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Edmund Leach - Sistemas politicos da Alta Birmânia - introducao-3-6-7-9-conclusao

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IN T R O D U Ç Ã O
Este livro trata da população kachin e chan do nordeste da Birmânia, mas 
pretende também fornecer uma contribuição à teoria antropológica. Não foi proje­
tado como uma descrição etnográfica. A maioria dos fatos etnográficos a que me 
refiro foram publicados anteriormente. Não se deve, pois, procurar qualquer 
originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretação desses mesmos fatos.
A população de que nos ocupamos é a que habita a região assinalada com o 
nome KACHIN no mapa 1 e mostrada em grande escala no mapa 2. Essa população 
fala diferentes línguas e dialetos, e existem grandes diferenças de cultura entre uma 
e outra parte da região em questão. No entanto, é comum denominar-se a totalidade 
dessa população com os termos chan e kachin. Neste livro chamarei toda a região 
de Região das Colinas de Kachin.
Num nível grosseiro de generalização, os chans ocupam os vales ribeirinhos 
onde cultivam arroz em campos irrigados; são um povo relativamente sofisticado, 
com uma cultura algo semelhante à dos birmaneses. Os kachins, por outro lado, 
ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as técnicas de cultura 
itinerante através de derrubadas e queimadas. A literatura publicada no século 
passado quase sempre tratou esses kachins como selvagens primitivos e belicosos, 
tão diferentes dos chans na aparência, na língua e na cultura geral que devem ser 
considerados de origem racial totalmente distinta1.
1 Por exemplo, Malcom (1837); Eickstedt (1944).
Sendo assim, está dentro das convenções normais da antropologia que as 
monografias sobre os kachins ignorem os chans e as monografias sobre os chans 
ignorem os kachins. Todavia, os kachins e os chans são em quase toda parte 
vizinhos próximos e estão bastante associados nas questões comuns da vida.
Considere-se, por exemplo, o seguinte documento. Faz parte do registro 
textual do depoimento de uma testemunha num inquérito confidencial realizado 
nos Estados Chans do Norte em 19302.
Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng
Raça: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan)
Idade: 79
Religião: budista zawti
Reside em: Man Hkawng, Mông Hko
Nascido em: Pao Mo, Mông Hko
OcupaçSo: Chefe aposentado
Pai: Ma La, antigamente Duwa de Pao Mo
Quando eu era menino, cerca dc setenta anos atrás, o Regente (chan) Sao Hkam Hseng, 
que então reinava em Mõng Mao, mandou um parente seu, de nome Hga Hkam, negociar uma 
aliança com os kachins de Mõng Hko. Pouco tempo depois Nga Hkam estabeleceu-se em Pao 
Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li e meu avô MaNaw, então 
Duwas de Pao Mo; depois disso nos tomamos chans e budistas e prosperamos grandemente e, 
como membros do clã Hkam, sempre que íamos a Mông Mao ficávamos com o Regente, e 
inversamente, em Mõng Hko nossa casa era deles. [..,]
Parece que essa testemunha considerava que nos últimos setenta anos ou 
aproximadamente sua família tinha sido simultaneamente kachin e chan. Como 
kachin, a testemunha era membro da linhagem do clã Lahtaw(ng). Como chan, era 
budista e membro do clã Hkam, a casa real do Estado de Mõng Mao.
Além disso, Mõng Mao - o conhecido Estado Chan desse nome em território 
chinês - é tratado aqui como sendo uma entidade política do mesmo tipo e tendo 
quase a mesma situação de Mõng Hko, que aos olhos da administração britânica 
de 1930 nada mais era que um “círculo” administrativo kachin no Estado Hsenwi 
do Norte.
Dados desse tipo não podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema 
etnográfico que, em termos lingüísticos, situa kachins e chans em “categorias” 
raciais diferentes.
O problema, contudo, não é simplesmente o de distinguir entre kachins e 
chans; há também a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura
2, Harvey & Barton (1930), p. 81.
SISTEM AS PO LÍTICO S DA ALTA BIRMÂNIA
66
discrimina diversas variedades de kachins. Algumas dessas subcategorias são 
principalmente lingüísticas, como quando se distinguem os kachins que falam 
jinghpaw, dos atsis, dos marus, dos lisus, dos nungs etc.; outras são sobretudo 
territoriais, como quando se distinguem os singphos de Assam dos jinghpahs da 
Birmânia, ou os hkahkus da região do Alto Mali Hka (Triângulo) dos gauris, a leste 
de Bhamo. Porém a tendência geral tem sido minimizar a importância dessas 
distinções e dizer que o essencial da cultura kachin é uniforme em toda a Região 
das Colinas de Kachin3. Livros com títulos como The Kachin Tribes ofBurma; The 
Kachins, their Religion and Mythology; The Kachins, their Customs and Tradi- 
tions; Beitrag zur Ethnologie der Chingpaw (Kachin) von Ober-Burma4 referem- 
se por implicação a todos os kachins onde quer que sejam encontrados, isto é, a 
uma população de cerca de 300 mil pessoas escassamente espalhadas por uma 
região de uns 130 mil quilômetros quadrados*.
Não faz parte de meu problema imediato discutir até que ponto semelhantes 
generalizações sobre a uniformidade da cultura kachin são efetivamente justificá­
veis; meu interesse reside antes no problema de saber até que ponto se pode afirmar 
que um único tipo de estrutura social prevalece ao longo da região kachin. É 
legítimo pensar que a sociedade kachin é organizada em toda parte segundo um 
conjunto particular de princípios, ou será que essa categoria bastante vaga de 
kachin inclui muitas formas diferentes de organização social?
Antes de tentar investigar essa questão, devemos primeiro deixar claro o que 
se entende por continuidade e por mudança com respeito aos sistemas sociais. Sob 
que circunstâncias podemos dizer de duas sociedades vizinhas A e B que “essas 
duas sociedades têm estruturas sociais fundamentalmente distintas", enquanto 
entre duas outras sociedades C e D podemos afirmar que “nessas duas sociedades 
a estrutura social é essencialmente a mesma”?
No restante deste capítulo de abertura meu objetivo será explicar o ponto de 
vista teórico a partir do qual abordo essa questão basilar.
A tese, em suma, é a seguinte. Os antropólogos sociais que, na esteira de 
Radcliffe-Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio 
da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupõem na verdade que as 
sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilíbrio estável. Será, 
então, possível descrever, por meio de categorias sociológicas comuns, sociedades 
que presumivelmente não estão em equilíbrio estável?
3. Pof exemplo, Hanson (1913), p. 13.
4. Carrapiett (1929); Gilhodes (1922); Hanson (1913); Wehrli (1904).
5. Cf. apêndice 5.
INTRODUÇÃO
67
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
Minha conclusão é que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam 
necessariamente modelos de sistemas de equilíbrio, as sociedades reais não podem 
jamais estar em equilíbrio. A discrepância está ligada ao fato de que, quando 
estruturas sociais se expressam sob forma cultural, a representação é imprecisa em 
comparação com a fornecida pelas categorias exatas que o sociólogo, qua cientista, 
gostaria de empregar. Digo que essas inconsistências na lógica da expressão ritual 
são sempre necessárias para o bom funcionamento de qualquer sistema social.
A maior parte de meu livro é um desenvolvimento desse tema. Sustento que 
essa estrutura social em situações práticas (em contraste com o modeío abstrato do 
sociólogo) consiste num conjunto de idéias sobre a distribuição de poder entre 
pessoas e grupos de pessoas. Os indivíduos podem nutrir, e nutrem, idéias contra­
ditórias e incongruentes sobre esse sistema. São capazes de fazê-lo sem embaraço 
por causa da forma em que suas idéias são expressas. A forma é a forma cultural; 
a expressão é a expressão ritual. A última parte deste capítulo introdutório é uma 
elaboração desta portentosa observação.
Antes, porém, voltemos à estrutura social e às unidades sociais.
Estrutura Social
Num certo nível de abstração podemos discutira estrutura social simples­
mente em termos dos princípios de organização que unem as partes componentes 
do sistema. Nesse nível, a forma da estrutura pode ser considerada de maneira 
totalmente independente do conteúdo cultural6. Um conhecimento da forma de 
sociedade entre os caçadores gilyaks da Sibéria Oriental7 e entre os pastores nucrs 
do Sudão* me ajuda a entender a forma da sociedade kachin, a despeito do fato de 
estes últimos serem, em sua maioria, agricultores itinerantes que habitam a densa 
floresta de monção das chuvas.
Nesse nível de abstração, não é difícil distinguir um modelo formal de outro. 
As estruturas que o antropólogo descreve são modelos que existem apenas em sua 
própria mente na forma de construções lógicas. Muito mais difícil é relacionar tal 
abstração com os dados do trabalho empírico de campo. Como podemos ter 
realmente certeza de que um modelo formal particular se ajusta aos fatos melhor 
do que qualquer outro modelo possível?
6. a . Fortes (1949), pp. 54-60.
7. Lévi-Slrauss (1949), capítulo XVIII.
S. Evans-Pritchard (1940).
■ at
. - s M
As sociedades reais existem no tempo e no espaço. A situação demográfica, 
ecológica, econômica e de política externa não se estruturam num ambiente fixo, 
mas num ambiente em constante mudança. Toda sociedade real é um processo no 
tempo. As mudanças que resultam desse processo podem ser discutidas sob dois 
ângulos9. Primeiro, existem as que são coerentes com uma continuidade da ordem 
formal existente. Por exemplo, quando um chefe morre e é substituído por seu filho, 
ou quando uma linhagem se segmenta e temos duas linhagens onde anteriormente 
havia apenas uma, as mudanças são parte do processo de continuidade. Não há 
mudança na estrutura formal. Segundo, existem mudanças que de fato refletem 
modificações na estrutura formal. Se, por exemplo, se puder demonstrar que numa 
localidade particular, durante certo lapso de tempo, um sistema político composto 
de segmentos de linhagem igualitários é substituído por uma hierarquia ordenada 
de tipo feudal, podemos falar de uma mudança na estrutura social formal.
Quando, neste livro, eu falo de mudanças da estrutura social, sempre me estou 
referindo a mudanças deste último tipo.
Unidades Sociais
No contexto da Região das Colinas de Kachin, o conceito de “uma sociedade” 
apresenta muitas dificuldades que se tornarão cada vez mais evidentes no curso 
dos próximos capítulos. Por ora vou seguir a recomendação insatisfatória de 
Radcliffe-Brown e interpretar “uma sociedade” como se significasse “alguma 
localidade conveniente”10.
Alternativamente, aceito os argumentos de Nadei. Por “uma sociedade” 
entendo realmente qualquer unidade política autônoma11.
As unidades políticas na Região das Colinas de Kachin variam grandemente 
de tamanho e parecem ser intrinsecamente instáveis. Num extremo da escala 
pode-se encontrar uma aldeia composta de quatro famílias que reivindicam firme­
mente o seu direito de ser considerada uma unidade plenamente autônoma. No 
outro extremo temos o Estado Chan de Hsenwi, que, antes de 1885, continha 49 
subestados (mõng), alguns dos quais compreendiam por sua vez mais de cem 
aldeias separadas. Entre esses dois extremos podemos distinguir numerosas outras 
variedades de “sociedade”. Esses vários tipos de sistemas políticos diferem uns
9. Cf. Fortes, op. cit., pp. 54-55.
10. Radcliffe-Brown (1940).
11. Cf. Nadei (1951), p. 187.
INTRODUÇÃO
dos outros não só em escala mas também nos princípios formais à luz dos quais 
são organizados. É aqui que reside o ponto fundamental do nosso problema.
Para certas partes da Região das Colinas de Kachin os registros históricos 
genuínos remontam ao começo do século XIX. Isso mostra claramente que durante 
os últimos 130 anos a organização política da região foi muito instável. Pequenas 
unidades políticas autônomas tenderam freqüentemente a agregar-se em sistemas 
maiores; hierarquias feudais em larga escala fragmentaram-se em unidades meno­
res. Houve mudanças violentas e muito rápidas na distribuição global do poder 
político. E portanto metodologicamente errôneo tratar como tipos independentes 
as diferentes variedades de sistemas políticos que encontramos hoje nessa região; 
deveriam ser consideradas claramente como parte de um sistema total mais amplo 
em contínua mudança. Mas a essência de minha tese é que o processo pelo qual as 
pequenas unidades se desenvolvem em unidades maiores e as grandes unidades se 
fragmentam em menores não é uma simples parte do processo de continuidade 
estrutural; não e apenas um processo de segmentação e agregação, é um processo 
que envolve mudança estrutural. É o mecanismo desse processo de mudança que 
nos interessa em particular.
Não há dúvida de que tanto o estudo quanto a descrição da mudança social 
em contextos antropológicos comuns apresenta grandes dificuldades. Os estudos 
de campo são de curta duração, os registros históricos raramente contêm dados do 
tipo correto em pormenores adequados. Em verdade, embora os antropólogos 
tenham declarado amiúde um interesse especial pelo assunto, sua discussão teórica 
dos problemas da mudança social tem merecido até agora poucos aplausos12.
Mesmo assim, parece-me que pelo menos algumas das dificuldades só 
surgem como um produto secundário dos próprios falsos pressupostos do antropó­
logo acerca da natureza desses dados.
Os antropólogos sociais ingleses tenderam a extrair seus conceitos básicos 
muito mais de Durkheim do que de Pareto ou de Max Weber. Em conseqüência, 
estão fortemente predispostos em favor de sociedades que apresentam sintomas de 
“integração funcional”, “solidariedade social”, “uniformidade cultural”, “equilí­
brio estrutural”. Essas sociedades, que os historiadores ou cientistas políticos bem 
poderiam considerar como moribundas, costumam ser vistas pelos antropólogos 
como ricas e idealmente afortunadas. As sociedades que exibem sintomas de 
faccionarismo e conflito interno que conduzem a rápida mudança são, por outro 
lado, suspeitas de “anomia” e de decadência patológica13.
12. Por exemplo, Malinowski (1945); G. & M. Wilson (1945); Herskovits (1949).
13. Homans (1951), pp. 336 e s.
SISTEM AS PO LÍTICO S DA ALTA BIRMÂNIA
INTRODUÇÃO
Essa predisposição a favorecer as interpretações do “equilíbrio” decorre da 
natureza dos materiais do antropólogo e das condições sob as quais ele executa o 
seu trabalho. O antropólogo social normalmente estuda a população de um local 
particular num determinado ponto do tempo e não está muito preocupado com a 
probabilidade de ser ou não a mesma localidade estudada de novo por outros 
antropólogos numa data posterior. Desse modo, temos estudos da sociedade 
trobriand, da sociedade tikopia, da sociedade nuer, mas não da “sociedade tro- 
briand de 1914”, da “sociedade tikopia de 1929”, da “sociedade nuer de 1935”. 
Quando as sociedades antropológicas são assim dissociadas do tempo e do espaço, 
a interpretação que é dada ao material é necessariamente uma análise de equilíbrio, 
pois, se assim não fosse, decerto pareceria ao leitor que a análise era incompleta. 
Mais do que isso, porém: como na maioria dos casos o trabalho de investigação foi 
realizado definitivamente sem qualquer noção de repetição, a apresentação é de 
equilíbrio estável, os autores escrevem como se os trobrianders, os tikopias, os 
nuers fossem o que são, agora e para todo o sempre. Com efeito, a confusão entre 
os conceitos de equilíbrio e de estabilidade está tão profundamente arraigada na 
literatura antropológica que o uso de qualquer desses termos está sujeito a ambi­
güidade. Eles não são, claro está, a mesma coisa. Minha posição pessoal é a que 
segue.
Sistemas de Modelo
Quando o antropólogo tenta descrever um sistema social, ele descreve neces­
sariamente apenas um modelo da realidade social. Esse modelo representa, com 
efeito, a hipótesedo antropólogo sobre “o modo como o sistema social opera”. As 
diferentes partes do sistema de modelo formam, portanto, necessariamente, um 
todo coerente - é um sistema em equilíbrio. Isso porém não implica que a realidade 
social forma um todo coerente; ao contrário, a situação real é na maioria dos casos 
cheia de incongruências; e são precisamente essas incongruências que nos podem 
propiciar uma compreensão dos processos de mudança social.
Em situações como as que encontramos na Região das Colinas de Kachin, 
podemos considerar que qualquer indivíduo particular detém uma condição social 
em sistemas sociais diferentes ao mesmo tempo. Para o próprio indivíduo, tais
sistemas apresentam-se como alternativas ou incongruências no esquema de valo­
res pelo qual ele ordena sua vida. O processo global de mudança estrutural 
realiza-se por meio da manipulação dessas alternativas como forma de progresso 
social. Todo indivíduo de uma sociedade, cada qual em seu próprio interesse, se
71
empenha em explorar a situação à medida que a percebe e, ao fazê-lo, a coletividade 
de indivíduos altera a estrutura da própria sociedade.
Essa idéia um tanto complicada receberá freqüente ilustração nas páginas 
seguintes, mas o argumento pode ser ilustrado por um simples exemplo.
Em matéria política, os kachins têm diante de si dois modos ideais de vida 
totalmente contraditórios. Um deles é o sistema chan de governo, que se assemelha 
a uma hierarquia feudal. O outro é aquele que denomino neste livro organização 
de tipo gumlao-, é um sistema essencialmente anarquista e igualitário. Não é raro 
encontrar um kachin ambicioso que assuma os nomes e os títulos de um príncipe 
chan a fim de justificar sua pretensão à aristocracia, mas que apela simultaneamente 
a princípios gumlao de igualdade a fim de fugir à obrigação de pagar direitos 
feudais ao seu próprio chefe tradicional.
E assim como os indivíduos kachins se vêem freqüentemente diante de uma 
escolha quanto ao que é moralmente correto, da mesma forma pode-se dizer que 
ao conjunto das comunidades kachin se oferece uma escolha quanto ao tipo de 
sistema político que será o seu ideal. Em suma, minha tese é que em termos de 
organização política as comunidades kachins oscilam entre dois tipos polares - 
“democracia” gumlao, de um lado, e autocracia chan, de outro. A maioria das 
autênticas comunidades kachins não são nem do tipo gumlao nem do tipo chan, 
mas estão organizadas segundo um sistema descrito neste livro como gumsau, que 
é, com efeito, uma espécie de compromisso entre o ideal gumlao e o chan. Num 
capítulo posterior descrevo o sistema gumsa como se fosse um terceiro modelo 
estático entre o modelo gumlao e o chan, mas naturalmente o leitor precisa 
compreender que as comunidades gumsa não são estáticas. Algumas, sob a influên­
cia de circunstâncias econômicas favoráveis, tendem cada vez mais para o modelo 
chan, até que no final os aristocratas kachins sentem que “se tornaram chans” (sam 
tai sai), como no caso do ancião de Mõng Hko, que encontramos na página 66; 
outras comunidades gumsa movem-se na direção oposta e tornam-se gumlao. A 
organização social kachin, tal como é descrita nos relatos etnográficos existentes, 
é sempre o sistema gumsa-, mas minha tese é que esse sistema considerado em si 
mesmo é realmente incompreensível, pois está cheio de contradições inerentes. 
Apenas enquanto esquema de modelo ele pode ser representado como um sistema 
de equilíbrio15, embora Lévi-Strauss tenha percebido que a estrutura assim repre­
sentada contém elementos que estão “en contradiction avec le système, et doit donc
14. Salvo quando é declarado em contrário, Iodas as palavras nativas usadas neste livro são palavras da 
língua jinghpaw pronunciadas de acordo com o sistema de romanização criado por Hanson; cf. Hanson 
(1906).
15. Leach (1952), pp. 40-45.
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
entrainer sa ruine”16. No campo da realidade social, as estruturas políticas gumsa 
são essencialmente instáveis, e sustento que elas só se tomam plenamente inteli­
gíveis em termos do contraste apresentado pelos tipos polares de organização 
gumlao e chan.
Outra maneira de estudar os fenômenos de mudança estrutural consiste em 
dizer que estamos interessados nas mudanças sobrevindas no foco do poder político 
dentro de um dado sistema.
A descrição estrutural de um sistema social fornece-nos um modelo ideali­
zado que declara as relações de status “corretas” existentes entre grupos dentro do 
sistema total e entre as pessoas sociais que compõem grupos particulares17. A 
posição de qualquer pessoa social em tal sistema de modelo é necessariamente fixa, 
conquanto se possa pensar que os indivíduos preenchem diferentes posições no 
desempenho de diferentes tipos de ocupação e em diferentes estágios de sua 
carreira.
Quando nos referimos a mudança estrutural, temos de considerar não apenas 
as mudanças na posição dos indivíduos com respeito a um sistema ideal de 
relacionamentos de status, mas também as mudanças no próprio sistema ideal: ou 
seja, mudanças na estrutura de poder.
O poder em qualquer sistema deve ser pensado como um atributo de “deten­
tores de cargo”, isto é, de pessoas sociais que ocupam posições às quais o poder 
está ligado. Os indivíduos exercem poder somente em sua capacidade de pessoas 
sociais. Como regra geral, creio que nunca se justifica que o antropólogo social 
interprete a ação como sendo inambiguamente orientada para algum fim particular. 
Por essa razão nunca me contento com os argumentos racionalistas referentes às 
“necessidades” e “metas” como os aventados por Malinowski e por Talcott Par- 
sons18, mas considero necessário e justificável supor que um desejo consciente ou 
inconsciente de adquirir poder é um motivo muito geral nas questões humanas. Por 
isso, suponho que os indivíduos que se defrontam com uma escolha de ação irão 
geralmente usar tal escolha para adquirir poder, vale dizer, procurarão o reconhe­
cimento como pessoas sociais que têm poder; ou, para me servir de uma linguagem 
diferente, eles procurarão ter acesso ao cargo ou ao apreço de seus companheiros 
que pode levá-los ao cargo.
O apreço é um produto cultural. O que é admirado em uma sociedade pode 
ser deplorado em outra. A peculiaridade do tipo de situação nas Colinas de Kachin
16. “...em contradição com o sistema, e deve acarretar a sua ruína”. Lévi-Strauss (1949), p. 325.
17. Para esse uso da expressão “pessoa social”, cf. especialmente Radcliffe-Brown (1940), p. 5.
18. Malinowski (1944); Parsons (1949); Parsons & Shils (1951), Parte II.
INTRODUÇÃO
é que um indivíduo pode pertencer a mais de um sistema de apreço, e que esses 
sistemas podem não ser coerentes. A ação que é meritória segundo as idéias chans 
pode ser tachada de humilhante no código gumlao. Portanto, raramente é clara a 
melhor maneira de um indivíduo adquirir apreço em qualquer situação particular. 
Isso parece difícil, porém o leitor não precisa imaginar que tal incerteza seja de 
qualquer modo incomum; em nossa própria sociedade a ação eticamente correta 
para um homem de negócios cristão é quase sempre igualmente ambígua.
Ritual
Para elaborar esta argumentação devo primeiramente explicar como uso o 
conceito de ritual. O ritual, digo eu, “serve para expressar o status do indivíduo 
enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporaria­
mente”. Obviamente, a importância de semelhante aforismo dependerá do sentido 
que se deve atribuir à palavra ritual.
Os antropólogos sociais ingleses, em sua maioria, seguiram Durkheim ao 
dividir as ações sociais em duas grandes classes - a saber, ritos religiosos que são 
sagrados e atos técnicos que são profanos. Das muitas dificuldades que resultam 
dessa posição, uma das mais importantes diz respeito à definição e à classificação 
de magia. Haverá uma classe especial de açõesque se podem descrever como atos 
mágicos e, se houver, pertencerão à categoria “sagrada” ou à categoria “profana”, 
estarão mais ligadas à natureza e à função dos atos religiosos ou às dos atos 
técnicos?
Várias respostas foram dadas a essa pergunta. Malinowski, por exemplo, 
situa a magia no terreno do sagrado19; Mauss parece considerá-la profana20. Mas, 
independentemente de a principal dicotomia estar situada entre o mágico-religioso 
(sagrado) e o técnico (profano), ou entre o religioso (sagrado) e o mágico-técnico 
(profano), permanece o pressuposto de que situações de algum modo sagradas e 
profanas são distintas como totalidades. Ritual é pois uma palavra usada para 
descrever as ações sociais que ocorrem em situações sagradas. Uso a palavra de 
modo diferente deste.
Do ponto de vista do observador, as ações afiguram-se meios para atingir 
fins, e é perfeitamente exeqüível seguir a recomendação de Malinowski e classifi­
car as ações sociais no tocante a seus fins - isto é, as “necessidades básicas” que
19. Malinowski (1948), p. 67.
20. Mauss (1947), p. 207.
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
INTRODUÇÃO
parecem satisfazer. Mas os fatos que se revelam desse modo são fatos técnicos; a 
análise não fornece nenhum critério para distinguir as peculiaridades de alguma 
cultura ou de alguma sociedade. Pouquíssimas ações, com efeito, têm essa forma 
elementar funcionalmente definida. Por exemplo, se se deseja cultivar arroz, é 
certamente essencial e funcionalmente necessário limpar um pedaço de chão e 
jogar sementes nele. E sem dúvida as perspectivas de uma boa colheita melhorarão 
se o terreno for cercado e as ervas daninhas forem capinadas de quando em quando. 
Os kachins fazem todas essas coisas e, na medida em que o fazem, estão executando 
simples atos técnicos de um tipo funcional. Essas ações servem para atender a 
“necessidades básicas”. Mas há muito mais do que isso. No “procedimento costu­
meiro” dos kachins, as rotinas de limpar o terreno, plantar as sementes, cercar o 
pedaço de terra e capinar as ervas daninhas são todas padronizadas de acordo com 
as convenções formais e entremeadas com todos os tipos de adornos e ornatos 
tecnicamente supérfluos. São esses adornos e ornatos que tornam o desempenho 
um desempenho kachin, e não um mero ato funcional. E o mesmo sucede com todo 
tipo de ação técnica; há sempre o elemento que funcionalmente é essencial, e outro 
elemento que é apenas o costume local, um adorno estético. Tais adornos estéticos, 
Malinowski os chama de “costume neutro”21, e nesse esquema de análise funcional 
são tratados como irrelevâncias menores. Parece-me, contudo, que são precisamen­
te esses adornos costumeiros que fornecem ao antropólogo social seus dados 
básicos. Logicamente, estética e ética são idênticas22. Se quisermos entender as 
normas éticas de uma sociedade, é a estética que devemos estudar. Na origem, os 
pormenores do costume podem ser um acidente histórico; mas para os indivíduos 
que vivem numa sociedade tais pormenores nunca podem ser irrelevantes, são parte 
do sistema total de comunicação interpessoal dentro do grupo. São ações simbóli­
cas, representações. É tarefa do antropólogo tentar descobrir e traduzir para seu 
próprio jargão técnico aquilo que está simbolizado ou representado.
Tudo isso, é claro, está muito próximo de Durkheim. Mas Durkheim e seus 
discípulos parecem ter acreditado que as representações coletivas estavam confi­
nadas à esfera do sagrado, e desde que afirmam que a dicotomia entre o sagrado e 
o profano era universal e absoluta, inferia-se que só eram especificamente sagrados 
os símbolos que o antropólogo submetia à análise.
Quanto a mim, acho injustificável a ênfase que Durkheim coloca na dicoto­
mia absoluta entre o sagrado e o profano23. Parece, antes, que as ações acontecem
21. Malinowski, in Hogbin (1934), p. xxvi.
22. Wittgenstein (1922), 6.421.
23. Durkheim (1925), p. 53.
numa escala contínua. Num extremo temos as ações que são inteiramente profanas, 
inteiramente funcionais, pura e simples técnica; no outro, temos as ações que são 
inteiramente sagradas, estritamente estéticas, tecnicamente não-funcionais. Entre 
esses dois extremos temos a grande maioria das ações sociais que participam em 
parte de uma das esferas e em parte da outra.
Desse ponto de vista, técnica e ritual, profano e sagrado não denotam tipos 
de ação, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de ação. A técnica tem 
conseqüências materiais econômicas que são mensuráveis e predizíveis; o ritual, 
por outro lado, é uma declaração simbólica que “diz” alguma coisa sobre os 
indivíduos envolvidos na ação. Assim, de certos pontos de vista pode-se dizer que 
um sacrifício religioso kachin é um ato puramente técnico e econômico. É um 
procedimento para matar gado e distribuir a carne, e acho que talvez haja pouca 
dúvida de que para a maioria dos kachins isso parece ser o aspecto mais importante 
da questão. Um natgalaw (“executar um nat”, sacrifício) é quase sinônimo de uma 
boa festa. Mas do ponto de vista do observador há muita coisa que ocorre num 
sacrifício que é absolutamente irrelevante no que concerne a matadouro, a cozi­
mento e a distribuição de carne. São esses outros aspectos que têm significado 
como símbolos de status social, e são esses outros aspectos que descrevo como 
rituais quer envolvam ou não diretamente qualquer conceituação do sobrenatural 
ou do metafísico24.
O mito, em minha terminologia, é a contrapartida do ritual; mito implica 
ritual, ritual implica mito, ambos são uma só e a mesma coisa. Essa posição é 
ligeiramente diferente das teorias de Jane Harrison, de Durkheim e de Malinowski. 
A doutrina clássica na antropologia social inglesa é que mito e ritual são entidades 
conceitualmente distintas que perpetuam uma à outra mediante uma interdepen­
dência funcional - o rito é uma dramatização do mito, o mito é a sanção ou a 
justificativa do rito. Esse enfoque do material torna possível discutir os mitos 
isoladamente como constituindo um sistema de crenças, e de fato uma parte muito 
grande da literatura antropológica sobre religião diz respeito quase totalmente à 
discussão do conteúdo da crença e da racionalidade ou não desse conteúdo. Mas 
tais argumentos parecem-me um contra-senso escolástico. A meu ver, o mito 
encarado como uma afirmação em palavras “diz” a mesma coisa que o ritual 
encarado como uma afirmação em ação. Indagar sobre o conteúdo da crença que 
não está contido no conteúdo do ritual é um contra-senso.
Se eu desenhar um diagrama grosseiro de um automóvel no quadro-negro e 
escrever embaixo “isto é um carro”, ambas as declarações - o desenho e o escrito
24. Cf. a distinção feita por Merton (1951) entre função manifesta e função latente.
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
IUTRODVÇÀO
- “dizem” a mesma coisa - nenhuma diz mais do que a outra, e seria claramente 
um contra-senso perguntar: "0 carro é Ford ou Cadillac?” De igual modo, parece- 
me que, se eu vir um kachin matando um porco e lhe perguntar 0 que está fazendo 
e ele disser nat jaw nngai - “Estou dando-o aos nats" esta afirmação 6 apenas 
uma descrição do que ele está fazendo. É um contra-senso fazer perguntas como: 
“Os nats têm pernas? Eles comem carne? Eles vivem no céu?”
Em algumas partes deste livro farei freqüentes referências à mitologia kachin, 
mas não farei nenhuma tentativa de encontrar qualquer coerência lógica nos mitos 
a que me refiro. Os mitos, para mim, são apenas um modo de descrever certos tipos 
de comportamento humano; o jargão do antropólogo e o uso que ele faz dos 
modelos estruturais são outras tantas maneiras de descrever os mesmos tipos de 
comportamento humano. Na análise sociológica nunca podemos ter uma autono­
mia absoluta. Por abstrata que seja a minha representação, minha preocupação é 
sempre com o mundo material do comportamento humano observável, nuncacom 
a metafísica ou com sistemas de idéias que tais.
Interpretação
Em suma, portanto, minha opinião aqui é que ação ritual e crença devem ser 
entendidas como formas de afirmação simbólica sobre a ordem social. Embora eu 
não afirme que os antropólogos estão sempre em condições de interpretar esse 
simbolismo, digo entretanto que a principal tarefa da antropologia social é tentar 
tal interpretação25.
Devo admitir aqui um pressuposto psicológico básico. Suponho que todos os 
seres humanos, qualquer que seja a sua cultura e o seu grau de complexidade 
mental, tendem a construir símbolos e a fazer associações mentais do mesmo tipo 
geral. Isso é uma suposição muito ampla, se bem que todos os antropólogos a 
façam. A situação importa nisto: suponho que com paciência eu, um inglês, posso 
aprender a falar qualquer outra língua verbal - por exemplo, kachin. Alem disso, 
suponho que então serei capaz de dar uma tradução aproximada em inglês de 
qualquer afirmação verbal comum feita por um kachin. Quando se trata de afirma­
ções que, embora verbais, são inteiramente simbólicas - como, por exemplo, na 
poesia —, a tradução toma-se muito difícil, visto que uma tradução literal, palavra 
por palavra, provavelmente não traz quaisquer associações para o leitor inglês
25. O conceito de tidos, tal como foi desenvolvido por Batcson (1936), lem relevância para essa parte de 
minha argumentação.
comum; suponho todavia que posso, com paciência, chegar a compreender apro­
ximadamente até mesmo a poesia de uma cultura estrangeira e que posso então 
comunicar a outros essa compreensão. Da mesma maneira, suponho que posso dar 
uma interpretação aproximada mesmo de ações simbólicas não-verbais, como itens 
do ritual. É difícil justificar completamente esse tipo de suposição, mas sem ele 
todas as atividades dos antropólogos tornam-se sem sentido.
Desse ponto de vista posso voltar ao problema que levantei no começo deste 
capítulo, isto é, a relação entre uma estrutura social considerada como modelo 
abstrato de uma sociedade ideal e a estrutura social de qualquer sociedade empírica 
concreta.
Estou afirmando que onde quer que eu encontre um “ritual” (no sentido em 
que o defini) posso, como antropólogo, interpretá-lo.
O ritual em seu contexto cultural é um modelo de símbolos; as palavras com 
que o interpreto são outro modelo de símbolos composto largamente de termos 
técnicos inventados por antropólogos - palavras como linhagem, classe, status etc. 
Os dois sistemas de símbolo têm algo em comum, a saber, uma estrutura comum. 
De igual modo, uma partitura musical e sua execução têm uma estrutura comum26. 
Isso é o que estou querendo dizer quando afirmo que o ritual torna explícita a 
estrutura social.
A estrutura que é simbolizada no ritual é o sistema das relações corretas 
socialmente aprovadas entre indivíduos e grupos. Essas relações não são formal­
mente reconhecidas em todos os tempos. Quando os homens estão envolvidos em 
atividades práticas para satisfazer o que Malinowski denomina “as necessidades 
básicas”, as implicações das relações estruturais podem ser totalmente desprezadas; 
nm chefe kachin trabalha em seu campo lado a lado com o menor dos seus servos. 
Na verdade, estou preparado para afirmar que o desprezo da estrutura formal é 
essencial para o prosseguimento das atividades sociais informais ordinárias.
No entanto, se quisermos evitar a anarquia, os indivíduos que compõem uma 
sociedade devem de tempos em tempos ser lembrados, pelo menos em símbolo, da 
ordem básica que presumivelmente guia suas atividades sociais. Os desempenhos 
rituais têm essa função para o grupo participante como um todo27; eles tornam 
momentaneamente explícito aquilo que de outro modo é ficção.
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
26. Russell (1948), p. 479.
27. Pata o indivíduo, a participação num ritual pode também ter outras funções - por exemplo, uma funçao 
psicológica catártica mas isso, a meu ver, está fora do âmbito do antropólogo social.
in tk o d v ç Ao 
Estrutura Social e Cultura
Minha opinião quanto ao tipo de relação que existe entre estrutura social e 
cultura58 é uma decorrência imediata disso. A cultura proporciona a forma, a 
“roupagem” da situação social. Para mim, a situação cultural é um fator dado, é 
um produto e um acidente da história. Não sei por que as mulheres kachins antes 
de se casarem andam com a cabeça descoberta e o cabelo cortado curto, mas usam 
um turbante depois, tanto quanto não sei por que as mulheres inglesas põem um 
anel num dedo particular para denotar a mesma mudança de status social; tudo o 
que me interessa é que nesse contexto kachin o uso de um turbante por uma mulher 
tem esse significado simbólico. É uma afirmação sobre o status da mulher.
Porém a estrutura da situação é largamente independente da sua forma 
cultural. O mesmo tipo de relação estrutural pode existir em muitas culturas 
diferentes e ser simbolizado de maneiras correspondentemente diferentes. No 
exemplo que acabamos de dar, o casamento é um relação estrutural que é comum 
tanto à sociedade inglesa quanto à kachin; é simbolizado por um anel em uma e 
por um turbante na outra. Isso significa que um único e mesmo elemento da 
estrutura social pode aparecer com uma roupagem cultural na localidade A e outra 
roupagem cultural na localidade B. Mas A e B podem ser lugares adjacentes no 
mapa. Em outras palavras, não existe razão intrínseca pela qual as fronteiras 
significativas dos sistemas sociais devam sempre coincidir com as fronteiras 
culturais.
Admito que as diferenças de cultura são estruturalmente significativas, mas 
o mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente não implica 
necessariamente - como quase sempre se supôs - que pertençam a dois sistemas 
sociais totalmente diferentes. Nesse livro pressuponho o contrário.
Em qualquer região geográfica que careça de fronteiras naturais básicas, é 
provável que os seres humanos das regiões adjacentes do mapa tenham relações 
uns com os outros - pelo menos até certo ponto não importa quais possam ser
28. Como este livro pode ser lido tanlo por antropólogos americanos como ingleses, devo advertir que o 
termo cultura, tal com o o uso, não é aquela categoria abrangente que constitui o tema da antropologia 
cultura] americana. Sou um antropólogo social e estou interessado na estrutura social da sociedade 
kachin. Para mim, os conceitos de cultura e sociedade são absolutamente distintos. “Se se considera a 
sociedade com o um agregado de relações sociais, enlSo a cultura é o contendo dessas relações, A 
sociedade encarece o componente humano, o agregado de pessoas e as relações entre elas. A cultura 
enfatiza o componente dos recursos acumulados, (anto imaterial com o material, que as pessoas herdam, 
empregam, Iransmutam, aumentam e transmitem” (Firth, 1951, p. 27). Para o uso algo diferente do 
termo cultura corrente entre os antropólogos americanos, ver Kroeber (1952) e Kroeber & Kluckhohn 
(1952).
seus atributos culturais. Na medida em que essas relações são ordenadas e não 
totalmente fortuitas, há implícita nelas uma estrutura social. Mas - pode-se per­
guntar - se as estruturas sociais são expressas em símbolos culturais» como se 
podem expressar as relações culturais entre grupos de cultura diferente? Minha 
resposta é que a manutenção da diferença cultural e a insistência nessa diferença 
podem por si mesmas tomar a ação ritual expressiva das relações sociais.
Na região geográfica discutida neste livro, as variações culturais entre um 
grupo e outro são muito numerosas e muito acentuadas. Mas as pessoas que falam 
uma língua diferente, usam roupa diferente, adoram divindades diferentes etc. não 
são vistas com o estrangeiros inteiramente, fora do âmbito do reconhecimento 
social. Os kachins e os chans são mutuamente arrogantes uns com os outros, mas 
presume-se queos kachins e os chans têm, apesar de tudo, um antepassado comum. 
Nesse contexto, atributos culturais como língua, roupa e procedimento ritual são 
meros rótulos simbólicos que denotam os diferentes setores de um sistema estru­
tural único e extenso.
Para os meus propósitos, o que tem significado real é o modelo estrutural 
básico, e não o modelo cultural manifesto. Estou interessado não tanto na interpre­
tação estrutural de uma cultura particular, mas no modo como as estruturas 
particulares podem admitir várias interpretações culturais e no modo como estru­
turas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de símbolos cultu­
rais. A o tratar desse tema, procuro demonstrar um mecanismo básico da mudança 
social.
S IS T E M A S P O L ÍT IC O S D A A L T A B IR M Â N IA
AS CATEGORIAS CHAN E KACHIN 
E SUAS SUBDIVISÕES
Deve ter ficado evidente, pelo que foi dito, que um requisito básico para a 
compreensão da tese deste livro é que o leitor seja capaz de conceituar para si 
mesmo exatamente o que se entende por categoria kachin e chan e suas várias 
subdivisões, e também pelas subcategorias contrastantes kachin gumsa e kachin 
gumlao. O presente capítulo é uma tentativa de tornar claras essas distinções no 
plano muito superficial da etnografia descritiva; somente mais tarde patentear-se-á 
até onde se podem distinguir as categorias no nível da estrutura social,
Chan
Examinemos em primeiro lugar a categoria chan. A palavra nessa forma deriva 
do birmanês. Os termos geográficos Assam e Sião são vocábulos correlatos. O 
equivalente kachin (jinghpaw) do birmanês chan é sam. Os birmaneses aplicam o 
termo chan, de maneira bastante coerente, a todos os habitantes da Birmânia política 
e da região fronteiriça entre Birmânia e Yun-nan que se autodenominam Tais. No 
oeste e no sudeste da Birmânia isso envolve certa ambigüidade, uma vez que os 
birmaneses distinguem os chans dos siameses, embora ambos os grupos se autode­
nominem tais. Mas para o noroeste da Birmânia a definição é suficientemente clara.
Os chans, assim definidos, encontram-se territorialmente dispersos, mas têm 
uma cultura razoavelmente uniforme. As variações dialetais entre diferentes loca­
lidades são consideráveis, mas ainda assim, à parte umas poucas exceções espe­
ciais, pode-se dizer que todos os chans da Birmânia do Norte e do Yun-nan 
Ocidental falam uma mesma língua, a saber, o tai. As exceções são os chans de 
Mõng Hsa (os maingthas ou a’changs), que falam o que parece ser um dialeto do 
maru; os chans do vale do Kubaw, que falam atualmente uma corruptela do 
birmanês; e pequenos bolsões heterogêneos de chans nas regiões do alto Chindwin 
e do vale do Hukawng, cuja língua atual parece ser principalmente o jinghpaw, 
com forte mistura do tai e do assamês. A maior parte da população conhecida pelo 
nome de kadu parece entrar nessa categoria1. Há também um pequeno grupo de 
pessoas que habitam o Irrawaddy, perto de Sinbo, que vivem como chans mas falam 
uma língua chamada hpon, mais ou menos intermediária entre o maru e o birmanês. 
Segundo parece, a maioria dos derradeiros falantes do hpon - existem apenas 
algumas centenas deles - consideram-se tais.
Um critério mais importante de identidade de grupo é que todos os chans são 
budistas2. É verdade que a maioria não é muito devota, e o budismo chan inclui 
várias seitas decididamente heréticas, mas ser budista é simbolicamente importante 
como índice da complexidade chan. Quando, como sucede com não pouca freqüên­
cia, um kachin “se torna um chan” (sam tai), a adoção do budismo é uma parte 
decisiva do processo. O indivíduo que na Birmânia atual (1951) recebe o título 
oficial de “Chefe do Estado de Kachin” é um budista-kachin-e-chan desse gênero.
Um segundo critério geral é que “todos os povoados chans estão associados 
à cultura do arroz irrigado”. Podemos aqui combinar o conceito chan com os dados 
citados no capítulo 2. A Birmânia do Norte é uma região de colinas e montanhas. 
Os chans estão espalhados por essa região, mas não aleatoriamente. Os povoados 
chans ocorrem somente ao longo dos vales dos rios ou em bolsões de território 
plano nas colinas. Esses povoados estão sempre associados às terras de arroz 
irrigado. Há portanto uma grosseira equivalência entre cultura e sofisticação. Nessa 
região, a prosperidade que provém das planícies onde se cultiva o arroz irrigado 
subentende o budismo, que por sua vez subentende a vinculação a um Estado feudal 
chan. As únicas exceções a essa generalização encontram-se mais ou menos fora 
da região que estamos estudando. Os palaungs não derivam sua prosperidade 
econômica do arroz irrigado, mas do cultivo do chá; são budistas e têm um sistema 
social do tipo chan, mas habitam as colinas3. Existem também alguns habitantes 
sofisticados nos Estados de Was, que se enriqueceram com os lucros decorrentes
1. Ver também p. 108.
2. Na Indochina há um grupo não budista conhecido como “tai negro”, mas concentro-me aqui apenas 
nos chans da Região das Colinas de Kachin.
3. Milne (1924); Cameron (1911); Lowis (1906).
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
da cultura da papoula. Ainda vivem nas montanhas, mas adotaram o budismo e são 
conhecidos pela designação de tais lois (isto é, chans das colinas).
A proposição inversa é apenas aproximadamente verdadeira. No interior da 
Região das Colinas de Kachin a maioria das comunidades (mas não todas) que 
dependem totalmente do cultivo do arroz irrigado são chans (ou birmaneses). As 
principais exceções são as seguintes. A leste, na parte alta da bacia do rio Shweli, 
ao norte de Tengyueh, a população que cultiva arroz, na sua maioria, fala o chinês. 
Mais para o oeste, no vale do Hukawng, há regiões de arroz irrigado em que os 
habitantes atuais se consideram mais kachins (jinghpaw) do que chans. Finalmen­
te, em Assam, na fronteira ocidental da região, o campônio assamês comum cultiva 
o arroz irrigado. Devo ainda acrescentar que nos distritos administrativos de 
Bhamo e de Myitkyina, na Birmânia, os primeiros Estados Chans já não existem 
como entidades políticas separadas. Nessas regiões não se pode estabelecer uma 
distinção clara entre os componentes chans e os birmaneses da população que 
habita o vale.
O cultivo de arroz pelos chans é feito quase sempre em regiões planas que 
permitem o uso de arados e grades puxados por búfalos. As comunidades chans 
estão muito ocasionalmente associadas aos sistemas de terraços de colina como os 
mencionados no capítulo 2, mas a maioria dos sistemas de terraços de colina dessa 
região são cultivados por kachins.
Tentei indicar nos mapas 3 e 4 a distribuição aproximada de povoados chans, 
mas os bolsões desses assentamentos são amiúde tão pequenos que só um mapa 
em pequena escala poderia dar uma verdadeira indicação do quanto, geografica­
mente falando, os chans e os kachins estão “misturados”.
Os birmaneses estabelecem uma distinção entre os chans birmaneses (Shan 
B ’mahy, os chans chineses (Shan Tayok) e os chans hkam tis. Grosso modo, os 
chans birmaneses compreendem os chans dos Estados Chans birmaneses, onde o 
budismo é mais ou menos do tipo birmanês e onde os príncipes (saohpa) há muito 
estão subordinados nominalmente ao rei birmanês. Os chans chineses são os dos 
Estados Chans do Yun-nan, o mais importante dos quais se situa na região ao sul 
de Tengyueh e a oeste do Salween. Muitos dos chans que ora residem na Birmânia, 
nos distritos de Bhamo e de Myitkyina, são imigrantes recentes do Yun-nan e são 
classificados pelos birmaneses como chans chineses. Os chans hkamtis são consi­
derados um subtipo dos chans birmaneses. Com base na história, podemos defini-
SISTEMAS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
4. Aparentemente, essa expressão é usual somente nos distritos de Bhamo e de Myitkyina; ver Bennison 
(1933), p. 189.
96
Mapa 4. Distribuição da população chan e kachin por voltade 1825 na porção norte da Região das Colinas de Kachin.
los como os chans que possivelmente estabeleceram uma certa aliança política com 
o antigo Estado Chan de Mogaung (Mõng Kawng).
Até a metade do século XVIII os Estados Chans da Birmânia do Norte 
conservaram um grau significativo de independência e demonstraram muito mais 
lealdade à China que à Birmânia. No último quartel do século XVIII, no curso de 
uma série de guerras algo irresolvidas entre a Birmânia e a China, os vários 
principados chans da região do alto Irrawaddy (Mogaung, Mohnyin, Waingmaw, 
Bhamo) parecem ter tomado o partido dos chineses; em conseqüência, sofreram 
uma destruição nas mãos dos exércitos birmaneses5. A partir do final do século 
XVIII não houve príncipes chans (saohpa) regulares nesses Estados. Estes eram 
tratados como dependências feudais diretas da coroa birmanesa. Os rendimentos 
do departamento de myosa dependiam da mercê do rei e o governante do Estado 
(myowun) era nomeado diretamente pelo castelo de Ava.
Hkamti6 parece ter sido originariamente um título associado à família real de 
Mogaung. Depois da eliminação de Mogaung como unidade política independente, 
continuou a servir para descrever aqueles principados chans que anteriormente 
haviam sido dependências políticas de Mogaung num sentido feudal.
Como esses Estados Hkamtis desempenharam um papel de relevo nos negó­
cios dos kachins, vale a pena enumerá-los em detalhe.
a . Hkamti Long (Grande Hkamti), hoje uma confederação de sete pequenos principados 
chans, situada perto das cabeceiras do Irrawaddy (Mali Hka). Embora a princípio tenha sido 
talvez colonizado diretamente desde a China, Hkamti Long parece ter sido uma dependência de 
Mogaung nos séculos XVII e XVIII7. No mapa 2, Hkamti Long aparece com o nome de Putao; 
os principados componentes são mostrados no mapa 4.
b. Chans do vale do Hukawng, sobretudo os de Maingkwan, Ningbyen e Taro. Esses 
chans são hoje, em sua maioria, dependentes politicamente dos kachins circunvizinhos. Diz-se 
que são os remanescentes de uma população outrora muito mais numerosa em linhagens feudais8 
(mapa 4).
c. Singkaling Hkamti. Pequeno Estado chan no alto Chindwin. O grosso da população 
local é formado de kachins e de nagas. O elemento chan, inclusive a família governante, parece 
ter vindo de Ningbyen, no vale do Hukawng'* (mapas 3 e 4).
d. Os Hkamti de Assam. Localizados a leste de Sadiya e também na margem do Dihing 
perto de Ledo (mapa 4). Os primeiros derivam de colonizadores vindos de Hkamti Long que 
entraram em Assam por volta de 1795. Os últimos provêm de vários grupos de colonizadores
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
5. Ver Imbault-Huart (1878), onde Meng K’ong = Mogaung; Meng Yang = Mohnyin.
6. Conhecem-se as variantes: Kanti, Kansi, Khampti, Khamti etc.
7. Barnard (1925); MacGregor (1894).
8. Kawlu Ma Nawng (1942), p. 41.
9. Chan States and Karenni, pp. 75-76.
A S CATEGORIAS CHAN E KACH IN E SUAS SUBDIVISÕES
chans que entraram em Assam, durante os séculos XVIII e XIX, procedentes do vale do 
Hukawng10. Nos últimos 120 anos os hkamtis de Assam sempre estiveram muito misturados 
com os assameses, os mishmis, os nagas e os kachins (singphos)11.
e. A região das Minas de Jade, que foram um fator importante na queda dos príncipes do 
Mogaung no século XVIII, estiveram, pelo menos nos últimos sessenta anos, sob o controle de 
uma linhagem de chefes kachins. Esses chefes, chamados embora de kachins pela administração 
britânica, imitaram as maneiras dos chans e casaram-se nas famílias chans. Assumiram também 
o título de Kansi (Kanti) duwa como herdeiros, segundo parece, do domínio chan original12 
(mapa 2).
Por essa lista pode-se ver que existe uma confusão entre o uso do termo 
hkamti para denotar um grupo particular de povos de origem étnica supostamente 
comum e o uso do mesmo termo como o nome de um estado político. Essa 
ambigüidade aplica-se também ao termo mais geral chan. Quase todos os Estados 
Chans da Região das Colinas de Kachin incluem elementos de população não-chan. 
Em muitos casos, os elementos não-chans são muito mais numerosos que os 
elementos chans. A capital política de um estado chan é, em todos os casos, uma 
municipalidade localizada na vizinhança de terras de arroz irrigado, mas as depen­
dências feudais de tal estado podem incluir não apenas outras comunidades de 
chans cultivadores de arroz irrigado, como também várias aldeias de colina com 
uma população não-chan e uma economia de taungya. Em alguns casos, a hierar­
quia política daí resultante é um tanto complexa. Por exemplo, antes de 1895, o 
atual Estado de Mõng Wan, chan chinês, incluía não só as aldeias chans do vale 
do Nam Wan como também numerosos povoados kachins que hoje estão no lado 
birmanês da fronteira. Em sua maioria, os aldeões chans da planície de Nam Wan 
não pagavam seus impostos feudais diretamente aos saohpa de Mõng Wan, mas a 
um ou outro de vários chefes tribais kachins. Os chefes kachins, por seu turno, 
pagavam seus impostos aos saohpa de Mõng Wan. Os aldeões chans pagavam seus 
impostos com arroz, enquanto os chefes kachins pagavam os seus com pólvora, 
arranjo economicamente muito satisfatório para ambas as partes13.
Uma referência ao Chan States Gazeteeru mostra que em 1900 havia nume­
rosos exemplos similares nos quais os domínios políticos kachins estavam integra­
dos numa estrutura feudal chan mais ampla. A total separação política do território 
kashin e chan, que prevaleceu durante a última fase do regime britânico na
10. Dalton (1872), p. 6.
11. Ver, especialmente, Pemberton (1835); Mackenzie (1884); Michell (1883).
12. Hertz (1912).
13. R.N.E.F. (1899), p. 3.
14. Scott & Hardiman (1900-1901).
Birmânia, não era um fenômeno natural, mas fruto de uma ação administrativa por 
parte do poder superior.
A distribuição esparsa da crescente população cultivadora de arroz irrigado 
e budista, de língua tai, foi objeto de freqüentes comentários e especulação 
pseudo-histórica. Parece que a teoria explicativa aventada mais comumente é a de 
que os povos de língua tibetano-birmanesa e os de língua tai representam duas 
famílias étnicas diferentes. Atribui-se aos povos tibetano-birmaneses uma tendên­
cia geral a migrar do Norte para o Sul. Segundo essa teoria, a migração para o Sul 
foi temporariamente interrompida entre os séculos VIII e XII d. C. por uma 
infiltração em sentido oeste dos chans de língua tai. Essa migração dos chans para 
o Oeste corresponde à expansão política do “Império” Chan de Nanchao, que tinha 
sua capital nas vizinhanças de Tali. Mais tarde, com o declínio do poderio político 
chan, supõe-se que se tenha reencetado o movimento tibetano-birmanês para o Sul. 
De acordo com essa teoria, os kachins de fala jinghpaw são os últimos dos 
tibetano-birmaneses a chegarem do Norte; durante os séculos XVIII e XIX, supõe-se 
que tenham “devastado” os chans, de modo que os chans da Birmânia do Norte de 
hoje são meros sobreviventes dessa invasão pagã15.
Essa complicada interpretação dos testemunhos é desnecessária. Como Von 
Eickstedt reconheceu claramente16, a essência da cultura chan (tai) é a sua associa­
ção com o cultivo do arroz irrigado. Na Região das Colinas de Kachin, com 
raríssimas exceções, onde quer que exista uma extensão de terreno adequado para 
o cultivo do arroz irrigado, ou encontramos chans ou não encontramos ninguém. 
Só excepcionalmente é que deparamos com algum dos povos “kachins” domicilia­
dos nas planícies e nos vales. E, vice-versa, em localidades adequadas somente 
para o cultivo de taungya, ou encontramos kachins ou não encontramos ninguém. 
A inferência é clara; é improvável que a distribuição dos povoados chans tenha 
sido alguma vez, em qualquer época desde a difusão original da cultura chan, 
substancialmente diversa do que é agora. Se, como é bem possível, houve anterior­
mente uma população chan numericamentemaior do que a atual, isso não implica 
que os chans estivessem mais amplamente dispersos; significa apenas que os 
povoados chans atuais eram anteriormente um pouco maiores. Nunca houve uma 
população chan domiciliada nas regiões de montanha. Somente em localidades 
como o vale do Hukawng, onde vamos encontrar kachins cultivando o arroz pelos
15. Há uma extensa literatura sobre este tópico; ver, por exemplo, Enriquez (1933); Hanson (1913); Lowis 
(1919); Eickstedt (1944). Na crítica, Green (1933; 1934) indicou que as diferenças nos tipos físicos no 
Nordeste da Birmânia não correspondem de modo nenhum às distribuições lingüísticas; isso invalida 
toda a tese.
16. Eickstedt (1944).
SISTEMAS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
métodos chans, é que se pode inferir com alguma probabilidade que os kachins 
tenham “devastado” ou desalojado uma população chan. E quanto a isso, se 
deparamos com povos de língua kachin cultivando arroz pelos métodos chans, 
quase se poderia inferir que esses “kachins” já estão em via de “se tomarem chans”.
É bem possível que nos últimos mil anos, ou aproximadamente, tenham 
ocorrido muitas migrações e mudanças demográficas substanciais entre a popula­
ção monlanhesa ao longo da Região das Colinas de Kachin, mas cumpre lembrar 
que essas mudanças poderiam ocorrer sem afetar a posição da população chan nas 
planícies e nos vales. Fatos ou inferências sobre a história de um segmento da 
população total podem, portanto, dar-nos certos indícios sobre a história do outro.
História fatual, pois qualquer parte da Região das Colinas de Kachin é 
fragmentária. Dou um resumo dessa história estabelecida no capítulo 8, juntamente 
com minhas próprias conjecturas sobre alguns dos fatos decisivos acerca dos quais 
não dispomos senão de provas circunstanciais. Mas no capítulo 8 ocupo-me 
principalmente da “história” kachin, e por isso será melhor expor desde já minhas 
conjecturas sobre os chans.
Um dos fatos que se podem dar como estabelecidos é que os chineses, já no 
século I d. C., estavam familiarizados com várias rotas do Yun-nan à índia. Não 
podemos saber ao certo quais eram essas rotas, mas, desde que são constituídas 
apenas por um número muito limitado de desfiladeiros através das principais 
cadeias de montanhas, as rotas não podem ter diferido muito das que conhecemos 
hoje. Não é desarrazoado ver a colonização chan original dos vales dos rios como 
um processo associado à permanência dessas rotas de comércio. Há testemunhos 
de que as comunicações eram mantidas através de uma série de pequenas guarni­
ções militares estabelecidas em postos apropriados ao longo da rota. É claro que 
essas guarnições precisaram manter-se a si mesmas e deveriam portanto estar 
situadas num terreno adequado ao cultivo do arroz. 0 povoado assim formado iria 
constituir o núcleo de uma região de cultura complexa que, com o passar do tempo, 
evoluiria para um tipo de Estado chan subalterno.
A extensão em que qualquer estado particular iria desenvolver-se seria 
condicionada pelas circunstâncias locais. Em Hkamti Long, por exemplo, a área 
apropriada a desenvolver-se em planície de arroz é substancial, e, segundo parece, 
no passado foi de fato cultivada uma área muito maior do que agora. As rotas 
comerciais através de Hkamti Long permaneceram pouco usadas por mais de um 
século: antigamente, quando essa rota comercial era muito mais freqüentada, é 
possível que a população tenha sido maior.
Em contrapartida, a escala da comunidade chan em Sima-pa dificilmente 
deve ter mudado durante séculos. Trata-se de uma pequena planície de arroz de
A S CA TEGORIAS CHAN E K A C H IN £ SU AS SUBDIVISÕES
10!
mais ou menos sete quilômetros quadrados, situada a uma altitude elevada (cerca 
de 1700 metros acima do nível do mar). Constitui uma das principais passagens 
do Yun-nan para a Alta Birmânia e situa-se na rota das antigas caravanas de jade 
de Mogaung para Tengyueh. Está portanto localizada estrategicamente e esteve 
certamente ali durante longo tempo. É apenas um lugarejo, mas em alguma época 
do passado pode ter sido um pouco maior, pois fica a pelo menos um dia de marcha 
de qualquer outra comunidade chan ou chinesa, e toda a terra de arroz que é 
disponível no local está plenamente ocupada (mapa 2, p. 87).
Essa explicação segundo a qual a localização e a escala das comunidades 
chans foram determinadas pela estratégia e economia das rotas comerciais é 
claramente especulativa, mas ajusta-se melhor aos fatos conhecidos do que as 
teorias que explicam a atual distribuição dos povoados chans como o resultado de 
alguma fabulosa conquista militar em larga escala17. Uma importante implicação 
de minha tese é que a cultura chan, tal como a conhecemos hoje, não deve ser 
considerada um complexo importado de fora, já pronto, para a região, como a 
maioria das autoridades no assunto parece ter suposto. É um desenvolvimento 
nativo resultante da interação econômica, durante um longo período, de colônias 
militares de pequena escala com uma população montanhesa nativa.
O processo pelo qual ocone o desenvolvimento de tipo chan é bem ilustrado 
pela descrição de Mõng Ka feita por Davies. Os atuais habitantes de Mõng Ka são 
chineses de língua lisu; sua semelhança cultural geral com os chans de comunida­
des similares, como a de Sima-pa, é muito grande. O topônimo Mõng Ka é chan. 
Davies escreve o seguinte:
A pequena planície de arroz de Mong Ka (1 700 km1) é habitada por chineses e lisus. A 
terra é totalmente cultivada, mas não é fértil, e o povo não obtém dela senão o necessário para 
viver [...] O chefe de Mông Ka é conhecido pelo nome de Yang-hsing-kuan, que significa 
simplesmente “o funcionário cujo sobrenome é Yang”. Seu cargo é hereditário. Parece que um 
seu antepassado, numa outra época, conquistou os habitantes lisus originais para o governo 
chinês e, como recompensa, ele e seus homens se estabeleceram ali como colonizadores-solda- 
dos, e o governo do lugar foi dado a ele e a seus descendentes. Os lisus e os chineses agora 
vivem juntos em perfeita amizade e sem dúvida os colonizadores originais casaram-se com 
mulheres lisus de modo que seus descendentes são por raça tão lisus quanto chineses19.
Existem vários outros tipos de testemunhos que respaldam a opinião de que 
grandes porções de povos hoje conhecidos como chans são descendentes de
17. É desnecessário dizer que as próprias tradições chans sobre o assunto sio expressas em função de 
conquistas militares [cf. Elias (1876)], mas lais relatos não têm valor histórico.
18. Davies (1909), pp. 37-38. Mftng Ka í um posto de serviço na rota de Sadon para Tengyueh.
SISTEM AS P O L li O S DA ALTA BIRMÂNIA
A S CATEGORIAS CH AN E KACHIN E SU AS SUBDIVISÕES
membros de tribos das colinas que foram, no passado recente, assimilados por 
formas mais requintadas de cultura budista-chan. Por exemplo, Wilcox, o primeiro 
inglês a visitar Hkamti Long, menciona que “a massa da população trabalhadora é 
da tribo khaphok, cujo dialeto é estreitamente aparentado com o singpho”19.
Esse termo chan kha-phok ou hka-hpaw pode traduzir-se por “escravo ka- 
chin”20. Barnard, mais tarde uma autoridade na mesma região, menciona que dois 
grupos de classe baixa da sociedade hkamti são denominados hsampyens (isto é, 
sam hpyen) e chares21. Na língua jinghpaw esses termos significariam “soldado 
mercenário chan” e "soldado contratado”, respectivamente; subentende-se que esses 
chans de classe baixa são de origem kachin jinghpaw. De modo análogo, se se 
examinar, como fizemos, a longa sucessão de referências aos hkamtis de Assam que 
aparecem em documentos de língua inglesa, oficiais e outros, entre 1824 e 1940, é 
inevitável a conclusão de que os ancestrais de muitos povos hoje classificados como 
hkamtis (isto é, chans) teriam sido mais apropriadamente classificados, um século 
atrás, sob algum outro nome, como singpho, lisuou nung (isto é, kachins).
Detalhes sobre essa mudança evidente de identidade cultural são dados no 
apêndice 1. O que eu quero ressaltar aqui é que a localização territorial, a relativa 
complexidade e as principais características da organização econômica do que 
chamamos agora de sociedade chan são determinadas em grande parte pelo meio 
ambiente. Dados os requisitos de uma economia assentada no cultivo do arroz 
irrigado nesse terreno, os povoados chans dificilmente seriam diferentes do que 
são. Eis por que me sinto autorizado a tratar o sistema social de tipo chan como 
um ponto relativamente estável no fluxo total.
Nos meus últimos capítulos teóricos discuto os sistemas sociais kachins - o 
tipo gumlao e o tipo gumsa - como sendo intrinsecamente instáveis, ao passo que 
considero o tipo oposto, chan, como intrinsecamente estável. A justificação para 
isso deve ser encontrada em dados de campo como os que mencionei acima. A 
cultura chan atual estende-se por bolsões esparsos de Assam a Tongking e, para o 
sul, a Bangkok e ao Cambodja. Os povos das colinas vizinhos dos chans são 
espantosamente variados em sua cultura; os chans, dada sua ampla dispersão e sua 
forma esparsa de povoamento, são espantosamente uniformes. Minha tese é que essa 
uniformidade está correlacionada a uma uniformidade da organização política chan, 
que por sua vez é largamente determinada pelos fatos econômicos específicos da 
situação chan. Minha suposição histórica é que os chans dos vales assimilaram em
toda parte, durante séculos, seus vizinhos das colinas, mas os fatores econômicos 
imutáveis na situação significaram que o padrão de assimilação foi muito semelhan­
te em toda parte. A própria cultura chan foi relativamente pouco modificada.
Kachin
Isso quanto ao sentido básico do termo chan; a categoria kachin é mais 
complicada. Primeiro, a própria palavra. Kachin é uma romanização do termo 
birmanês cn Essa grafia começou a ser usada por volta de 1890. Antes dessa 
data a forma usual era Kakhyen.
Para os birmaneses a categoria originariamente era vaga, aplicada indistinta­
mente aos bárbaros das fronteiras do Nordeste. Aparece pela primeira vez em inglês 
por volta de 183722. Era usada, então, como um termo geral para designar os 
membros das tribos que não eram palaungs, que viviam no distrito de Bhamo e no 
Estado de Hsenwi do Norte. Essa população era na época, como hoje, poliglota; 
incluía falantes das línguas e dialetos atualmente conhecidos pelos nomes de 
jinghpaw, gauri, maru, atsi, lachi e lisu. De início, portanto, o kachin não era uma 
categoria lingüística.
Outra categoria de população birmanesa foi a princípio romantzada com a 
designação de theinbaw. Outras versões da mesma palavra aparecem na literatura 
na forma de singpho, singfo, chingpaw, jinghpaw etc. É uma categoria que os 
povos que falam a língua que hoje denominamos jinghpaw aplicam-se a si 
mesmos. Mas, assim como consideramos que a expressão inglesa “We Britons” 
tanto pode incluir quanto excluir os escoceses, os galeses e os canadenses na 
mente do falante, assim a expressão “Nós jinghpaw” (anhte jinghpaw ní) é 
ambígua. Comumente inclui muitos povos que não falam a língua jinghpaw, e na 
verdade a palavra pode ser usada até para abarcar toda a humanidade. Os birma­
neses usavam theinbaw principalmente com referência aos bárbaros do distrito de 
Mogaung e do vale do Hukawng. Parecem tê-los tratado como uma categoria 
diferente dos kakhyens.
Os britânicos foram os primeiros a estabelecer, por volta de 1824, contato 
político com os falantes do jinghpaw e de outras línguas “kachins” em Assam; os 
povos em questão eram então chamados singphos e kakoos. Em 1837, o serviço de 
inteligência militar britânico tinha reunido um corpo de informações muito subs­
tancial, relativo não apenas aos singphos de Assam mas também aos seus parentes
22. Hannay (1837); Burney (1837); Ricturdson (1837); Malcom (1839).
SISTEMAS PO LÍTICO S DA ALTA BIRMÂNIA
104
tribais do vale do Hukawng e das regiões a nordeste de Mogaung23. Nesses 
informes, o termo singpho é usado para designar os falantes do jinghpaw residentes 
no vale de Hukawng e seus parentes próximos de Assam, enquanto kakoo abrange 
o jinghpaw das regiões do Triângulo e do Sumprabum, e também o maru, o lachi, 
o lisu, o nung e o duleng. Os “kakoos” eram considerados uma variedade dos 
singohos, mas de um tipo algo inferior24.
Segundo parece, supunha-se nessa época que a categoria inglesa singpho e a 
categoria birmanesa theinbaw eram idênticas, porém a categoria kakhyen ainda era 
considerada distinta25. Dez anos depois, Hannay, que fora responsável por parte do 
trabalho original do exército britânico acima mencionado, publicou um tratado 
sobre The Singphos or Kakhyens ofBurma26, onde reunia sob uma categoria única 
os montanheses a leste de Bhamo, os singphos do vale do Hukawng e de Assam, 
e os heterogêneos “kakoos” dos vales do Mali Hka e do N'mai Hka27.
No esquema de Hannay, a população total da Birmânia ao norte de Bhamo 
entra apenas em duas categorias: os chans e os kakhyens. Evidentemente, o que 
mais impressionou Hannay foi a similaridade cultural geral entre os diferentes 
grupos de povos das colinas. Percebeu que esses grupos não falavam a mesma 
língua, mas isso não lhe pareceu particularmente relevante.
As opiniões de Hannay foram aceitas de modo geral até o final do século. Por 
exemplo, em 1891 um escritor2* considerava que os gauris, que falam o dialeto 
jinghpaw, e os szis (atsis), que falam um dialeto maru, eram porções "estreitamente 
aparentadas” da mesma “subtribo dos kachins”, Kachin era ainda, portanto, uma 
categoria cultural, e não lingüística.
Nesse período, contudo, a expressão Colinas de Kachin foi introduzida no 
jargão administrativo oficial da Birmânia britânica e levou à noção altamente 
artificial de que um kachin era alguém que vivia num tipo particular de terreno 
mais do que uma pessoa de características culturais particulares. Isso é visto 
claramente quando se comparam duas diretrizes governamentais contraditórias 
publicadas em 1892 e 1893, respectivamente.
•4S CATEGORIAS CH AN E KACH IN E SUAS SUBDIVISÕES
23. Sdection ofF apcrs (1873); W ilcox (1832); Pemberton (1835).
24. As regiõ«s “Kakoo" não eram conhecidas diretamente, mas havja as aldeias lisus, nungs e dulengs em 
A ssam ehaviaasaideiasm arusnoH utaw ng.O term okakoo-í.e. h k a k h u -6 a designação cm jinghpaw 
de “rio acima (pessoas)" em oposição a hka nam, “rio abaixo”. A região t«ferida aparece no mapa 4, 
p. 97,
25. Malcom, ii, 243.
26. Hannay (1847).
27. Burncy (1842), p. 340, também faz a identificação “kakhyens ou singphos".
28. George (1891).
105
1892 Tribos e clâs kachins dentro de nossa linha de postos fronteiriços e aldeias estabele­
cidas [...] devem ser colocados em pé de igualdade com os chans birmaneses e outros 
entre os quais eles se fixaram.
Aqui, kachin é uma categoria cultural. Mas
1893 As Colinas de Kachin deveriam ser administradas na medida em que estavam incluídas 
dentro da área provisória de nossa administração em linhas distintas dos trechos de 
terra baixa, onde só deviam vigorar a lei ordinária e os tributos ordinários1 ,^.
Aqui, kachin é uma categoria geográfica.
Mais ou menos a partir de 1900, as idéias etnológicas dos lingüistas come­
çaram a impor-se3B. Grierson e outros especialistas formularam a teoria segundo a 
qual uma análise da atual distribuição de línguas e dialetos revelaria o curso das 
migrações históricas das diversas “raças” das quais supostamente descendem a 
população moderna.
Uma conseqüência dessa teoria foi que em todos os censos birmaneses 
realizados entre 1911 e 1941 a população foi classificada por “raça” - sendo “raça” 
um sinônimo de língua31. De igual modo, nos manuais intitulados As Tribos da 
Birmânian e As Raças da Birmânia33 a população é efetivamente classificadapela 
língua.
Na região kachin essa doutrina conduziu a um paradoxo. Presumia-se que os 
kachins eram uma “raça”, portanto deviam ter uma língua especial. Assim, o 
dicionário jinghpaw é descrito como A Dictionary o f the Kachin L a n g u a g e Mas 
isso implicaria que os membros das tribos das colinas da região de Kachin que não 
falam o jinghpaw não podem ser kachins. Todos os censos oficiais da população 
feitos entre 1911 e 1941, portanto, arrolam os falantes do maru, do lachi, do szi, 
do maingtha, do hpon, do nung e do lisu sob títulos totalmente distintos dos falantes 
do kachin (jinghpaw).
Por mais lógico que isso possa parecer aos lingüistas, é etnologicamente 
absurdo. Os missionários35, o exército36 e a administração local37 sempre continua­
ram a usar kachin como um termo geral no sentido de Hannay. Farei o mesmo.
29. R.N.E.F. (1893), Ap.; R.N.E.F. (1894), p. 3.
30. Lowis (1903), pp. 117-118.
31. Tsylor (1923).
32. Lowis (1919).
33. Enriquez (1933). i
34. Hanson (1906).
35. Hanson (1913), capítulos 1 e 2.
36. Enriquei (1933), p. 56.
37. Kachin Hill Tribc Regulalion 1895, com emendas em 1 8 9 8 ,1 9 0 2 ,1 9 1 0 ,1 9 2 1 ,1 9 2 2 ,1 9 3 8 . '*
SISTEM AS POLÍTICOS DA ALTA BIRMÂNIA
106
A S CA TEGOF1AS CHAN E KA CH1N £ SVAS SUBDIVISÕES
Desde a partida dos britânicos, os antigos distritos administrativos de Bhamo 
e de Myitkyina constituíram-se numa unidade política semi-autônoma conhecida 
pela designação de Estado Kachin (Jinghpaw Mungdan), e presumivelmente toda 
a população dessa região que não são chans nem birmaneses é agora oficialmente 
considerada kachin (jinghpaw), independente da língua que fala. Entretanto, nos 
confins da Universidade de Rangun, um kachin ainda é alguém que fala o jinghpaw! 
É tudo muito complicado.
As subcategorias de kachin, no sentido em que utilizo o termo, são de três 
espécies: (a) lingüística, (b) territorial e (c) política. A partir do final deste capítulo, 
quase a totalidade deste livro diz respeito a distinções políticas, especialmente 
aquelas que os próprios kachins denotam pelos termos gumsa e gumlao. Nesta 
última discussão quase não menciono as distinções lingüísticas, Isso não quer dizer 
que considero irrelevantes as diferenças lingüísticas, mas apenas que não me sinto 
competente para discutir o assunto em detalhe.
No entanto, desde que grande parte da etnografia existente sobre a região está 
escrita em termos de categorias lingüísticas, devo dar alguma indicação do que 
sejam essas categorias. Devo também procurar moslrar, pelo menos aproximada­
mente, como essas categorias lingüísticas se combinam com as diferenças políticas 
nas quais eu próprio estou sobremaneira interessado.
0 número total de dialetos discerníveis falados na Região das Colinas de 
Kachin é enorme. Os lingüistas costumam distinguir quatro línguas diferentes 
(além do tai), com numerosas subcategorias. A classificação exata de vários desses 
dialetos - por exemplo, atsi, maingtha e hpon - parece ser opcional, mas a 
classificação seguinte é aceita de modo geral.
1. Jin gh paw - todos os d ialetos são m ais ou m enos mutuamente in telig íveis
a. Jinghpaw normal - conform e é ensinado nas esco las m issionárias
b. Gauri
c. Tsasen
d. D uleng
e. Hkahku
/ . Htingnai
2. Maru - num erosos d ialetos considerados m utuam ente in in telig íveis (o manj está m ais perto
do birmanês do que do jinghpaw )
a. Mara normal - conform e é ensinado nas esco las
b. Lachi
c. Atsi - aparentemente um híbrido de maru e jinghpaw
d. Maingtha (a ’chang) - aparentemente um híbrido do atsi e d o chan
e. Hpon - provavelm ente um dialeto do maru
3. Nung - vários dialetos distintos. Os dialetos rawang e daru são considerados mutuamente 
ininteligíveis. Lingüisticamente, considera-se o nung mais próximo do tibetano do que do 
jinghpaw. Os dialetos nungs do Sul provavelmente se fundem com o maru do Norte3*.
4. Lisu - vários dialetos regionalmente distintos. Essa língua difere amplamente tanto do 
jinghpaw quanto do maru, mas a gramática é do tipo birmanês. Os falantes do lisu são 
marginais às “Colinas de Kachin”, conforme se discute neste livro.
Nas áreas marginais existem importantes grupos dialetais que não entram 
diretamente em nenhuma dessas categorias. No distrito de Katha, a oeste do 
Irrawaddy, existe, por exemplo, uma população de cerca de 40 mil habitantes 
localmente conhecidos pelo nome de kadus. São mais ou menos birmaneses na 
cultura, mas sua língua parece conter forte mistura do jinghpaw e de outros dialetos 
kachins. Não sei até agora se as generalizações dadas mais adiante neste livro se 
aplicam a essa população kadu. Analogamente, na fronteira ocidental da Região 
das Colinas de Kachin, a língua jinghpaw se funde com o dialeto naga e o kuki. 
Também aqui a confusão de línguas está associada a uma complicada inter-relação 
entre chans, kachins e nagas, mas por enquanto faltam todos os detalhes39.
Alguns dialetos kachins ocorrem apenas numa localidade distinta - por 
exemplo, gauri, tsasen, hpon outros estão largamente disseminados e territorial­
mente misturados com outras línguas - por exemplo, maru, atsi, jinghpaw normal. 
Nos mapas 3 e 4 tentei indicar os fatos puros e simples sobre a distribuição 
lingüística na medida em que estes são conhecidos, mas essa informação é quando 
muito bastante aproximada. De um lado, o jinghpaw normal é largamente usado 
como lingua franca por grupos que têm uma língua-mãe totalmente diferente — é 
o caso, por exemplo, de muitas aldeias nagas na franja norte-ocidental da Região 
das Colinas de Kachin; de outro, a fusão de grupos lingüísticos é muitas vezes 
demasiado variegada para ser mostrada em qualquer mapa de escala reduzida. Para 
ilustrar esse último ponto, posso mencionar que em 1940, na comunidade kachin 
de Hpalang, que é submetida a uma análise minuciosa no capítulo 4, não menos de 
seis diferentes dialetos eram falados como “língua-mãe” numa comunidade de 130 
famílias!
O aspecto dessa situação que interessou aos lingüistas é o histórico: de que 
modo essa surpreendente distribuição veio a ocorrer? A questão propicia um bom
38. A literatura menciona ainda um povo chamado naingvaw descrito como maru do Norte oti maru negio; 
mas naingvaw é apenas a designação maru de “povo de naing (nung)” e é um termo aplicado pelos 
marus do Sul a uma populaçSo descrita corrtumente como nung; e.g., ver Pritchard (1914). Para melhor 
descrição de nung, ver Qarnard (1934).
39. Grani Brown (1925), capítulos 2 e 8; Dewar (1933).
SISTEM AS PO LÍTICO S DA ALTA BIRMÂNIA
108
-4JC .1 TEGORIAS CH AN E KACHIN £ SU AS SUBDtViSOES
exercício para a imaginação. Posso pensar em várias possibilidades, mas como não 
hã provas que as apoiem, vou deixar as coisas como estão. Mas outro aspecto do 
mapa das línguas recebeu muito menos atenção: o que significa a diferença 
lingüística nas vidas da população atual? Aqui há populações de cultura quase 
idêntica que aparentemente mantêm diferenças lingüísticas para grande embaraço 
delas próprias. Por quê?
Os lingüistas presumiram que o grupo populacional que, objetivamente 
considerado, fala a mesma língua é por força uma unidade importantíssima. 
Referem-se ao maru, ao lachi, ao jinghpaw e descrevem tais grupos como “raças”. 
Ora, é certamente verdade que localmente o grupo lingüístico sempre tem grande 
importância. Numa comunidade mista de falantes de lisu, de atsi, de maru e de 
jinghpaw, os falantes de jinghpaw enquanto grupo manifestarão decerto alguma 
solidariedade entre si contra o resto. Isso porém é totalmente diferente de afirmar 
que todos os falantes de jinghpaw da Região das Colinas de Kachin são de certo 
modo distintos enquanto grupo social de todos os falantes de atsi ou de todos os 
falantes de maru. Politicamente falando, os atsis são totalmente indistinguíveis, 
como grupo, dos jinghpaws

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