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A força do medo – Excluindo o diferente 
Jean Vanier 
Por medo de sofrer, excluímos da vida social todos aqueles que são diferentes de nós. Com isso, 
perdemos a oportunidade de ouvir o apelo do necessitado e de transformar o mundo num lugar melhor. 
 
No Evangelho de Lucas, Jesus conta uma história comovente. Havia um mendigo 
chamado Lázaro que vivia nas ruas. Ele vivia faminto, e suas pernas estavam cobertas de 
feridas. Em frente a ele, em uma bela casa, vivia um homem rico que costumava oferecer 
grandes festas a seus amigos. Lázaro gostaria de comer algumas migalhas que caiam de sua 
mesa, mas os cães as devoravam. Certo dia, Lázaro morreu e foi para o lugar da paz, no “seio 
de Abraão”. O homem rico também morreu e foi para o “lugar de tormento”. Olhando para cima, 
ele viu Lázaro radiante de paz e exclamou: “Pai Abraão, por favor, mande que Lázaro venha 
até aqui para colocar um pouco de água em meus lábios, pois estou sofrendo!” Abraão 
respondeu: “Impossível. Entre você e ele há um abismo que ninguém pode transpor.” Ele 
poderia ter acrescentado: “Assim como houve u8m abismo entre você e ele durante a sua vida 
na Terra.” 
 Essa história de Lázaro nos diz muito sobre o mundo atual, onde há um imenso abismo 
entre aqueles que tem comida, dinheiro e conforto e aqueles que estão famintos ou não tem 
uma casa para morar. Lembro-me de ver crianças em Calcutá com o nariz colocado à vitrine de 
um luxuoso restaurante. De tempos em tempos, o porteiro as enxotava dali. Os ricos – e isso 
inclui a mim e a muitos de vocês – não gostam de ver mendigos sujos olhando para eles. Não 
sentimos todos nós constrangimento e medo diante daqueles que estão famintos? 
 O que é esse abismo que separa as pessoas? Por que somos incapazes de olhar 
Lázaro nos olhos e escutá-lo? 
 Suponho que excluímos Lázaro porque tememos que nosso coração fique 
sensibilizado se entrarmos em um relacionamento com ele. Se escutarmos sua história e 
ouvirmos seu grito de sofrimento, descobriremos que ele é um ser humano. Podemos ficar 
sensibilizados diante do seu coração ferido e de seus infortúnios. O que acontece quando 
nosso coração é sensibilizado? Podemos querer fazer algo para confortá-lo ou ajudá-lo, para 
aliviar seu sofrimento, e para onde isso nos levará? Quando começamos a conversar com um 
mendigo, corremos o risco de entrar numa aventura. Porque Lázaro não necessita apenas de 
dinheiro, mas também de um lugar para morar, tratamento médico, talvez trabalho e, mais 
ainda, ele precisa de amizade. 
 Por isso é perigoso entrar em um relacionamento com os lázaros do nosso mundo. Se 
o fizermos, corremos o risco de ter nossa vida modificada. 
 Todos nós estamos, mais ou menos, encarcerados em nossa cultura, em nossos 
hábitos, até mesmo em nossas amizades e locais de conexão. Se eu me torno amigo de um 
mendigo, perturbo as coisas. Os amigos podem se sentir pouco à vontade, até mesmo 
ameaçados diante do meu novo comportamento; talvez se sintam desafiados a fazer o mesmo. 
Podem se tornar agressivos, podem criticar o comportamento tolo, que chamam de utópico, 
daquele que, em meio a eles, age como amigo de um mendigo. 
 Estou começando a descobrir como o medo é uma força de motivação terrível em 
nossa vida. Temos medo daqueles que são diferentes. Temos medo do fracasso e da rejeição. 
E cada vez mais me conscientizo não apenas dos meus próprios medos, mas do medo dos 
outros. O medo está na raiz de todas as formas de exclusão, assim como a confiança está na 
raiz de todas as formas de inclusão. 
 A história da humanidade é uma história de guerra, opressão, escravidão e rejeição. 
Toda sociedade, em todos os tempos , tem criado suas próprias formas de exclusão. 
 Há uma lista sem fim daqueles que podemos excluir; cada um de nós, podemos ter 
certeza, está na lista de alguém: os desabrigados, os doentes, os que estão morrendo, os 
jovens, os velhos, os fracos, os deficientes, os estrangeiros, os imigrantes, os portadores de 
Aids... 
 Minha experiência da exclusão tem sido principalmente com os portadores de 
deficiências mentais. Tenho visitado instituições abomináveis no mundo todo. Nos países 
africanos, tenho visto homens e mulheres, considerados “loucos”, acorrentados a árvores, 
espancados até sangrar para libertar o chamado demônio que os possui. Na América Latina, 
visitei um manicômio em que cerca de cem homens e mulheres, a maioria seminus, 
compartilhavam um prédio em ruínas com enormes ratos pretos e brancos. 
 Mas essa forma de maus tratos físicos é apenas a manifestação de uma exclusão mais 
ampla. 
 Cheguei à conclusão de que os portadores de deficiências mentais estão entre as 
pessoas mais oprimidas e excluídas do mundo. Até mesmo seus próprios pais frequentemente 
se sentem envergonhados por terem gerado uma criança “como aquela”. Esses pais se sentem 
humilhados e envergonhados pelo aparente fracasso, tão grande é a pressão social para se 
criar um bebê perfeito. 
 Em algumas culturas, as crianças portadoras de deficiências são vistas como um 
castigo de Deus. No capítulo nove do Evangelho de São João, os discípulos questionam Jesus 
sobre um mendigo que nasceu cego: “Ele nasceu cego por causa dos seus pecados ou por 
causa dos pecados de seus pais?”, perguntam. Esse sentimento de culpa é encontrado em 
muitas culturas. 
O medo como base do preconceito e da exclusão 
 Há mais de trinta anos tenho convivido com homens e mulheres que foram excluídos 
da sociedade. Tenho visto de perto como o medo é um grande e terrível motivador das ações 
humanas. Devido à minha experiência com esses homens e mulheres portadores de 
deficiências mentais, tornei-me mais consciente de como o medo está no cerne do preconceito 
e da exclusão. 
 Todos nós temos medo daqueles que são diferentes, daqueles que desafiam a nossa 
autoridade, nossas certezas e nossos sistemas de valor. Todos nós temos medo de perder o 
que é importante para nós, as coisas que nos dão vida, segurança e posição na sociedade. 
Temos medo da mudança e, desconfio, mais medo ainda do nosso próprio coração. 
 O medo faz com que coloquemos os portadores de deficiência mentais em instituições 
afastadas, sombrias. Impede todos nós que temos no bolso o suficiente para pagar uma 
refeição de compartilhá-la com os lázaros do mundo. É o medo, ironicamente, que nos impede 
de ser mais humanos, ou seja, nos impede de crescer e mudar. O medo não quer que nada 
mude; o medo exige o status quo. E o status quo conduz à morte. 
 O medo sempre busca um objeto. Se eu me sinto seguro, quase sempre vou encontrar 
algum bode expiatório para o meu medo, alguém ou algo que eu possa transformar no objeto 
do meu medo e, portanto, da minha raiva. Mas há algumas categorias amplas para os objetos 
do medo, e creio que vale a pena examinar algumas. 
O medo dos dissidentes 
 Sempre existiu o medo do dissidente, ou seja, daquele que parece ameaçar a ordem 
vigente. Os que temem o dissidente são aqueles que tem interesse na manutenção dessa 
ordem; muitas vezes, dinheiro e poder, ou a necessidade de controlar os outros e de se sentir 
superiores a eles, estão na raiz desses interesses. 
 Os milhões que foram torturados e eliminados na Rússia stalinista, nos campos de 
concentração alemães, na África do Sul, na Guatemala, no Chile, em qualquer de uma centena 
de países na nossa própria época, eram vistos, com toda a sinceridade, como maus e 
perigosos por aqueles a quem se opunham. Os ditadores sempre mantiveram uma esmerada 
polícia secreta para excluir e eliminar aqueles que se opunham a eles. 
 Os líderes em geral se consideram donos da razão. Isso é parte do paradigma que 
criamos: se você teve sucesso em abrir o seu caminho para o topo, então, por definição, pela 
lei da seleção natural, os valores que você defende foram autenticados. Por isso, sempre 
parece inteiramente razoável para os poderosos procurar subjugar e excluir qualquer um que 
se oponha a eles.Aqueles que se opõem criam desordem; eles vão contra a ordem natural. 
 O único ponto a considerar sobre tudo isso é que é importante para os líderes escutar o 
dissidente e tentar entender de onde ele vem e o que há de verdade nele. Se a história não nos 
ensina mais nada, ensina pelo menos que o poder é emprestado. No máximo, o poder é algo 
outorgado, não algo tomado. Isso significa, em qualquer proporção nas democracias 
ocidentais, que aqueles que tem poder precisam dos dons de discernimento e julgamento 
porque, se reconhecemos a natureza temporária do poder, então também precisamos 
reconhecer o que é valioso na atividade do dissidente. 
O medo da diferença 
 Faz parte da natureza humana querer pertencer a grupos de criaturas da mesma 
opinião, da mesma cultura ou que tem os mesmos objetivos e interesses. Se conhecemos um 
ao outros, podemos trabalhar juntos. Aqueles que são diferentes nos perturbam. 
 Quem são aqueles que são diferentes? São as pessoas que sofrem de pobreza, 
fragilidade, deficiências ou solidão. Esses milhões de lázaros clamam por nossa ajuda. 
Frequentemente vivem no desconforto. Seus gritos tornam-se perigosos para aqueles de nós 
que vivem no conforto. Se escutamos seus gritos e abrimos nosso coração, isso vai nos custar 
um preço. Então, fingimos não ouvir o grito e, assim, os excluímos. 
 Há muitas maneiras de ser diferente: um pode ser diferente em razão dos seus valores, 
cultura, raça, língua ou educação, orientação religiosa ou política. E, embora a maioria de nós 
possa achar estimulante, ou pelo menos interessante, estar com um estrangeiro durante algum 
tempo, uma coisa muito diferente é realmente se abrir e permitir que o estranho se torne um 
amigo. 
 Os estigmas sociais que cercam as pessoas portadoras de deficiências intelectuais são 
fortes. Há aí uma questão implícita: se uma pessoa não consegue viver segundo os valores de 
conhecimento e poder, os valores da sociedade mais ampla, perguntamos a nós mesmos se 
essa pessoa pode ser totalmente humana. 
As pessoas portadoras de deficiências mentais são em geral colocadas na extremidade 
inferior do espectro humano. Quando me encontrei pela primeira vez com elas na Arche*, eu 
acreditava no amor, mas, para mim, amor significava generosidade, fazer o bem aos outros. 
Naquela época, não entendia que através do nosso amor podemos ajudar os outros a 
descobrir seu próprio valor intrínseco; podemos revelar-lhes a sua beleza e a sua 
singularidade. 
 Pouco a pouco, através da Arche, comecei a enxergar o valor da comunhão de 
corações e de um amor que capacita, que ajuda os outros a se levantarem; um amor que se 
mostra na humildade e na confiança. Se a nossa sociedade tem dificuldades de 
funcionamento, se estamos continuamente confrontados por um mundo em crise, cheio de 
violência , de medo, de abuso, sugiro que é por não estar claro para nós o que significa ser 
humano. Tendemos a reduzir o ser humano a adquirir conhecimento, poder e posição social. 
Temos negligenciado o coração, encarando-o apenas como um símbolo de fraqueza, o centro 
do sentimento e da emoção, em vez de uma central de amor que pode nos reorientar para sair 
do nosso egocentrismo, revelando-nos e aos outros a beleza básica da humanidade, 
capacitando-nos para crescer. 
O medo da perda e da mudança 
 Por que os ricos e poderosos, você e eu, em suma, temos tanto medo dos lázaros que 
existem entre nós? Não será por temermos ter de dividir a nossa riqueza, por temermos perder 
algo? É fácil dar algumas moedas a um mendigo; é mais difícil dar o que é necessário para 
manter o nosso padrão de vida. Nós nos sentimos tão inadequados diante da pobreza. O que 
podemos fazer para mudar tantas situações aparentemente insuportáveis? Estar aberto é um 
empreendimento extremamente arriscado; arriscamos o status, o poder, o dinheiro, até mesmo 
a amizade, o reconhecimento e a sensação de conexão que tanto apreciamos; arriscamos o 
caos da solidão. 
 Durante muitos anos, um casal amigos meus, era próximo de muitos outros casais. O 
grupo estava preocupado com o abismo cada vez maior entre os ricos e os pobres em sua 
cidade e queria fazer algo a respeito. Meus amigos ficaram impacientes com toda a discussão 
e decidiram fazer algo sozinhos. Deixaram o grupo e foram morar em uma área pobre da 
cidade. Os outros os consideraram “traidores” do grupo e se afastaram deles. Para mim, esse é 
um lembrete de que, quando estamos comprometidos com aqueles que são excluídos ou 
marginalizados, corremos o risco de ser criticados por nossa família e por nossos amigos. 
Deixar a cultura dos amigos e da família é como entrar em outro mundo. 
 Todos nós precisamos de uma certa dose de segurança para conseguirmos viver 
pacificamente. Essa sensação de segurança vem da maneira como vivemos nossa vida; vem 
da presença e do reforço da família e dos amigos; vem do nosso local de trabalho e através da 
nossa rotina diária. Nesse contexto, o inesperado pode provocar uma crise. Perder o 
“conhecido” e entrar no “desconhecido” e entrar no “desconhecimento” pode significar uma 
perda terrível para nós. Para vivermos tal perda, é necessária muita força interior. 
 Todos nós temos medo do feio, do sujo. Todos nós queremos nos afastar de qualquer 
coisa que revele o fracasso, o sofrimento, a doença e a morte que estão por baixo da superfície 
brilhante da nossa vida organizada. Civilização é, pelo menos em parte, fingir que as coisas 
são melhores do que realmente são. Todos nós desejamos estar em um lugar feliz, onde todos 
sejam belos e bondosos e possam prover o próprio sustento. Evitamos a nossa própria 
fraqueza e a fraqueza dos outros. Recusamo-nos a ouvir o apelo do necessitado. Como é fácil 
cairmos na ilusão de um mundo bonito quando perdemos a confiança na nossa competência 
para fazer do nosso mundo destruído um local que possa se tornar mais bonito. 
 
*A Arché, fundada por Jean Vanier, é uma rede internacional de comunidades para pessoas que tem 
deficiências mentais. São mais de cem comunidades em 30 países.

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