve integrar) perante o juízo arbitral, deverá o árbitro extinguir o processo de imediato, sem julgamento de mérito, proferindo sentença terminativa para que a lide seja resolvida pelo Poder Judiciário 37 (grifei). Na doutrina italiana recente, o tema foi enfrentado por Elio Fazzalari, que figurou a hipótese em que o terceiro seja litisconsorte necessário, relativamente à res in iudicium deducta, caso em que pode intervir no processo para integrar o contraditório. Nesse caso, verificando o árbitro, de ofício ou a requerimento da parte, que ocorre o litisconsórcio necessário de um terceiro estranho ao pacto compromissório, deve convidar o terceiro a intervir, mas sem as consequências que, em sede judicial, resultam dessa recusa. Se o terceiro declina, expressa ou implicitamente, do convite, não pode ser havido como participante da arbitragem, permanecendo livre para deduzir a relação plurissubjetiva, de qua agitur, no juízo ordinário, envolvendo as partes na arbitragem. Recusado o convite pelo litisconsorte convidado, qualquer das partes originárias pode também dirigir-se ao juízo estatal, sem que a outra, ou o terceiro, possa impedi-la através da exceptio compromissi. Se as partes, apesar da recusa do terceiro, não desistem da arbitragem, deve o árbitro – dada a relação plurissubjetiva incindível que envolve, inevitavelmente e ilegitimamente, o terceiro litisconsorte que não quis demandar – extinguir o processo sem julgamento de mérito 38 (grifei). 3. Conclusões Com fundamento na observância das garantias do devido processo legal e dos limites da vontade das partes, apresentamos as seguintes conclusões: 1. Os sujeitos, ativos e ativos, do juízo arbitral só podem ser as pessoas que convencionaram se submeter à arbitragem; 2. Se aparecer um terceiro, litisconsorte facultativo, ou bem ele adere à convenção arbitral, ou bem o juízo arbitral prossegue sem sua presença, não podendo a sentença arbitral prejudicá-lo (art. 506 do NCPC); 3. Havendo litisconsórcio necessário e não sendo possível compelir os litisconsortes ao processo arbitral, este está irremediavelmente fadado à extinção sem julgamento do mérito, sob pena de nulidade e ineficácia da sentença arbitral. Pesquisas do Editorial © edição e distribuição da EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. ARBITRAGEM E TERCEIROS - LITISCONSÓRCIO FORA DO PACTO ARBITRAL - OUTRAS INTERVENÇÕES DE TERCEIROS, de Humberto Theodoro Júnior - RDB 14/2001/357 A ARBITRAGEM E AS PARTES NA ARBITRAGEM INTERNACIONAL, de Gilberto Giusti - RArb 9/2006/120 ARBITRAGEM E INTERVENÇÃO VOLUNTÁRIA DE TERCEIROS: UMA PROPOSTA, de Pedro A. Batista Martins - RArb 33/2012/245 INTERVENÇÃO DE TERCEIROS EM PROCESSO ARBITRAL, de José Lebre de Freitas - RePro 209/2012/433 NÃO SUJEIÇÃO DO TERCEIRO ANUENTE À CLÁUSULA DE COMPROMISSO ARBITRAL PREVISTA EM CONTRATO, de Teresa Arruda Alvim Wambier - Pareceres - Teresa Arruda Alvim Wambier 1/123 CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ESTATUTÁRIA E LITISCONSÓRCIO FACULTATIVO UNITÁRIO: UMA NECESSIDADE IMPOSTA PELA REALIDADE, de Antonio Pedro De Lima Pellegrino - Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação 2/2014/43
Compartilhar