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Chico Anisio O ENTERRO DO ANAO

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CHICO ANÍSIO
O ENTERRO 
DO ANÃO
Prefácio de Rachel de Queiroz
Digitalização: Argo
www.portaldocriador.org
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SUMARIO
"Enquanto o lábio trêmulo gargalha"...
(Rachel de Queiroz) 
Domingo em Madureira
Impossibilidade
Frustração 
Camarada Brijinsky 
A Mulher de Preto 
Mestre-de-Obras 
Opção 
Diagnóstico Difícil 
Sábado de Aleluia 
Mudança 
...Seis Meses Depois 
O Inspetor do Ginasial 
Telefonema 
O Enterro do Anão 
Excesso de Provas 
Beco 
A Moça da Vila 
A Muda 
A Criança Perdida 
Júnior 
Ação Entre Amigos 
Fazedor de Santinhos 
Cotidiano 
Papai Noel
O Pacote Pardo 
Terceira Dentição 
Injeção de Adrenalina 
As Três Donzelas 
Um Amigo Antigo 
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PREFÁCIO
«ENQUANTO O LÁBIO TRÊMULO GARGALHA»...
O importante, neste novo livro de Chico Anísio, não é apenas o evidente progresso que mostra na sua arte de escrever; o mais importante, creio, entre o primeiro livro e este segundo, é a evolução do showman que punha no papel praticamente a ma​téria-prima do seu trabalho no palco e na TV — as suas anedotas — para a revelação do escritor de seu direito, o ficcionista, o autor. Que se goste ou não se goste desse autor, o caso é outro; que se considere Chico Anísio um escritor da ala conservadora, indiferente ou ignorante das novidades em moda, preferindo a forma linear de narrativa às acrobacias de tema e texto que os novidadeiros exigem, é outro assunto. O fato indiscutível é que, neste seu novo livro, Chico Anísio assume a sua posição de escritor, liberado completamente do humorista profissional, ainda tão aparente em O Batizado da Vaca.
Note-se bem que eu não me incluo entre os possíveis desgostantes da prosa do novo colega. Acho este O Enterro do Anão um excelente livro de contos ou pequenas histórias, muitíssimo bem narradas, numa linguagem onde o coloquial é uma constante ótima, representando uma das positivas "transferências de ca​pital" do homem do palco para o homem da pena. Outra trans​ferência são os flagrantes pessoais, um dos maiores trunfos de Chico para a criação dos seus extraordinários tipos humanos no palco e na TV (alguns deles já considerados clássicos, como o Santelmo, o Coronel Limoeiro, o Urubulino, a Dedé, o Bimbim, o Pantaleão, o "emancipador", o Prefeito de Chico City); é a capacidade de desenhar às vezes com um gesto, com uma palavra, com uma simples linha de diálogo, algum tipo humano inesque​cível; esse dom do homem do palco, Chico Anísio o transporta integral para o livro, onde igualmente vem a representar um dos seus grandes trunfos.
Quer dizer que em nada se deve lamentar, no escritor Chico Anísio, a existência prévia do humorista teatral Chico Anísio. O essencial era que cada um deles tivesse a sua vida indepen​dente, sem subordinação recíproca, o que foi obtido. Pois o efeito de vaso comunicante não subordina, enriquece, mormente quando consegue ser dosado com sabedoria, e mormente quando há dotes reais para o segundo ofício, que lhe garantam exis​tência própria e autonomia.
Quanto ao verso que serve de título a estas notas, tirei-o de um soneto cearense, famoso nos meus tempos de menina, cujo autor é o Padre Antônio Tomás. Cantava um palhaço que, fiel à férrea lei do "espetáculo continua", vai para o picadeiro, apesar de lhe terem ficado em casa a esposa morta e a filha doente, e a chave de ouro arremata:
...Enquanto o lábio trêmulo gargalha 
Dentro do peito o coração soluça.
Sim, lembrei-me do soneto célebre do Padre Antônio Tomás à leitura destes contos de Chico Anísio, quase todos confirmando a tese de que o homem engraçado é um homem triste.
Tratando-se de um dos homens que melhor e mais finamente têm feito rir o Brasil, nos seus vinte anos de vida profissional, Chico Anísio é na realidade um homem de inspiração amarga, irônica e pessimista. O que aliás não é nenhuma novidade, sendo o grande humorismo, quase sempre, apenas uma forma amena de sátira. Desde Swift que se sabe disso. A diferença entre o humorista e o satírico é que o satírico tem a sua finalidade mora​lista, o castigat ridendo mores, enquanto o humorista é mais gra​tuito, mais gracioso, mais descompromissado, essencialmente um artista. Mas vendo-se liberto da obrigação de fazer rir, verifica-se que ele tem o olho e o ouvido muito mais atentos à tristeza que à alegria, aos desencontros do mundo que aos seus acertos.
Como remate, quero insistir em que este livro, não é lícito recebê-lo como obra esporádica de amador de outras artes, simples capricho de homem muito dotado, desejoso de repente de experimentar a mão em novas áreas. Temos aqui um escritor que deve ser tratado como tal; nada do sorriso complacente com que os fãs do showman admirável que ele é se sentem ten​tados a receber o que ele escreve: "Mais uma do Chico!"
Não, O Enterro do Anão não é "mais uma do Chico". É "outra do Chico" e, pois, muitíssimo diversa.
Para mim é uma honra e uma alegria aparecer aqui a apresentá-lo como companheiro de ofício — eu, sua conterrânea, sua velha admiradora, sua amiga, que lhe quero tanto bem e dele tanto me orgulho.
Rachel de Queiroz
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DOMINGO EM MADUREIRA
Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo, no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar tão cedo assim.
— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a cantar.
Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era domingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser domingo.
Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chia​do, botando fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabelos. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina — falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era domingo.
— Dorme, Climério, ainda é cedo.
— Cinco horas.
— É domingo.
Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em preservar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.
A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.
A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um domingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.
Esqueceu de dar descarga.
Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.
O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se acordar, iria à missa das seis.
Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.
Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater ponto na repartição.
Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável para o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.
De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos. Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga enorme.
— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.
Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combi​nação pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.
Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto.
Tirava resto de sono dos olhos.
De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.
— Que horas são?
— São cinco e meia.
As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis. Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à praia. A de Ramos, como sempre.
Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre fosse tão curto e um só por semana.
Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de ontem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou de​pois, tentando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia coçar. Acompanhava a coceira com um bocejo pro​longado. Pediu socorro ao marido.
— Coça aqui.
Ele coçou. Custou a achar o lugar.
— Todo mundo já acordou?
— As meninas. Júlio, não.
— Você já viu o leitão? — perguntou, sem interesse, en​quanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota. — O leitão cabe no forno?
— Hum, hum — ela fez que sim.
Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. En​traram as três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje anteci​para uma hora esse costume, por ter levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos domingos.
Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois, apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.
Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho... a velha calha do alpendre... uma torneira enjam​brada ... Havia sempre umas coisas a arrumar no domingo.
O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adidas".
— Vai jogar?
— Bater uma bola. 
Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.
Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pegou o ônibus, Climério entrou no bar.
— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém-acordado, olho inchado, cara marcada de tra​vesseiro.
— Duas?
— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu Severo?
Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.
Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na hipótese mais mansa.
Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O re​lógio consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.
Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es​peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.
Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jornal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.
— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa lembrando o que ele já sabia.
O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.
— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concordasse ou desse contra.
Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra logo mais.
O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — comadre Emerenciana — muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.
— Quem é vivo sempre chega! — Climério estreitou o compadre num abraço comovido.
— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou risada.
Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.
— E o reumatismo, comadre?
— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem sei o que faça.
— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou. 
A chegada dos compadres endomingou mais a casa.
— Como é? Tem um leitão? — era Juca quem falava. — É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.
— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com afli​ção, enquanto Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.
— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, en​quanto se dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.
— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.
Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Eme​renciana usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.
Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetre​chos de conserto. Juca ia dar u'a mão nos consertos a fazer.
— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.
— Manda brasa!
A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe estendeu. Comentou:
— Tá de lascar! Vira aqui.
E ele bebeu a oitava de um só gole.
O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com bacalhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.
Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama no corpo.
— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça. 
Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que trabalhavam o possível na cerca e na batidinha.
— Tá demais, essa batida.
As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compadres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.
As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de uma das três, chegaram quinze pras duas.
— Boa tarde, Seu Climério — Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.
Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo preciso.
— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido. 
Climério providenciou, cortando um velho sapato.
— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já saindo difícil, pastosa, meio embrulhada.
— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.
Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida, cortavam as frutas a usar na salada costumeira.
A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro, fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova, Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.
Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.
Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.
A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que Climério lhe estendia.
— Nessa aqui eu caprichei. 
Provou.
— Está uma brasa!
Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais dobrada, dando jeito no topete — cabeleira demodée que in​sistia em usar. Mostrou que ia sair.
— Não vai almoçar, Julinho?
— Não dá, mãe, tou com pressa. Como um troço por aí. 
Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria enfrentar o Madureira.
Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!
O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil devorados em goles longos e frios.
Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era do​mingo, dia bom pra sorrir.
Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.
— Vira, vira, vira.. .
— Vira, vira, vira. . .
Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.
Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demar​cado
por tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.
Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.
Saíram Rui e as moças para um cinema provável.
O arroto de Climério avisou que ele acabara.
— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.
As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Con​versavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pon​tos de tricô.
— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso maroto.
Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...
— Dormindo!
— Deixa.
Afinal, era domingo.
IMPOSSIBILIDADE
— Quer ir ao circo?
O filho pula de alegria. Achou que o pai simplesmente adivinhava seu desejo.
— Peça à sua mãe pra lhe vestir.
A mãe enfeita o menino. Ele põe uma roupa mais à vontade.
— Vamos na geral. Circo é bom é na geral. 
O menino concorda.
Saem de mãos dadas. Gérson tem sete anos. Há sete espera a irmã que lhe prometem. O ônibus está vazio. Podem escolher lugar. O menino muda de banco seguidamente. De uma janela para outra, atrás, na frente, perturba o motorista.
— Fica bonzinho aí.
— Vem pra cá, Gérson.
O garoto senta ao seu lado. Está inquieto, excitado pelo circo que o espera e que ele tanto esperava.
— Tem fera?
— Não sei. Lá a gente vê.
— Tem trapézio?
— Deve ter, deve ter...
O menino levanta, anda pelo corredor esfregando a mão no encosto dos bancos vazios. Esbarra nas costas do motorista.
— Fica quieto, oh garoto!...
— Vem cá, Gérson, não atrapalha o moço.
Ele vai, mas não consegue ficar sentado mais do que cinco minutos. Já enfia a cabeça pelas janelas, desliza no corredor, mexe na caixa de colocar as fichas.
— Oh, garoto chato.
O motorista reclama e bate na mão do menino. O garoto chora e olha o pai.
— Não bate no meu filho, não.
O pai e o filho são, agora, os únicos passageiros. O mo​torista diz um palavrão, em resposta à advertência. O menino olha o pai. É sua única defesa. Ele sabe que o menino sabe disto. O motorista, um crioulo forte, não se arrepende do tapa que deu na mão do menino.
— Vê se fica quieto aí.
O menino já não olha o pai. Limita-se a sentar no banco da frente, humilhado, cerceado, proibido.
Ele levanta e caminha inseguro pelo corredor. Senta junto do filho e lhe segura a mão, estreitando-a, forte, entre suas mãos suadas. Percebe, nas costas da mão do menino, a marca dos dedos. O motorista o olha pelo retrovisor. Ele percebe um sorriso no rosto do crioulo.
— Covardia, bater no menino.
— Não aporrinha!
O menino vira o rosto, fazendo de conta que espia a cal​çada. Nada percebe, porém, da paisagem que vai passando. Ele nota que o filho chora.
— Deixa, filho... educação não é todo mundo que tem. Cavalo é cavalo.
O motorista breca e se levanta. Tem os olhos avermelhados pela noite mal dormida, tem a alma moída pela briga de ontem com sua negra amante.
— Quem é cavalo?
O menino afasta-se para o canto do banco. Está tremendo. Ele levanta e se põe à frente do crioulo, menor e mais magro.
— É isso mesmo.
O tapa o derruba no chão do corredor. Ele se levanta com a ajuda do filho. Descem sem pagar. O motorista não se im​porta. Há coisas mais sérias com que se preocupar. Da calçada ele vê o ônibus sumir, dobrando na Avenida Suburbana. Tem sangue saindo do nariz. Enxuga com a manga da camisa. Quer coragem para olhar o filho. Andam sem saber para onde.
— Vamos pra casa, pai.
— E o circo? 
— No outro domingo a gente vai. Eu hoje nem estava com muita vontade...
Os dois choram enquanto cruzam a rua para esperar o ônibus de volta. Ele sabe que precisa falar, mas não consegue imaginar que frase deva dizer. Limita-se a pousar a mão no ombro do filho. Sente que um dente está abalado e que o nariz talvez tenha tido uma fratura. Resiste à dor física. Está cho​rando por causa de uma dor diferente. Pior. Pior. Muito pior.
FRUSTRAÇÃO
— Não posso, Miriam. Hoje é impossível. Liga amanhã.
Regina Célia é o seu nome. Está de vestido azul-claro e com os nervos em pandarecos. Toma um copo de água com açúcar, à falta de um tranqüilizante alopático. Acredita ter me​lhorado. Precisa dos nervos, hoje, mais do que nunca.
O verão incendeia o subúrbio de Regina Célia. A rua des​calça onde mora avermelha-se pela poeira que o vento joga. Mastiga o almoço sem vontade ou prazer. Belisca, apenas, o que põe no prato.
— Come, menina!
— Tou sem fome, mãe.
— Que sem fome. Come!
Dá mais duas garfadas e repudia o almoço, afastando o prato da sua frente. Nem aceita sobremesa.
— Mais me sobra — diz o pai, puxando pra seu lado a goiabada com queijo de Regina Célia.
Chega a colega. Igualmente de azul, igualmente Regina.
— Vamos?
— É cedo — a colega adverte.
— Lugar de esperar a missa é na igreja.
A colega concorda. Despede-se dos pais com um beijo sem carinho, automático.
— Veja lá a hora que vai chegar.
— Oh, mãe, até parece...
— Antes das onze em casa.
— Tá certo — concorda, aborrecida.
Não gosta de ser tratada como criança na frente das co​legas. Afinal, já tem 17 anos.
Saem de braços dados, sorrindo, felizes, as duas Reginas.
Olavo as espera no ponto do ônibus. Três pontos à frente sobe Reinaldo. Cada um com sua Regina. Viajam em pé até a Praça da Bandeira, onde o ônibus se esvazia da gente que vai para o Maracanã.
— Tá nervosa?
— Hum, hum.
— Bobagem.
Mas está. Não consegue se controlar. Regina Segunda morde e é mordida, no banco de trás.
— Que horas são?
— Quatro horas. É cedo à beça.
— Lugar de esperar a missa é na igreja.
Olavo concorda. Têm as mãos dadas quando o ônibus en​gole o Aterro.
— Agora estou mais calma.
— Respira fundo três vezes.
Ela respira cinco. É a mesma coisa. Mas diz-se mais calma. De noite estará segura de si, forte, tranqüila, como precisa.
Saltam defronte ao cinema. Olavo espia os cartazes de um filme de bangue-bangue, enquanto esperam que o sinal feche para poderem atravessar a rua. Regina Segunda despreza o claro da tarde, preferindo uma atitude de anoitecer, junto com Reinaldo, cabelo liso e penteado para trás.
Há muita gente em volta para que Regina Segunda, agora, continue comportando-se como no ônibus, como em frente ao cinema. Controla-se e controla Reinaldo, impulsivo, faminto.
— Calma. Aqui, não.
— Que que tem?
Reinaldo tem fome, não quer esperar. Regina Célia transpira debaixo do braço, deixando nascer uma mancha antiestética no vestido azul-claro.
— Tá suando às pampas — comenta Olavo.
— Um pouquinho.
O homem ordena que o sigam. Esta ordem não é dirigida a Olavo, Reinaldo, Regina Segunda.
— Tchau, bem.
— Tchau. 
Regina Célia desaparece pela porta de vidro. Os três vão ao bar.
— Três cachorros e três laranjadas. 
Comem e bebem o que será jantar. 
Oito horas.
— Tá na hora.
— Vamos.
Os três se acomodam o melhor que conseguem. Estão, agora, tão nervosos quanto Regina Célia. Agora, sim, entendem o que ela deve estar sentindo.
— Dá um beijinho.
Reinaldo pede, Regina Segunda concede. Olavo repreende aquele comportamento. Ainda mais agora, num momento tão importante. Os dois se controlam. Cada um num canto da pol​trona, evitando, principalmente, que as pernas se toquem.
— Trono das cantoras...
Prendem a respiração. O homem de chapéu engraçado faz graça com Regina Célia, tentando acalmá-la.
— O que é que você vai cantar, minha filha?
— "Triste Madrugada".
Na platéia há três respirações presas. O conjunto faz a introdução e ela entra fora do tempo. Escuta-se uma buzina.
— Salve, salve, salve...
O animador muda de assunto, ignorando Regina Célia, que sai chorando do palco.
Na casa da rua descalça, mais do que Regina Célia, mais do que Olavo e do que
o casal que se beija, os pais, aborre​cidos, desligam a televisão, repudiando o que consideram uma injustiça.
CAMARADA BRIJINSKY
Na rua, nas arquibancadas, em bares e bilhares, Justino, quando solteiro, foi-não-foi, quebrava o pau. Até entradas na polícia! Quatro, e todas elas por arruaça ou resistência à prisão. Mesmo por desacato à autoridade.
Até que casou.
Foi o reverso da medalha.
A mulher, Dona Jandira, cantava de galo, enquanto Justino punha os ovos.
Justino não era um cabra frouxo, mas ficou. Pelo menos, em casa. Na rua, ainda dava para quebrar o galho. Quando os amigos do escritório faziam uma brincadeira (trabalhava num negócio de importação — ilegal — e exportação — inexistente), Justino tinha sempre pronto um revide em palavras ou atos. Não se demorava para chegar ao desforço físico. Isso, na rua. Em casa, era um Ferdinando manso e pacato. Ainda mais do que o touro que cheirava flores.
— Justino, venha cá — comandava Dona Jandira.
— Espere. Eu estou.. .
— Eu disse venha cá!
E lá vinha ele, humílimo marido de uma insuportável mulher — uma gorda senhora de 57 anos que lhe colocara uma coleira para melhor levá-lo, à corda curta, pelos dias da vida. Dias de 72 horas, porque desse tamanho pareciam ser os dias de Justino, sob o jugo dá ditadura.
Morava em São Cristóvão e torcia pelo Vasco. Aquele tor​cedor de rádio, porque a mulher jamais lhe dera o direito de ir ao campo. Ao campo, ele ia antes de casar. Do casamento pra cá, adeus Vasco. Ficava ouvindo o Waldir Amaral e lambia os beiços. Estava certo. Numa dessas, Dona Jandira podia irri​tar-se e gritar um "desliga a droga desse rádio", e aí, nem mel, nem cabaça. Por isso, o rádio era ouvido no menor volume, com o Justino de orelha encostada ao falante, quase precisando adivinhar a descrição do locutor.
Ah, vida sem gosto a do Justino! Via os amigos saindo de casa para o bilhar, e ele na janela sem poder participar da​quela santa sinuquinha depois do jantar, prazer que tanto culti​vara nos tempos de solteiro quando, fazendo merecida fé no seu taco, ganhara muito dinheirinho no Lamas e no Salão Palácio. E nem o papo na esquina sobre as virtudes e os defeitos do seu time podia contar com a sua participação. Tudo era proi​bido, mesmo tomar uma cervejinha no bar do Maurício, no domingo de manhã, de paletó de pijama, nas previsões do que aconteceria no jogo de logo mais, jogo que ele iria apenas escutar. Com o menor volume.
Era como se sua vida não fosse sua, mas de Dona Jandira. O que não deixava de ser verdade.
Quando pela vizinhança um marido chegava tarde para jantar ou dormir, a esposa do faltoso usava Justino como exem​plo, numa explosão de ira:
— Eu devia te tratar como a Jandira trata o marido. Você merecia que eu fosse igual a ela.
Justino Oliveira dos Prazeres. Oliveira, está certo, mas quais os prazeres que pode sentir na vida um Justino tão frouxo?
De vez em quando, lembrava das brigas. Não as de agora, no escritório, que deviam ser mais colocadas na conta de pe​quenas revoltas, mas as brigas pra valer do tempo de solteiro, quando não havia cabresto curto nem gorda Jandira.
Ah, meus tempos. Um dia, na Galeria Cruzeiro, saiu na mão com Madame Satã e quase quebraram o Bar Nacional. Tiveram que chamar três carros da RP para segurar os dois. E os tapas que trocou com o crioulo que ofendeu o Vasco, no campo do Bangu? E o chofer de ônibus da Tijuca, com quem rolou pelo asfalto da Conde de Bonfim, deixando-o sem dois dentes e com o braço quebrado? Ah, tempo que não volta mais, sem Jandira e sem coleira!
Uma coisa, nem ele entendia: por que não brigava com a mulher? Ocasião não faltava. No dia do aniversário do "do meio", quando, na frente dos parentes e convidados, ela o fez se pôr de quatro para limpar o guaraná inocentemente derra​mado, era um ótimo exemplo. Podia haver momento melhor para o revide? Ela falara com ele como se fala a um cão leproso:
— Fez porcaria? Pois fique de quatro e lamba. 
Lamber, ele não lambeu, mas à vista de todos, que fizeram silêncio para testemunhar sua obediência, ficou de quatro e limpou. Queria morrer, enquanto limpava. Pedia que o mundo se acabasse, na mesma rapidez com que procurava enxugar a poça com uma página do Jornal dos Sports. Tinha pensado em berrar: "Limpe você, sua vaca gorda!" — mas, e a coragem para falar essa verdade? De vez em quando, num momento de desabafo, enquanto sofria a viagem de volta a casa, com o Pimentel, seu amigo da Praça Argentina, Justino botava suas manguinhas de fora.
— Pimentel, minha mulher é um bicho.
— Por que você não se manda? — sugeria Pimentel, que já não agüentava mais esse papo chato, na volta ao lar.
— Me mandar como? Se eu me mandar, ela me acha.
— Acha nada — dizia Pimentel, já querendo cortar o assunto para ler as estórias em quadrinhos do jornal.
— Acha! Eu posso ir para o inferno, que ela me acha. Aquilo tem gênio de onça e faro de cachorro.
— Sabe de uma coisa, Justino? Você tem que dar duro nela. Minha mulher, vai lá em casa que tu vê. Minha mulher eu trato ali, debaixo de vara.
— Porque não é como a Jandira — esfriava Justino. — A Jandira é uma vaca ditatorial. Taí! — alegrava-se. — Eu agora consegui explicar: vaca, como as vacas, e ditatorial, como os ditadores.
— Dá um cacete nela. Desce-lhe o braço.
— De que jeito? — e ainda segredava. — Ela é que me bate.
— Mentira! — comentava Pimentel bem que acreditando.
— Ela se serve! Você já apanhou de mulher, Pimentel? É humilhante. Eu com as mãos cobrindo a cara, e ela mandando bala. Eu gritando e ela dando. E a vizinhança escuta tudo, Pimentel, porque quando ela bate é de repente, nem dá tempo de fechar a janela. 
— Mas por que você não revida?
— Quanto mais tento, mais ela me cobre. Posso te falar com franqueza? Quando ela não me bate, eu já sinto falta.
"O hábito é uma segunda natureza", já dizia quem inven​tou essa frase. E sob essa segunda natureza, Justino deixava a vida seguir. Durante as surras torturantes, não era raro um moleque dar calço a outro que subia na janela, pelo lado de fora, especialmente para o gozar.
— Vocês nunca se deram, como é que agora estão brigando? 
Só que não era briga: era surra mesmo. Justino apanhando e pedindo, com as mãos a cobrir o rosto:
— Na cara, não, que fica marca. Na cara, não.
Dona Jandira livrava a cara c esquentava o resto. Justino Oliveira dos Prazeres era um personagem do Nelson Rodrigues, como Jandira também o era.
Um dia, Justino chegou em casa às três da tarde. Dona Jandira estava no tanque, lavando uma combinação, com o rádio ligado. Ela cantava o bolero junto com Ângela Maria. Quando se voltou para pendurar a combinação no varal, deu de cara com Justino na porta da cozinha. Primeiro, o susto e depois, a briga:
— Por que em casa a essas horas? Tá doente? — per​guntou num tom que não admitia outra hipótese para aquela volta do trabalho antes da hora (ele só chegava às sete e meia).
Despedido, não podia ser. Ele não era homem para se atrever a ser despedido. Insistiu na pergunta:
— Tá doente, cachorro?
O que Justino falou foi uma declaração de guerra:
— Entrei para o partido. Agora eu sou comunista. 
Não caiu por falta de espaço. Balbuciou:
— Comunista?
— Fichado. Fiz ficha, com retrato e tudo. Sou comunista praticante. Tou no partido.
E para zombar mais do pavor que já notava na mulher, ainda gritou: "Viva Prestes!"
Aquele Justino que se encontrava meio sarcástico no portal da cozinha não era o mesmo que saíra de manhã. Claro que não era. De manhã, saíra um pacífico e humilhado Justino, um pobre homem submisso e achincalhado, e o que estava domi​nando a cena era um comunista. Comunistaço. Fichado e prati​cante — como ele próprio confessara.
Foi água na fervura. Dona Jandira, acostumada desde me​nina a temer os comunistas, era agora mulher de um. Comunista é fogo, ela sabia. E, sendo casada com um, teria que o suportar. Quis chamar o marido de cachorro novamente, mas o marido não era o mesmo,
era um comunista. Ainda trocaram algumas palavras:
— Justino, Justininho.. . Você, comunista?
— Ativo — acrescentou Justino, cuspindo no chão da cozinha, coisa que sonhava fazer há um monte de anos.
— Fichado mesmo?
— Já não disse? Fichado, com retrato. Sabe aquele retrato com data? Tirei um de cinco minutos, e tá lá na ficha. De frente e de perfil.
— Mas Justino, comunista é... é...
— É o quê? — perguntou ele, crescendo na direção da mulher: — Comunista é o quê? Diz, se tu é homem! Sou comuna, e com muito orgulho! Comuna, e acabou a conversa.
Era o que faltava. Ter que dar satisfação à mulher. Mulher de comunista não tem vez. E se tiver, o cara não é comunista. 
Foi como se a vida fosse virada pelo avesso.
— Boa noite, Justino.
— Cala a boca. Comunista não cumprimenta ninguém.
— Oh, Justino...
— Justino o escambau. No partido, meu nome é Brijinsky. Eu sou o camarada Brijinsky! — e ainda acrescentava, com voz inflamante pelo prazer: — Secretário de célula. Decora o nome: Brijinsky.
Daí pra frente, cadê autoridade sobre o marido? As amigas davam força para uma reação.
— Não se humilhe, Jandira.
— Pra quê? Pra ele me espancar?
— Não me diga, que ele lhe bate.
— E o meu corpo está todo roxo de quê? Olha, olha... 
E exibia marcas arroxeadas nas costas, braços, seios e coxas. Mal aquelas marcas saíam, Brijinsky inventava outro mo​tivo banal para dele fazer qualquer coisa de transcendental:
— Jandira, cadê o Jornal dos Sports?
— Não sei, Justino (tapa) Brijinsky.
— Ah, não sabe, né?
Pronto. Aí estava o motivo para uma surra sem compaixão. Até de cinturão Dona Jandira apanhou. Enquanto batia, Brijinsky falava as coisas todas que pensara falar nos tempos idos de Justino.
— Toma, vaca gorda. Isso é pra aprender a não discutir com Brijinsky. Toma mais esta e mais esta, vaca prenha. Toma, sargento de milícias. Tá pensando que eu sou o quê? Eu sou o Brijinsky, sua baleia encardida. Como é meu nome?
— Brijinsky — murmurava Dona Jandira, agarrada nas per​nas do comunista.
— Decorou, bucho? Então, toma mais esta, de parabéns! — e o cinturão descia no lombo da mulher do Brijinsky, que apenas chorava. Uma virtude Dona Jandira tinha: não gritava nunca.
A Rua Bela, em São Cristóvão, teve, durante muito tempo, uma repetição de comentários. Não se falava de outra coisa que as surras de Brijinsky, o comunista. Bateu de cinto, de escova, de sapato, de panela, de frigideira. Bateu como quis e quando entendeu. Comunista é comunista. Houve um tempo em que chegou a dar pena ver aquela senhora gorda e suada lavando os pratos do jantar, com um pé repousado sobre a outra perna — de longe parecia uma siriema criada a vitamina — e Brijinsky, de banho tomado e roupa trocada — parar na porta rescendendo a "Cambridge", acender um "Petit Londrinos" e dizer, nem se gabe se desafiante, provocador ou irônico:
— Vou para a reunião do Partido.
— Vai demorar, Brijinsky? — ousava perguntar a humi​lhada mulher.
— Sei a que horas vou e não sei a que horas volto! — respondia e ainda gritava: — Aliás, nem sei se volto. Se eu for preso, não me procure — que o partido me ajuda a fugir.
Ela consentia sem palavras — e nem precisava o seu con​sentimento, porque ele ia mesmo.
E lá se ia Brijinsky, batendo a porta com estrondo, tentando demolir a casa.
Seus passos ressoavam como batidas de Estacas Franki pelos paralelepípedos da Rua Bela. Andava pelo meio da rua, que comunista não anda pela calçada. Na Praça Argentina pegava o bonde e ia até Benfica, onde o Pimentel o esperava no "Café Bar e Bilhares Nossa Senhora da Aparecida". Ali, ele colocava um avental, escolhia um taco (que era sempre o mesmo), e disputavam partidas de sinuca até duas, três da manhã. Entre uma partida e outra, enquanto devorava em três goles o copo de cerveja espumante, Justino costumava comentar:
— Pimentel, não há dinheiro que te pague essa idéia de me fingir de comunista.
E jogavam mais uma, sempre com a conta paga pelo Bri​jinsky. Era um dinheirinho que podia fazer certa falta, mas quanto vale a independência, camarada?
A MULHER DE PRETO
— Olha a mulher de preto!
Poucos sabem que se chama Fátima. A maioria nem se interessa por saber se tem nome, sequer. Chamam-na "mulher de preto" e isto basta para que qualquer um saiba a quem se referem.
Tem 39 anos de vida e 14 de Brasil, onde chegou de Por​tugal, solteira. Nasceu no Vizeu, o que lhe dá ao "s" um sabor de "x", considerado cômico.
— O xenhor xabe que não aprexio exa mania de paxar o dia a olhar pro xéu. Xi o trabalho o chama, que o faxa.
O menino, seu empregado no bar, volta ao trabalho por um momento. Não é tão eficiente quanto o bar precisa, mas custa salário pequeno. E não é dos que gostam de responder às admoestações. De boa paz, o menino.
— Xegura cá a xerveja, m'nino.
No bar, o menino é o único homem, desde que Teófilo morreu, num acidente de ônibus na Rio—Petrópolis, três anos depois do casamento.
Fátima, pelo choque, perdeu o filho que começava a gerar. Esteve à beira da morte. Escapou. Mas ficou mais só do que devia. Não tinha tido tempo de fazer amigos, e o marido, ciumento, sempre evitou associar-se às casas portuguesas e a qualquer clube. Viviam um para o outro. Depois, Fátima viu-se obrigada a viver sozinha. 
Na parede do bar, atrás do caixa, o retrato do marido: tripeiro de barba cerrada, azulada, que começava ao pé dos olhos, confundindo-se com os pêlos do peito. Tinha feições finas, o marido: um homem bem apessoado. Foi enterrado no Cemi​tério São Francisco Xavier, onde, todos os domingos, Fátima comparece, levando as flores da saudade. Não chora, todavia. Apenas, triste e solene, deita os cravos sobre o cimento e, após dizer umas poucas rezas, volta ao bar na Rua Salvador de Sá, único patrimônio que lhe ficou.
A mulher de preto. Colarinho fechado, mangas compridas, punhos invariavelmente abotoados, sempre de meias nada trans​parentes, rosto pálido onde nunca tocaram o ruge e o batom. Faz questão de viver no hábito português do luto eterno. Tem os cabelos escondidos pelo lenço de seda preta que não esquece de atar à cabeça, dando-lhe um jeito de camponesa de Vila Franca do Xira. As pernas, brancas demais, acinzentam-se pelos cabelos que deixa crescer, descuidada, esquecida da vaidade — coisa de gente moça. Imagina-se que nas axilas também os haja.
O bar é pequeno e antigo. São cinco mesas com pés de ferro e tampo de mármore malhado. Cadeiras pequenas, de ma​deira de lei, fabricadas pelo marido, marceneiro no Porto. Além das mesas, há o balcão onde o mármore, de beiradas comidas e quebradas, serve de pouso aos cálices de cachaça e conhaque ou xícaras de cafezinho.
— Me dá um Cinzano Tinto.
— Acabou. Tem branco, serve?
— Não.
Perde mais um freguês. O negócio não vai bem. Fala-se na desapropriação do bar, para a abertura de uma rua nova, acabando na Presidente Vargas. Nas prateleiras, um fim de estoque.
— Um Dreher.
— Acabou.
Outro freguês para o bar moderno que se abriu na esquina, concorrência desigual. Para ela restam os da cachaça, que di​videm a pinga com o "santo" e não economizam palavrões no vocabulário. Já está acostumada aos nomes que escuta. Antes chamava os brasileiros de "Boca Xuja". Agora aceita-os. Deles vem o dinheiro diário.
O menino-ajudante lê a página esportiva do jornal, sentado na caixa de refrigerantes. Ela se aborrece com a inércia do aju​dante que não tem a décima parte da sua disposição.
— Eu não te pago para que tu paxes o dia xentado, m'nino. Anda cá a ajudar-me.
Fátima vigia, ensina, comanda, compra, vende, evita.
— Sabe que a senhora, com uma roupinha mais leve, uma blusinha estampada, um penteadozinho maneiro... Não sei não. Tá sozinha porque quer, sabia?
Ela nem sorri, temendo alimentar qualquer esperança sem o menor sentido, impossível mesmo. Desde que o marido se foi, jurou solidão eterna.
— Dois vermutes.
— Xó tem uma dóje. Xerve?
— Não, obrigado.
Vão-se mais dois para beber no bar da
esquina. Ah, quanto tempo falta para acabar com tudo isso?
Mora num quarto alugado, em casa de família, com café da manhã e almoço aos domingos. Junta dinheiro. O que con​segue economizar, ao fim de cada mês, amealha, sonhando com o dia em que poderá comprar a passagem de volta ao Vizeu, onde tem parentes que escrevem cartas prometendo coisas me​lhores do que a vida que o bar lhe permite.
— Por que não casa de novo?
Responde ao dono da casa onde mora, com indisfarçável contrariedade:
— Faxa o favor de não me tocar nexe axunto...
Às vezes cora, à simples idéia de nova união. Considera esses comentários um desrespeito ao luto que esfrega na cara do mundo. Então não vêem que a uma viúva não se devem falar certas coisas? Temendo a continuação do assunto, volta ao quarto, onde mantém acesa uma lâmpada sobre a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sob a qual há um copo com água, molhando um cravo. Os outros onze, da dúzia, deitou-os domingo sobre o túmulo do finado. Amanhã mudará o cravo do copo.
Reza, dorme e trabalha. Sua vida resume-se à conjugação desses três verbos. Não sabe de cinemas ou teatros e mesmo a Copacabana só foi uma vez, passear pela calçada da praia. O mar nunca lhe tocou o corpo.
Hoje é domingo. Está saindo do cemitério, depois de cumprir a tarefa habitual. Há um vento forte que a faz andar tomando conta da saia que, vez por outra, sobe, deixando que se veja o nó no alto das meias, no começo da coxa.
Tem o marido à sua frente, dc tanto que pensa nele. Re​memora o acidente. Relembra conversas. No dia seguinte à sua morte iriam ao Pão de Açúcar.
A roupa que usa, o comportamento a que se determinou, a cara fechada e o passo cadenciado são os responsáveis pelos gracejos que ouve. Os galanteios são infinitamente menores do que merece. Isso atribua-se também à roupa, comportamento, cara e passo.
O Pão de Açúcar! Imagina que não será nenhum absurdo fazer o passeio hoje, domingo. Admite, inclusive, ser uma home​nagem póstuma a Teófilo. Despreza o táxi que se oferece, pre​terindo o ônibus.
Há uma fila grande para o bondinho. A mulher de preto, no entanto, sente-se num deserto. É a única a não mostrar alegria. Não há prazer no passeio. Age no tom que se determi​nou: homenagem póstuma. Qualquer atitude diferente disto, en​carará como pecado, quase heresia, nem sabe definir.
Turistas esbarram nela que, da janela do bondinho, olha a cidade sem maior interesse. Vê as praias repletas, os auto​móveis que mais parecem formigas, de tão pequeninos. Teme, por um momento, que se quebre o cabo, e o carro despenque. Afasta os olhos da paisagem, virando-se para o interior. Examina os companheiros da viagem. As famílias e os casais, alegres, ti​rando fotografias, fazendo piadas que imaginam engraçadas.
— O cabo vai quebrar... vai quebrar... vai quebrar... 
Ridículos. Um menino faz cócegas na tia, provocando-lhe um grito, de susto.
— Xi exe miúdo foxe meu, eu o enxinava... — pensa. 
Está quase arrependida do passeio.
Seus olhos param num homem sentado no canto do bondinho. Comporta-se diferente dos demais, porque se comporta igual a ela. Está só, o homem. Igual a ela. O homem lhe sorri, de modo simpático. Ela retribui e depois se arrepende. Volta à paisagem. Mas já não vê os carros nem as praias. U'a mão invisível torce-lhe o pescoço, obriga-a a virar o rosto para o canto, onde Geraldo continua sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, apa​rentemente honesto.
Saltam no morro da Urca para trocar de bondinho. As crian​ças correm na frente, querendo lugar na janela. Os pais tentam alcançá-las. Os casais têm menos pressa. No fim do grupo, Fátima e Geraldo. Olham-se com respeito, com esperança, com temor e quase carinho. Ele lhe dá passagem. Ela entra no bon​dinho, já admitindo comprar uma blusinha estampada que viu anteontem numa vitrine, no Estácio.
Geraldo sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente ho​nesto, sorrindo, sorrindo...
MESTRE-DE-OBRAS
31 de dezembro. Há 3 dias São Paulo não fala noutra coisa que a Corrida de São Silvestre.
— Deve ganhar um holandês desses...
Há corredores da Holanda, realmente, como os há da Bél​gica, dos EUA, da França, da Argentina. Até da Etiópia há um, que corre descalço. Um de cada país. Do Brasil há 75.
— Boa sorte.
Josué, um dos 75, agradece à namorada o que ela lhe deseja.
É um mulato atarracado, de pernas finas. Nordestino dos que ajudaram a construir São Paulo. Foi pedreiro em muitas obras, fiscal em tantas outras. Hoje, é Mestre, na construção de um prédio na Avenida Ipiranga.
— Obrigado.
Ele agradece à sua neguinha o desejo de boa sorte. Iolanda sorri e lhe põe um beijo na testa. Iolanda é cozinheira, no Morumbi. Conseguiu licença dos patrões para ver seu homem correr. Seria melhor ter ficado em casa, acompanhando pela televisão. Ali, verá a partida e nada mais. Mas achou que sua presença era muito importante. Assim como um estímulo para o namorado.
Josué aquece-se, balançando as pernas de músculos tão di​ferentes das pernas francesas, inglesas, holandesas, que se põem ao lado.
Mantém-se entre os primeiros no começo da maratona. Há dois louros na frente, além de um japonês pequenino, de sapatilha azul.
As pernas começam a pesar, tornam-se impotentes. O louro da Inglaterra parece máquina. Tum-tum... tum-tum... tum... tum... não muda o passo, não arrefece um segundo. Tem um francês nos seus calcanhares. Quinze metros atrás, o japonês calçado de azul, com muita torcida nas calçadas. Depois, Josué, com a camisa da Força Pública, esperança brasileira, na sua opinião.
— Manda brasa, baiano.
Josué, da Paraíba, tem melado na boca, o coração pulsa na veia do pescoço escondido. Josué sabe que o belga sabe que na hora em que desejar vai superá-lo. Pensa em Iolanda, ten​tativa de arregimentar forças.
Estão na subida da Rua da Consolação. Josué olha longe. A rua não tem os quilômetros que pensava, mas talvez mais de doze. Sente a perna grossa, os pés começando a doer.
O louro da Inglaterra já está pequenino, pela distância que aumenta. Na esquina da Caio Prado começam as cãibras.
— Pelo menos quinto...
Josué não tem grandes pretensões. Sabe que não come o que os outros comem, que não vive no mar de rosas dos estran​geiros. Ele é mestre-de-obras, trabalha pra ganhar a vida. É trabalha pesado, não vive em moleza.
O belga o supera. Josué percebe que o belga sorri quando lhe passa à frente. E já há um argentino e um venezuelano a persegui-lo de perto.
— Vamos, Josué.
Não sabe de onde partiu a voz, mas sente refrigério no incentivo que escuta. A subida é íngreme apenas para ele. Lá se vão os sul-americanos passando à frente. Calcula estar em oitavo lugar.
— Pelo menos décimo.. .
Josué tem as coxas medindo dois palmos de diâmetro. Dor​mentes, inclusive. Sente o cheiro do seu suor. Diferente do da obra. Agora, é um cheiro de atleta. Pensa um instante nos irmãos, em Sousa, na Paraíba, que nem sabem que ele é atleta. Pensa em Iolanda, certamente junto a um rádio. Será que estão fa​lando o seu nome?
O sueco o suplanta, como também o holandês. Vão virar na Avenida Paulista.
A noite estava tão fresca, antes da corrida. Agora é esse inferno, essa sufocação que quase não o deixa respirar. Ele bufa a cada passo, morre um pouco a cada pisada. Passa por ele um brasileiro do Corinthians, bastante aplaudido.
— Nem o primeiro brasileiro eu vou ser.
Dobra na Avenida Paulista em vigésimo sexto. Mas há de chegar na frente de muita gente boa. Como estarão suas pernas amanhã? Josué sente o suor escorrer pelas coxas. Está cansado e sofrido. Padece mais, cada vez que um lhe passa à frente. Muitos, aliás, brasileiros. Passa Altamiro, também da Força Pública. Josué não percebe, mas já não corre, passeia. Vão passando muitos. O colombiano é o 78º a superá-lo.
— Subdesenvolvido como eu — pensa Josué, agora em frente do Conjunto Nacional.
Agora, tudo
o que deseja é chegar. Qualquer coisa, menos parar no meio, como a maioria dos brasileiros. Chegar. Precisa chegar. Nem que seja em último Mas tem que ir até o fim. Falta quanto? Deseja tão pouco: chegar. Não pede demais, meu Deus do Céu.
— Andando, até eu.
A voz de gozo que sai da calçada o magoa. Pensa um palavrão que não pode falar. Da boca já sai, pelos cantos, uma espuma branca, um creme de cansaço. Faltam 400 metros. Chegar. Iolanda. Os irmãos na Paraíba. Chegar. Os amigos que arran​jaram um jeito dele correr, defendendo a Força Pública. Iolanda.
Chegar.
Duzentos metros, Josué.
Continuam a passar por ele. Está incapacitado de saber em que colocação se encontra. Só saberá o lugar que tirou amanhã, pelos jornais.
— Corre, que dá pra tirar terceiro.
Zombam, na calçada. Josué pensa em lhes dizer que se ponham no seu lugar. Não é atleta, é mestre-de-obras, seus idiotas, que só sabem dizer besteira.
As pernas param de resistir. Faltam cem metros. Ele cai. O asfalto queima-lhe a cara. Retiram-no da avenida. Não há ar no mundo. Josué tenta o ar que não existe. A boca aberta, com dentes de ouro, busca o ar impossível. É tarde. O ar acabou, para ele, pelo menos.
No podium colocam uma coroa de louros na cabeça do inglês.
OPÇÃO
Está chovendo há dois dias. Os carros passam devagar pela rua, temendo o buraco possivelmente encoberto pela água em​poçada. A chuva começou farta, afinou na primeira madrugada, recrudesceu o dia seguinte inteiro, amainou às primeiras horas da noite e agora voltou a cair caudalosa, insistente, ininterrupta, bastarda. Há 48 horas chove, e o céu, pesado de cinzento, não promete estiagem para tão cedo. As nuvens grossas encobrem a cidade, entristecendo-a. O sol, tão esperado para o fim de semana, fica para outra ocasião. O sábado será também chovido, como também o domingo, é de se imaginar. Há ruas que já se transformaram em pequenos riachos e há as que já são rios. Passa um homem de calças arregaçadas, sapatos na mão, lenço inútil na cabeça. Tem a água pelos joelhos e a chuva dentro da alma, molhando-lhe o espírito, esfriando-lhe a vida.
O homem vai devagar. Seus joelhos afastam a água, graças aos passos arrastados, sem levantar o pé do chão. Tem a camisa colada ao corpo, transparente, de molhada. Vê-se o bico do peito, enrijecido pelo frio que a chuva lhe traz. O relógio, guardado no bolso, na fuga da água, está tão encharcado quanto estaria se o levasse no pulso.
O homem está chovido, como a cidade. E triste. Mais do que a cidade, que a esta hora lamenta o fim-de-semana inutilizado pelas águas.
— Chuva fora de tempo...
É julho, mês seco, via de regra. Mas chove há dois dias. Chove o que Deus dá — como comentam na cidade.
O jogo de domingo já foi cancelado, e o serviço de me​teorologia não acena com possibilidades de melhora. Ao contrário.
O homem está voltando do trabalho. É ourives, na Rua Uruguaiana. Mora no Catumbi, onde a chuva molha mais, insiste em permanecer, não apenas na rua, na calçada, mas dentro das casas, pela ineficiência dos bueiros.
Ele abre a porta, entra e continua na chuva. Sua casa é um lago. A água supera a mancha antiga da parede, fabricada pela chuva de janeiro. Os móveis, previamente colocados sobre estrados, já têm os pés molhados.
Não há ninguém para o ajudar a remover a água. Os baldes são despejados no pequeno quintal. A água do quintal aumenta e volta à casa.
A madrugada o encontra exausto, dentro da água, vencido pela chuva. O vidro quebrado da janela da sala permite que por ali entre mais chuva. Ele cola um jornal ao vidro. Por algum tempo a água não entrará por ali.
— Que chuva!
Lá fora, por um momento, a chuva arrefece seu ímpeto.
— Acho que vai parar...
Meia hora depois chove mais do que antes. Quase não escuta o motor de carros, na rua. Todos em casa, fugindo da chuva, com medo da água que desaba do céu, sem piedade, sem cuidado, sem pedir licença.
O homem nota a primeira goteira. Depois percebe que as goteiras são dez, trinta, o teto da casa tem, neste momento, a utilidade de um pára-quedas num submarino.
— E agora?
Está dois palmos acima da mancha, a água da chuva. Já não é da chuva, é água da casa, alagadiço em que mora há 17 anos, esperando um aumento que lhe permitirá o apartamento sonhado.
Da janela vê um conjunto residencial na quadra seguinte. Inveja os que lá estão, secos, enxutos, saudáveis, sadios.
O balde, esquecido, está sobre a cômoda do quarto. Nada há a ser feito. E chove mais, há ainda o que chover.
Faz 50 horas que este aguaceiro desaba.
— De onde vem tanta água?
As gavetas foram retiradas e empilhadas sobre os móveis mais altos, tentativa de salvaguardar suas coisas.
Maria, agora, faz mais falta do que nunca. Não que ela pudesse conter a chuvarada, mas o ajudaria com as palavras antigas de incentivo.
— Um dia a gente muda.
O homem está sozinho, no meio da chuva, que cai, em casa, na rua. A cidade molhada acorda mais tarde. Até agora não passaram mais de dez carros na rua. O sábado vai em meio. A fibra do homem caminha para o fim. A chuva das goteiras — incerta — molha pior. A água sobe pela parede, apodrece os móveis velhos, inunda o armário, esfria a vida, refrigera os nervos.
Chove. De noite se vê que chove mais forte. O lampião da calçada mostra os pingos caindo na diagonal, assim postos pelo vento que açoita.
— Haja água.
É o que há. O étager, submerso, é adivinhado pelo homem que caminha idiota pela casa, com água à cintura. Anda sem destino, caminhando autômato pelos três cômodos da casa-lagoa. Senta sobre a cômoda, pernas levantadas para não ter os pés enfiados na água. Tem frio. Põe, nas costas, um cobertor úmido e enrola no pescoço um velho cachecol que era de Maria.
— Maria... Maria... por que você foi embora?
Pela primeira vez o homem fica triste. Deixa as lágrimas caírem do rosto, juntarem-se à água da sala, que é tanta quanto a do mundo.
— Maria... você fez bem em ir embora. Se estivesse aqui...
Não havia esta chance. Maria mudara para o morro, na companhia de um mulato, trabalhador do cais do porto. Trocara o conforto de uma casa no Catumbi pela insegurança de um barraco. O primeiro a cair, quando a chuva começou.
DIAGNOSTICO DIFÍCIL
– Acho que estou tuberculoso!
Foi o que pensou ao se olhar no espelho. Olheiras cinzentas, rosto pálido, olhar baço.
A compra do apartamento o obrigara a emendar noite com dia na direção do táxi, causa do estado em que se encon​trava, denunciado pelo espelho do banheiro.
— Acho, não, eu estou. Eu sou um tuberculoso — concluiu, fechando o tubo de creme de barbear, sentando desconsolado no vaso sanitário, mãos entrelaçadas no meio das pernas trêmulas.
A mulher dormia. Não acordava antes das oito. Teria que providenciar tudo antes da mulher acordar, para evitar um alarme. Olhou-se de novo no espelho, forçando ver-se de perfil, apertando as bochechas, emagrecendo de propósito o rosto já afinado.
— Estava demorando. Não como nem durmo direito. Eu não estava em condições de me meter a comprar merda de apartamento nenhum. Agora me machuquei. Tuberculoso da silva.
Pegou o Chevrolet na garagem, desceu a bandeira "livre" e saiu de Olaria para um hospital qualquer, longe de casa, onde não houvesse o perigo de um amigo o encontrar.
No trajeto, pensou na luta inútil pela vida. Que adiantava tudo que fizera? O carro comprado com dificuldade, o aparta​mento, adquirido num esforço suicida, o dinheiro que teve que gastar na batida do mês passado quando por pouco escapou da morte.
— Era melhor ter morrido na trombada — pensou alto.
E nem seguro de vida tinha. Mas como fazer seguro, se o dinheiro que ganhava dava mal e porcamente para a comida e as prestações do imóvel?
— Vidigal, modéstia à parte, você sifu — disse pra si. 
Dinheiro medido, contas atrasadas, trabalho dobrado para compensar a falta da grana, os meninos morando com a avó — tentativa de diminuição de despesas — apartamento a amor​tizar...
— Vou logo
tirar uma chapa. Se não der nada, fico tran​qüilo; se estiver, dane-se — falava sozinho enquanto o Che​vrolet comia asfalto na Rua Jardim Botânico.
— Vou maneirar um pouco. Trabalho de 7 às 5 e dou o carro de noite pro meu cunhado. Não dou, não. Aquele cara vai me arrebentar o carro. São mais seis meses. Mas... e se for o que penso?
Com 37 graus à sombra, parou no estacionamento e entrou no Miguel Couto, de mãos e corpo suados. Muito pelo calor que estava de sufocar e um pouco pelo cagaço.
U'a mão lhe bateu no ombro.
Voltou-se, num salto, e deu de cara com o Dória, amigo de velhos tempos, desde a época em que fora servente, no Botafogo F. R.
— Por aqui, Vidigal?
Antes de qualquer coisa, numa fração de segundo, chegou à conclusão de não ser mau negócio confessar tudo ao amigo. Afinal, o Dória morava por ali, não teria a menor chance de contar aos amigos de Olaria o estado deplorável em que se encontrava. E, sendo o Dória enfermeiro, era válido ouvir sua opinião.
— Tuberculoso — falou, como se revelasse um alto segredo de estado.
— Algum amigo, é? — perguntou Dória, com a naturali​dade dos enfermeiros.
— Eu, Dória. Eu estou tuberculoso. Seu amigo está ferrado.
Dória esboçou um sorriso que não foi do seu agrado.
Sorriso que ele entendeu como deboche. Mas Dória estava tranqüilo.
— Corta essa, Vidigal. Com esse corpo, esse aspecto, agüentando essa vida que você agüenta? Você tem cansaços extemporâneos?
— O que é extemporâneo?
— Tem cansaços?
— Não. Quer dizer, tenho. De madrugada...
— De madrugada, não vale. Cansaço que eu digo, no caso, é assim... acordar cansado, ficar estafado sem motivo, fati​gado sem mais nem menos...
— Não. Não chega a esse ponto.
— Tem febre de tarde? Assim, à tardinha. Tem?
— Não sei — e encostou a mão debaixo do queixo.
— Tosse seca?
— Seca, não.
— Então você não tem nada. Vai por mim, Vidigal. Você está melhor do que eu.
Era de dar risada. Um enfermeirinho, que não sabe mais do que passar mercurocromo em feridas e algodãozinho em nádegas, meter-se a diagnósticos que os próprios médicos não se atrevem a dar sem os Raios X. Quem era o Dória pra se arvorar em saber das coisas. Perdeu a paciência.
— Você não entende nada de tuberculose. Olhe meus olhos — e puxava as pálpebras exageradamente. — Onde você já viu olho assim? Só no cinema mudo. E as olheiras?
Os dedos, abertos em V, batiam embaixo dos olhos, en​quanto subia a voz em tom e meio, no mínimo.
— Pensa que eu sou o Carlitos? E essa palidez? Se eu fosse chinês, está certo, mas é que eu sou carioca. Eu sou carioca, Dória.
— Eu sei — disse Dória, baixo, tentando acalmá-lo um pouco.
— Não sabe porra nenhuma. Carioca tem cor de sol, não tem essa cor de queijo, e se agredia com tapas nas faces, muito nervoso. — Pegue na minha mão.
— Está fria — Dória admitiu.
— Fria, não; está gelada. Passe a mão no meu rosto. 
Dória tocou-lhe a face com o dorso da mão esquerda e não se deu ao trabalho de fazer um comentário. Percebeu que o amigo sofria um ataque de hipocondria. Para tranqüilizá-lo, teria que expor as provas. Levou-o à seção de Raios X.
— Tire a camisa e deite aí.
— Pra quê?
— Você não bateu com o carro? Não esteve aqui pra ver se tinha quebrado uma costela? Eu vi a sua ficha no arquivo. Primeiro, vamos ver a costela. Pode ser que tenha qualquer galho na espinha, e isso tenha deixado você com o estado geral aba​lado. Tire a camisa e deite.
— E o pulmão, Dória? O Pulmão? — mencionou o pulmão com P maiúsculo.
— Tem tempo — finalizou o enfermeiro, sempre sereno. 
Obediente como os desenganados, Vidigal tirou a camisa suada de se torcer e deitou de costas na mesa onde o alumínio gelava, pela sala refrigerada. Sentiu um frio que parecia o da morte.
— Se eu não estava tuberculoso, fiquei agora — pensou.
O enfermeiro dava as ordens mecânica e friamente. De bruços. De lado. De costas. De frente. De bruços. Cada ordem era acompanhada por um splac do aparelho. Vidigal, a cada posição em que se punha, já imaginava o futuro terrível. Entre​garia o Chevrolet ao cunhado, aquele safado, e era a única saída. Quanto ao apartamento, entraria num acordo e o devolveria. Por motivo de doença, o dono iria entender. A mulher, coitada dela, iria juntar-se aos filhos na casa da sogra, durante o tempo em que ele estivesse envergando uma camisola de morim, em Curicica.
Deu vontade de tossir. Ele reprimiu. Pensou: "a tal tossezinha seca". Não pôde evitar o espirro.
— Saúde — disse o enfermeiro.
— A puta que o pariu — pensou Vidigal.
Mais dois ou três splacs, e a chapa sumiu por um buraco na parede que ligava à sala do lado.
— Pode vestir a camisa?
— Ainda não. Tá com pressa?
— Tá um friozinho chato.
— E o pulmão? Não quer uma radiografia? Fique em pé e encoste aqui.
Novas ordens do enfermeiro. Automáticas, como as ante​riores, geladas como a sala.
— Respire. Prenda. Não respire. Solte.
Vidigal soltou um arzinho além do que respirara. Era medo, mas isso não evitou que ficasse encabulado. Ainda mais pelo "saúde" que Dória lhe desejou. E aí, mais ordens.
— Não respire. Pode respirar. Prenda. Não respire. Splóct. Pode respirar. Prenda. Splóct.
A chapa sumiu igualmente pelo buraco da parede.
— Pode vestir agora.
Com olhar inexpressivo, Dória acompanhou Vidigal no vestir da sua blusa. Houve alguns momentos de silêncio entre os dois. De um lado, Vidigal: suado, sofrido e cismado. Do outro, o enfermeiro: calado, cético, cretino, cínico, cachorro.
— E daí? — inquiriu Vidigal, disposto a acabar com aquilo de uma vez para sempre.
— Daí, tem que esperar um pouco. Estás morando onde? — quis saber o enfermeiro, sem obter resposta alguma.
Ora, se aquilo era momento de conversinha. A espera era angustiante. E também sem necessidade. Como se alguém per​guntasse a um matemático a soma de dois mais dois, e ele pedisse prazo para responder.
— Sente ali naquele banco — ordenou o enfermeiro, já de volta ao corredor.
O banco indicado era a preliminar da morte. De um lado, a sexagenária com o braço envolto em mercúrio, sofrendo tre​muras; do outro, um crioulo grande com um túnel aberto na coxa, certamente provocado por uma 45.
Ao longe, viu a enfermeira. Mulata de fazer gosto.
— Que mulataço! — pensou, e logo se arrependeu. Quem está com os dias contados lá tem direito de imaginar essas coisas de pecado!
A enfermeira vinha certa, dirigindo-se ao banco. Era tra​zida por passos que tinham que ser adivinhados. "As enfermeiras, como a tuberculose, não fazem ruído algum" — ousou filosofar.
— Se ela falar comigo, esqueço que estou doente e... 
Era com os vizinhos que a moça tinha assunto.
— A senhora pode ir — falou à sexagenária. — O senhor, também — disse, dirigindo-se, agora, ao negrão. — Quanto ao senhor — era com ele — por favor queira esperar mais um pouco.
Pronto. Caso liquidado. A dispensa daqueles dois corro​borava a moléstia. Não seria mal, chegou a admitir, que a he​moptise acontecesse agora.
Ele tossiu de repente. Foi como se em meio à missa tivesse berrado MENGO!
Sentiu que todos olhavam.
De fato, muitos o olhavam, mas não era pela tosse, era por ter esquecido de abotoar a braguilha.
Mas quem o convenceria de que os olhares não eram pela tosse? Tosse cava, como pensava, frisando. Tosse de tuberculoso.
E a tosse, diga-se de passagem, não fora tão cava assim; e nem era assim tão tosse.
Um velho tossiu, no banco em frente.
— Coleguinha — pensou Vidigal, oferecendo ao velho um sorriso de "estou contigo".
O velho retribuiu e repetiu a tossida, como se alguém no recinto tivesse pedido bis.
Passou o Dr. Lídio Toledo. Vidigal tentou esconder-se para não ser enxergado.
— Espere — falou o Dr. Lídio, numa tentativa de des​cobrimento —, você não trabalhou no Botafogo? Como é mesmo o seu nome?
— Vidigal — ele respondeu como se estivesse num confessionário.
— Vidigal, isso mesmo. Como vai?
— Mal! — entregou-se.
— Algum problema com você?
— Tuberculina
— falou ao ouvido do médico pra não chamar atenção.
Mesmo assim, a gravidade da voz fez com que a palavra chegasse ao ouvido de uma senhora pobre, de pernas inchadas, que, imediatamente, afastou-se 30 centímetros no banco, levando um lenço ao nariz.
Dr. Lídio o encorajou.
— Que besteira, Vidigal. Você está ótimo. Tussa. Vamos ver. Tussa — e colou a orelha às costas do Vidigal-Quase-Morto.
Tossir, era a coisa mais simples que lhe podiam pedir. E, como era ordem médica, e todos tinham escutado, ele tossiu a vera.
— Está ótimo — foi o parecer do Dr. Lídio Toledo.
— E a tosse?
— Normal! — disse, e foi embora depois de uma batidinha amistosa sobre o ombro.
O médico sumiu, Dória reapareceu.
— A radiografia da costela está pronta.
— Tem... tem... como é mesmo? Como é mesmo o nome?
— Fissura? Não. Mas a chapa está molhada. Vamos deixar secar.
Ele levou o enfermeiro a um canto isolado e então fez a pergunta. A única que interessava.
— E em matéria de pulmão?
O enfermeiro, com um gesto, mandou que ele esperasse.
Nova espera. Mais espera. Outra espera. Só espera. Já faltava paciência, nascia aborrecimento, crescia mais a aflição.
Não devem ter passado mais do que quatro minutos. Pra ele foram 30. O fato é que o enfermeiro voltou trazendo um sorriso. Riso claro como a aurora de um verão em Ipanema. Um riso feito de luz. Levantou o polegar num gesto muito comum.
— Positivo.
— Positivo? — lamuriou-se o doente, caindo, arriado, tonto, sentando sem saber onde.
— Positivo. Não deu nada.
— Então, não é positivo. É negativo, Dória.
— Positivo. Negativo.
— Mentira — ele duvidava.
— Nada. Você não tem nada — garantiu o enfermeiro, jun​tando à frase uma pancada em meio às costas que, além de mostrar amizade, esfregava-lhe na cara que os pulmões estavam em ordem.
Vidigal sorriu feliz. Daí, foi à gargalhada. Repetia o enfer​meiro na frase que achou bacana.
— Positivo, negativo. Muito boa, muito boa. Positivo. Ne​gativo. Esse Dória...
— Não disse? Está melhor do que eu, que estou com unha encravada.
Ninguém consegue explicar o que o Vidigal sentiu. Uma coisa parecida com algo que se assemelhasse a nascer de novo!
— Nada! Nada! Nada! — repetia e repetia, com um sorriso de vitória. Estou enxuto. Enxutinho!
Olhou o velho de frente. O velho tossiu. Isto lhe deu vontade de pôr um lenço no nariz. Olhou a mulher do lenço e, estribado no "nada" categórico do enfermeiro, dedicou-lhe uma tossida caprichada e especialmente dirigida às narinas abertas da velhota. Tossiu de novo, de propósito.
— Nem sombra, doutor? — perguntou ao amigo Dória, nessa altura promovido, e muito merecidamente.
— Que é isso? Que sombra, o quê? Nada, Vidigal. Nada é nada — repetiu o enfermeiro, já de um jeito que mostrava ter aceito o doutorado que Vidigal lhe dedicara.
Apertaram-se as mãos.
— Posso te dizer um troço?
— Pode, claro.
— Dória, modéstia à parte, você é uma sumidade. Você é uma competência. Você é autoridade. Você, Dória. .. — pro​curou a palavra melhor e, à falta dela, disse mesmo a imagi​nada —... você, Dória, é do cacete!
Bateu no peito. Sentiu músculos e não cavernas, como antes pressentia. Estufou o tórax de modo exibicionista. Um potro. Estava um cavalo. Um puro-sangue de saúde.
— De vez em quando, tem gente que fica com essas cismas — disse Dória, olhando a chapa contra a luz fluorescente do teto do corredor.
— Bobagem! — Vidigal vociferou com uma voz de Sargentelli.
Fora da fossa, vibrava.
— Tou legal.
E caprichava no grave, acentuando a verdade.
— Tou legal. Legal demais. É isso aí, malandro!
Saiu do hospital como os absolvidos deixam o tribunal.
A manhã era azul como a terra. Trabalhar, não ia mais. Em hora de comemoração só trabalha quem é burro. Tomou uma decisão.
— Vou comprar um short e vou pegar uma praiazinha de leve.
O dia cheirava a vida.
Atravessou a avenida sem nem olhar para os lados. Se um carro o pegasse, muito pior para o carro. Com a saúde que estava, entre ele e um Corcel, Vidigal era mais ele.
Passava do meio-dia.
Enquanto andava, ia achando explicação para os sintomas que motivaram o mau pensamento. O suor? Era o calor, andava muito abafado, um janeiro de ferver. Depois de pagar o apar​tamento, o primeiro dinheirinho seria para um ar condicionado. A mão fria? Talvez fome. A última vez que comera fora um misto, em Madureira, quando levou uns grã-finos para o ensaio do Império Serrano. Os calafrios? Sistema nervoso. A tosse? O cigarro. Aquele maldito Continental sem filtro que não con​seguia largar. Falar nisso, acendeu um. Não precisava parar de fumar. Estava bom. Ponta dos cascos. Não fumam os tu​berculosos.
O bar o convidou a entrar. Não era o bar em si, mas um vistoso display, mostrando uma Coca-Cola coberta de gelo. Mas, para os saudáveis, isto é pouco.
— Um chope — comandou, vitorioso — estupidamente gelado.
Era o chope da desforra. O chope a que antes pensava ter perdido o direito de pedir e de beber.
— Com ou sem colarinho? — indagou o homem do bar.
— Sem. Bem tiradinho.
O português tirou um chope que merecia um ministro para o engolir. Vidigal segurou o copo como se fosse um troféu e o levou à boca, tomando o chope de golpe, esfriando a serpentina, equilibrando o metabolismo.
Tremeu.
Arrepio de alegria misto com forra. Soltou um "ahhh" pro​longado, como o dos anúncios de creme dental.
— Mais um.
Foi quando chegou o amigo, um tal de Batalha.
— Até as pedras se encontram! — foi a frase inteligente do Batalha, ao enxergar o Vidigal, antigo companheiro de noi​tadas memoráveis na gafieira do Cabral.
Vidigal encontrava quem precisava encontrar: alguém a quem contar tudo. E outra coisa não fez. Contou tudinho. Desde os sintomas até a conclusão do Dória.
— ... e ele disse: nada.
Batalha, voz rouca, usando terno e gravata:
— Se a chapa da costela estava molhada... a do pulmão também não estava?
Vidigal suspendeu o chope que já tinha encomendado. Pediu um leite morninho, que sorveu em pequenos goles. Daí, voltou tossindo ao Miguel Couto, para novos Raios X e uma esculham​bação em regra no Dória, aquele filho da puta, enfermeirinho metido a fazer diagnósticos.
SÁBADO DE ALELUIA
Tomava dois banhos por ano, na fonte da praça.
— Sapucaia! — os garotos gritavam, quando ele passava, exalando um mau cheiro desagradabilíssimo.
Não respondia mal aos meninos. Limitava-se a sorrir, quando lhe gritavam o apelido. Talvez por isso os gritos se repetissem pela rua inteira, à sua passagem malcheirosa.
— Sapucaia!
Não era velho. Poderia ter 35 anos, calculando-se por cima. Os cabelos crescidos, sebosos, caíam-lhe pelos ombros, mistura​vam-se com a barba nunca cortada; o bigode, jamais aparado, entrando pela boca. A roupa, um amontoado de molambos, ras​gões nas calças, sapatos furados.
Aqui e ali alguém se apiedava e lhe dava um prato de comida, que ele devorava como bicho. Não usava a colher que lhe estendiam. Comia com a mão, fazendo bocados disformes.
No sábado de Aleluia os meninos fizeram um judas que era um réplica dele. De barba e bigode, além da cabeleira onde nunca um pente deslizara, supunha-se.
De longe, viu-se malhado. Os garotos corriam e davam pauladas no boneco de pano que era ele. Furavam os olhos do judas, rasgavam-lhe a roupa, deixando a palha saindo. De longe, ele via a malhação do judas, quase sofrendo na carne o que acontecia com o bruxo pregado no poste. Doeu-lhe muito quando atearam fogo ao boneco. Os gritos da garotada saudando a queimação do judas feriram-lhe os tímpanos. Com as mãos nos ouvidos, correu. Escondeu-se debaixo da ponte, canto onde mo​rava, e chorou.
Um cachorro velho, cego de um olho, aproximou-se. Lam​beu-lhe a mão, e isto lhe deu conforto. Puxou o cachorro, estreitando-o nos braços. O cachorro deixou-se ficar ali, esquecido, livre do frio que vinha do rio. Dormiram.
À noite saiu, na cata de comida. Não. Não passaria pela rua onde lhe tinham feito aquela maldade.
Andou pela praça, estendendo a mão, no pedido da esmola.
— Vai trabalhar.
— Sai, fedor!
O cachorro o acompanhava. Ele quis enxotá-lo, não conse​guiu. Por mais que tentasse, o cachorro não se afastava. Quando o espezinhava, o cão retirava-se alguns metros e depois voltava a segui-lo. Deixou de o expulsar. Admitiu-o como amigo. Como companheiro, pelo menos. Temeu a presença do cachorro.
— Outra boca pra alimentar...
Mas o cão, fiel como um velho amigo, seguia-o, manso e cativo.
No bar ganhou um pão. Com esforço, dividiu ao meio. Sentou no meio-fio, dando metade do pão ao cachorro. Comeram com sofreguidão. Negaram-lhe a água que pediu.
— Depois eu tinha que quebrar o copo... — comentou o dono do botequim, explicando a negativa.
Todos ficaram de acordo.
Tinha sede. O portão da casa estava aberto e ele viu a torneira, no jardim. Ninguém por perto. O cachorro entrou pri​meiro. Ele abriu a bica e esperou que o cachorro bebesse. Depois, com a mão em concha, serviu-se da água, quase gelada, re​confortante.
— Um ladrão!
O grito do menino assustou o cachorro. O pulo do animal foi tão rápido que ele não pôde evitar. Cravou os dentes na perna do menino que, aos gritos, correu para casa. Ele fugiu para debaixo da ponte. O cachorro já estava lá.
— Você fez muito mal. Então, é certo morder uma criança? O que foi que o menino lhe fez, pra você dar aquela mordida nele? Eu devia bater em você.
O cachorro parecia entender. Abria e fechava os olhos, boca escancarada, língua de fora, arfando.
Pensava no menino. O que estaria sofrendo, coitadinho, àquela hora?
O menino escondeu dos pais a mordida. Tratou, ele pró​prio, de passar mercurocromo na ferida da perna. Estava com medo de ser castigado. A vizinha vira o molambento no jardim. Imaginou que fosse roubar.
— Vou avisar a polícia — disse o dono da casa. 
Considerou um abuso aquele mendigo entrar na sua casa, mesmo não tendo passado do jardim. Não sabia o que fazer ali. Talvez roubar, como a vizinha supunha. Era preciso que tomasse uma providência.
Recebeu adesões. Todos, na rua, de acordo. Tinham raiva dele, do cheiro dele, do aspecto dele, do perigo enorme que ele representava para a sociedade. Aquele bicho!
— Lincha! — berrou uma voz, menos humana. 
Apanharam lanternas e saíram na busca do monstro.
— Eu sei onde ele mora — ofereceu-se uma mulher. 
Cercaram a ponte. O mendigo quis falar, tentou correr.
Fecharam as saídas possíveis. Tinha gente com achas de lenha e barras de ferro. Não lhe davam tempo para explicações, nem jeito de fuga. Tentou alcançar o alto da ponte. Bateram-lhe nos dedos. Ele caiu na terra onde antes dormia. Fizeram um cerco em volta dele. Eram mais de quarenta, ninguém poderia ser culpado. Deram e espancaram como de manhã tinham feito com o judas.
Foram atirados no rio os dois: o cachorro e ele. A cor​renteza os levou. O cachorro morreu, certamente, sem sentir. O mendigo sofreu muito antes de morrer. Queria ter tido tempo de avisar que o cão estava hidrófobo.
Quando o pai chegou de volta, satisfeito com o que fizera, tinha tanta alegria que nem notou que o filho estava com febre.
MUDANÇA
Era em São Paulo, mais precisamente na Rua Traipu. Fecha​vam-se as portas da mansão, cerrando-se, à mesma hora, alguns anos de mistério e melindrosas estórias.
O último objeto a ser colocado no caminhão-ônibus da trans​portadora foi um vaso chinês.
— Cuidado. É relíquia — disse ao mulato que levava a peça no ombro.
O mulato, carioca como companhia de transportes, sorriu-lhe.
— Tô sabendo. Tá comigo, tá com Deus.
Chamava-se Gualberto, mas preferia que o chamassem de Guga, diminutivo que o agradava, e que supunha estar de acordo com a sua personalidade. Estava. Sempre cuidadoso, tratando de suas coisas com exagerado esmero, limpando e polindo o que os empregados já tinham polido e limpado.
— Olhe o pó que está no aparador!
Talvez fosse melhor se, em lugar de empregados, preferisse as empregadas. Mas não se dava a esta preferência.
— Mulher só serve para desarrumar — justificava com uma voz grave e viscosa.
Obeso, branco, quase láteo, tinha mãos gordas e dedos ab​surdamente curtos. Os óculos, aros de tartaruga, insistiam em descer à ponta do nariz, sem que ele se preocupasse em recolocá-los no lugar devido, o que mais o enfeava.
Tomava sol todas as manhãs, inclusive as de frio intenso. Sem nenhuma vergonha, estendia uma vistosa toalha vermelha no jardim e ali se deitava, facilmente visto por quem passasse na rua.
Poderia enganar a idade, coisa que, aliás, fazia. Dizia ter 45 anos, mas já dobrara os 50 há alguns meses. Agradava-lhe sentir-se mais jovem.
— Adivinha minha idade — pedia demais.
— 42 — iludiam.
— E cinco, nenen. E cinco! — repetia, vibrando.
E sungava as calças com os cotovelos, rindo sem entreabrir os lábios. Puxava a barriga e inflava o tórax, na inútil tentativa de transformar em músculos a gordura quase seio. Apesar disso, pisava leve, invulgarmente suave. Poder-se-ia dizer que deslizava.
— O carro está pronto, Doutor. 
Era o chofer, que era louro.
— Já vou, Tommy — falava ao motorista.
E Tomaz ia esperá-lo no carro, nada gostando daquele modo agringalhado como o patrão o chamava.
— Rua Augusta, Tommy.
Vestia-se no Minelli, sempre exorbitando na juvenilidade das roupas. O alfaiate, de início, tentara vesti-lo à maneira dos cinqüentões. Desistiu quando percebeu que Gualberto preferia que soubessem que era Guga. A camisa não variava de cor. Invaria​velmente preta.
— Negro emagrece — explicava, com mingau na voz. Sempre dizia "negro". Dia algum chamou de "preto" a cor por que optava.
— Preto é pobre — definia, dando nojo à palavra. Tratava os rapazes na segunda pessoa. As moças, chamava de você.
— Oi, Margot, você está bem? E tu, Waldir?
Mudava o tom pra ele, sentindo e exibindo que o "tu" era mais íntimo. Apreciava a felicidade de poder ser íntimo de um pequeno time de jovens. Os jovens a quem — não se cansava de falar — adorava.
— Odeio gente usada.
Era dado a formar frases que imaginava viessem a ficar na história. E foi dos primeiros a usar bolsa.
— Homem tem que usar bolsa. As calças, hoje, não têm lugar pra gente guardar nossas coisinhas.
Suas "coisinhas" eram o cartão do CBC e um pente. Fazia uso dos dois com freqüência. As contas pagava ele. E era um bom pagador. De gordas gorjetas. A propina, não a deixava no pires; entregava-a, mão-com-mão, ao garçom, que, via de regra, encabulava-se pelo discreto apertar que sentia.
Ele se ria do acanhamento do moço. Não sabia rir. Precisava, após a risada, enxugar-se. Como não usasse lenço, secava o canto da boca com a manga da camisa. Sem pejo da atitude contrastante com sua educação.
— Aceita um licorzinho?
Era o primeiro oferecimento aos moços que traziam as compras que fizera de tarde. Muitas, desnecessárias. Havia os que aceitavam. Guga, menos só, ficava mais alegre.
Lia Fernando Pessoa para os rapazes que lhe levavam os embrulhos. Entontecia-se discretamente com o lança-perfume que misturava à colônia forte em que embebia o lenço. Usava lenço em casa apenas. E unicamente enquanto lia Fernando Pessoa.
— "Eu, que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de fretes, / eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, / eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado. / Para fora da possibilidade do soco".
Banhado pela luz vermelha do abajur que Guga escolhera acender, sem entender coisa alguma, o moço de fretes escutava. Sem entender, mas tudo percebendo. Muitos percebiam, nos dois sentidos.
E agora se ia de mudança. O caminhão da Fink já dobrava na Avenida São João, enfrentando o tráfego difícil do meio-dia. Ele, como um cão que zela pelo dono, seguia atrás, na vigia dos seus pertences.
Cortaria a Via Dutra atrás do caminhão. Sempre temeroso de que a porta se abrisse e por ela caíssem suas relíquias, seus quadros, sua cama, suas coisinhas.
O chofer do seu carro não era mais Tommy.

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