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Construtivismo_de_Piaget_a_Emilia_Ferreiro_Psicogênese da língua escrita

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4A alf abetizaçào 
Psicogênese da língua escrita 
 
Os anos 80 assistiram, no Brasil e na América Latina, a um crescente 
interesse pelo tema da alfabetização inicial. A constituição e o aprofundamento 
dos debates sobre este tema específico podem ser testemunhados pelo grande 
número de seminários, mesas-redondas, artigos e textos publicados durante o 
período. A difusão rápida das idéias de Emilia Ferreiro dirigiu grande parte da 
reflexão teórica e da discussão sobre a alfabetização, não só entre pesquisadores, 
mas também entre um grande número de professores atingidos pela divulgação 
dos postulados desta pesquisadora. 
Emilia Ferreiro é argentina de nascimento e psicopedagoga de formação. 
Doutorou-se pela Universidade de Genebra, orientada por Jean Piaget, de quem 
posteriormente tornou-se colaboradora. Iniciou suas pesquisas empíricas na 
Argentina, em trabalho conjunto com Ana Teberosky, e os resultados foram 
publicados na obra Los sistemas de escritura en e/ desarro//o dei nino, em 1979. 
Posteriormente, transferiu-se para a Cidade do México, passando a dar aulas no 
Instituto Politécnico Nacional - ao mesmo tempo coordenava grupos de pesquisa. 
O seu primeiro livro traduzido no Brasil, Psicogênese da língua escrita, 
representou uma grande revolução conceitual nas referências teóricas com que se 
tratava a alfabetização até então, iniciando a instauração de um novo paradigma 
para a interpretação da forma pela qual a criança aprende a ler e a escrever. 
Ao lado da consistência teórica que tais investigações 
exibiam, a participação freqüente da própria Emilia Ferreiro em eventos de 
apresentação e difusão de suas concepções trouxe uma outra dimensão à 
divulgação de suas idéias. O carisma pessoal exibido pela investigadora tem como 
um dos elementos que o explicam o caráter de inserção no real testemunhado por 
ela. Nas pesquisas que coordenou existe uma clara integração de objetivos 
científicos a um compromisso com a realidade social e educacional da América 
Latina. ..Analisando essa realidade educacional, a Autora 
demonstra que o fracasso nas séries iniciais da vida escolar atinge de modo 
perverso apenas os setores marginalizados da população. Dificilmente a retenção 
ou deserção escolar faz parte da expectativa de uma criança de classe média que 
ingressa na escola. Para outros segmentos sociais marginalizados, no entanto, os 
índices de fracasso chegam a níveis alarmantes, constituindo-se num verdadeiro 
problema social. Se fosse a única, essa já seria justificativa suficiente para dar 
relevância a novas investigações que ajudassem a descrever e explicar os 
processos pelos quais as crianças chegam a aprender a ler e escrever. No entanto, 
não é a única. 
Também do ponto de vista teórico, as pesquisas de Ferreiro & Teberosky 
trazem uma contribuição original. Tomam como objeto de estudo um conteúdo ao 
qual Piaget não se dedicava - resgatam os pressupostos epistemológicos centrais 
de sua teoria, para aplicá-Ios à análise doaprendizado da língua escrita. 
Na contramão de outros estudos teóricos, o objetivo de suas investigações 
não é a prescrição de novos métodos para o ensino da leitura e da escrita. 
Muito menos a proposta de novas formas de classificar dificuldades do 
aprendizado. Ao estudar a gênese psicológica da compreensão da língua escrita na 
criança, Ferreiro desvenda a "caixa-preta" desta aprendizagem, demonstrando 
como são os processos existentes nos sujeitos desta aquisição.Isso porque, até que 
uma proposta empírica desta natureza fosse feita, o tema da aprendizagem da 
escrita era considerado apenas uma técnica dependente dos métodos de ensino. 
Coerente com a sua filiação epistemológica, Ferreiro demonstra que a 
abordagem da alfabetização como questão meramente meto do lógica fora 
sustentada por teorias psicológicas vinculadas ao associacionismo ou empirismo. 
Ou seja, avaliar que a melhor ou pior aprendizagem da língua escrita estaria em 
correspondência com melhores ou piores métodos de ensino implica interpretar 
essa aprendizagem como decorrente da apropriação de elementos externos feitos 
por um sujeito passivo. Ora, isto nada mais é que aplicar à linguagem escrita os 
pressupostos mais gerais do associacionismo, que explicam a constituição da 
inteligência como resultante da interação entre estímulos e respostas, como já 
comentamos anteriormente. 
Ao contrário desta tendência, as investigações de Ferreiro articulam-se para 
demonstrar a existência de mecanismos do sujeito do conhecimento (sujeito 
epistêmico), que, na interação com a linguagem escrita (objeto de conhecimento), 
explicam a emergência de formas idiossincráticas de compreender o objeto. Em 
outras palavras, as crianças interpretam o ensino que recebem, transformando a 
escrita convencional dos adultos. Sendo assim, produzem escritas diferentes e 
estranhas. Essas transformações descritas por Ferreiro são brilhantes exemplos dos 
esquemas de assimilação piagetianos. O professor ensina, por exemplo, a palavra 
OA TO e alguns de seus alunos escrevem 00 ou AO ou OT. O que Ferreiro 
desvenda é a razão destas transformações e a lógica empregada pela criança, ou os 
processos psicológicos que produzem tais condutas. A escrita produzida é fruto da 
aplicação de esquemas de assimilação ao objeto de aprendizagem (a escrita), 
formas utilizadas pelo sujeito para interpretar e compreender o objeto. 
Vale ainda acentuar que a consideração destas escritas desviantes - como 00, 
AO, OT para GATO - é uma forma nova de olhar para o desempenho escrito 
infantil. Assim como fizera Piaget com as respostas erradas, tornadas centrais na 
interpretação dos testes de Burt, também' Ferreiro & Teberosky interpretam os 
erros cometidos pela criança em fases precoces de aquisição. Isso constitui uma 
forma nova de olhar para a escrita infantil, muito diferente daquela que longa 
tradição escolar nos ensinou. Os erros 
_ sistemáticos, regulares e recorrentes chamam a atenção das pesquisadoras e levam-
nas a perguntar se não seriam indícios de uma certa forma de compreender a 
linguagem escrita. Existiria uma lógica que os sustenta e que explica sua 
regularidade e persistência? 
As investigações empreendidas propõem respostas a essas questões, partindo 
do pressuposto de que as crianças adquirem u conhecimento da linguagem escrita 
porque, em interação com este objeto, aplicam a ele esquemas sucessivamente 
mais complexos, decorrentes do seu desenvolvimento 
cognitivo. O desdobramento que se segue é o estabelecimento de diferentes 
momentos de aquisição, articulados sistematicamente, constituindo um modelo de 
aquisição em níveis, fases ou períodos. Estes sucedem-se em graus crescentes de 
complexidade e aproximação da escrita convencional. 
A interpretação do acesso ao conhecimento da escrita acentua a existência de 
um processo evolutivo ao longo do desenvolvimento infantil, cuja gênese é preciso 
descrever e explicar. 
Em nota preliminar à primeira edição da Psicogênese da língua escrita, as 
autoras declaram a perspectiva sob a qual a investigação se realizará: 
[...] Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura, entendida como 
questionamento a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a 
escrita, inicia-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo por 
insuspeitados caminhos. Que, além dos métodos, dos manuais, dos recursos 
didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se propõe 
problemas e trata de solucioná-Ios, segundo sua própria metodologia... 
Insistiremos sobre o que se segue: trata-se de um sujeito que procura adquirir 
conhecimento, e não simplesmente de um sujeito disposto ou mal disposto a 
adquirir uma técnicaparticular. Um sujeito que a psicologia da lecto-escrita 
esqueceu [...] (Ferreiro & Teberosky, 1986, p. 11 
Esses breves comentários iniciais são suficientes para demonstrar a ruptura 
que os trabalhos agora examinados representam em relação ao conhecimento 
científico anteriormente acumulado sobre o tema. 
Veremos, a seguir, a forma como foram coletados os dados que sustentam a 
interpretação teórica. 
 
Coleta de dados: princípios e metodologia 
 
Toda investigação científica pressupõe alguns pontos de partida. O recurso 
aos fatos, isto é, a busca empreendida pelo pesquisador de evidências da realidade, 
é precedido de algumas alternativas para a resolução de problemas. Não são os 
fatos "puros" que falam ao pesquisador. A seleção dos eventos na realidade, a 
forma de olhá-Ios, ou os "recortes" do real são decisões tomadas pelo cientista 
tendo como ponto de partida o compromisso com uma concepção teórica sobre o 
sujeito da aprendizagem, assim como sobre o objeto a conhecer. Não existe 
"neutralidade" científica, no sentido de que o olhar do pesquisador está informado 
de concepções prévias que permitem a observação de alguns fatos em detrimento 
de outros. Algo só se torna observável, pois, em função de informações prévias. 
Sobretudo na pesquisa psicológica, as evidências são fragmentárias, nem sempre 
contínuas, e a observação está restrita às condutas que apenas indicam processos 
mentais não observáveis diretamente. Fazer a conexão entre esses fatos, e dar 
coerência e articulação a eles, exige uma construção de caráter teórico por parte do 
pesquisador. 
As publicações de Ferreiro refletem em muitos momentos essas questões 
referentes à natureza do trabalho científico em psicologia e às questões 
metodológicas que o cercam. Dessa forma, a pesquisadora procura deixar claro o 
conjunto de postulados que informa o seu olhar sobre os dados. Tendo claro que o 
edifício teórico piagetiano acumulava poucas pesquisas sobre a linguagem, 
reservando a esta um papel marginal na constituição das competências cognitivas, 
Ferreiro busca na Psicolingüística as ferramentas disponíveis para enfrentar seus 
objetivos. 
A partir da década de 60, a contribuição desta ciência passa a incorporar 
mudanças importantes na forma de compreender a aquisição da língua oral. Os 
estudos anteriores a este período focalizavam predominantemente a aquisição do 
léxico - classificado segundo as categorias da linguagem adulta (verbos, 
substantivos, adjetivos, etc.) -, sem, no entanto, explicar ou descrever a aquisição 
das regras sintáticas. O modelo associacionista de interpretação da aquisição da 
linguagem não dera conta de explicar de que forma a criança chega a combinar 
palavras em frases aceitáveis. . 
Enfatizando a contribuição de Noam Chomsky, Ferreiro indica que a ênfase 
do trabalho deste pesquisador no estudo da aquisição das regras sintáticas da 
linguagem demonstrou a existência de uma distinção entre a competência e o 
desempenho exibidos pelos sujeitos. Do ponto de vista de Ferreiro, esta distinção 
também se encontra na base da teoria piagetiana da inteligência (cL Ferreiro & 
Teberosky, 1986). 
Tal distinção acentua que a existência de um conjunto de conhecimentos 
sobre um domínio particular, inconsciente para o próprio sujeito, não pode ser 
confundida com o que este mesmo sujeito é capaz de fazer numa situação 
particular. 
o fato, por exemplo, de uma criança não ser capaz de repetir oralmente 
palavras conhecidas da língua oral não pode ser interpretado como uma 
incapacidade para compreender e produzir distinções no uso da língua materna. 
Ora, itens desse tipo estão presentes em grande parte dos testes para verificar a 
existência dos pré-requisitos para a alfabetização. 
Ao ingressar na série onde começa a ocorrer o ensino sistemático das letras, a 
criança já detém uma grande competência lingüística que não é considerada. Essa 
ação equivocada da escola tem origem em dois desvios. O primeiro deles é tratar a 
aquisição da escrita como se esta fosse idêntica à apropriação da fala. O segundo é 
que o modelo de aprendizagem da língua oral que a maioria dos métodos de 
alfabetização reproduz sustenta-se num conhecimento 
já ultrapassado. Esses conhecimentos, anteriores ao trabalho de Chomsky, são 
assim sintetizados por Emilia Ferreiro: 
lu.] a progressão clássica que consiste em começar pelas vogais, seguidas da 
combinação de consoantes labiais com vogais, e a partir daí chegar à formação das 
primeiras palavras por duplicação dessas sílabas, e, quando se trata de orações, 
começar pelas orações declarativas simples, é uma série que reproduz bastante 
bem a série de aquisições da língua oral, tal como ela se apresenta vista "do lado 
de fora" (isto é, vista desde as condutas observáveis, e não desde o processo que 
engendra essas condutas observáveis). Implicitamente, julgava-se ser necessário 
passar por essas mesmas etapas quando se trata de aprender a língua escrita, como 
se essa aprendizagem fosse uma aprendizagem da fala (Ferreiro e Teberosky, 
1985, p. 24). 
Como conseqüência, quando o modelo de aquisição da língua oral é utilizado para 
a escrita, o critério "falar bem" ou ter "boa articulação" é considerado importante 
para aprender a escrever. Reaprender a produzir sons da fala, como condição 
necessária para escrever, baseia-se, assim, em dois falsos pressupostos. O primeiro 
deles é que uma criança aos 6 ou 7 anos não é capaz de distinguir fonemas de sua 
língua, hipótese negada pelo gosto que as crianças desta idade têm pelos jogos 
verbais. A segunda falácia é a concepção da escrita como uma forma precisa de 
transcrição da fala. Nenhuma escrita, examinada nas relações que tem com o 
código oral, realiza a transcrição fonética da língua oral. 
Na verdade, Ferreiro apóia-se na concepção de que a linguagem atua como 
uma representação, ao invés de ser apenas a transcrição gráfica dos sons falados.O 
mundo verbal, incluindo fala e escrita, é ao mesmo tempo um sistema com 
relações internas entre ambos os códigos (fala e escrita), onde não há estrita 
correspondência entre ambos. Além disso, a escrita é também um sistema que se 
relaciona com o real. 
Do ponto de vista interno, isto é, no contexto lingüístico, as relações entre os 
dois códigos não são homogêneas, porque a escrita não é o espelho da fala e as 
relações entre letras e sons são muito complexas. Não há uma regra única que 
defina esta relação. 
Do ponto de vista da relação entre mundo verbal e realidade, a escrita é um 
sistema simbólico de representação da realidade. Sendo assim, ela substitui e 
indica algo, permitindo que com o seu uso seja possível operar sobre' a realidade 
através da palavra. 
As escritas alfabéticas, como é o caso do português, podem ser caracterizadas 
como representações que se baseiam nas diferenças entre significantes (palavras 
escritas ou faladas). Outras escritas, como as ideográficas (baseadas em 
ideogramas), privilegiam a distinção dos significados. 
Apesar dessa distinção, nenhum sistema é inteiramente puro e a escrita 
alfabética em português também se utiliza de recursos ideográficos, 
principalmente na ortografia. 
Um dos primeiros problemas enfrentados pela criança, para desvendar a 
escrita, é compreender o que as marcas sobre o papel representam e como se 
realiza esta representação. 
Partindo então desses princípios teóricos, uma concepção de linguagem 
escrita como um sistema de representação e uma concepção de sujeito da 
aprendizagem (sujeito epistêmico) baseado na teoria piagetiana, Ferreiro faz uma 
síntese geradora de suas hipóteses. 
Para observar e coletar dados das crianças, seria necessário fazer uma 
distinção primordial: entrea técnica de ensino e os processos de aprendizagem. As 
condutas escri tas de um aprendiz não são o mero resultado daquilo que 
o professor ensina. Existe um processo de construção deste conhecimento 
que nem sempre coincide com o que está sendo ensinado. Como flagrar esses 
processos de construção? 
Os testes e formas tradicionais de medir o conheci mento das crianças, os 
chamados "testes de prontidão", não poderiam ser utilizados. Seus objetivos são 
muito diferentes, já que pretendem avaliar as capacidades relacionadas à 
percepção e à motricidade. Algumas habilidades específicas ligadas à percepção 
(como a discriminação visualentre formas, a discriminação de sons, a coordenação 
entre visão e os movimentos da mão, etc.) e outras ligadas à motricidade 
(coordenação motora, esquema corporal, orientação espacial, etc.) medem 
aspectos não conceituais da escrita. A aplicação destes instrumentos pode indicar a 
presença maior ou menor de capacidades importantes para a realização gráfica de 
traços sobre o papel. 
 Reproduzir letras sobre uma folha em branco é também parte da tarefa de 
escrever, mas não é este o seu aspecto mais importante. Essa realização relaciona-
se com os aspectos figurativos, externos da escrita, por fazer parte de seu resultado 
material e indica a maior ou menor habilidade da criança para desenhar letras. 
Tradicionalmente, a presença dessa habilidade é considerada um indício de 
que a criança estaria pronta para iniciar a aprendizagem da escrita. É a famosa 
maturação ou prontidão para a alfabetização. Mas o desenho das letras não 
abrange todos os problemas cognitivos a serem enfrentados, resta a questão 
fundamental: compreender a natureza da escrita e sua organização. 
Ora, o resultado da aplicação destes testes não traz indicações do grau de 
compreensão da criança quanto ao aspecto interior da escrita, isto é, quanto ao seu 
caráter simbólico. Se a escrita representa parte da linguagem falada, ela o faz 
através de uma convenção que é arbitrada socialmente. Esse é um obstáculo 
importante a ser superado e não é tarefa simples, do ponto de vista intelectual. 
Nenhuma característica da escrita tem semelhança com o objeto representado. As 
letras, que para um iniciante são apenas traços no papel, simbolizam sons da fala e 
compreender este conteúdo implica ser capaz de estabelecer relações simbólicas 
com as coisas, isto é, relações que são mediadas por um objeto que as substitui ou 
representa. 
Uma vez compreendido este aspecto, há um outro obstáculo a superar: 
compreender de que forma se dá a organização da escrita. 
São exatamente estes os aspectos conceituais ou construtivos, domínio que a 
psicogênese da escrita pretendia desvendar. 
Seria necessário, então, criar uma situação experimental nova, que não 
implicasse apenas tarefas de cópia. Isto porque a reprodução de um modelo 
gráfico presente ou memorizado não coloca problemas a serem resolvidos e não 
cria oportunidades para que se observem as concepções infantis sobre a escrita. 
Para flagrar as eventuais hipóteses da criança, elaboradas para compreender as 
funções e a organização do sistema, seria necessário observar a conduta espon-
tânea no registro gráfico. 
Uma outra suposição prévia, que funciona como hipótese auxiliar da pesquisa de 
Ferreiro, é a de que a exposição da criança a atos de leitura e escrita, existentes no 
ambiente social em que vive, cria oportunidades para que ela reflita sobre esse 
objeto. Assim, antes mesmo do ensino sistemático e escolar, seria bastante 
provável que as crianças já tivessem algum conhecimento sobre este objeto. É 
evidente que este conhecimento prévio à escola exige uma condição crucial: a 
existência de oport_nidades de interação com a escrita em situações informais, 
próprias dos ambientes com alto grau de letramento. 
Assim, num contexto onde a escrita e a leitura fazem parte das práticas 
cotidianas, a criança tem a oportunidade de observar adultos utilizando a leitura de 
jornais, bulas, instruções, guias para consulta e busca de informações específicas 
ou gerais; o uso da escrita para confecção de listas, preenchimento de cheques e 
documentos, pequenas comunicações e atos de leitura dirigidos a ela (ouvir 
histórias lidas). A participação nessas atividades ou a observação de como os 
adultos interagem com a escrita e a leitura gera oportunidades para que a criança 
reflita sobre o seu significado para os adultos. 
Uma conseqüência do uso deste pressuposto é a de que se pode prever a 
existência de diferenças entre as crianças, relacionadas ao grau de exposição à 
escrita, presentes nos ambientes em que vivem. Sabemos que existem fortes dife-
renças entre os grupos sociais de uma determinada população, e a menor presença 
e valorização da escrita e de outros alfabetizados costuma ser uma das vertentes 
presente em grupos sociais marginalizados. Seria necessário, então, comparar o 
desempenho de crianças de níveis sociais diferentes. 
Voltando agora à situação experimental, para superar as restrições já 
apontadas nos testes tradicionais de maturação para a aprendizagem, as tarefas 
eram realizadas em entrevistas individuais, feitas com as crianças em vários 
momentos ao longo de um ano. O "método da indagação" utilizado fora inspirado 
no método clínico de Piaget. 
Uma das tarefas de leitura implicava a classificação 
de cartões, separando-os em dois grupos: os que se podem e os que não se podem 
ler. Alguns continham números isolados, mais de um número, números e letras 
num mesmo conjunto, letras isoladas ou várias letras juntas. Quanto ao tipo de 
letras, foram utilizados cartões escritos com letra cursiva, assim como letra script 
ou de imprensa. O objetivo era pesquisar a existência de critérios particulares da 
criança, utilizados para aceitar ou rejeitar algo como adequado para ler. Uma outra 
situação de leitura consistia na apresentação de pranchas com figuras 
acompanhadas de textos a serem interpretados. 
Nas situações de escrita, a tarefa da criança era escrever palavras ditadas pelo 
experimentador. O conteúdo deveria fazer parte do repertório de palavras 
conhecidas pela criança, às quais, portanto, ela fosse capaz de atribuir significado. 
Evitou-se o emprego de palavras constantes dos manuais de alfabetização para que 
a criança não reproduzisse conteúdos previamente memorizados. Escrever pala-
vras ainda não ensinadas representava um problema a ser resolvido pela criança. 
Também foram introduzidas situações de conflito ou potencialmente conflitivas, e 
a interaçãoentre o sujeito e o experimentado r pretendia aclarar o raciocínio usado 
pela criança para chegar à solução gráfica. 
A série de palavras propostas para a escrita mantinha entre si uma relação 
semântica, fazendo parte de um mesmo conjunto de significados ou um mesmo 
tema, como, por exemplo, nomes de animais, brinquedos, objetos escolares, etc. 
Após cada palavra a criança deveria ler a própria produção, indicando onde a 
leitura estava sendo processada. 
Durante a primeira investigação realizada na Argentina, foram 
acompanhadas 30 crianças de classe social baixa. A escolha justificava-se por 
estar concentrado neste setor socioeconômico o maior índice de fracasso nas séries 
iniciais e a maior produção dos chamados transtornos ou dificuldades de 
aprendizagem. Filhos de pais moradores das regiões periféricas d_ cidade, com 
ocupações não qualificadas ou vivendo de trabalho temporário, metade das 
crianças freqüentava a escola pela primeira vez, não sendo egressas da pré-escola. 
Como na Argentina a alfabetização é iniciada aos 6 anos, a idade oscilava entre 5 e 
6 anos, ao final do ano utilizado 
para as observações. Estas ocorreram durante o primeiro mês de aulas,no meio e 
no final do ano escolar. 
Os resultados iniciais revelaram que mesmo crianças de classe social baixa 
não iniciam a escolaridade com nível zero de conhecimento da escrita. Já aos 6 
anos, a maioria das crianças possui conhecimentos, cuja gênese deveria ser 
procurada em idades mais precoces. 
Um estudo do tipo transversal foi utilizado para buscar essas observações 
com crianças entre 4 e 6 anos, escolarizadas, de classe social baixa e média (filhos 
de pais como ocupação liberal). Os alunos da classe média eram constituídos de 
crianças que freqüentavam a escola pública e a particular. 
Os resultados das pesquisas, tornados disponíveis pelapublicação da 
Psicogênese da língua escrita, referem-se a um total de 108 sujeitos e, tanto no 
estudo longitudinal como no transversal, foram aplicados o mesmo método e as 
mesmas tarefas. 
Analisaremos os principais resultados das pesquisas,reorganizando a 
apresentação feita por Ferreiro & Teberosky. Iniciando com os critérios infantis 
para a interpretação do texto escrito, passaremos, em seguida, aos níveis de 
aquisição da escrita. Consideramos que esta ordem de apresentação facilita a 
compreensão do leitor. Também, ao contrário do que ocorrera no original, os 
dados referentes aos níveis de menor conhecimento antecederão os níveis de maior 
conhecimento, facilitando a compreensão dos avanços qualitativos empreendidos 
pela criança ao longo do percurso de aproximação da escrita convencional. 
 
 
Critérios de legibilidade 
 
As observações que resumiremos na seqüência são o resultado da aplicação 
da tarefa de classificação de cartões 
com informações escritas. O conjunto oferecido a cada criança continha de 
15 a 20 cartões, dos quais constavam inclusive palavras longas, sílabas e algumas 
que fazem parte do repertório constante dos manuais utilizados na escrita. 
A interpretação dos resultados levou Ferreiro & Teberosky a concluir que, 
mesmo antes de ler, as crianças têm idéias precisas sobre critérios que distinguem 
textos que servem para ler dos outros que não permitem a leitura. Estes critérios 
são muito diferentes dos utilizados pelo adulto. 
Seria previsível, num adulto que se submetesse à mesma tarefa, o 
agrupamento dos cartões em dois subgrupos, distinguindo os que registram 
números dos outros contendo letras. 
 
Hipótese da quantidade mínima de letras 
 
No entanto, o critério mais freqüentemente apresentado na solução das 
crianças foi a distinção entre cartões com poucos caracteres (sejam estes caracteres 
letras ou números) sob a justificativa de que "com poucas letras não se pode ler". 
Na maioria das vezes, este critério quantitativo utilizado tinha como limite mínimo 
a presença de três letras. Cartões com um número menor de caracteres "nãq 
servem para ler" e algumas crianças explicitam com clareza suas idéias, dizendo, 
por exemplo, a respeito de grafismos menores: não servem para ler porque "são 
muito curtinhas", "tem uma palavra ou duas", ou ainda "onde háumas pouquinhas 
não é para ler; aqui tem mais pouquinhas letras, tem duas (cartões AS e SO)". Para 
os cartões legíveis, dizem que "tem muitas, como quatro", tem que ter "muitas 
coisas, um montão", ou serve para ler "porque tem uns quatro números" (cartão 
escrito PELO) (Ferreiro & Teberosky, 1985, p. 41-3). 
A regularidade deste mínimo em torno de três letras foi posteriormente 
reiterada em outras pesquisas com crianças de língua espanhola (no México, na 
Espanha), francesa, portuguesa (no Brasil) e italiana. 
A maneira como as crianças contam os caracteres também é importante. Em 
geral, quando a letra é a de imprensa maiúscula, não há ambigüidade na distinção 
entre uma letra e outra e a contagem é precisa. O mesmo não ocorre com a letra 
manuscrita. Neste caso, fica difícil, para a criança que não conhece os traços 
distintivos entre uma letra e outra, efetuar a contagem precisa das unidades que 
compõem um conjunto. 
Às vezes, o "TI\." cursivo é considerado como formado por três caracteres, o 
"-p " contado como se fosse dois ou três caracteres diferentes e uma sílaba como o 
"-fl"-" é contada quase sempre como sendo composta por três ou quatro caracteres, 
apenas para usar alguns exemplos. A esse critério infantil Ferreiro dá o nome de 
hipótese da quantidade mínima de caracteres. É óbvio que, para uma criança que 
desconhece o valor simbólico das letras, não seria possível a emergência de 
distinções qualitativas semelhantes àquelas feitas pelo adulto. O que surpreende é 
que, para lidar com um objeto obscuro e resistente à compreensão, a criança 
construa uma hipótese deste tipo, exemplar de como se constitui um esquema de 
assimilação. A aplicação deste esquema ao universo escrito permite prever a 
recusa da criança em atribuir significado aos artigos, definidos ou indefinidos, 
preposições e outras palavras com um número menor de letras, costumeiramente 
presentes em um texto escrito. Isso é um conteúdo importante a ser considerado na 
prática pedagógica, assunto que discutiremos no capítulo final, principalmente se 
considerarmos a natureza da organização das cartilhas que apóiam as práticas de 
iniciação da leitura e da escrita. Grande parte delas oferece lições iniciais 
destinadas à aprendizagem das vogais isoladas, seguida da combinação dessas 
letras em conjunto de duas letras. Pode-se inferir que dificilmente crianças em 
níveis iniciais de aquisição conseguirão interpretar este material como sendo 
adequado à leitura, considerando os critérios de legibilidade construídos por elas. 
A natureza do traçado que se oferece à criança nos primeiros materiais de 
leitura também deve ser considerada. A leitura de textos em letra cursiva será 
potencialmente um obstáculo à interpretação, pela ambigüidade para a distinção 
do número de caracteres constituintes dos textos. 
Embora a maioria das crianças da amostra tenha evidenciado o uso deste 
critério para distinguir o que é "legível" num texto, aparecem crianças com 
condutas que podem ser consideradas "o nível zero" da tarefa. Algumas, mais 
freqüentemente de classe social baixa, usam critérios aleatórios de separação de 
cartões, e a troca de lugar entre os subgrupos torna legível o que antes não o era 
(ou o contrário). 
 
Hipótese da variedade de caracteres 
 
No extremo oposto, isto é, mais freqüentemente em crianças de classe média, 
há a evidência da construção de critérios qualitativos para definir a legibilidade. 
Isso não significa que tais critérios não apareçam em crianças de classe social 
baixa, mas que o predomínio é maior nas outras. Esse critério qualitativo também 
não se refere à compreensão do valor simbólico das letras. Raras vezes apareceram 
condutas que aceitavam cartões para ler porque continham letras e nomes cuja 
forma escrita era conhecida, e, quando isto ocorreu, aqui sim, foi exclusivo de 
criança de classe média. 
Isso indica como as práticas letradas do ambiente social podem fazer avançar 
a reflexão da criança sobre a escrita antes do início da escolarização. 
O critério qualitativo a que se refere a pesquisa é a análise feita pelas crianças das 
semelhanças entre as letras que constituem um conjunto. Se as letras são iguais, 
mesmo atendendo a um minimo de três, elas também não servem para ler. Cabe 
ainda aqui uma ressalva: este mínimo de três letras foi aquele que predominou 
entre as crianças pesquisadas. Houve também crianças que apresentaram como 
exigência mínima a presença de duas letras e outras, ainda, cuja exigência 
superava os três caracteres. 
Os cartões MMMMMM, AAAAAA e MANTEIGA, por exemplo, ou com a 
mesma série em letra cursiva, tiveram recusa dos dois primeiros, com as 
justificativas de que"não se pode,digo-lhe que são as mesmas", "essas são para 
ler, com as outras letras", "porque tem tudo a mesma coisa", "porque não é tudo 
juntinho, também tem outras letras" ou "porque diz o tempo todo 'a"'(Ferreiro & 
Teberosky, 1985, p. 43-4). Já o cartão com a palavra MANTEIGA é aceito 
"porque não tem tantas letras iguais" ou "não sei o que diz, mas é de ler" (ibidem, 
p. 44). 
As respostas das crianças indicam claramente a necessidade de que as letras 
constantes de um texto devam exibir variedade. A esse critério, Ferreiro 
categorizou como hipótese de variedade de caracteres. Também é inevitável pen-
sarmos aqui na interação deste esquema assimilativo com 
os manuais de iniciação à leitura, tornando difícil postergar os comentários a 
respeito das implicações pedagógicas para o capítulo final. Se bem que possamos 
adiar as inferências decorrentes para a escolha dos melhores materiais para início 
da alfabetização, é difícil deixar de fazer observações sobre o conteúdo que se 
segue às primeiras lições com as vogais e suas combinações. Nas cartilhas mais 
utilizadas pela rede pública, por exemplo, as lições que se seguem às que já nos 
referimos apresentam um grande número de palavras compostas por sílabas 
repetidas. Isso se justifica quando a escrita é analisada do ponto de vista do adulto. 
Como deixar de pensar que a aprendizagem pode ser facilitada com palavras 
simples, onde uma sílaba já dominada aparece mais de uma vez? 
Olhado do ponto de vista da criança, em vez de facilitar, esse recurso gera 
um obstáculo. Palavras como papa, bala, babá, coco, bebe, tão freqüentes nas 
cartilhas brasileiras, podem dificultar a interpretação destes textos como legíveis, 
exatamente porque têm uma baixa variedade de letras. 
Superar ou ampliar este esquema de assimilação exigiria a presença de outros 
conteúdos para a leitura, o que é impedido pela prática, de longa tradição, de que 
primeiro é necessário dominar certas palavras para depois seguir em frente. 
Voltemos agora aos resultados da pesquisa: além da construção de critérios 
de legibilidade, outros problemas conceituais simultâneos precisam ser resolvidos. 
Ao adulto, a escrita parece homogênea porque temos critérios apurados para 
enxergar o que é relevante à leitura. Para uma criança iniciante, ao contrário, tudo 
parece igualmente importante, até que haja a construção de diferenciações entre os 
traços gráficos. Uma produção gráfica pode conter grafismos de muitos tipos, 
possíveis de serem interpretados a partir da construção de diferenciações entre as 
letras, os números, os sinais de pontuação, os desenhos, além do nome das letras, 
para falar de apenas parte dos elementos da convenção presentes no texto escrito. 
A observação durante as tarefas permitiu definir alguns estágios específicos da 
emergência destas distinções. 
 
Diferenciação de elementos gráficos 
 
O conjunto das observações que se seguem foi resultado da análise dos cartões 
anteriormente comentados e de interação do experimentador com a criança, 
folheando um livro de histórias. Sobre os desenhos e os textos, a pergunta "O que 
é isto?", aplicada a ambos, dotava o experimentador do nome atribuído pela 
criança ao segmento apontado. Este passava, então, a ser utilizado para se referir 
aos diferentes contextos gráficos (icônico ou escrito). O reconhecimento do seu 
próprio nome impresso e a escrita deste conteúdo com letras móveis _ com lápis e 
papel também foram situações utilizadas para a coleta de dados. 
 
A relação entre letras e números 
 
Ferreiro postula a existência de três momentos distintos na construção da 
diferenciação entre letras e números. 
No primeiro momento, haveria uma aparente confusão entre ambos. Aparente, 
porque letras e números são colocados juntos por oposição ao desenho. 
Compartilham, portanto, o atributo de não serem grafismos figurativos, e podem, 
deste ponto de vista, estar juntos. 
A existência deste estágio indica que as crianças estão resolvendo outro 
problema conceitual prévio onde não é possível ainda a coordenação de 
diferenciações apenas destes caracteres gráficos, uma vez que se consolida a 
distinção entre o icônico e a notação alfabética. 
Nos dados coletados por Ferreiro, não existem evidências de que a criança 
utilize apenas a imagem para a leitura, ainda que indique a ambos como 
necessários para ler. Neste caso, a criança sabe que se lê nas letras, mas não abre 
mão da imagem para inferir o significado do texto, utilizando ambos como 
universos complementares. 
Saber que se lê nas letras, no entanto, não implica que esteja colocada a 
distinção entre letras e números. Sobretudo quanto a este aspecto, as crianças de 
classe baixa estão em forte inferioridade em relação às de classe média. É 
mais freqüente nas primeiras que letras sejam também chamadas de números, 
dependendo do contexto onde se encontram. Quando isoladas, tendem a ser 
interpretadas como números, o que é indicador de que a criança tem aguçada 
compreensão das diferenças destes dois sistemas de registro. A escrita de números 
não se baseia no sistema alfabético usado para o registro de palavras. Ao contrário, 
a leitura destes é muito mais ideográfica. A conduta contrária, no entanto, não 
ocorre: as crianças não chamam os números de letras. Além de poder indicar a 
existência de uma anterioridade psicogenética dos números como forma gráfica, 
existe o fato de que o universo de possibilidades para a escrita dos números é 
muito mais reduzido do que o das letras. Conseqüentemente, pode ser mais rápida 
a apropriação das distinções próprias dos números. 
Num segundo momento, a diferenciação letras/números seria a construção da 
distinção entre as funções de ambos: letras servem para ler e números para contar. 
O terceiro momento pode ocorrer quando a criança, tendo já superado a 
indistinção inicial, volta a ter conflitos na diferenciação, por lidar com adultos que 
"lêem palavras" e "lêem números", assim como "contam" elementos de um 
conjunto e "contam" também histórias. 
Algumas crianças usam estratégias inusitadas para fazer esta distinção. 
Empregam a palavra número para designar o conjunto de letras e reservam para 
algumas em particular a designação de letra (aquelas que compõem o seu próprio 
nome). Essa distinção é peculiar às crianças de classe média, indicando um 
comportamento decorrente de certas práticas culturais onde a criança assiste 
freqüentemente à escrita de seu próprio nome e de outras pessoas conhecidas. A 
inexistência desta prática para as crianças de classe social baixa, ou, pelo menos, a 
sua menor freqüência, traz fortes contrastes na capacidade de diferenciar números 
e letras, quando são comparados os dois grupos. 
O mesmo se pode dizer do grau de conhecimento das letras uma a uma e da 
capacidade para nomeá-Ias. É preciso enfatizar que este é um conhecimento típico 
da transmissão cultural. Não é um conteúdo que possa ser elaborado através de 
níveis de conceitualização próprios da criança, já que “as letras e seus nomes são 
fruto de um conhecimento que é arbitrado socialmente”. 
Também aqui a disparidade entre crianças de classe média e classe baixa é 
marcante. Quanto ao reconhecimento de letras e à capacidade de nomeá-Ias, 
Ferreiro constata a existência de níveis gradativos aproximação com o conhe-
cimento socialmente válido 
 
o conhecimento das letras 
 
o nível mais elementar desta aproximação é composto por condutas que 
demonstram o conhecimento de uma ou duas letras, principalmente as iniciais do 
seu próprio nome, 
sem atribuir nomes às letras. Dessa forma, uma letra é reconhecida pelo seu 
possuidor, isto é, pela pertinência ao nome de alguém conhecido. As crianças 
costumam referissea elas como índices destes nomes: "o CA da Carolina", P é "de 
papai", M é "de mamãe", A é "de Atílio", etc. (Ferreiro & Teberosky, 1985, p. 50). 
O próximo nível na evolução deste conhecimento refere-se às crianças que 
reconhecem e nomeiam de maneira estável as vogais, identificando as consoantes, 
às quais atribuem o valor da sílaba inicial do nome. Assim, por exemplo, Carlos (6 
anos) diz que o C é o "ca" de Carlos; Gustavo (6 anos) diz que o G é o "gu" de 
Gustavo; Marina (5 anos) diz que o M é o "ma" de Marina. Em relação ao 
desempenho do nível anterior, há um sutil aumento da complexidade do 
conhecimento: além de reconhecerem as letras pelo seu possuidor, não as 
nomeiam, mas atribuem a elas o valor sonoro da sílaba inicial da palavra. Convém 
enfatizar, ainda, que todas as crianças com estas condutas pertenciam à classe 
média. 
O próximo passo no desenvolvimento é constituído pelo domínio dos nomes 
corretos de todas as vogais e de algumas consoantes. Lama, de 5 anos, demonstra 
este nível de aquisição: "S é se de Silvia e de Sarita", o "esse" (cf. Ferreiro & 
Teberosky, 1985, p. 51). 
O último nível de aquisição é o representado pelas crianças que nomeiam 
todas as letras do alfabeto e são capazes, em algumas delas, de indicar o valor 
sonoro além do nome. 
Um dado interessante a ser sublinhado nesta descrição da aquisição do 
conhecimento das letras é que na progressão genética os nomes das letras 
precedem o conhecimento do valor sonoro. Outra observação da pesquisa, 
reiterada pela prática pedagógica de muitas professoras atentas aos processos de 
aprendizagem das crianças, é a ativa exploração infantil feita sobre as letras do 
alfabeto. Quando este é objeto de trabalho nas salas de aula, as observações das 
crianças demonstram que fazem interessantes assimilações entre as letras, 
indicando, por exemplo, que o W é o M invertido, que o A é o V cortado, que o I 
virado fica igual, etc. Estes testemunhos das crianças são evidências de uma 
extensa exploração ativa sobre as letras. 
Como faz em outros momentos da interpretação dos dados empíricos, 
Ferreiro recorre aqui à história da escrita para indicar que a aparente confusão 
inicial entre letras e números, demonstrada pelas crianças em momentos precoces 
da gênese, não deveria ser encarada como tão estranha. Certas diferenciações, hoje 
bem definidas na escrita alfabética que utilizamos, são na verdade aquisições 
tardias na história do sistema. O uso de letras do alfabeto no lugar de números era 
uma prática comum entre os romanos, fato testemunhado, por exemplo, na datação 
de monumentos. Na tradição grega e hebraica, também as letras representavam os 
números, e a diferenciação entre os dois usos do mesmo sinal era feita pelo 
acréscimo de um acento (o ápex) para indicar que a letra passava a ser um número. 
Certas aquisições, das quais esta é apenas um exemplo, 
embora pareçam óbvias, custaram à humanidade um grande esforço intelectual, e 
o aparecimento tardio deste processo de diferenciação na ontogênese não deve, 
pois, ser encarado como tão estranho. 
 
 
Letras e sinais de pontuação 
 
o próximo passo leva à distinção de todos, com exceção 
do (;) que continua assimilado ao i. Quanto aos demais, em 
bora as crianças não os nomeiem, sabem que não são letras 
nem números, indicando que "não é letra, é outra coisa" . 
 No estágio final, há diferenciação nítida dos sinais de 
pontuação não mais assimilados às letras ou números, 
nomeados agora pela criança como "sinais" ou "marcas". 
 
Por último, para concluir a forma como se originam essas primeiras 
diferenciações feitas _a criança entre os muitos elementos gráficos que fazem 
parte da escrita, faremos breves comentários sobre a distinção entre as letras e os 
sinais de pontuação e a aprendizagem da orientação para a leitura. Esses dois 
pontos merecem comentários entre os muitos dados aqui não reproduzidos (do 
trabalho original), porque, para o adulto, parecem ser conteúdos da aprendizagem 
óbvia e simples. Na verdade, o que temos pouca possibilidade de compreender ou 
recuperar, porque vemos a escrita com o olhar do alfabetizado, é a impossibilidade 
inicial da criança, estrangeira ao sistema, definir, como o adulto o faz, essas 
distinções sutis. Para um estrangeiro da notação alfabética tudo parece ser 
igualmente relevante. 
Tanto os sinais de pontuação como a orientação da leitura são conteúdos 
específicos do aspecto arbitrário da convenção escrita, que, portanto, não podem 
ser deduzidos pelo raciocínio infantil. São, pois, conhecimentos socialmente 
transmitidos, dependentes da existência de uma longa prática com textos escritos e 
com informantes desse sistema. 
Pode-se inferir a partir destes comentários que o ensino escolar não será o mesmo 
para as crianças de classe baixa e de classe média, considerando-se as diferenças 
nas práticas prévias à escolarização, no que se refere à escrita e à leitura. 
Em relação aos sinais de pontuação, passa-se de uma inicial indiferenciação 
destes (que são nomeados com os mesmos termos empregados para números e 
letras) para a distinção do ponto, dois-pontos, hífen e reticências. Os outros sinais 
continuam a ser assimilados às letras. 
O estágio seguinte consolida esta distinção, sem que a criança nomeie os 
sinais diferenciados, assimilando alguns às letras, pelas semelhanças gráficas. O 
(;) é assimilado ao i e o (?) ao 2, 5 ou S. 
Orientação espacial da leitura 
A respeito da orientação espacial para a leitura, é preciso ressaltar que este é 
um dos aspectos mais estritamente arbitrários do sistema. Saber que se lê da 
esquerda para a direita e de cima para baixo é um conteúdo cuja aprendizagem só 
pode ser transmitida pela observação de um alfabetizado que leia indicando ou que 
explique isto às crianças. 
Os programas preparatórios para a aprendizagem da leitura e da escrita 
insistem na importância da aprendizagem de conceitos de orientação espacial 
prévios, como: acima, baixo, esquerda, direita. A intenção é que isso se aplique, 
posteriormente, para o uso adequado da orientação durante, o ato da leitura e da 
escrita. No entanto, o ensino destes conceitos, fora de situações da escrita e da 
leitura, não leva à "transferência" desta aprendizagem ou à sua aplicação frente a 
um texto escrito. A aprendizagem deste conteúdo específico exige mais do que a 
exploração de textos escritos: é necessário que a criança tenha uma ampla 
experiência e observações de leitores de textos. Assistir a atos de leitura, dirigidos 
ou não a ela, acompanhados de gestos indicadores de onde a leitura está sendo 
processada, é ocasião e fonte para assimilar essa informação. 
De toda forma, quando a criança ainda não se apropriou da orientação 
convencional, existem soluções interessantes que procuram garantir a 
continuidade do ato de leitura, evitando os saltos e movimentos bruscos dos olhos. 
Ferreiro observa, principalmente em crianças menores (4 anos), a leitura em 
ziguezague, começando na primeira linha, da esquerda para a direita, continuando 
na segunda, da direita para a esquerda. Há alternância entre uma linha e outra, de 
forma a manter a continuidade do olhar. Também em relação a páginas isto 
costuma acontecer. Se a primeira foi lida de cima para baixo, a seguinte será de 
baixo para cima. 
O recurso à história da escrita torna esse dado, observado nas crianças, mais 
curioso - esta orientação de leitura já fora utilizada na Grécia antiga. Recebia o 
nome de "bustrafédon", por lembrar a maneira de sulcar a terra com o arado 
puxado por bois. 
. Sintetizando as observações decorrentes desses dados, Ferreiro acentua que as 
crianças, muito antes de serem capazes de ler, são capazes de aplicarao texto 
escrito critérios formais específicos, muitos dos quais não poderiam decorrer do 
ensino do adulto. São dependentes deste apenas aqueles ligados à parte mais 
arbitrária da convenção escrita. 
Sobretudo a exigência de um mínimo de letras para se efetuar o ato de 
leitura, a variedade de caracteres dentro deste mínimo e a conversão da letra 
isolada em número são conteúdos que não poderiam ter sido ensinados por um 
alfabetizado, constituindo-se em evidências de uma elaboração própria das 
crianças, por aplicação de seus esquemas interpretativos a um objeto que oferece 
resistência à compreensão. 
Encarar tais fatos como "confusão" é deixar de ver que existe uma 
sistematização infantil que ocorre em bases muito diferentes daquela feita pelo 
adulto. No capítulo seguinte, veremos a forma como esta sistematização ocorre 
durante as atividades produtivas de escrita.

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