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Princípios e meios organizadores dos raciocínios ou argumentos O primeiro é o princípio da identidade, o qual requer que o sujeito acusado de um ato seja perfeitamente identificável, caso contrário, não se poderá dizer: fulano (sujeito da frase) matou beltrano (a acusação ou predicado). Esse princípio vale para outros sujeitos das proposições ou frases de acusação, inclusive os relacionados com os seres naturais não humanos e os entes conceituais, como os das matemáticas. As disputas entre os cientistas geralmente partem da definição do sujeito de seus enunciados, e estes sujeitos são denominados objetos da pesquisa, uma vez que é o tema o que se quer saber, logo, é o objeto de discussão para dizer o que é alguma coisa . Nessa disputa acerca do objeto ou sujeito de um enunciado é preciso obedecer o princípio da não contradição. Esse princípio aplica-se nas definições formalizadas ou lógicas, que são diferentes das argumentações acerca do que se faz ou das práticas sociais, como as que se dão no âmbito da ética (política). Nesses casos, as disputas se dão em torno de opostos incompatíveis. No exemplo de alguém ter ou não ter cometido homicídio é preciso, como foi dito, que o réu seja individualizado (princípio da identidade), depois se houve homicídio (ti pificação, que recorre ao mesmo princípio) e que este pode ser legitimamente atribuído ao réu. Nesse, como em outros casos, o sujeito da proposição não pode receber duas qualidades contrárias na mesma situação de acusação, ou seja, deve obedecer o princípio da não contradição. Sendo assim, pergunta-se: Fulano é criminoso ou não é criminoso? O contraditório, seguindo as regras ou normas próprias de cada situação, deve estabelecer qual das alternativas é a mais plausível ou verossímil, ou seja, a que se pode confiar na situação. Caso não se consiga excluir uma das qualidades, então os envolvidos no debate ficam em um beco sem saída, ou aporia (impasse). As situações sociais e suas técnicas para estabelecer o verossímil Então, os conhecimentos científicos são estabelecidos nos debates? Isso mesmo, é sempre pelo debate que são estabelecidos os argumentos, e há duas situações em que isso ocorre: a situação dialética e a situação retórica. Uma terceira situação é a da exposição (didascália), na qual não há debate e os conhecimentos considerados confiáveis são apresentados aos que não conhecem. Examinemos, de maneira sumária, cada uma dessas situações. SITUAÇÃO DIALÉTICA Debate que pode se dar entre duas pessoas, por um tempo extenso, ou mesmo por uma pessoa quando pensa os prós e os contras a respeito de algum problema; é a que predomina na produção de conhecimentos científicos. Nessa situação há um conjunto de técnicas ou modos de fazer que visam eliminar a contradição estabelecida pela afirmação de duas qualidades contrárias; logo, seu objetivo é estabelecer o verossímil. SITUAÇÃO RETÓRICA É a contraparte da dialética, requer técnicas que têm por objetivo persuadir ou convencer um público amplo, em um tempo curto, a adotar os posicionamentos apresentados pelo orador, os quais serão admitidos (ou não) pelo auditório que é o juiz do que dizem os oradores. SITUAÇÃO DE EXPOSIÇÃO Também denominada didascália, tem por objetivo apresentar o considerado conhecimento confiável aos que precisam ou querem aprendê-lo; logo, é uma comunicação unilateral, e os aprendizes não estão autorizados a decidir a respeito do exposto. Para produzir a comunicação é preciso analisar os conhecimentos estabelecidos nas situações retórica e dialética para eliminar incongruências, contradições e organizar a exposição de maneira encadeada. Estes procedimentos deram origem ao que atualmente denominamos lógica. Essas três técnicas não são estanques. É admissível usar técnicas retóricas para persuadir o auditório acerca do valor conceitual de argumentos científicos, ainda que isso implique modificações relevantes naqueles e, em muitas situações, resulte em importantes distorções conceituais. Além disso, em um debate dialético é possível introduzir argumentos formados com base na Lógica ou na Matemática, desde que os demais admitam, para eliminar argumentos contrários. Essas três situações sociais sustentam as três técnicas argumentativas que foram aperfeiçoadas desde o século v a.C., constituindo o solo comum da argumentação racional, ou seja, pensada, refletida. Esses procedimentos são comuns, mas raramente pensamos a seu respeito, ou seja, fazemos sem pensar. Por isso, é preciso estudar essas técnicas para se tornar hábil tanto na análise quanto na produção de argumentos a favor e contra alguma proposta ou proposição em uma situação social e, em particular, na situação em que se busca admitir e produzir conhecimentos científicos e outros conhecimentos confiáveis. RESUMO Em resumo, na técnica dialética a situação social requer uma decisão a respeito de duas qualidades contrárias que se afirma pertencerem ao sujeito de uma proposição. Essa situação social envolve poucas pessoas, as que conhecem bem o tema, e, no limite, apenas uma pessoa; além disso, não há um tempo predeterminado para obter uma decisão. A técnica retórica tem por objetivo propor alguma decisão a muitas pessoas, por isso os seus argumentos precisam ser breves e diretos, pois o auditório não tem como acompanhar longos desenvolvimentos argumentativos. Além disso, o tempo concedido aos oradores é bem demarcado, o que exige argumentos muito bem escolhidos e breves. Algumas restrições que cabem na situação dialética, como é o caso das ciências, não são impostas na situação retórica. Por exemplo, pode-se atacar a pessoa para destruir as propostas do adversário, caso o auditório admita este procedimento. O estabelecido nas situações dialética e retórica pode ser ensinado aos que não sabem. Nesta situação, a relação social é muito diferente, pois quem sabe expõe o que sabe aos que aprendem, os quais não deliberam acerca da validade do apresentado, mesmo que não concordem. É uma situação unilateral e o tempo da exposição é muito variável. Como distinguir os conhecimentos científicos de outros também confiáveis? Considere o seguinte exemplo: na medicina tradicional prescreve-se a infusão (chá) da casca do salgueiro-branco ou chorão (Salix alba) ou das folhas e flores rainha-dos-prados, também conhecida por erva-das-abelhas (Filipendula ulmaria ou Spiraea ulmaria), para tratar os sintomas da gripe, bem como do reumatismo e dores de cabeça. Este é um conhecimento prático muito antigo e confiável, mas não é científico. Você deve estar se perguntando por que não é científico esse conhe cimento, não é? Provavelmente você já deva saber a resposta. A explicação da eficácia terapêutica sustenta-se em um conjunto de afirmações não verificáveis, que se referem à semelhança entre a doença e a planta. Essa explicação, conhecida como teoria das assinaturas, afirma que há um sinal, um signo que liga um órgão humano a uma parte de alguma planta, assinalando que ali se encontra o remédio para suas doenças. O conhecimento empírico acerca do valor terapêutico do salgueiro-branco e da erva-das-abelhas é confiável, mas tem limitações incontornáveis. Uma das limitações é que não é possível saber qual a dosagem adequada para o tratamento; outra limitação, não há como verificar ou controlar as afirmações acerca da semelhança entre os órgãos e as doenças. Logo, não se tem uma explicação confiável do que produz a redução dos sintomas das doenças para as quais são indicados. Há uma explicação científica para a eficácia desse fitoterápico? A explicação científica foi constituída ao longo dos séculos XVIII e XIX pelo exame das substâncias químicas dosextratos de casca do salgueiro-branco. A primeira descrição desse fármaco foi apresentada por Edward Stone1 em 1763, no Reino Unido, indicando que o seu princípio ativo é o 1 Edward Stone (1702-1768) nasceu na Inglaterra e estudou na Universidade de Oxford, entre outras. Seu procedimento científico que deu origem ao ácido salicílico foi criar um pó a com base na casca da Salix alba, sendo esse extrato aplicado a 50 indivíduos inicialmente. Após várias tentativas e observações, conseguiu determinar a quantidade exata do composto e o intervalo de aplicação, obtendo resultados comprovadamente eficazes. ácido salicílico, que, em 1828, foi isolado em sua forma cristalina. Em 1897, o laboratório farmacêutico Bayer juntou o ácido salicílico com acetato e criou o ácido acetilsalicílico (AAS), que é menos tóxico do que a substância original. O AAS foi o primeiro fármaco sintetizado. Esse exemplo mostra que um conhecimento prático confiável pode ser explicado de muitas maneiras, mas a melhor explicação permite ampliar e aperfeiçoar o que se sabia. Ao isolar o ácido salicílico deu- se um passo para ajustar a dosagem e verificar seu nível de toxicidade, e a síntese com o acetato reduziu essa toxicidade, bem como permitiu a sua produção em tabletes com dosagens definidas e controláveis. O AAS é um produto sintético, não se encontra na natureza, e, portanto, destrói a sustentação da teoria das assinaturas. O conhecimento científico parte de uma hipótese testável: se o pó do extrato produz um efeito terapêutico, qual é a substância que produz esse efeito? Essa questão implica analisar, separar os elementos do composto para identificar o que nele é eficaz, descrevendo-o de tal maneira que outros possam produzi-lo e testá-lo. Aqui aparece outra diferença entre o conhecimento científico e os demais: o científico sempre se sustenta no conjunto de conhecimentos validados de uma área, não é a manifestação dos desejos e crenças de uma pessoa, de um sujeito. Daí se dizer que o conhecimento científico não é subjetivo, mas intersubjetivo ou objetivo. Como apreender os conhecimentos confiáveis pelo exame de seus argumentos? As explicações a respeito de alguma prática bem-sucedida são afirmações organizadas de tal maneira que as pessoas são convencidas da sua validade. De fato, seja qual for a prática, as pessoas procuram justificar tanto o sucesso quanto o fracasso. Por que é um defeito, afinal tudo tem uma causa? Porque basta um caso em que alguma coisa tenha ocorrido acidentalmente para destruir essa afirmação muito geral. De fato, as afirmações gerais, as que usam o operador lógico todo, são facilmente destruídas pela apresentação de um caso não congruente com o que foi dito. Há evidências de que o mundo não é perfeitamente ordenado? Você, como eu, já assistiu a partidas de futebol em que o locutor entusiasmado afirma, com autoridade, no início do jogo: “A Seleção brasileira jogou N vezes contra a Seleção argentina; venceu X, perdeu Y, empatou Z; então, hoje, a Seleção brasileira deve vencer.” Será? Só saberemos no apito final. É verdade, jogo é jogo, mas tudo tem uma causa… Muitos dizem isso, afirmam que não foi por acaso que aconteceu isto ou aquilo, por isso que o jogo foi ganho por uma das equipes. Essa afirmação supõe que há algo como uma mão invisível que a tudo comanda, o que exige a fé nessa afirmação. Isso pode ser adequado para as religiões, mas não para produzir conhecimento científico. O uso do salgueiro-branco mostra que a explicação pré-científica sustenta-se na fé, e que a científica permite uma melhor explicação e uso do fármaco. Isso quer dizer que das práticas é possível produzir conhecimentos científicos? Sim, das práticas é possível constituir conhecimentos científicos, pois em qualquer prática há duas dimensões, uma delas se refere às explicações, logo aos argumentos que justificam as relações em questão. Quando tudo corre como o esperado, ficamos satisfeitos, geralmente não nos preocupamos em explicar os procedimentos que funcionam, salvo quando alguém nos pede para ensinar como fazer. Seja para resolver um problema na execução, seja para ensinar os procedimentos, quem se dedica à explicação sabe que as práticas têm duas dimensões: (a) a da efetividade e (b) a inferencial.2 O que é inferência? Usarei um exemplo utilizado pelos antigos gregos: um cachorro perseguia uma presa por uma estrada e a perdeu de vista em uma encruzilhada. O cachorro, então, fare jou o caminho à direita, ao centro e disparou pela esquerda. Essa decisão é uma inferência, uma dedução que excluiu as alternativas ou as hipóteses. REFLEXÃO O esquema geral da inferência é denominado silogismo, palavra grega que significa tanto inferência quanto dedução. Mesmo se você não se lembrar do termo formal (silogismo), você o conhece, pois o utiliza. Veja o exemplo: • Todo homem é mortal – premissa maior ou proposição afirmativa inicial; • Sócrates é homem – premissa menor, termo médio, pelo qual se chega à conclusão; 2 Efetividade e Inferencial: A efetividade é avaliada pela realização dos objetivos do fazer. Se os objetivos foram alcançados, então se diz que foi efetivo, ou seja, eficaz e eficiente. Um procedimento pode ser eficaz e muito dispendioso, logo, ineficiente. A relação custo/benefício refere-se à eficiência de um processo de produção eficaz. Assim, a efetividade é constituída por duas qualidades: a eficácia e a eficiência . Já o aspecto inferencial é de outra natureza, refere-se aos argumentos utilizados para explicar porque são eficazes e eficientes. • Logo, Sócrates é mortal – conclusão. Observe que o dito na premissa maior acerca dos homens, o predicado mortal, aparece na conclusão porque o particular Sócrates é caracterizado como homem (que é o sujeito da premissa maior, o qual recebeu o predicado mortal), por isso a premissa menor, também denominada termo médio, transfere os significados da maior para a conclusão. O valor de verdade das premissas determina a qualidade da conclusão. Isso você pode estudar nos manuais como no de Weston, indicado no final deste capítulo. __________________________________________________________________________________ Geralmente os argumentos não aparecem nessa forma, e a sua explicitação depende da situação, a qual é muito importante quando avaliamos uma comunicação. Observe que a palavra premissa pode ser substituída por princípio. É preciso observar a forma da premissa maior, caso seja universal (todos e cada um), então pode ser enganosa ou mesmo falsa. Por exemplo, afirmar que os brasileiros (o mesmo que todos os brasileiros) são fanáticos por futebol é demasiado, uma vez que muitos brasileiros sequer se interessam por esse esporte. EXEMPLO Jogo é jogo Vamos a um exemplo a respeito de inferência a partir de uma prática humana. Muitos afirmam que a disposição dos jogadores de futebol na forma 4, 4, 3 é melhor porque (esta palavra é um marcador da inferência sustentada por quem fala) nesta é possível defender e atacar eficazmente. Esse argumento decorre do exame das partidas com aquela e outras disposições, o que levou a julgar, inferir, ser a melhor disposição dos jogadores. Como se trata de jogo, não há muito o que discutir acerca da validade lógica dessa inferência, isso porque pode ser eficaz na maior parte das partidas e não em outras; logo, é plausível ou verossímil. ________________________________________________________________________________ Por falar em jogo, essa palavra pode ser utilizadapara designar atividades muito diversas, por isso Ludwig Wittgenstein3 disse que ela apresenta um ar de família de significados. Aqui nos interessa o uso da palavra jogo na expressão teoria dos jogos, por meio da qual se procura formalizar as situações em que os adversários ganham ou perdem, reexaminando dilemas dos mais diversos para encontrar uma solução. Não cabe, aqui, apresentar essa teoria. Cabe, no entanto, 3 Ludwig Wittgenstein: Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) é considerado um dos fi lósofos mais importantes do século XX. Publicou um livro em vida (Tractatus Logico-PhilosophicusI, 1922); Investigações Filosóficas (1953) foi publicado após sua morte, com base em escritos compilados do autor. apresentar pelo menos duas situações de decisão a partir de argumentos que são tratados na teoria dos jogos, a dita decisão salomônica e o dilema do mentiroso. REFLEXÃO Você conhece a célebre história do bebê atribuída a Salomão? Nela, duas mulheres reivindicaram a maternidade de uma criança perante ele, e este, para resolver o dilema, ordenou a um soldado que cortasse a criança ao meio e distribuísse as partes entre as mulheres. Uma delas abriu mão da criança, dizendo que preferiria ver o filho nos braços de outra mãe a vê-lo morto. Salomão, então, entregou a criança a essa mulher por considerar esta a mãe verdadeira. __________________________________________________________________________________ O problema, nesse caso, é que esses tipos de declarações não permitem uma decisão lógica, racional, pensada. Por quê? Porque os argumentos acerca deles mesmos ou autorreferentes não se resolvem pela escolha de uma das afirmações. REFLEXÃO Um exemplo similar é conhecido como o dilema do mentiroso: Todos os minoicos são mentirosos (disse o minoico Epimênides). Se quem disse todos os minoicos são mentirosos é um minoico então: (a) ou diz a verdade, logo nem todos são mentirosos; (b) ou mente, então não é ve rdade que todos os minoicos sejam mentirosos. __________________________________________________________________________________ Voltemos ao caso da disputa da maternidade. Será que a decisão de Salomão resolveu corretamente o dilema? Na narrativa, sim; mas podemos nos perguntar se a mãe que abriu mão da criança o fez por ser mais esperta do que a mãe biológica, que ficou tão chocada que não soube reagir. Nunca saberemos. A lição é: os argumentos que falam a respeito deles mesmos não são resolvidos por meio de uma análise lógica, são necessários outros recursos. Está dizendo que um argumento racional, bem constituído, pode não ter validade prática, empírica? Exatamente. Há argumentos perfeitamente lógicos que não são válidos do ponto de vista experimental ou empírico. Considere o argumento: Duas esferas, uma pesando dois quilos e a outra um quilo, são soltas simultaneamente: a de dois quilos cai duas vezes mais rápido. Lógico, mas errado. Galileu4 demonstrou que os corpos caem na mesma velocidade caso se desconsidere o atrito do ar. 4 Galileu Galilei: Galileu Galilei (1574-1642), considerado o precursor do método científico, reuniu as observações astronômicas com a geometria e cálculos descrevendo as órbitas de maneira mais acurada. Seus cálculos permitiram definir que o Sol é o centro do sistema e não a Ter ra, confirmando o heliocentrismo de Copérnico, o que contrariou as posições da Igreja Católica. Além disso, Galileu Galilei demonstrou que corpos Esse é um exemplo de como um conhecimento científico é contraintuitivo, e mostra que um argumento perfeitamente lógico pode não ser pertinente ao que se refere. Então não é suficiente que um argumento seja lógico para ser admitido como científico? Exatamente, ser lógico não implica ser pertinente a uma situação. Não fosse assim as ciências seriam um encadeamento de argumentos perfeitamente lógicos. Mas a Matemática é assim, ela então não é uma ciência? Sua pergunta requer que eu introduza uma distinção entre as ciências, caso contrário, ficaremos em um beco sem saída (aporia, lembra?). Vamos então explorar a próxima seção deste capítulo para falar do assunto. Gêneros ou tipos de ciências Há dois grandes tipos, ou gêneros, de ciências: (a) as construtivas; e (b) as reconstrutivas. Vejamos um primeiro quadro geral de distinção: ' CIÊNCIAS CONSTRUTIVAS As construtivas são as Matemáticas e as Lógicas, que se caracterizam por desenvolverem seus argumentos uns sobre os outros com base em axiomas ou hipóteses de partida, construindo os argumentos válidos. CIÊNCIAS RECONSTRUTIVAS As reconstrutivas são todas as demais. Nelas se procura reconstruir ou reconstituir os fenômenos para explicá-los. Como foi dito acerca das práticas, o aspecto inferencial é uma reconstituição do que se fez e faz para explicar a razão do fracasso, logo, saber como realizar algo de maneira eficaz e eficiente. Os argumentos utilizados nas ciências reconstrutivas não são válidos por serem lógicos, mas por serem adequados e pertinentes ao que se está estudando. O exemplo anterior acerca da queda dos corpos na superfície da Terra, na escala humana, mostra o que acabo de dizer. com pesos (massas) diferentes caem com a mesma velocidade quando não há atrito. Dentre seus l ivros destacam-se Discorsi e Dimostrazioni Matematiche Intorno a Due Nuove Scienze (1638), na Holanda, considerada a sua obra mais importante, na qual discute as leis do movimento e a estrutura da matéria. Acontece que a Física, por exemplo, usa muita matemática, então ela é uma ciência construtiva? Essa confusão decorre de como a Física é ensinada, não de seu caráter epistemológico5. É fato que os físicos descrevem os fenômenos utilizando instrumentos emprestados da Matemática. Por exemplo, você estudou que a força é definida pela multiplicação da massa pela aceleração (f = m.a). Essa relação define a força, logo estabelece uma identidade (princípio da identidade) em que o sujeito da proposição (força) não é em si e por si (absoluto), é definido pela relação multiplicativa da massa pela aceleração. Essa relação é bem simples: a força é a medida do deslocamento/aceleração da massa, quanto maior a massa mais força é necessária para a acelerar/deslocar. Considere outra reconstrução contraintuitiva de fenômenos, agora no âmbito da Biologia. Intuitivamente, os seres vivos parecem que sempre foram tal como os conhecemos. No entanto, criadores de animais e agricultores modificam as espécies que criam e cultivam. Logo, podemos afirmar que os seres vivos nem sempre tiveram a forma e os comportamentos que conhecemos, uma vez que os domesticados foram modificados pela ação intencional dos homens. Como os homens fazem isso? Em um grupo de animais ou de plantas há indivíduos que têm as características que interessam ao criador ou ao agricultor. Então, eles os separam e os mantêm para reprodução, desprezando os demais. Esse processo de seleção de alguns indivíduos que interessam aos homens produziu e produz novas espécies: as que só reproduzem entre si; ou variedades, as que se reproduzem com outras espécies. Com base nessa constatação, Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Cavaleiro de Lamarck (1744- 1829), sustentou que as espécies existentes procedem das anteriores que se modificaram para se adaptarem ao habitat ou meio. A explicação de Lamarck foi refinada por Charles Darwin6 que propôs que a sucessão das espécies em um habitat decorre da seleção natural e da seleção sexual. A seleção natural é similar àrealizada pelos agricultores e pecuaristas, salvo por um aspecto: não é intencional, se dá por acaso. Logo, a seleção natural é uma metáfora resultante da comparação entre o tema (o assunto qu e está em exame, para o qual ainda não se tem um conjunto de propriedades definidas, neste caso, a variedade das espécies observadas em diversos lugares do mundo); e o foro (uma noção da qual se extrai os significados a serem transportados ao tema, fornecendo as propriedades que permitam defini-lo, atendendo ao princípio da identidade, aqui definido como a seleção de animais e plantas intencionalmente realizada pelos homens). 5 Epistemológico: A palavra epistemologia resulta da reunião de doi s vocábulos gregos: epistemé, com o significado de conhecimento verdadeiro, confiável, científico; e, lógos, na acepção de discurso, narrativa, estudo. Os gregos antigos não util izavam essa palavra, que foi criada pelo fi lósofo escocês James Frederick Ferrier (1808- 1864) para designar o estudo de problemas tais como os examinados neste capítulo. 6 Charles Darwin: Charles Robert Darwin (1809-1882) alcançou notoriedade ao publicar o l ivro A origem das espécies (1859), no qual propôs a evolução a com base em um ancestral comum por meio de seleção natural. Essa obra e demais trabalhos de Darwin consolidaram a posição de um cientista influenciou inúmeros desenvolvimentos científicos, em especial no campo da Biologia. Como a seleção natural não é intencional, então é impróprio dizer: A natureza fez isto ou aquilo, pois não há intenção na natureza. A seleção natural ocorre por mudanças ambientais (até a primeira metade do século XX usava-se a expressão habitat) que forçaram o desaparecimento de indivíduos bem adaptados ao meio e permitiram a sobrevivência dos não muito adaptados ao anterior. Assim, não é preciso evocar alguma explicação mais complicada a respeito da sucessão das espécies. Darwin utilizou um dos critérios da argumentação científica conhecido como a navalha de Occam (princípio da parcimônia7). O sentido dessa recomendação é que as explicações concisas e conclusivas (rigorosas) apresentam poucas hipóteses que podem ser verificadas ou testadas, enquanto as explicações complexas, com muitas premissas e pressupostos, são impossíveis de serem veri ficadas. No entanto a teoria da sucessão das espécies (este é o nome correto da teoria de Charles Darwin) em um habitat não se deve apenas à seleção natural, uma vez que o autor precisou de outro princípio argumentativo para explicar o que aquele não consegue. Esse outro princípio, ou hipótese explicativa ou premissa, é a seleção sexual, segundo o qual as fêmeas selecionam os machos, mantendo as características da espécie. Não se trata de uma escolha intencional, mas sensorial (estética, de aistethesis, sensação, percepção), de apreensão das características próprias da espécie. Assim, de um lado há a conservação pela seleção sexual e de outro, as mudanças acidentais no ambiente aniquilam grande número de indivíduos adaptados ao anterior e, com sorte, alguns que não eram tão adaptados sobrevivem na nova situação. De um mesmo ponto de partida, as espécies não são fixas, chega-se a pelo menos duas explicações: a de Lamarck e a de Darwin. A decisão a respeito do valor argumentativo de ambas não depende da fama de seus autores, mas das investigações que permitam dizer qual delas é mais completa ou, para dizer de maneira técnica, qual delas é concisa e conclusiva ou, o que significa a mesma coisa, rigorosa. Uma explicação concisa, em que os argumentos são claros e diretos, sem volteios e ornamentos, apresenta claramente a hipótese sobre a qual se sustenta e conclui com base nessa premissa, ou seja, cumpre as recomendações de Occam (princípio da parcimônia). Assim, os adversários podem testar a validade da hipótese apresentada. Como as hipóteses são apresentadas como questões, nas quais é preciso apresentar duas respostas contrárias (princípio do terceiro excluído), então a forma da pergunta é decisiva, considerando-se a preocupação de evitar perguntas ambíguas8. Temos, então, mais um critério para saber se um conhecimento é ou não científico. Caso o conhecimento apresente explicitamente a hipótese ou premissa sobre a qual sustenta a conclusão, 7 Princípio de parcimônia: É um princípio atri buído a Guilherme de Occam (1285-1347), frade franciscano, fi lósofo e lógico inglês, o qual recomenda recorrer apenas às premissas estritamente necessárias para explicar algum fenômeno. Tal princípio surgiu com base na máxima “pluralidades não devem ser po stas sem necessidade” (em latim, pluralitas non est ponenda sine neccesitate). 8 Peguntas ambíguas ou complexas: Imagine a seguinte pergunta sendo feita a você: “Você parou de beber?”. Se você responder “sim”, pressupõe-se que você bebia, provavelmente em grande quantidade (subentendido). Se responder “não”, pressupõe-se que você continua bebendo, provavelmente um alcólatra (subentendido). Para bem conduzir o raciocínio, é preciso perguntar quais as qualidades que legitimamente podem ser atribuídas ao sujeito de uma proposição. Uma das armadilhas envolvidas nas perguntas é o duplo significado, como vimos no exemplo. então ele pode ser confiável. Pode ser não significa que é, pois é preciso que outros especialistas corroborem, tendo verificado a pertinência da hipótese e da conclusão por meio de observações controladas ou experimentos. Logo, o conhecimento científico não é a expressão da subjetividade de uma pessoa, mas o resultado de um coletivo.
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