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Emilio Salgari SANDOKAN, OS MISTERIOS DA FLORESTA NEGRA

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Emílio Salgari
Sandokan, Os Mistérios da Floresta Negra
Primeira parte
Os mistérios das Sunderbunds
Capítulo 1
O assassínio
O Ganges, esse famoso rio celebrado pelos indianos, antigos e modernos, cujas águas são por aquele povo consideradas sagradas, depois de ter sulcado as montanhas nevadas do Himalaia e as ricas províncias de Sirinagar, de Deli, de Odhe, de Bahare e de Bengala, a duzentas e vinte milhas do mar divide‑se em dois braços, formando um delta gigantesco, intrincado, maravilhoso e talvez único.
A imponente massa das águas divide‑se e subdivide‑se num sem‑número de riachos, de canais grandes e pequenos, que sulcam de todas as formas possíveis a imensa extensão de terras entaladas entre o Hugly, o verdadeiro Ganges, e o Golfo de Bengala. Daí resulta a existência duma infinidade de ilhas e ilhéus e bancos, os quais, para o lado do mar, tomam o nome de Sunderbunds.
Não há nada mais desolador, mais estranho e mais aterrador do que a visão destas Sunderbunds. Nem cidades, nem aldeias, nem cabanas se vislumbram de sul a norte, de leste a ocidente, não se vê mais nada senão imensas plantações de bambus espinhosos, apertados uns contra os outros, com as pontas a ondular ao sopro do vento, empestado pelas exalações insuportáveis de milhares e milhares de corpos humanos que apodrecem nas águas envenenadas dos canais.
Raramente se vê um baniano elevar‑se acima daquelas gigantescas canas; e menos ainda se vê um grupo de colhedores de mangas, de pescadores ou de nagas surgirem entre os pântanos; nem ao olfacto nos chega o perfume suave do jasmim, do chambaçal da mussenda, que timidamente despontam naquele caos vegetal.
De dia, reina soberanamente um silêncio gigantesco, fúnebre, que incute terror aos mais audazes; de noite, pelo contrário, é um alarido horrível de urros, rugidos, silvos e assobios, que gela o sangue.
Dizei ao bengalês que ponha os pés nas Sunderbunds e ele recusar‑se‑á; prometei‑lhe cem, duzentas, quinhentas rúpias e não conseguireis demover a sua inabalável decisão. Dizei ao molango que vive nas Sunderbunds, desafiando a cólera e a peste, as febres e o veneno daqueles ares empestados, que entre naquelas selvas, e, tal como o bengalês, também ele se recusará. O bengalês e o molango têm razão; penetrar naquelas selvas é ir ao encontro da morte.
De facto, é ali, entre aqueles amontoados de espinhos e de bambus, no meio daqueles pântanos e daquelas águas amarelas, que se ocultam os tigres, espiando a passagem das canoas, e até dos barcos, para se abaterem sobre o tombadilho e levar o barqueiro ou o marinheiro que ousa mostrar‑se; é ali que nadam e espiam a presa horríveis e gigantescos crocodilos, sempre ávidos de carne humana; é por ali que vagueia o formidável rinoceronte, a quem tudo faz sombra e irrita até à loucura; e é ali que vivem e morrem as numerosas variedades das serpentes indianas, entre as quais o rubdira mandali, cuja mordedura faz suar sangue, e a cobra que tritura um boi entre os seus anéis; e é ali, enfim, que às vezes se esconde o tugue indiano, esperando ansiosamente a chegada de um homem qualquer para o estrangular e oferecer a vida extinta à sua terrível divindade!
Apesar disso, na noite de 16 de maio de 1855, uma gigantesca fogueira crepitava nas Sunderbunds meridionais, precisamente a trezentos ou quatrocentos passos das três bocas do Mangal, um rio lodoso que se separa do Ganges para lançar as suas águas no Golfo de Bengala.
Aquele clarão, que se destacava vivamente sobre o fundo escuro do céu e dava um efeito fantástico, iluminava uma vasta e sólida cabana de bambu, junto da qual dormia, envolto num grande dootée de chites estampado, um indiano de estatura atlética, cujos membros, musculosos e bem desenvolvidos, denotavam uma força fora do comum e uma agilidade felina.
Era um belo tipo de bengalês, dos seus trinta anos, de cor amarelada e extremamente reluzente, untado de fresco com óleo de coco; os traços do seu rosto eram belos, os lábios cheios, sem serem grossos, e deixando entrever uma admirável dentadura; o nariz bem torneado, a fronte alta, salpicada de linhas de cinza, sinal distintivo dos adeptos de Xiva.
Todo o seu conjunto exprimia uma energia rara e uma coragem extraordinária, que em geral falta aos seus compatriotas.
Como se disse, o homem dormia, mas o seu sono não era tranqüilo. Grandes gotas de suor perlavam a sua fronte, que por vezes se franzia e se ensombrava; o largo peito erguia‑se impetuosamente, descompondo o dootée que o envolvia; as suas mãos, pequenas como as duma mulher, cerravam‑se convulsamente e muitas vezes as levava à cabeça, tirando o turbante e pondo a descoberto o crânio, cuidadosamente rapado.
Palavras truncadas, frases bizarras, saíam de quando em quando dos seus lábios, pronunciadas com um tom de voz doce e apaixonado.
“Ei-la”, dizia ele, sorrindo. “O sol esconde‑se atrás dos bambus... o pavão cala‑se, levanta‑se o marabu e uiva o vento. Porque não se mostra?... Que fiz eu? Não é este o lugar?... Não é aquela a mussenda de folhas cor de sangue?... vem, vem, ó doce aparição... eu sofro, sabes, sofro e anseio pelo instante em que possa voltar a ver‑te.”
“Ah! Ei‑la, ei-la!... os seus olhos azuis olham para mim, os seus lábios sorriem... Oh! Como é divino aquele sorriso! Minha celeste visão, porque permaneces muda, diante de mim? Porque me olhas assim?... Não tenhas medo de mim: sou Tremal‑Naik, o caçador de serpentes da floresta negra... Fala, fala, deixa que eu ouça a tua doce voz... O sol declina, as trevas descem como corvos sobre os bambus... Não desapareças, não quero, não!... Não!... Não!...”
O indiano soltou um grito agudo e no seu rosto desenhou‑se uma viva angústia.
Ao som daquele grito, saiu da cabana, a correr, um segundo indiano. Era magro e de estatura bastante mais baixa do que o homem adormecido; os seus braços e as suas pernas assemelhavam‑se a bastões nodosos cobertos de couro. O tipo altivo, o olhar turvo, o curto languti que lhe cobria os flancos, as argolas que pendiam das suas orelhas, tudo, em suma, o dava a conhecer como sendo um marata, povo belicoso da índia ocidental.
“Pobre patrão”, murmurou ele, olhando para o adormecido. “Quem sabe que terrível sonho perturba o seu sono!”
Reanimou o fogo, depois sentou‑se junto do patrão, agitando docemente um dubgah de belíssimas penas de pavão.
“Que mistério”, recomeçou o adormecido, com voz sufocada. “Parece‑me ver manchas de sangue!... Doce visão, foge daí... enches‑te de sangue. Por que todo aquele vermelho?... Por que todos aqueles laços?... Querem então estrangular alguém? Que mistério é este?”
“Que é que ele diz?”, perguntou a si próprio o marata, surpreendido. “Sangue, visões, laços!... Que sonho este!”
De súbito, o adormecido estremeceu; arregalou os olhos, cintilantes como dois diamantes negros, e sentou‑se.
“Não!... Não!...”, exclamou com voz rouca. “Não quero!”
O marata olhou‑o compassivamente.
‑ Patrão ‑ murmurou ele. ‑ que tens?
O indiano pareceu voltar a si. Fechou os olhos. Depois voltou a abri‑los, fixando o marata no rosto.
‑ Ah! És tu, Kammamuri! ‑ exclamou.
‑ Sim, patrão.
‑ Que fazes tu aqui?
‑ Velo por ti e enxoto os mosquitos.
Tremal‑Naik aspirou com força o ar da noite, passando repetidas vezes as mãos pela fronte.
‑ Onde estão Hurti e Aghur? ‑ perguntou, após instantes de silêncio.
‑ Na selva. Ontem à noite descobriram os rastos de um grande tigre e esta manhã saíram a caçá-lo.
‑ Ah! ‑ exclamou surdamente Tremal‑Naik.
A fronte enrugou‑se‑lhe e um profundo suspiro, que parecia um mugido sufocado, veio morrer‑lhe nos lábios secos.
‑ Que tens, patrão? ‑ perguntou Kammamuri. ‑ tu estás mal.
‑ Não estou.
‑ Mas, enquanto dormias, lamentavas-te.
‑ Eu?
‑ Sim, patrão, falavas de visões estranhas.
Um sorriso amargo aflorou aos lábios do caçador de serpentes.
‑ Sofro,Kammamuri ‑ disse ele, com raiva. ‑ oh! Mas sofro muito!
‑ Eu sei, patrão.
‑ Como o sabes?
‑ Há quinze dias que te observo e vejo na tua fronte rugas profundas. Andas triste, taciturno. Antigamente não eras assim triste.
‑ É verdade, Kammamuri.
‑ Que dor pode afligir o meu patrão? Estás talvez cansado de viver na selva?
‑ Não digas isso, Kammamuri. Foi aqui, nestes desertos de espinheiros, nestes pântanos, na terra dos tigres e das serpentes, que eu nasci e cresci; é aqui, na minha querida selva, que hei‑de morrer.
‑ E então?
‑ É uma mulher, uma visão, um fantasma!
‑ Uma mulher ‑ exclamou Kammamuri, surpreendido. ‑ disseste “uma mulher”?
Tremal‑Naik baixou a cabeça em sinal de assentimento e apertou fortemente a fronte entre as mãos, como se quisesse sufocar algum mau pensamento.
Durante alguns minutos reinou entre ambos um silêncio fúnebre, apenas quebrado pelo murmúrio do rio, que se atirava contra as margens, e pelos gemidos do vento que acariciava a selva imensa.
‑ Mas onde viste essa mulher? ‑ perguntou finalmente Kammamuri. ‑ Onde, se a selva não tem senão tigres a habitá‑la?
‑ Vi‑a na selva, Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik, com voz surda. ‑ Era uma tarde, oh! Nunca esquecerei aquela tarde, Kammamuri! Eu procurava as serpentes nas margens dum regato, lá em baixo, justamente no sítio em que os bambus são mais espessos, quando a vinte passos de mim, no meio duma moita de mussendas de folhas cor de sangue, apareceu uma visão, uma mulher, bela, radiosa, soberba. Nunca pensei, Kammamuri, que existisse na terra criatura tão bela, nem que os deuses do céu fossem capazes de a criar.
“Tinha os olhos negros e cintilantes, os dentes alvos, a pele morena e dos seus cabelos castanho‑escuros, a ondular sobre os ombros, vinha um perfume doce que inebriava os sentidos.”
“Ela olhou para mim, soltou um gemido longo e pungente e, depois... desapareceu da minha vista. Senti‑me incapaz de me mover, fiquei ali, com os braços estendidos para a frente, extasiado. Quando voltei a mim e me pus a procurá‑la, já a noite tinha descido sobre a selva e não vi nem ouvi mais nada.”
“Quem era aquela aparição? Uma mulher ou um espírito celeste? Ainda hoje o ignoro.”
Tremal‑Naik calou‑se. Kammamuri notou que ele tremia como se tivesse febre.
‑ Aquela visão foi fatal para mim ‑ recomeçou Tremal‑Naik, com raiva. ‑ a partir daquela tarde, deu‑se em mim uma estranha mudança; pareceu‑me ter‑me tornado outro homem; e tive a impressão de que aqui, no meu coração, se desenvolvia uma terrível chama!
“Dir‑se‑ia que aquela aparição me enfeitiçou. Se estou na selva, vejo‑a bailar‑me diante dos olhos; se estou no rio, vejo‑a nadar diante da proa do meu barco; penso, e o meu pensamento corre para ela; durmo e, em sonhos, é sempre ela que me aparece. Parece que estou louco.”
‑ Espantas‑me, patrão ‑ disse Kammamuri, lançando à sua volta um olhar atemorizado. ‑ quem era essa bela criatura?
‑ Não sei, Kammamuri. Mas era linda, oh, sim, muito linda!‑ exclamou Tremal‑Naik, com voz apaixonada.
‑ Talvez fosse um espírito?
‑ Talvez.
‑ Ou talvez uma divindade?
‑ Quem o pode dizer?
‑ E não voltaste a vê‑la?
‑ Sim, voltei a vê‑la ainda muitas e muitas vezes. Na tarde do dia seguinte, à mesma hora, sem saber como, encontrava‑me na margem do regato. Quando a lua se ergueu por detrás das florestas escuras do norte, aquela soberba criatura voltou a aparecer entre as moitas das mussendas.
“Quem és?”, perguntei‑lhe.
“Ada” ‑ respondeu‑me.
“E desapareceu, soltando o mesmo gemido. Pareceu‑me que se enterrava pela terra adentro.”
‑ Ada! ‑ exclamou Kammamuri. ‑ que nome é esse?
‑ Um nome que não é indiano.
‑ E não acrescentou mais nenhuma palavra?
‑ Nenhuma.
‑ É estranho; eu não voltava mais àquele lugar.
‑ Mas eu voltei. Havia uma força irresistível e poderosa que me empurrava, contra a minha vontade, para aquele lugar; várias vezes tentei fugir e não tive forças para o fazer. Como te disse, parecia‑me estar enfeitiçado.
‑ E que sentiste na sua presença?
‑ Não sei, mas o coração batia‑me com toda a força.
‑ Nunca tinhas experimentado antes aquela sensação?
‑ Nunca ‑ disse Tremal‑Naik.
‑ E agora, continuas a ver aquela criatura?
‑ Não, Kammamuri. Vi‑a durante dezesseis tardes seguidas; à mesma hora, aparecia‑me diante dos olhos, contemplava‑me, sem dizer palavra, e depois desaparecia, sem fazer barulho. Uma vez acenei‑lhe, mas não se moveu; outra vez abri os lábios para falar... E ela pôs um dedo sobre a boca, convidando‑me a ficar calado.
‑ E tu nunca a seguiste?
‑ Nunca, Kammamuri, porque aquela mulher metia‑me medo. Faz agora quinze dias, apareceu‑me, toda vestida de seda vermelha, e olhou‑me mais prolongadamente do que de costume. Na tarde seguinte, em vão esperei por ela, em vão a chamei: não voltei a vê‑la.
‑ É uma aventura estranha ‑ murmurou Kammamuri.
‑ É mas é terrível ‑ disse Tremal‑Naik, com voz surda. ‑ deixei de me sentir bem, já não sou o homem que era; sinto‑me arder em febre e tenho uma vontade louca de voltar a contemplar aquela visão, que me enfeitiçou!
‑ Quer dizer que tu amas aquela visão.
‑ Amo‑a! Não sei o que isso quer dizer.
Naquele momento, a grande distância, para o lado dos pântanos imensos do sul, ecoaram algumas notas agudíssimas. O marata levantou‑se dum salto e fez‑se cor da cinza.
‑ O ramsinga! ‑ exclamou ele, aterrorizado.
‑ Que é que te atormenta? ‑ perguntou Tremal‑Naik.
‑ Não ouves o ramsinga?
‑ E então? Que é que isso significa?
‑ É o sinal duma desgraça, patrão.
‑ Parvoíces, Kammamuri.
‑ Nunca ouvi tocar o ramsinga na selva, a não ser na noite em que foi assassinado o pobre Tamul.
Àquela recordação, uma ruga profunda sulcou a fronte do caçador de serpentes.
‑ Não tenhas medo ‑ disse ele, esforçando‑se por aparentar calma. ‑ todos os indianos sabem tocar o ramsinga e tu sabes que, às vezes, há caçadores que ousam pôr os pés na terra dos tigres e das serpentes.
Mal tinha acabado de falar quando se ouviu o uivo lamentoso de um cão e, pouco depois, um potente rosnar, que podia transformar‑se em verdadeiro rugido. Kammamuri tremeu da cabeça aos pés.
‑ Ah! Patrão - exclamou. ‑ até o cão e o tigre assinalam uma desgraça.
‑ Darma! Punthy! ‑ gritou Tremal‑Naik.
Um soberbo tigre real, de alta estatura e formas vigorosas, com a pele alaranjada, sulcada de riscas negras, saiu da cabana e fixou o patrão com dois olhos que faiscavam. Atrás dele, compareceu, pouco depois, um canzarrão negro, de cauda longa e orelhas aguçadas, trazendo ao pescoço uma grossa coleira eriçada de pontas.
‑ Darma! Punthy! ‑ repetiu Tremal‑Naik.
O tigre recolheu‑se sobre si próprio, emitiu um rugido surdo e, com um salto de quatro metros e meio, veio cair aos pés do homem.
‑ Que tens, Darma? ‑ perguntou ele, passando as mãos sobre o dorso robusto da fera. ‑ estás inquieto.
O cão, em vez de ir ter com o dono, plantou‑se sobre as quatro patas, esticou a cabeça para sul, farejou por algum tempo o ar e ladrou lamentosamente, três vezes.
‑ Terá acontecido alguma desgraça a Hurti e Aghur? ‑ murmurou, inquieto, o caçador de serpentes.
‑ É o que receio, patrão ‑ disse Kammamuri, lançando à selva olhares espavoridos. ‑ a esta hora já cá deveriam estar, e não dão sinal de vida.
‑ Não ouviste nenhuma detonação durante o dia?
‑ Sim, ouvi uma por volta do meio‑dia, e depois mais nada.
‑ Donde vinha?
‑ Do sul, patrão.
‑ Viste alguma pessoa suspeita na selva?
‑ Não, mas Hurti disse‑me que tinha visto uma tarde umas sombras nas praias da ilha Rajmangal e Aghur disse que tinha ouvido rumores estranhos que vinham do baniano sagrado.
‑ Ah! Do baniano! - exclamou Tremal‑Naik ‑ também ouviste alguma coisa?
‑ Talvez. Que fazemos, patrão?
‑ Esperemos.
- Mas podem...
‑ Cala‑te ‑ disse Tremal‑Naik, apertando‑lhe o braço com uma força tal que quase lhe paralisava o sangue.
‑ Que ouviste? ‑ murmurou o marata, batendo os dentes.
‑ Olha lá em baixo, nãote parece que os bambus da selva estão a mexer?
‑ É verdade, patrão.
Punthy fez ouvir pela terceira vez o seu uivo lamentoso, seguido pelas notas agudas do misterioso ramsinga. Tremal‑Naik tirou do cinto de pele de tigre uma comprida e rica pistola incrustada de prata e carregou‑a.
Naquele instante, um indiano de alta estatura, seminu, armado apenas com um machado, lançou‑se para fora dos bambus, correndo a toda a brida em direcção à cabana.
‑ Aghur! ‑ exclamou ao mesmo tempo Tremal‑Naik e o marata.
Punthy lançou‑se contra ele, uivando lugubremente.
‑ Patrão!... Patrão! ‑ murmurou o indiano.
Chegou como um relâmpago diante da cabana, cambaleou, como se um súbito mal‑estar o tivesse acometido, arregalou os olhos, soltou um grito sufocado e abateu‑se sobre as ervas como uma árvore arrancada pelo vento.
Tremal‑Naik precipitou‑se para ele. Uma exclamação de surpresa escapou‑se‑lhe da boca.
O indiano parecia moribundo. Tinha nos lábios uma espuma sanguinolenta, o rosto estava rasgado e cheio de sangue, os olhos revirados e enormemente dilatados; ofegava, soltando suspiros roucos.
‑ Aghur! ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ que te aconteceu? Onde está Hurti?
Ao ouvir aquele nome, o rosto de Aghur contraiu‑se horrivelmente e com as unhas remexeu raivosamente a terra.
‑ Patrão... Pa... trão! ‑ balbuciou ele, com profundo terror. ‑ Estou su... focado. Corri... Ah! Patrão!
‑ Estará envenenado? ‑ murmurou Kammamuri.
‑ Não ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ o pobre diabo correu como um cavalo e está sufocado; dentro de alguns minutos estará refeito.
De facto, Aghur começava a voltar a si e a respirar livremente.
‑ Fala, Aghur ‑ disse Tremal‑Naik, ao fim de alguns minutos. ‑ porque voltaste sozinho? Por que tanto terror? Que aconteceu ao teu companheiro?
‑ Ah! Patrão ‑ balbuciou o indiano, estremecendo ‑, que desgraça!
‑ O ramsinga tinha‑a anunciado ‑ murmurou Kammamuri, suspirando.
‑ Continua, Aghur ‑ insistiu o caçador de serpentes.
‑ Se o tivessem visto, ao desgraçado... Estava para ali, estendido por terra, inteiriçado, com os olhos a sair das órbitas.
‑ Quem?... Quem?
‑ Hurti!
‑ Hurti morreu? ‑ exclamou Tremal‑Naik.
‑ Sim, assassinaram‑no junto do baniano sagrado.
‑ Mas quem o assassinou? Dize‑mo, para que eu vá vingá‑lo.
‑ Não sei, patrão.
‑ Conta tudo.
‑ Tínhamos partido para caçar um grande tigre. A seis milhas daqui, descobrimos a fera, que, ferida pela carabina de Hurti, fugiu para sul. Seguimos a sua pista durante quatro horas e voltámos a encontrá‑la junto da margem, em frente da ilha Rajmangal, mas não conseguimos matá‑la, pois, apenas deu por nós, lançou‑se à água, indo aproar junto do grande baniano.
‑ Bem, e depois?
‑ Eu queria voltar para trás, mas Hurti recusava‑se, dizendo que o tigre estava ferido e era, portanto, uma presa fácil. Atravessámos o rio a nado e chegámos à ilha Rajmangal, onde nos separámos, para explorar os arredores.
O indiano deteve‑se, batendo os dentes, aterrorizado e branco como a cal.
‑ Descia a noite ‑ recomeçou ele, com voz sombria. ‑ sob os bosques começava a estar escuro e reinava um silêncio fúnebre que metia medo. De repente, ribombou uma nota aguda, a do ramsinga. Olhei à minha volta e dei com os olhos nos de uma sombra que estava de pé, a vinte passos de mim, semi-escondida num tufo de verdura.
‑ Uma sombra! - exclamou Tremal‑Naik ‑ disseste uma sombra?
‑ Sim, patrão, uma sombra.
‑ Quem era? Diz‑mo, Aghur, diz‑mo!
‑ Pareceu‑me uma mulher.
‑ Uma mulher!
‑ Sim, estou certo de que era uma mulher.
‑ Bela?
‑ Estava escuro de mais para que eu pudesse vê‑la distintamente.
Tremal‑Naik passou a mão pela testa.
‑ Uma sombra! ‑ repetiu ele várias vezes. - Uma sombra lá em baixo! E se fosse a minha visão?... Continua, Aghur.
‑ Aquela sombra olhou‑me por alguns instantes, depois estendeu um braço para mim, convidando‑me a afastar‑me imediatamente. Surpreendido e atemorizado, obedeci, mas ainda não andara cem passos quando um urro angustiante chegou aos meus ouvidos. Reconheci imediatamente aquele grito: era o grito de Hurti!
‑ E a sombra? - perguntou Tremal‑Naik possuído por extrema agitação.
‑ Nem sequer me voltei para trás. Para ver se lá tinha ficado ou se tinha desaparecido. Lancei‑me a correr através da selva, com a carabina na mão, e cheguei até junto do grande baniano, onde, deitado de costas, vi o pobre Hurti. Chamei-o, não me respondeu; toquei‑lhe estava ainda quente, mas o coração deixara de bater!
‑ Tens a certeza?
‑ Absoluta, patrão.
‑ Onde o tinham ferido?
‑ Não lhe vi no corpo ferida alguma.
‑ É impossível!
- Juro!
‑ E não viste ninguém?
‑ Ninguém, nem ouvi qualquer rumor. Eu tive medo; atirei‑me ao rio, atravessei‑o, perdendo a carabina, e atingi a nossa selva. Julgo que fiz seis milhas sem respirar, tão grande era o meu terror. Pobre Hurti!
�
Capítulo 2
A ilha misteriosa
À triste narração do indiano, seguiu‑se um profundo silêncio. Tremal-Naik, que de súbito ficara nervosíssimo e com o rosto ensombrado, pusera‑se a passear diante do fogo, com a cabeça curvada sobre o peito, a fronte enrugada e os braços cruzados. Kammamuri, esmagado pelo terror, meditava, enrolado sobre si próprio. Até o cão deixara de fazer ouvir o seu uivo lamentoso e deitara‑se ao lado de darma.
As notas agudas do misterioso ramsinga arrancaram o caçador de serpentes às suas meditações. Levantou a cabeça, como um cavalo de batalha que ouve o sinal para a carga, lançou um olhar profundo para a selva deserta, sobre a qual pairava agora uma densa neblina carregada de exalações venenosas, girou sobre si próprio e, aproximando‑se bruscamente de Aghur, disse‑lhe:
‑ Já tinhas ouvido o ramsinga?
‑ Sim, patrão ‑ respondeu o indiano ‑, mas só uma vez.
‑ Quando?
‑ Na noite em que Tamul desapareceu, isto é, há seis meses.
‑ De modo que, também tu, tal como Kammamuri, acreditas que anuncia uma desgraça?
‑ Sim, patrão.
‑ E sabes quem o toca?
‑ Nunca o soube.
‑ E pensas que o tocador tem relações com os misteriosos habitantes de Rajmangal?
‑ Assim o julgo.
‑ Quem suspeitas que sejam aqueles homens?
‑ Mas serão homens?
‑ Não creio que sejam as almas dos mortos.
‑ Nesse caso, serão piratas ‑ disse Aghur.
‑ E que interesse podem ter em assassinar os meus homens?
‑ Quem sabe? Talvez seja para nos meter medo e assim nos manterem afastados.
‑ Onde supões que tenham as suas cabanas?
‑ Não sei, mas ousaria dizer que todas as noites se retirem à sombra do baniano sagrado.
‑ Está bem ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Kammamuri, pega nos remos.
‑ Que queres fazer, patrão? ‑ perguntou o marata.
‑ Dirigir‑me ao baniano
‑ Oh! Não faças isso, patrão! ‑ gritaram ao mesmo tempo os dois indianos.
‑ Por quê?
‑ Matam‑te, como mataram o pobre Hurti.
Tremal‑Naik olhou para eles, com dois olhos que deitavam chamas.
‑ O caçador de serpentes nunca tremeu na sua vida e também não há‑de tremer esta noite. Para a canoa, Kammamuri! ‑ exclamou ele, com um tom de voz que não admitia réplica.
‑ Mas, patrão...
‑ Tens medo, talvez? ‑ perguntou desdenhosamente Tremal‑Naik.
‑ Sou marata! ‑ disse o indiano, com orgulho.
‑ Então, vai. Esta noite hei‑de saber quem são aqueles entes misteriosos que me declararam guerra e quem é aquela que me enfeitiçou.
Kammamuri pegou num par de remos e dirigiu‑se para a margem. Tremal‑Naik entrou na cabana, tirou dum prego uma longa carabina com o cano cheio de arabescos, muniu‑se dum grande frasco de pólvora e entalou no cinto um comprido cutelo.
- Aghur, tu ficas aqui ‑ disse ele, ao sair. ‑ se dentro de dois dias não tivermos voltado, irás ter connosco a Rajmangal, com o tigre e com Punthy.
‑ Ah! Patrão
‑ Não te sentes com coragem suficiente para lá ir?
‑ Coragem tenho eu, patrão. O que queria dizer é que fazes mal em ir àquela ilha maldita.
‑ Tremal‑Naik não se deixa assassinar impunemente, Aghur.
‑ Leva darma contigo. Pode ser-te útil.
‑ Denunciariaa minha presença e eu quero desembarcar sem ser visto nem ouvido. Adeus, Aghur.
Lançou a carabina a tiracolo e juntou‑se a Kammamuri, que o esperava junto dum pequeno gonga, um barco tosco e pesado, cavado no tronco duma árvore.
‑ Partamos ‑ disse.
Saltaram para o barco e fizeram‑se ao largo, remando lentamente e em silêncio.
Uma profunda obscuridade, que a neblina pestilencial que pairava sobre os canais, as ilhas e os ilhéus tornava mais densa, cobria as Sunderbunds e a corrente do mangal.
À esquerda e à direita estendiam‑se enormes massas de bambus espinhosos, formando moitas espessas, debaixo das quais se ouviam ronronar os tigres e silvar as serpentes, ervas compridas e cortantes, confusas, amalgamadas, apertadas umas contra as outras, de modo a impedir a passagem.
Mais ao longe, na linha fosca do horizonte, despontavam, aqui e além, algumas árvores, mangueiras carregadas de frutos delicados, palmeiras, latânias e coqueiros de aspecto majestoso, com longas folhas dispostas em cúpula.
Um silêncio fúnebre, misterioso, reinava por toda a parte, apenas quebrado pelo murmurar das águas amarelentas, que rasavam os ramos arqueados dos paletúvios e as folhas de lótus, e pelo rumor dos bambus sacudidos por um sopro de ar quente, sufocante, envenenado.
Tremal‑Naik, estendido na popa, com o fuzil debaixo da mão, estava silencioso e mantinha abertos os olhos, fixando‑os ora numa ora na outra margem, onde se ouviam sempre um rosnar rouco e silvos lamentosos. Kammamuri, pelo contrário, sentado ao meio, fazia voar o pequeno gonga, que deixava atrás de si um rasto de admirável fosforescência, que quase faria acreditar estarem aquelas águas corruptas saturadas de fósforo. De vez em quando, porém, parava de remar, suspendia a respiração e ficava alguns instantes à escuta, perguntando depois ao caçador de serpentes se não tinha visto nem ouvido nada.
Havia já meia hora que navegavam, quando o silêncio foi quebrado pelo som que se fez ouvir sobre a margem direita, mas tão perto que fez pensar que o tocador estivesse a uma centena de passos de distância.
‑ Alto! ‑ murmurou Tremal‑Naik.
Ainda não tinha acabado de falar quando um segundo ramsinga respondeu ao primeiro. Mas a uma distância maior, entoando uma melodia que tinha tanto de melancólico quanto a outra tinha de alegre e de viva. A música indiana baseia‑se em quatro sistemas que têm uma intima relação com as quatro estações do ano e a cada um deles aplica‑se um tom e um modo particulares. É melancólica na estação fria, viva e alegre no rejuvenescer da estação, lânguida nos grandes calores do estio, brilhante no outono.
Porque tocavam aqueles dois instrumentos de modo tão contrário? Seria um sinal? Kammamuri receava‑o.
‑ Patrão ‑ disse ele ‑, fomos descobertos.
‑ É provável ‑ respondeu Tremal‑Naik, que escutava atentamente.
‑ E se voltássemos atrás? Isto assim não é bom para nós.
‑ Tremal‑Naik nunca volta atrás. Arranca e deixa que os ramsinga toquem à vontade.
O marata retomou os remos, fazendo avançar o gonga, que não tardou a chegar a um lugar onde o rio se apertava, à semelhança dum gargalo de garrafa. Uma baforada de ar tépido, sufocante, carregado de exalações pestilentas, chegou ao nariz dos dois indianos.
Diante deles, a trezentos ou quatrocentos passos, apareceu uma multidão de pequenas chamas que vagueavam bizarramente sobre a superfície negra do rio. Algumas, como atraídas por uma força misteriosa, vieram dançar diante da proa do gonga, afastando‑se depois com fantástica rapidez.
‑ Eis‑nos no cemitério flutuante - disse Tremal‑Naik. ‑ dentro de dez minutos chegaremos ao baniano.
‑ Passaremos com o gonga? ‑ perguntou Kammamuri.
‑ Com um pouco de paciência, conseguiremos passar.
‑ Patrão, não é bom ofender os mortos.
‑ Brama e Vixnu hão‑de perdoar‑nos. Arranca, Kammamuri.
Com algumas remadas, o gonga alcançou o estreito do rio e desembocou numa espécie de lago, sobre o qual se entrelaçavam os compridos ramos de colossais tamarindos, formando uma espessa abóbada de verdura.
Ali flutuavam muitos cadáveres que os canais do Ganges tinham arrastado até ao mangal.
‑ Para a frente! ‑ disse o caçador de serpentes.
	Kammamuri estava para retomar os remos, quando a abóbada de verdura que cobria aquele cemitério flutuante se abriu, para dar passagem a um bando de estranhos seres de asas negras, pernas longuíssimas e bicos afiados e enormes.
‑ Que há de novo? ‑ exclamou Kammamuri, surpreendido.
‑ Os marabus ‑ disse Tremal‑Naik.
De facto, uma centena daquelas fúnebres aves do rio sagrado desciam, batendo alegremente as asas e pousando sobre os cadáveres.
‑ Para a frente, Kammamuri ‑ repetiu Tremal‑Naik.
Após uma boa meia hora, o gonga, impulsionado pelos remos, tinha atravessado o cemitério e encontrava‑se num lago bastante mais amplo. Completamente desimpedido, e dividido em dois braços por uma ponta de terra, sobre a qual se elevava uma enorme e singular árvore.
‑ O baniano! - disse Tremal‑Naik.
Ao ouvir aquele nome, Kammamuri estremeceu.
‑ Patrão! ‑ murmurou ele, com os dentes cerrados.
‑ Não tenhas medo, marata. Larga os remos e deixa que o gongo aproe sozinho à ilha. Talvez haja alguém nos arredores.
Estes cemitérios flutuantes encontram‑se com grande freqüência nas Sunderbunds do Ganges. Os indianos que consideram o Ganges um rio sagrado, costumam abandonar os cadáveres à corrente, convencidos de que vão direitos ao céu.
O marata obedeceu, estendendo‑se no fundo da canoa, enquanto Tremal‑Naik, que, entretanto e à cautela, carregara a carabina, fazia o mesmo.
O gonga, levado pela corrente, que se fazia sentir levemente, dirigiu‑se, girando sobre si próprio, para a ponta setentrional da ilha Rajmangal, sede dos seres misteriosos que tinham assassinado o pobre Hurti.
Um silêncio profundo reinava naquele lugar. Não se ouvia sequer o ranger dos gigantescos bambus, já que a aragem nocturna tinha cessado, nem se ouviam as notas do ramsinga. O próprio rio parecia ter‑se tornado de óleo.
No entanto, de quando em quando, Tremal‑Naik levantava cuidadosamente a cabeça e perscrutava atentamente as margens, nada tranqüilizado por aquele silêncio. O gonga tocou na areia com uma leve fricção, apenas a uma centena de passos do baniano, mas os dois indianos não se mexeram.
Passaram dez minutos de angustiosa expectativa e só então Tremal‑Naik ousou levantar‑se. A primeira coisa que viu foi uma forma negra, confusa, estendida entre as ervas, a cerca de vinte metros da margem.
‑ Kammamuri ‑ murmurou ‑, levanta‑te e carrega as tuas pistolas.
O marata não precisou de ouvir a ordem duas vezes.
‑ Que vês, patrão? ‑ perguntou ele, com um fio de voz.
‑ Olha para além.
‑ Eh!... ‑ exclamou o marata, arregalando os olhos. ‑ um homem!
‑ Cala-te!
Tremal‑Naik levantou a carabina, apontando a mira para aquela massa negra, que parecia um ser humano estendido, mas baixou‑a sem disparar.
‑ Vamos ver o que é, Kammamuri ‑ disse ele. ‑ aquele homem não está vivo.
‑ E se estivesse a fingir que está morto?
‑ Tanto pior para ele.
Os dois indianos desembarcaram, dirigindo‑se sorrateiramente para aquele indivíduo que não dava sinais de vida. Tinham chegado a uma dezena de passos dele, quando um marabu se levantou ruidosamente, voando em direcção ao rio.
‑ É um homem morto ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ se fosse...
Não terminou a frase. Em quatro saltos chegou junto do cadáver; uma surda exclamação soltou‑se‑lhe dos lábios, crispados pela ira.
‑ Hurti! ‑ exclamou.
De facto, aquele era Hurti, o companheiro do indiano Aghur. O infeliz estava estendido de costas, com os braços e as pernas contraídos, provavelmente pelo espasmo, com o rosto terrivelmente decomposto, os olhos abertos, a saltar das órbitas. Os joelhos apresentavam‑se partidos e sangrentos, o mesmo acontecendo com os pés, sinal evidente de que tinha sido arrastado durante algum tempo por terra, talvez quando estava ainda agonizante, e da boca escancarada saía‑lhe um bom palmode língua.
Tremal‑Naik soergueu o desventurado indiano, para ver em que sítio fora atingido, mas não lhe encontrou no corpo ferida alguma. No entanto, examinando‑o melhor, viu à volta do pescoço uma linha roxa bastante marcada e atrás do crânio uma ferida que parecia produzida por uma grande bola ou por uma pedra arredondada.
‑ Primeiro fizeram‑no desmaiar e depois estrangularam‑no - disse ele, com voz surda.
‑ Pobre Hurti ‑ murmurou o marata. ‑ mas para quê assassiná‑lo deste modo?
‑ Havemos de o saber, Kammamuri, e juro-te que Tremal‑Naik não deixará impune o delito.
‑ Receio, patrão, que os assassinos sejam muito poderosos.
‑ Tremal‑Naik será mais poderoso do que eles. Vamos, regressa à canoa.
‑ E hurti? Vamos deixá‑lo aqui?
‑ Deitá‑lo‑ei às águas sagradas do Ganges amanhã de manhã.
- Mas esta noite os tigres devoram‑no.
‑ Sobre o cadáver de Hurti vela o caçador de serpentes.
‑ Mas como? Tu não regressas?
‑ Não, Kammamuri, eu fico aqui. Quando tiver resolvido os meus problemas, abandonarei esta ilha.
‑ Queres que te assassinem?
Um sorriso desdenhoso aflorou aos lábios do altivo indiano.
‑ Tremal‑Naik é um filho da selva! Regressa à canoa, Kammamuri.
‑ Nunca, patrão!
‑ Por quê?
‑ Se te acontece alguma desgraça, quem te ajudará? Deixa que eu te acompanhe e juro‑te que te seguirei para onde quer que vás.
‑ Mesmo se eu fosse à procura da visão?
‑ Sim, patrão.
‑ Fica comigo, valente marata, e verás que nós os dois havemos de valer por dez. Segue‑me!
Tremal‑Naik dirigiu‑se para a margem, agarrou o gonga por estibordo e, com uma violenta sacudidela, virou‑o, metendo‑o a pique.
‑ Que estás a fazer? ‑ perguntou Kammamuri, surpreendido.
‑ Ninguém deve saber que chegámos aqui. E, agora, a nós compete desvendar o mistério.
Mudaram a pólvora às carabinas e às pistolas, para estarem seguros de não falhar, e dirigiram‑se para o baniano, cuja mole imensa se recortava altivamente nas trevas profundas.
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Capítulo 3
O vingador de Hurti
Os banianos, também chamados aí mora ou figueiras dos pagodes, são as árvores mais estranhas e gigantescas que se possa imaginar.
Têm a altura e o tronco dos nossos carvalhos maiores e mais grossos e dos seus inúmeros ramos, estendidos horizontalmente, descem finíssimas raízes aéreas, as quais, mal tocam em terra, afundam‑se nela e engrossam rapidamente, infundindo na planta novo alimento e mais vigorosa vida.
Acontece, assim, que os ramos se vão alongando cada vez mais, gerando novas raízes e, portanto, novos troncos, cada vez mais distantes, de modo que uma só árvore cobre uma vastíssima extensão de terreno. Pode dizer‑se que forma uma floresta sustentada por centenas e centenas de bizarras colunatas, sob as quais os sacerdotes de Brama colocam os seus ídolos. Na província de Guzerate existe um baniano chamado Cobir Bor, muito venerado pelos indianos, que não hesitam em atribuir‑lhe três mil anos de idade; tem um diâmetro de seiscentos metros e nada menos de três mil colunas, ou raízes, se se preferir. Antigamente era ainda maior, mas parte dele foi destruído pelas águas do Nerbudda, que corroeram uma parte da ilha em que cresce.
O baniano sob o qual os dois indianos estavam para passar a noite era um dos mais gigantescos; tinha mais de seiscentas colunas, que sustentavam enormes ramos carregados de pequenos frutos vermelhos e um tronco de enorme grossura, mas que, a certa altura, estava cortado.
Tremal‑Naik e Kammamuri, depois de terem examinado escrupulosamente coluna por coluna, para se assegurarem de que atrás delas não se escondia ninguém, sentaram‑se junto ao tronco, um ao lado do outro, com a carabina carregada, pousada sobre os joelhos.
‑ Alguém há‑de vir aqui ‑ disse o caçador de serpentes a meia voz. ‑ desgraçado do primeiro que se puser ao alcance da minha carabina.
‑ Julgas então que os seres misteriosos que assassinaram Hurti vêm aqui? ‑ perguntou Kammamuri.
‑ Tenho a certeza absoluta disso. Verás, marata, que ainda antes de amanhã saberemos alguma coisa.
‑ Tomamos conta do primeiro que vier e damos cabo dele.
‑ É conforme as circunstâncias. E, agora, silêncio e olhos bem abertos.
Tirou de um bolso uma folha semelhante à da hera, conhecida na índia pelo nome de bétele, de sabor um tanto amargo e picante, juntou‑lhe um pedacito de noz de areca e um pouco de cal e pôs‑se a mastigar aquela mistela, que, segundo se diz, conforta o estómago, fortifica o cérebro, conserva os dentes e refresca o hálito.
Passaram duas horas, longas como séculos, durante as quais nenhum rumor perturbou o silêncio que reinava sob a densa sombra da gigantesca árvore. Devia ser meia‑noite, ou pouco menos, quando Tremal‑Naik, de ouvidos bem alerta, julgou ouvir um estranho rumor.
Dir‑se‑ia um estrondo semelhante àqueles que às vezes precedem os terremotos, mas bastante mais surdo.
Tremal‑Naik sentiu que uma vaga de inquietação o invadia.
‑ Kammamuri ‑ murmurou, com um fio de voz. ‑ está em guarda.
‑ Que viste? ‑ perguntou o marata, estremecendo.
‑ Nada, mas ouvi um rumor que é novo para mim.
‑ Onde?
‑ Pareceu‑me que vinha de debaixo da terra.
‑ É impossível, patrão!
‑ Tremal‑Naik tem os ouvidos bons de mais para se enganar.
‑ Que julgas que seja?
‑ Não o sei, mas havemos de sabê‑lo.
‑ Patrão, aqui há um terrível mistério.
‑ Tens medo?
‑ Não, sou marata.
‑ Então havemos de desvendar tudo.
Naquele instante, debaixo da terra, ouviu‑se de novo, distintamente, o misterioso estrondo. Os dois indianos olharam‑se, surpreendidos.
‑ Dir‑se‑ia que, aqui em baixo, tocam um enorme tambor, o hauk, por exemplo ‑ disse Tremal‑Naik.
‑ Não pode ser de outro modo ‑ respondeu Kammamuri. ‑ mas como é que o som vem de debaixo da terra? Será que aqueles seres misteriosos têm o seu asilo debaixo da selva?
‑ Assim deve ser, Kammamuri.
‑ Que fazemos, patrão?
‑ Ficaremos aqui: alguém há‑de sair dalguma parte.
‑ Tykora! ‑ gritou uma voz.
De um salto, os dois indianos puseram‑se de pé. Coisa estranha e incrível: aquela voz fizera‑se ouvir tão perto deles que parecia que a pessoa que a emitira estava mesmo atrás dos dois homens.
‑ Tykora! ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ quem pronunciou este nome?
Olhou à sua volta, mas não viu ninguém; olhou para cima, mas não viu nada, a não ser os ramos do baniano, confundidos com as trevas.
‑ Estará alguém escondido entre os ramos?
‑ Não ‑ disse Kammamuri, tremendo. ‑ a voz ouviu‑se atrás deles.
‑ É estranho.
‑ Tykora! ‑ exclamou a mesma voz misteriosa, os dois indianos voltaram a olhar à sua volta. Não era possível enganarem‑se; alguém estava perto deles, mas, para surpresa sua e, digamos também, para seu terror, não era visível.
‑ Patrão ‑ murmurou Kammamuri ‑, temos de nos haver com algum espírito.
‑ Eu não acredito nos espíritos ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ havemos de descobrir este ser que se diverte a assustar‑nos.
‑ Oh!... ‑ exclamou o marata, dando três ou quatro passos para trás, como um bêbado. ‑ olha para cima... Patrão! Olha!
Tremal‑Naik levantou os olhos para o baniano e vislumbrou um raio de luz que saía do tronco cortado. Apesar da sua extraordinária coragem, sentiu que o sangue se lhe gelava nas veias.
‑ Luz! ‑ balbuciou, angustiado.
‑ Fujamos, patrão! ‑ suplicou Kammamuri.
Debaixo da terra ouviu‑se pela terceira vez o misterioso rugido e do tronco do baniano saiu a nota aguda do Ramsinga. Ao longe ecoaram outras notas semelhantes.
‑ Fujamos, patrão! ‑ repetiu Kammamuri, louco de terror.
‑ Nunca! ‑ exclamou Tremal‑Naik, resolutamente.
Pusera o punhal entre os dentes e agarrara a carabina pelo cano, para servir‑se dela como de uma clava. De repente mudou de idéias.
‑ Vem, Kammamuri ‑ disse ele. ‑ antes de começar a luta, será melhor ver com que teremos de lutar.
Arrastou o marata a cerca de duzentos passos do tronco do baniano e esconderam‑se atrás de três ou quatro colunas reunidas, que lhes permitiam ver sem ser vistos.
‑ Nem uma palavra,agora ‑ disse. ‑ no momento oportuno, agiremos.
Do colossal tronco do baniano saiu uma última nota agudíssima, que despertou todos os ecos das Sunderbunds. O facho de luz que saía do cimo da árvore apagou‑se e, em vez dele, apareceu uma cabeça humana coberta por uma espécie de turbante amarelo.
Por momentos olhou à volta, como que a assegurar‑se de que ninguém se encontrava por baixo da gigantesca árvore, depois levantou‑se... E um homem, indiano, a julgar pela cor da pele, saiu, agarrando‑se a um dos ramos. Atrás dele saíram mais quarenta indianos, que se deixaram escorregar pelas colunatas até à terra.
Estavam, todos eles, quase nus. Só um dubgah, espécie de pequeno saio, dum amarelo sujo, lhes cobria as ancas e nos seus peitos viam‑se tatuagens estranhas, que pretendiam ser letras de sânscrito; justamente ao centro, desenhava‑se uma serpente com cabeça de mulher.
Um fino cordão de seda, que parecia um laço, mas que tinha na extremidade uma bola de chumbo, dava várias voltas ao dubgah, enquanto um punhal pendia daquele estranho cinto.
Aqueles seres misteriosos sentaram‑se silenciosamente por terra, formando um círculo à volta do velho indiano, de braços enormes e olhar brilhante como o dum gato.
‑ Meus filhos ‑ disse ele, com voz grave ‑, a nossa mão poderosa feriu o desgraçado que ousou pisar este solo consagrado dos tugues, que nenhum estranho pode violar. É uma vítima mais a acrescentar às outras caídas sob o nosso punhal, mas a deusa não está ainda satisfeita.
‑ Bem o sabemos ‑ responderam em coro os indianos.
‑ Sim, filhos livres da Índia, a nossa deusa pede outros sacrifícios.
‑ Que o nosso grande chefe ordene, e todos nós partiremos.
‑ Bem sei que sois filhos valentes ‑ disse o velho indiano. ‑ mas o tempo ainda não chegou.
‑ Que esperamos então?
‑ Um grande perigo nos ameaça, meus filhos.
‑ Qual?
‑ Um homem lançou os seus olhares sobre a "virgem" que vela o pagode da deusa.
- Horror! ‑ exclamaram os indianos.
‑ Sim, filhos meus, um homem audaz ousou olhar no rosto a "virgem" errante; mas esse homem, se não cair abatido pelo fulgor da deusa, perecerá debaixo do nosso laço infalível.
‑ Quem é esse homem?
‑ A seu tempo o sabereis. Trazei‑me a vítima.
Dois indianos levantaram‑se e dirigiram‑se para o lugar onde jazia o cadáver do pobre Hurti. Tremal‑Naik, que assistira sem pestanejar àquela estranha cena, ao ver aqueles dois homens que agarravam o morto pelos braços, arrastando‑o para o tronco do baniano, levantara‑se de um salto, com a carabina na mão.
- Ah! Malditos! ‑ exclamou ele, com voz surda, apontando‑lhes a arma.
‑ Que fazes, patrão? ‑ murmurou Kammamuri, agarrando‑lhe na arma e baixando‑a.
‑ Deixa que os mate, Kammamuri ‑ disse o caçador de serpentes. - Foram eles que mataram Hurti, é justo que eu o vingue.
‑ Queres perder‑nos a nós dois. São quarenta.
‑ Tens razão, Kammamuri. Atacá-los‑emos a todos de uma vez.
Baixou a carabina e voltou a agachar‑se, enquanto mordia os lábios, para dominar a cólera.
Os dois indianos tinham então arrastado Hurti para o meio do círculo e tinham‑no deixado cair aos pés do velho.
‑ Cali! ‑ exclamou ele, erguendo os olhos ao céu.
Tirou o punhal do cinto e enterrou‑o no peito de Hurti.
‑ Miserável ‑ gritou Tremal‑Naik. ‑ É demais!
Atirara‑se para fora do esconderijo. Um relâmpago rasgou as trevas, seguido duma estrepitosa detonação, e o velho indiano, ferido em cheio no peito pela bala do caçador de serpentes, caiu sobre o corpo de Hurti.
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Capítulo 4
Na selva
Ao ouvir aquela súbita detonação, os indianos tinham‑se levantado dum salto, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda. Vendo o seu chefe debater‑se por terra, cheio de sangue, esqueceram por momentos aquele que o matara, para correr em seu auxílio. Esses momentos bastaram para que Tremal‑Naik e Kammamuri fugissem sem ser vistos.
A selva, coberta de espessas moitas espinhosas de bambus gigantescos, que prometiam refúgios inacessíveis, estava a poucos passos. Os dois indianos precipitaram‑se para ela, correndo desesperadamente durante cinco ou seis minutos; depois deixaram‑se cair debaixo duma moita bastante espessa de bambus que não deviam ter menos de dezoito metros de altura.
‑ Se tens amor à vida ‑ disse Tremal‑Naik a Kammamuri ‑, não te mexas!
‑ Ah! Patrão! Que fizeste! ‑ disse o pobre marata. ‑ vamos tê‑los todos atrás de nós e seremos estrangulados, como o desgraçado Hurti.
‑ Vinguei o meu companheiro. Aliás, não nos encontrarão.
‑ São espíritos, patrão.
‑ São homens. Cala‑te e olha bem à tua volta.
Ao longe ouviam‑se os brados dos terríveis habitantes do baniano.
‑ Vingança! Vingança! ‑ gritavam.
Três notas agudas, as notas do ramsinga, ecoaram pela selva e debaixo da terra ouviu‑se o ribombar sombrio que pouco antes se fizera ouvir. Os dois caçadores enovelaram‑se, encostando‑se um ao outro e suspendendo a respiração. Sabiam que, se fossem descobertos, seriam estrangulados sem remissão pelos laços de seda daqueles monstruosos indivíduos, que já tantas vítimas tinham sacrificado.
Não tinham passado ainda três minutos quando ouviram os bambus abrir‑se violentamente e viram, entre as trevas, um daqueles homens, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda, passar como uma flecha diante da moita e desaparecer no emaranhado da selva.
‑ Viste‑o, Kammamuri? ‑ perguntou em voz baixa Tremal‑Naik.
‑ Sim, patrão ‑ respondeu o marata.
‑ Julgam que estamos bastante longe e correm na esperança de nos apanharem. Dentro de poucos minutos não teremos um único homem atrás de nós.
‑ Desconfiemos, patrão, aqueles homens metem‑me medo.
‑ Não tenhas medo, que estou cá eu. Está calado e presta atenção.
Um outro indiano, armado como o primeiro, passou correndo, instantes depois, e também ele desapareceu no emaranhado dos bambus.
Ao longe ouviram‑se ainda alguns gritos e assobios, que pareciam, ou, antes, deviam, ser um sinal; depois tudo ficou silencioso.
Meia hora passou. Tudo indicava que os indianos, lançados talvez numa falsa pista, estavam suficientemente longe. O momento não podia ser mais propício para dar meia volta e fugir em direcção à margem.
‑ Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik ‑, podemos pôr‑nos a caminho. Na minha opinião, os indianos devem estar todos à nossa frente no meio da selva.
‑ Tens mesmo a certeza, patrão?
‑ Não ouço qualquer rumor.
‑ E aonde vamos? Ao baniano?
‑ Sim, marata.
‑ Queres talvez entrar lá dentro?
‑ Por ora, não. Mas amanha à noite voltaremos e desvendaremos o mistério.
‑ Mas quem supões que sejam aqueles homens?
‑ Não o sei, mas hei-de sabê‑lo, Kammamuri, como hei-de saber quem é aquela mulher que vela no pagode da sua terrível deusa. Ouviste o que disse aquele velho?
‑ Sim, patrão.
‑ Não sei, mas tenho a impressão de que falava de mim e suspeito de que aquela "virgem" seja...
‑ Quem?
‑ A mulher que me enfeitiçou, Kammamuri. Quando o velho falou dela, senti que o meu coração batia com uma estranha veemência, e isso acontece‑me sempre que...
‑ Cala‑te, patrão!... ‑ murmurou Kammamuri, com voz sufocada.
‑ Ouviste alguma coisa?
‑ Um bambu mexeu‑se.
‑ Onde?
‑ Lá em baixo... A trinta passos de nós. Cala‑te!
Tremal‑Naik levantou a cabeça e voltou‑se, perscrutando com atenção a massa negra dos bambus, mas não viu ninguém. Apurou os ouvidos, retendo a respiração, e estremeceu. Na direcção indicada pelo marata ouvia‑se um ténue murmúrio; dir‑se‑ia que uma mão afastava com suma precaução as largas folhas em forma de coração das gigantescas plantas.
‑ Alguém se aproxima ‑ murmurou ele. ‑ não te mexas, Kammamuri.
O ruído aumentava, aproximando‑se, mas muito lentamente. Pouco depois viram um bambu dobrar‑se e aparecer um indiano, que se curvou para a terra, levando a mão à orelha. Ficou assim durante um minuto, depois levantou‑se e pareceu farejar o ar.
‑ Gary! ‑ murmurou ele.
Um segundo indiano saiu dos bambus, a seis passos de distância do primeiro.‑ Ouves alguma coisa? ‑ perguntou o recém‑chegado.
‑ Absolutamente nada.
- E, no entanto, pareceu‑me que alguém falava.
‑ Talvez te tenhas enganado. Há cinco minutos que aqui estou, com os ouvidos bem abertos. Estamos numa pista falsa.
‑ Onde estão os outros?
‑ Estão à nossa frente, Gary. Receia‑se que os homens que ousaram desembarcar aqui tentem um golpe de mão sobre o pagode.
‑ Com que finalidade?
‑ Há quinze dias, a "virgem do pagode" encontrou um homem. Foram vistos por um dos nossos a fazer sinais um ao outro.
‑ E para quê?
‑ Julga‑se que o homem quer libertar a "virgem".
‑ Oh! Que horrível delito! ‑ exclamou o indiano chamado Gary.
‑ Esta noite, um indiano, companheiro do miserável que ousou levantar os olhos para a "virgem" da nossa venerável deusa, desembarcou. Sem dúvida vinha espiar.
‑ Mas esse indiano foi estrangulado.
‑ Sim, mas atrás dele desembarcaram outros homens, um dos quais assassinou o nosso sacerdote.
‑ E quem é esse homem que olhou no rosto a "virgem"?
‑ Um homem formidável, Gary, e capaz de tudo: é um caçador de serpentes da floresta negra.
‑ É preciso que morra.
‑ Morrerá, Gary; por muito que ele corra. Havemos de alcançá-lo e os nossos laços estrangulá‑lo‑ão. Agora, tu partes e caminhas a direito até chegares à margem do rio; eu vou para o pagode, a velar pela "virgem". Adeus, e que a deusa te proteja.
Os dois indianos separaram‑se, tomando caminhos diferentes. Assim que o rumor cessou, Tremal‑Naik, que tinha ouvido tudo, levantou‑se.
‑ Kammamuri ‑ disse ele, vivamente emocionado ‑, é preciso que nos separemos. Tu ouviste‑os: eles sabem que eu desembarquei e procuram‑me.
‑ Ouvi tudo, patrão.
‑ Tu segues o indiano que se dirige para o rio e logo que possas passas para a outra margem. Eu sigo o outro.
‑ Tu escondes‑me qualquer coisa, patrão. Porque não vens também tu para a margem do rio?
‑ Tenho de ir ao pagode.
‑ Oh! Não faças isso, patrão!
- É uma decisão irrevogável. No pagode está escondida a mulher que me enfeitiçou.
‑ E se te matam?
‑ Matar‑me‑ão ao lado dela e eu morrerei feliz. Parte, Kammamuri, parte, que a febre começa a apoderar‑se de mim.
Kammamuri soltou um profundo suspiro, que mais parecia um gemido, e levantou‑se.
‑ Patrão ‑ disse, com voz comovida - onde voltaremos a ver‑nos?
‑ Na cabana, se eu escapar à morte. Vai.
O marata meteu‑se pela selva dentro, seguindo o rasto do indiano, em direcção à margem. Tremal‑Naik ficou ali a olhá‑lo, com os braços cruzados sobre o peito e o rosto ensombrado.
- “E agora”, - disse ele, levantando altivamente a cabeça, quando o marata desapareceu da sua vista, - “desafiemos a morte!”
Pôs a carabina a tiracolo, lançou um último olhar à sua volta e afastou‑se, a passos rápidos e silenciosos, seguindo o rasto do segundo indiano, que não devia estar muito afastado.
O caminho era difícil e muito confuso. O terreno encontrava‑se coberto, até onde a vista alcançava, por uma espessa rede de bambus, que se erguiam até uma altura verdadeiramente extraordinária.
Havia os chamados bons tulda, cobertos de folhas enormes, os quais, em menos de trinta dias, sobem a uma altura que ultrapassa os vinte metros e atingem uma grossura de trinta centímetros.
Os behar bons, com apenas um metro de altura, de tronco oco, mas resistente e armado de longos espinhos, e uma variedade inúmera de outros bambus, comummente conhecidos nas Sunderbunds pelo nome genérico de bons, eram tão bastos que se tornava necessário utilizar o cutelo para abrir passagem entre eles.
Um homem que não tivesse prática daqueles lugares ter‑se‑ia, sem dúvida, perdido no meio daquela flora gigantesca e encontrar‑se‑ia na impossibilidade de dar um passo sem fazer barulho; mas Tremal‑Naik nascera e crescera na selva e movia‑se nela com surpreendente rapidez e segurança, sem fazer o mínimo ruído.
Não caminhava, pois isso era absolutamente impossível. Mas rastejava como um réptil, deslizando entre as plantas sem nunca se deter, sem nunca hesitar sobre o caminho a seguir. De quando em quando colava a orelha ao solo e estava certo de não perder o rastro do indiano que o precedia, pois o terreno transmitia‑lhe os passos dele, por muito rápidos que fossem.
Percorrera já mais de uma milha quando se apercebeu de que o indiano tinha subitamente parado. Apoiou três ou quatro vezes a orelha, mas o terreno não lhe transmitia qualquer rumor; levantou‑se, escutando com profunda atenção, mas nenhum murmúrio lhe chegou. Tremal‑Naik começou a ficar inquieto.
“Que aconteceu?”, murmurou ele, olhando à sua volta. “Talvez tenha dado conta de que o sigo? Estejamos em guarda!”
Percorreu ainda três ou quatro metros rastejando, depois levantou a cabeça, mas voltou logo a baixá‑la. Tinha batido num corpo mole que pendia do alto e que logo se retirara.
“Oh!”, disse ele.
Um pensamento terrível atravessou‑lhe a mente. Deitou‑se prontamente de lado, desembainhando o cutelo e olhando para cima.
Não viu nada, ou, pelo menos, não lhe pareceu ver nada. E, no entanto, estava certo de ter chocado com qualquer coisa que não devia ser uma folha de bambu.
Ficou durante alguns minutos imóvel como uma estátua.
“Um pitão!”, exclamou de súbito, sem, no entanto, se assustar.
No meio dos bambus ouvira‑se de repente um rumor; depois, um corpo escuro, longo, sinuoso, desceu, ondulando por uma daquelas plantas. Era uma monstruosa serpente pitão, de comprimento superior a sete metros, que se estendia para o caçador de serpentes, esperando apanhá‑lo entre as suas espirais viscosas e triturá‑lo com um daqueles terríveis apertões aos quais nada há que resista. Tinha a boca aberta, com o maxilar inferior dividido em duas garras, como os ferros duma tenaz, a língua em forquilha, estendida, e os olhos acesos, a brilharem sinistramente na escuridão profunda.
Tremal‑Naik deixara‑se cair por terra, para não ser apanhado pelo réptil monstruoso e reduzido a um montão de ossos partidos e de carne sanguinolenta.
“Se me mexo, estou perdido”, murmurou, com extraordinário sangue‑frio. “Se o indiano que vai à minha frente não dá conta de nada, estou salvo.”
O réptil descera tanto que com a cabeça tocava o solo. Esticou‑se em direcção ao caçador de serpentes, que conservava uma rigidez de cadáver, ondulou um pouco sobre ele, lambendo‑o com a língua fria, e depois tentou meter‑se‑lhe por baixo, para o envolver. Três vezes voltou à carga, assobiando de raiva, e três vezes se retirou, contorcendo‑se de mil modos, subindo e voltando a descer pelo bambu, à volta do qual se agarrara.
Tremal‑Naik, a tremer, horrorizado, continuava imóvel, fazendo esforços sobre‑humanos para se dominar; mas, assim que viu o réptil levantar‑se enrolando‑se em parte sobre si próprio, apressou‑se a rastejar cerca de cinco ou seis metros. Julgando‑se fora de perigo, voltara a levantar‑se, quando ouviu uma voz ameaçadora, que gritava:
‑ Que fazes aqui?
Tremal‑Naik levantara‑se prontamente, com o punhal na mão. A sete ou oito metros de distância, bastante perto do lugar ocupado pelo réptil, surgira de repente um indiano de alta estatura, extremamente magro, armado dum punhal e duma espécie de laço que terminava numa bola de chumbo.
Tatuada no peito, trazia a misteriosa serpente com cabeça de mulher, rodeada por alguns caracteres sânscritos.
‑ Que fazes aqui? ‑ repetiu o indiano, em tom ameaçador.
‑ E tu, que fazes tu? ‑ repetiu Tremal‑Naik, com uma calma glacial. ‑ és talvez um daqueles miseráveis que se divertem a assassinar as pessoas que aqui desembarcam?
‑ Sim, e fica a saber que farei o mesmo contigo.
Tremal‑Naik pôs‑se a rir, olhando o réptil, que começava a desdobrar os seus anéis ondulantes quase sobre a cabeça do indiano.
‑ Tu julgas que me matas ‑ disse o caçador ‑, e, no entanto, a morte adeja sobre ti.
‑ Mas antes morrerás tu! ‑ gritou o indiano, fazendo assobiar a corda de seda à volta da cabeça.
Um sibilar lamentoso emitido pelo réptil deteve-o no momento em que lançava a bola dechumbo.
‑ Oh! ‑ exclamou, manifestando um profundo terror.
Tinha levantado a cabeça e encontrara‑se diante do réptil. Quis fugir e deu um salto para trás, mas tropeçou num bambu cortado e caiu nas ervas.
‑ Socorro, socorro! ‑ gritou ele, desesperadamente.
O réptil enorme deixara‑se cair para terra e num abrir e fechar de olhos apanhara o indiano entre os seus anéis, apertando de tal forma que lhe impedia a respiração e lhe partia todos os ossos do corpo.
‑ Socorro! Socorro! ‑ repetiu o desgraçado, arregalando assustadoramente os olhos.
Com um movimento espontâneo, Tremal‑Naik lançara‑se para o grupo. Com um terrível golpe de cutelo, cortou em dois o pitão, que silvava raivosamente, cobrindo de baba sangrenta a vítima. Estava para recomeçar, quando ouviu os bambus agitarem‑se furiosamente de várias partes.
‑ Ei-lo! ‑ gritou uma voz
Eram outros indianos, que acorriam ao local, companheiros do infeliz que o réptil, embora cortado em dois, triturava, fazendo‑lhe jorrar o sangue. Tremal‑Naik compreendeu o perigo que corria, e, sem esperar mais, iniciou uma fuga precipitada através da selva.
‑ Ei‑lo! Ei‑lo! ‑ repetiu a mesma voz. ‑ fogo sobre ele! Fogo! ‑ um tiro de arcabuz ressoou, despertando todos os ecos da selva, depois um outro e ainda um terceiro. Tremal‑Naik, que miraculosamente escapara aos projécteis, tinha‑se voltado, rugindo como as feras que costumava caçar na selva.
‑ Ah, miseráveis! ‑ gritou ele, furioso.
Tirara a carabina e apontara‑a contra os assaltantes que vinham à frente, com os punhais nos dentes e os laços na mão, prontos a estrangulá-lo.
Do cano saiu um clarão, seguido duma detonação. Um indiano soltou um grito terrível, levou as mãos à cara e rolou entre as ervas.
Tremal‑Naik retomou a sua corrida desenfreada, saltando à direita e à esquerda, de modo a impedir os inimigos de o tomarem como alvo.
Atravessou uma moita de bambus, que abateu furiosamente, e meteu‑se na espessura da selva, fazendo perder o rasto aos seus perseguidores.
Correu assim durante um quarto de hora; depois deteve‑se um momento, a tomar fôlego, na orla da plantação, lançando‑se a seguir como um louco nos terrenos pantanosos e descobertos, sulcados por inúmeros pequenos canais de águas estagnadas. Tinha os olhos injectados de sangue e espuma nos lábios, mas continuava a correr como se tivesse asas nos pés, saltando todos os obstáculos que lhe impediam o caminho, enterrando‑se nos pântanos, mergulhando nos charcos ou nos canais, obcecado por uma única idéia: colocar entre si e os seus perseguidores o maior espaço possível.
Quanto terá corrido, não o pôde saber. Quando se deteve, encontrava‑se a cerca de duzentos passos dum soberbo pagode, que se erguia isolado sobre a margem dum amplo lago rodeado de colossais ruínas.
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Capítulo 5
A “virgem do pagode”
Aquele pagode, no mais puro estilo indiano, era o mais belo que Tremal‑Naik vira alguma vez nas Sunderbunds. Construído totalmente em granito cinzento, tinha uma altura de mais de dezoito metros, uma base que mediria cerca de dois terços da altura, e era contornado por estupendas colunas esculpidas com aquela ousadia que distingue a raça indiana.
À medida que subia, o pagode ia estreitando pouco a pouco, até terminar numa espécie de cúpula, a que se sobrepunha uma gigantesca bola de metal com uma ponta bastante aguda, que sustentava a misteriosa serpente com cabeça de mulher.
Nos ângulos do pagode viam‑se o trimúrti indiano, figurado por três cabeças sobre um só corpo, sustentado por três pernas, e, aqui e ali uma multidão de esculturas estranhas, curiosas, representando muitas figuras da história sagrada dos indianos, Brama, Xiva, Vixnu, Parvati, a sinistra deusa da morte, sentada sobre um leão, Darma‑Ragia, o plutão dos indianos, e muitas outras divindades, bem como um grande número de monstros horríveis e cabeças de elefante com as trombas estendidas.
Como dissemos, Tremal‑Naik parara de repente, surpreendido por se encontrar diante dum pagode, quando julgava encontrar a selva.
“Um pagode!”, exclamara. “Estou perdido!”
Olhou rapidamente à sua volta. Encontrava‑se numa espécie de clareira com mais de meia milha de extensão, desprovida de moitas e bambus.
“Estou perdido!”, repetiu ele, irado. “Se não encontro um esconderijo, dentro de cinco minutos chovem‑me em cima aqueles homens terríveis e estrangulam‑me.”
Por instantes, pensou em voltar para trás e alcançar de novo a selva, para se esconder; mas tinha mais de oitocentos metros a percorrer, isto é, o tempo suficiente para que os seus perseguidores o descobrissem. Pensou nas ruínas que contornavam o lago, mas não apresentavam esconderijos seguros.
“E se subisse lá para cima?”, murmurou ele, olhando para o cimo do pagode. “E porque não?”
Um homem como ele, habituado a toda a espécie de exercícios e que possuía uma força hercúlea e uma agilidade extraordinária, que faria inveja a um macaco, era capaz de subir até à cúpula, agarrando‑se às colunatas e às esculturas, que se ligavam entre si, de modo a formar uma bizarra e escarpada escadaria.
Lançou‑se em direcção ao pagode, depois de ter desarmado a carabina e de a ter posto às costas; ficou por instantes à escuta, e, tranqüilizado pelo profundo silêncio que ali reinava, empreendeu a ousada escalada.
Com uma rapidez surpreendente, subiu para uma coluna e dali saltou para as paredes do templo, agarrando‑se às pernas duma divindade, içando‑se sobre os seus corpos, pousando os pés sobre as suas cabeças, segurando‑se às trombas dos elefantes e aos chifres dos bois do deus Xiva.
Coisa estranha, incompreensível, misteriosa: à medida que subia, sentia o coração bater‑lhe, apressado, e os membros ganharem uma força extraordinária. Sentia‑se como que atraído por uma força irresistível para o cimo do pagode, e, ao contacto com aquelas pedras frias, experimentava sensações desconhecidas e inexplicáveis.
Seriam duas horas da manhã quando, depois de ter executado vinte manobras aéreas que fariam gelar o sangue nas veias a um ginasta e de ter corrido outras tantas vezes o perigo de se estatelar cá em baixo e partir a cabeça, chegou à cúpula. Com um último impulso, agarrou‑se à gigantesca bola de metal, coroada pela ponta que sustentava a serpente com cabeça de mulher.
Com surpresa sua, encontrou‑se a ondular por cima duma larga abertura, profunda e escura como um poço, atravessada por uma barra de bronze, em que conseguiu apoiar os pés.
“Onde estou?”, perguntou de si para si. “Este poço deve levar, certamente, ao interior do pagode.”
Abandonou a grande bola e agarrou‑se à barra, olhando para baixo, mas não viu senão trevas; apurou o ouvido, mas, abaixo dele, reinava o mais profundo silêncio, sinal evidente de que ninguém se encontrava no pagode. Uma coisa que o impressionou foi uma corda bastante grossa, formada por uma substância vegetal luzidia e muito flexível, presa à barra e que desaparecia lá em baixo, no fundo da abertura. Agarrou‑a e, reunindo as suas forças, puxou‑a para si; apercebeu‑se de que, na extremidade, estava um corpo um tanto pesado, o qual, com a tracção, ondulou, retinindo. “Deve ser uma lâmpada”, pensou Tremal‑Naik. De repente, bateu com a mão na testa. “Oh! Já me lembro!”, exclamou ele, vivamente emocionado. “Sim. Aqueles dois homens falavam dum pagode... duma ‘virgem’ que vela... Santo Vixnu, dar‑se‑á o caso...”
Deteve‑se e levou ambas as mãos ao coração, que batia com extraordinária veemência. Experimentava então uma emoção análoga àquela que sentia nas tardes em que se encontrava diante da estranha visão.
Num abrir e fechar de olhos, agarrou‑se àquela corda e pôs‑se a descer nas trevas, embora ignorasse onde iria acabar e aquilo que o esperava em baixo. Poucos minutos depois, os seus pés batiam num objecto arredondado, que desferiu um som metálico várias vezes repetido pelos ecos do templo.
Estava para se curvar e ver o que era, quando um som semelhante ao ranger duma porta que gira sobre os gonzos chegou aos seus ouvidos. Olhoupara baixo e pareceu‑lhe descobrir, entre as trevas, uma sombra que se movia, mas sem fazer qualquer barulho.
“Quem será?”, perguntou para si próprio, arrepiado.
Com uma das mãos, tirou a pistola e empunhou‑a, decidido a vender cara a vida, se fosse descoberto. E esperou, imóvel como uma estátua de granito.
Um profundo suspiro chegou até ele; aquele suspiro impressionou‑o de um modo novo, misterioso. Foi como se lhe tivessem vibrado uma punhalada no coração.
“Estou louco ou enfeitiçado”, murmurou ele.
A sombra parara diante duma massa negra e enorme que se encontrava justamente por debaixo da corda.
“Eis‑me aqui, horrível divindade!”, exclamou uma voz de mulher que fez estremecer Tremal‑Naik até ao fundo da alma.
No auge da surpresa, Tremal‑Naik ouviu deitar para o chão uma matéria líquida e sentiu espalhar‑se no ar um perfume suave.
“Monstruosa gente”, pensou ele. “E, no entanto, aquela sombra tem uma voz doce como as notas do sanguy... É estranha! Estou a tremer como se tivesse febre. Por quê?”
“Odeio‑te”, exclamou a mesma voz, com profunda amargura. “Odeio‑te, aterradora divindade, que me condenaste a eterno martírio, depois de me teres destruído tudo o que tinha de mais caro na terra. Assassinos! Malditos sejais nesta vida e na outra!”
Uma onda de pranto seguiu a maldição que aquele misterioso ser lançava sobre aqueles homens a quem chamara assassinos. Pela segunda vez, Tremal‑Naik tremeu da cabeça aos pés e ele, o homem inacessível, ele, o selvagem filho da floresta, ele, o caçador de serpentes, pela primeira vez sentiu‑se comovido.
Por instantes, veio‑lhe a idéia de se deixar cair no vácuo, mas a desconfiança deteve‑o. Aliás, era tarde demais, pois a sombra tinha‑se afastado, desaparecendo nas trevas, e pouco depois ouviu o ranger da porta que se fechava.
“Mas não serei então capaz de desvendar este mistério?”, murmurou Tremal‑Naik, quase com raiva. “Quem são estes monstros que têm necessidade de vítimas? Quem é esta horrível divindade? Quem é esta mulher que à meia‑noite, à hora dos delitos, dos fantasmas, das vinganças, vem aqui amaldiçoar? Quem é este ser que, enquanto os outros estrangulam, chora? Que, enquanto os outros me fazem arrepios, me comove? Que, enquanto os outros têm a voz sombria, tem a voz doce, suave como uma música celeste? Este ser, esta mulher, eu quero vê‑la, quero falar‑lhe, e tudo se esclarecerá. Não sei, mas uma voz interior me diz que esta mulher, eu já a vi outras vezes, já me fez palpitar o coração, esta mulher é...”
Deteve‑se, ofegante, quase aterrado. Uma chama lhe subiu ao rosto e inundou‑o de suor.
“E se fosse a minha visão!”, exclamou, com voz trémula de emoção. “Quando marinhava pelo templo, eu estava comovido quando desci cá abaixo, eu tremia. E se fosse verdade?... desçamos”. 	
Deixou‑se cair e pousou os pés sobre um objecto duro e áspero, que emitiu aquele som particular dos corpos metálicos, especialmente do bronze.
Apercebeu‑se de que estava em cima da massa negra diante da qual a mulher tinha derramado o perfume. Tinha amaldiçoado, tinha chorado.
“Que é isto?”, murmurou ele.
Inclinou‑se, apoiou as mãos sobre aquela massa de bronze e deixou‑se escorregar para baixo, até tocar o solo. Os seus pés escorregaram sobre uma superfície lisa e úmida.
“Foi aqui que ela espalhou o perfume”, disse ele, para consigo. “O odor que me chega às narinas o confirma. Amanhã saberei onde me encontro e com quem tenho de me haver.”
Deu seis ou sete passos, cambaleando nas trevas, e enrolou‑se sobre si próprio, com as pistolas na mão, esperando que um raio de luz iluminasse aquele misterioso templo.
Passaram algumas horas sem que qualquer rumor perturbasse o fúnebre silêncio que reinava naquele lugar; lá em cima, na abertura, o céu começava a clarear e os astros a empalidecer aos primeiros alvores da madrugada. Tremal‑Naik, imóvel, com os olhos bem abertos e os ouvidos à escuta, continuava a esperar, com aquela paciência que é própria das raças asiáticas.
Por volta das quatro horas, o sol apareceu improvisamente no horizonte, iluminando a grande bola de bronze que se erguia no cimo do pagode e da ampla abertura desceu um raio de luz. Tremal‑Naik pôs‑se em pé, surpreendido, estonteado pelo espectáculo que se lhe oferecia à vista.
Encontrava‑se numa espécie de imensa cúpula, cujas paredes estavam bizarramente pintadas. As primeiras dez encarnações de Vixnu, deus conservador dos indianos, que tem a sua residência no Vaicondu, ou mar de leite da serpente Adissescien, estavam pintadas a toda a volta, rodeadas pelos principais semideuses venerados pelos indianos, protectores dos oito ângulos do mundo, habitantes do Sorgon, isto é, do paraíso daqueles que não têm méritos suficientes para irem para o Kailesson, ou paraíso de Xiva. A meio da cúpula estavam esculpidos os gigantescos génios malfazejos, que, divididos em cinco tribos, erram pelo mundo, do qual não podem sair, nem merecer a felicidade prometida aos homens senão depois de terem recolhido um grande número de orações.
No meio do pagode erguia‑se uma grande estátua de bronze, representando uma mulher com quatro braços, um dos quais brandia uma comprida adaga e outro segurava uma cabeça.
Um grande colar de caveiras descia‑lhe até aos pés e um cinto de mãos e braços decepados cingia‑lhe a cintura.
O rosto daquela horrível mulher era tatuado e as orelhas adornadas com argolas; a língua, de um vermelho cor de sangue, saía‑lhe um bom palmo para fora dos lábios, onde se espelhava um sorriso feroz; os pulsos ostentavam largas pulseiras e os pés pousavam sobre um gigante coberto de feridas.
Aquela divindade ‑ era o que saltava de imediato aos olhos ‑, transportada pela embriaguez do sangue, dançava sobre o corpo duma vítima.
Um outro objecto estranho era uma pequena pia de mármore branco, encastoada nas brilhantes pedras do pavimento. Estava cheia de água cristalina e dentro dela via‑se nadar um pequeno peixe muito belo, amarelo‑ouro, que se parecia muito com um mangu do Ganges.
Tremal‑Naik não tinha visto antes nada de semelhante.
Parara diante da monstruosa divindade e contemplava‑a com um misto de espanto e de medo.
Quem seria aquela sinistra figura contornada de caveiras e ornada de mãos e braços decepados? Que significava aquele peixinho dourado a nadar na pia branca? Que relação tinham aqueles dois estranhos símbolos com os homens ferozes que perseguiam e estrangulavam os seus semelhantes?
“Estarei a sonhar?”, murmurou Tremal‑Naik, esfregando várias vezes os olhos. “Não percebo nada.”
Ainda não tinha acabado, quando um leve rumor chegou aos seus ouvidos. Voltou‑se, com a carabina na mão, e recuou imediatamente até à monstruosa divindade, sufocando, com grande dificuldade, um grito de espanto e de alegria.
Diante dele, no limiar duma porta dourada, estava, de pé, uma menina de maravilhosa beleza, com o mais angustioso terror estampado no rosto.
Devia ter os seus catorze anos. Era de estatura graciosa e de formas soberbamente elegantes
Tinha as linhas duma pureza antiga, animadas pela cintilante expressão da mulher anglo‑indiana.
A pele era cor‑de‑rosa, duma suavidade incomparável; os olhos grandes, negros e cintilantes como diamantes; um nariz direito, que não tinha nada de indiano; lábios finos, cor de coral, fechados num sorriso melancólico, que deixava ver duas filas de dentes de extraordinária brancura; uma opulenta cabeleira castanho-escura, separada na fronte por uma fiada de grossas pérolas, era apanhada em nós e entrançada com flores de cânhamo de suave perfume.
Como dissemos, Tremal‑Naik recuara até à estátua de bronze.
“Ada! Ada! A aparição da selva!”, exclamou ele, com voz sufocada.
Não soube dizer mais nada e para ali ficou, mudo, ofegante, extasiado, a olhar aquela soberba criatura, que continuava a fixá‑lo com profundo terror.
De súbito, a menina deu um passo em frente, deixando cair para o chão o amplo sari de seda, orlado por uma larga faixa azul, estampada com desenhos complicados, que acobria como se fosse uma capa.
Um feixe de luz ofuscante a envolveu, tirando‑a da vista do caçador de serpentes, que foi obrigado a fechar os olhos.
Aquela menina estava literalmente coberta de ouro e pedras preciosas de inestimável valor. Uma couraça de ouro, marchetada dos mais belos diamantes de golconda e de guzerate, ornada pela misteriosa serpente com cabeça de mulher, cobria-lhe todo o seio e desaparecia num largo xale de caxemira, bordado a prata, que lhe cingia as ilhargas; pendiam‑lhe do pescoço vários colares de pérolas e de diamantes, grossos como nozes; várias pulseiras, também marchetadas de pedras preciosas, ornavam‑lhe os desnudados braços, e as calças largas, de seda branca, eram apertadas nos tornozelos, nus e pequeninos, por anéis de coral do mais belo vermelho. Um raio de sol, entrando por uma estreita abertura, batendo naquela profusão de ouro e de jóias, tinha, por assim dizer, imergido a jovenzinha num mar de luz de ofuscante fulgor.
A visão!... A visão!... ‑ repetiu pela segunda vez Tremal‑Naik, estendendo os braços para ela. ‑ Oh, como é bela!
A jovem olhou à sua volta, assustada, e levou um dedo aos lábios, como convidando-o a calar‑se, e depois caminhou a direito para ele.
‑ Desgraçado! ‑ disse ela, assustada. ‑ que vieste fazer aqui? Que loucura te trouxe a este horrível lugar?
O caçador de serpentes, sem o querer, caíra de joelhos, estendendo as mãos para ela, que recuou, ainda mais assustada.
‑ Não me toques! ‑ disse ela, com um fio de voz.
Tremal‑Naik soltara um suspiro:
‑ És bela! ‑ exclamou ele, com paixão.
‑ Cala‑te, Tremal‑Naik!
‑ És bela! ‑ repetiu o selvagem filho da floresta.
Ela pós um dedo nos lábios.
‑ Se não me queres perder, não faças barulho ‑ disse a jovenzinha, censurando‑o docemente. ‑ tu ainda não sabes os tremendos perigos que nos ameaçam.
‑ Eu sou Tremal‑Naik! Quem é esse homem que te ameaça? Dize‑mo e eu, o caçador de serpentes, te juro que, amanhã, esse inimigo terá desaparecido da terra!
‑ Não fales assim, Tremal‑Naik.
‑ Por quê? Ouve, menina: nunca na minha selva, apenas povoada por tigres, vira um rosto de mulher. Quando te vi pela primeira vez, aos últimos raios do sol‑poente, lá, atrás da moita de mussenda, senti‑me tremer todo. Pareceu‑me que tu fosses uma divindade descida do céu e adorei‑te.
- Cala‑te, cala-te!‑ repetiu, com voz trémula, a menina, escondendo o rosto entre as mãos.
‑ Não posso calar‑me, errante flor da selva! ‑ exclamou Tremal‑Naik, com maior paixão. ‑ quando tu desapareceste, pareceu‑me que algo se me desprendia do coração. Fiquei como embriagado, diante dos meus olhos bailava a tua visão, o sangue corria‑me com mais rapidez nas veias e línguas de fogo subiam‑me ao rosto e chegavam até ao meu cérebro. Dir‑se‑ia que me tinhas enfeitiçado!
‑ Tremal‑Naik! ‑ murmurou ansiosamente a menina.
‑ Aquela noite não dormi ‑ prosseguiu o caçador de serpentes. ‑ tinha febre e ardia no desejo de voltar a ver‑te. Por quê? Ignorava‑o, nem sabia tão‑pouco como isso poderia acontecer. Era a primeira vez na minha vida que experimentava uma emoção assim.
“Passaram quinze dias. Todas as tardes, ao pôr do sol, te via atrás da mussenda e sentia‑me feliz diante de ti; parecia‑me que era transportado para um outro mundo, parecia‑me que me transformara num outro homem. Tu não me falavas, mas olhavas‑me, e, para mim, até isso era demasiado; aqueles teus olhares eram eloqüentes e diziam‑me que tu...”
Deteve‑se, ofegante, olhando para a menina, que tinha o rosto escondido entre as mãos.
‑ Ah! ‑ exclamou ele, dolorosamente. ‑ então não queres que eu fale.
A menina estremeceu e fixou‑o, com os olhos úmidos.
‑ Para quê falar ‑ balbuciou ela ‑, quando entre nós existe um abismo? Porque vieste aqui, desgraçado, a reacender no meu coração uma esperança vã? Então não sabes que este lugar é maldito, e proibido, sobretudo, àquele que eu amo?
‑ Que eu amo? ‑ exclamou Tremal‑Naik, cheio de alegria. ‑ repete, repete essa palavra, errante flor da selva! É então verdade que tu me amas? É então verdade que tu vinhas todas as tardes para trás da mussenda porque me amavas?
‑ Não me faças morrer, Tremal‑Naik ‑ exclamou a menina, com angústia.
‑ Morrer! Por quê? Que perigo te ameaça? Não estou aqui eu para te defender? Que importa se este lugar é maldito? Que importa se entre nós existe um abismo? Eu sou forte, tão forte que, por ti, faria cair este templo, partiria em pedaços aquele horrível monstro diante do qual derramas perfumes.
‑ Como, tu sabes isso? Quem to disse?
‑ Vi‑te esta noite.
‑ Então estavas aqui esta noite?
‑ Sim, estava aqui, ou, antes, lá em cima, agarrado àquela lâmpada, mesmo por cima da tua cabeça.
‑ Mas quem te trouxe a este templo?
‑ A sorte, ou, melhor, o laço dos homens que habitam esta terra maldita.
‑ Então eles viram-te?
‑ Deram‑me caça.
‑ Ah! Desgraçado, que estás perdido! ‑ exclamou a menina, com desespero.
Tremal‑Naik lançou‑se para ela.
‑ Mas, dize‑me, que mistério é este? ‑ perguntou ele, com furor que a custo dominava. ‑ por que tanto terror? Que quer dizer aquela monstruosa figura que precisa de perfumes? Que é aquele peixe dourado que nada naquela pia? Que significa a serpente com cabeça de mulher que tens impressa na couraça? Quem são estes homens que estrangulam os seus semelhantes e que vivem debaixo da terra? Quero sabê‑lo, Ada, quero sabê‑lo!
‑ Não mo perguntes, Tremal‑Naik.
‑ Por quê?
‑ Ah! Se tu soubesses que terrível destino pesa sobre mim!
‑ Mas eu sou forte.
‑ Que vale a força contra estes homens?
‑ Far‑lhes‑ei guerra sem tréguas.
‑ Partir‑te‑ão como quem parte um bambu novo. Não desafiam eles a força da Inglaterra? São fortes, Tremal‑Naik, e tremendos! Nada lhes resiste: nem as armadas, nem os exércitos. Tudo tomba diante do seu sopro venenoso.
‑ Mas quem são eles, então?
‑ Não posso dizê-lo.
‑ E se eu to ordenasse?
‑ Recusaria.
‑ Quer dizer que tu... desconfias de mim! ‑ exclamou Tremal‑Naik, com raiva.
‑ Tremal‑Naik! Tremal‑Naik! ‑ murmurou a infeliz jovem, com voz angustiada
O caçador de serpentes cruzou os braços.
‑ Tremal‑Naik ‑ prosseguiu a menina ‑, pesa sobre mim uma condenação, uma condenação terrível e espantosa, que só acabará com a minha morte. Amei-te, valente filho da selva, continuo a amar-te, mas...
‑ Ah! Tu amas‑me! ‑ exclamou o caçador de serpentes.
‑ Sim, amo-te, Tremal‑Naik.
‑ Jura‑o sobre aquele monstro que está junto de nós.
‑ Juro‑o! ‑ disse a jovem, estendendo a mão para a estátua de bronze.
‑ Jura que serás minha esposa!
Um espasmo descompós os traços da jovenzinha.
‑ Tremal‑Naik ‑ murmurou ela, com voz sombria ‑, serei tua esposa, se isso for possível!
‑ Ah! Tenho talvez um rival?
- Não, nem haverá ninguém tão audaz que fixe em mim os seus olhos. Pertenço à morte.
Tremal‑Naik tinha dado dois passos para trás, com as mãos agarradas à cabeça.
‑ À morte! ‑ exclamou.
- Sim, Tremal‑Naik, pertenço à morte. O dia em que um homem puser em mim as suas mãos, o laço dos vingadores dará cabo da minha vida.
‑ Mas estarei a sonhar?
‑ Não, estás acordado e aquela que te fala é a mulher que te ama.
‑ Ah! Que tremendo mistério!
‑ Sim, tremendo mistério, Tremal‑Naik. Entre nós existe um abismo que ninguém será capaz de encher... Fatalidade! Mas que fiz eu para ser tão desgraçada? Que crime cometi para ser maldita?
Um pranto sufocado abafou‑lhe a voz e o rosto banhou‑se‑lhe de lágrimas. Tremal‑Naik emitiu um rugido surdo e cerrou os punhos com tal força que fez estalar os ossos.
‑ Que posso fazer por ti? ‑ perguntou ele, comovido até ao fundo da alma. ‑ essas tuas lágrimas doem‑me, errante flor da selva. Diz‑me o que devo fazer, ordena e eu obedecer-te‑ei melhor do que um escravo. Queres que eu te tire deste lugar? Fá‑lo‑ei, nem que tenha de perder a vida ao tentar fazê‑lo.
‑ Oh! Não, não! ‑ exclamou a jovenzinha assustada. ‑ seria a morte para nós dois.
‑ Queres que me vá embora daqui? Ouve, eu

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