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71 Capítulo II prInCípIos penaIs Sumário • 1. Introdução – 2. Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa. Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege: 2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação); 2.2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal; 2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal – 3. Princípio da proporcionalidade (em sentido amplo): 3.1. Princípio da necessidade (nullum crimen, nulla poena sine necessitate); 3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade); 3.3. Princípio da proporcionalidade das penas (proporcionalidade em sentido estrito); 3.4. O princípio ne bis in idem; 3.5. Princípio da insignificância – 4. Princípio da humanidade – 5. Princípio da responsabilidade pessoal ou de culpabilidade – 6. Princípio de lesividade (ou ofensividade) – 7. Princípio da igualdade (ou isonomia) – 8. Direito e Interpretação: 5.1. Introdução; 8.2. Interpretar é compreender e argumentar; 8.3. O chamado círculo hermenêutico; 8.4. Limites da interpretação; 8.5. Interpretação e garantismo; 8.6. Prevalência da Constituição; 8.7. Existe a resposta juridicamente correta?; 8.8. Direito e analogia; 8.9. Analogia e interpretação analógica? – 9. Conflito aparente de normas: 9.1. Introdução; 9.2. Princípio da especialidade; 9.3. Princípio da subsidiariedade; 9.4. Princípio da consunção ou absorção: 9.4.1. Crime complexo ou composto; 9.4.2. Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito. 9.5. Primazia do princípio da especialidade. 1. INTRODUÇÃO A Constituição é o texto jurídico fundamental, e, por conseguinte, o texto penal de maior relevância, seja porque é hierarquicamente superior a todos os demais textos legais, seja porque dispõe sobre os princípios, limites e fins do Estado e, portanto, sobre os princípios, limites e fins do próprio direito penal. E os limites e fins do direito penal são, em última análise, os limites e fins do próprio Estado Constitucional de Direito. O direito penal é, pois, um capítulo da Constituição, um seu desdobramento. Justamente por isso, a interpretação dos conceitos e institutos penais deve partir necessariamente da Constituição, visto que ela é o alfa e o ômega, o come- ço e fim do ordenamento jurídico, e que, por isso, estabelece os pressupostos de criação, vigência e execução do resto do ordenamento jurídico, convertendo-se em elemento de unidade.118 Os princípios penais são, pois, princípios constitucionais. A maior parte dos princípios consta explicitamente do texto constitucional, a exemplo dos princípios de legalidade, irretroatividade e individualização da pena. Mas outros há – im- plícitos – que resultam da interpretação dos valores que a própria Constituição consagra, como é o caso dos princípios de proporcionalidade e lesividade. 118. Konrad Hesse. Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 17. 72 Paulo Queiroz E os princípios penais representam limitações importantes ao poder de punir, razão pela qual constituem autênticas garantias (políticas) individuais oponíveis ao próprio exercício do poder punitivo estatal. A Constituição pretende, portan- to, proteger o indivíduo duplamente, isto é, por meio do direito penal e contra o direito penal.119 E porque nasceram historicamente e permanecem constitucionalmente (art. 5º) como autênticas garantias individuais, não se pode perder de vista que estão destinados, em princípio, à proteção do cidadão contra possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias, e não para pretextar atuações abusivas em nome da segu- rança pública ou semelhante. Exatamente por isso é que a lei não pode retroagir para prejudicar o réu, embora possa retroagir para favorecê-lo. Mas, se, por um lado, os princípios constituem limites à intervenção do Estado (função de garantia), por outro, funcionam como critério de justificação da inter- venção penal (função legitimadora), razão pela qual tanto servem à legitimação quanto à deslegitimação do sistema penal. Não surpreende, assim, que acusação e defesa não raro argumentem a partir de um mesmo princípio e formulem pretensões antitéticas, inclusive, a demonstrar que o conteúdo essencial de um princípio não é dado pelo próprio princípio, mas pelos sujeitos que interpretam (caráter retórico). Note-se, mais, que a Constituição, além de consagrar extensa lista de di- reitos e garantias individuais, prevê também mandados de criminalização e/ou penalização (art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; 7º, X; 29-A, §§ 2º e 3º; 225, § 4º) e impede a punição de certas condutas (art. 53), isto é, estabelece mandados de não criminalização ou não penalização etc.120 2. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E IRRETROATIVIDADE DA NOR- MA PENAL MAIS SEVERA. NULLUM CRIMEN, NULLA POENA SINE PRAEVIA LEGE A atribuição exclusiva do legislador para definir crimes e cominar penas constitui desde a Revolução Francesa a pedra angular do direito penal moderno,121 sendo a ideia de submeter a intervenção do Estado ao império da lei inerente ao conceito mesmo de Estado de Direito. Que a atuação do Estado seja orientada 119. Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Ed. Vega, 1993, p. 28. 120. Vide Luciano Feldens. A Constituição Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005; do mesmo autor: Direitos fundamentais e direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2008. E Luiz Carlos dos Santos Gonçalves. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007: 121. Gómez de la Torre e outros, Lecciones, cit., p. 36. 73 Capítulo II – prInCípIos penaIs por regras jurídicas que expressem a vontade popular é condição de legitimação democrática por meio do poder competente, o Poder Legislativo. E particularmente no âmbito jurídico-penal, em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade, com maior razão impõe-se o respeito ao princípio da legalidade. Semelhante princípio atende, pois, a uma necessidade de segurança jurídica e de controle do exercício do poder punitivo, de modo a coibir possíveis abusos à liberdade individual por parte do titular desse poder (o Estado). Consiste, portanto, constitucionalmente, numa poderosa garantia política para o cidadão, expressiva do império da lei, da supremacia do Poder Legislativo – e da soberania popular – sobre os outros poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais.122 Do aludido princípio, cuida o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, ao dispor que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Tal princípio representa a um tempo uma limitação formal e material, como dito antes.123 Formalmente, significa que só por lei, em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, o Estado poderá legislar sobre matéria penal, definindo as infrações penais e cominando as respectivas sanções; são inconstitucionais, portanto, atos legislativos que, sem revestirem o status de lei, pretendam definir crimes ou cominar penas. Assim, por exemplo, medida provisória (CF, art. 62, § 1º, I, b), mesmo porque, em virtude de seu caráter provisório e a possibilidade de não conversão em lei, inclusive por rejeição pelo Congresso Nacional, é incompatível com o postulado de segurança jurídica que o princípio encerra. E dificilmente se poderia compatibilizar os pressupostos de relevância e urgência da medida com pretensões criminalizantes, sobretudo à vista dos constrangimentos que podem ocorrer no curto espaço de sua vigência. Mas convém ressalvar que outros atos legislativos podem eventualmente dispor sobre matéria penal sempre que a hipótese não seja a de definir crimes nem a de cominar penas ou aumentar o rigor punitivo,e sim a de conceder benefícios ou similar, como ocorre com o indulto ou a comutação de penas, que competem ao Presidente da República (CF, art. 84, XII), que se utiliza de simples decreto para tanto. Também por isso, nada impede que outra norma (v.g., medida provisória) possa dispor sobre matéria penal, desde que favoravelmente ao réu.124 122. García-Pablos. Derecho penal, cit., p. 234. 123. De acordo com Jescheck, a lei penal, em sua aplicação, não só tem de satisfazer os princípios jurídi- cos formais, senão também, em seu conteúdo, há de responder às exigências da justiça, encarnadas no princípio material do Estado de Direito. Tratado, cit., p. 112. 124. No sentido do texto, Luiz Flávio Gomes. Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídi- ca. S. Paulo: Premier, 2008, p. 42. 74 Paulo Queiroz Apesar de a Constituição se referir ao crime e à pena, tal é também aplicável às contravenções penais, tanto quanto às medidas de segurança. Enfim, o princípio é aplicável a toda e qualquer intervenção penal que implique privação ou restrição a direito ou liberdade do agente, medidas de segurança inclusive, que são um misto de prisão e hospital tão ou mais lesiva à liberdade quanto a própria prisão. Compete privativamente à União legislar sobre direito penal (CF, art. 22, I), mas excepcionalmente os Estados-membros podem também fazê-lo quanto a questões específicas (v.g., trânsito local), desde que haja autorização por lei com- plementar para tanto (CF, art. 22, parágrafo único). No que tange ao direito interna- cional, quando se tratar das relações do indivíduo com organismos internacionais (v.g., Tribunal Penal Internacional – TPI), os tratados e convenções internacionais constituem as fontes diretas do respectivo direito penal, tal como ocorreu com o Tratado de Roma, que definiu os crimes de guerra, contra a humanidade etc., sujeitos à competência do TPI, criado por aquele tratado. Mas essas normas de direito penal internacional não são aplicáveis às relações entre os indivíduos e o Estado brasileiro, que ficam sujeitos à justiça brasileira.125 Por fim, temos que o princípio da legalidade compreende: 1) o princípio da reserva legal: só a lei pode em princípio dispor sobre matéria penal; 2) taxati- vidade: a lei deve descrever com o máximo de precisão possível os tipos penais incriminadores; 3) irretroatividade da lei mais severa: lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu. E há quem, a exemplo de Ferrajoli, considere que o princípio em sentido es- trito compreende todas as demais garantias penais e processuais como condições necessárias à legalidade penal: proporcionalidade, devido processo legal etc.126 E países há, como a Espanha, que exigem lei complementar para definir crimes e cominar penas. 2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação) Não basta que a lei defina o crime e comine a respectiva pena, porque o Estado sempre poderá iludir semelhante garantia de legalidade de seus atos por meio da edição de leis penais de conteúdo excessivamente impreciso ou vago, como ocorreu na Alemanha nazista, em que determinada lei previa a punição de “quem atente contra a ordem jurídica ou atue contra o interesse das Forças Aliadas”,127 bem assim diversas das disposições da Lei de Crimes Ambientais (nº 125. Luiz Flávio Gomes, idem, pp. 38-39. 126. Derecho y razón, cit., p. 95. 127. Roxin-Arzt-Tiedmann. Introducción al derecho penal y al proceso penal, trad. Arroyo Zapatero e Gomez Colomer. Barcelona: Ed. Ariel, 1989. 75 Capítulo II – prInCípIos penaIs 9.605/98),128 por exemplo. Por isso, o princípio implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo na elaboração das leis que formule tipos penais com a máxima precisão de seus elementos e ao Judiciário que os interprete adequadamente. Porque a máxima taxatividade possível e de real vinculação do juiz à lei é, como diz Sílva Sánchez, um objetivo irrenunciável para o direito penal de um Estado Democrático de Direito, que implica a máxima precisão das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens quando das suas decisões, motivo pelo qual se trata de um princípio de legitimação democrática das intervenções penais como garantia da liberdade dos cidadãos derivada do princípio da divisão de poderes.129 2.2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal Antes da lei, não existe violação à lei. De acordo com o princípio da anterioridade, a lei penal deve necessaria- mente preceder às infrações penais nela previstas como condição de validade, pois do contrário a norma acabaria por incidir sobre condutas que até então não constituíam ilícito penal ou que eram punidas menos gravemente. Justamente por isso, a nova lei só poderá ser aplicada a fatos futuros e não pretéritos, exceto se favorecer o réu. Em consequência, como regra geral vigora a irretroatividade da lei penal, não podendo a nova lei alcançar fatos anteriores à sua vigência. Mas, excepcional- mente, a norma atuará retroativamente, alcançando, por conseguinte, situações anteriores à sua entrada em vigor, sempre que for mais benéfica para o infrator: ou porque lhe é mais branda (lex mitior) ou porque descriminaliza a conduta (abolitio criminis). Justifica-se a exceção em favor da liberdade, por não implicar ofensa à pretensão garantidora que o princípio encerra. Daí dispor a Constituição (art. 5º, XL) que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. 128. Escreve Juarez Tavares que algumas fórmulas sintéticas correntes nas leis penais aceitas acritica- mente pela doutrina importam violação do princípio da legalidade, a exemplo do crime de aborto, cuja conduta é descrita como “provocar aborto” (arts. 124, 125 e 126), sem nada dizer sobre a inter- rupção da gravidez ou da morte do feto; a injúria, que se resume em “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou decoro” (art. 140), sem referência ao que constitua, afinal, essa atividade de injuriar, o mesmo ocorrendo, frequentemente, nos crimes culposos, cujo tipo, salvo raras exceções (p. ex., na receptação culposa, art. 180, § 1º), não vem descrito expressamente na lei penal.Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 187. 129. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: Bosch, 1992, pp. 256-257. 76 Paulo Queiroz 2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal As assim chamadas leis penais em branco – expressão que procede de Karl Binding – são normas penais incriminadoras que, embora cominem a sanção penal respectiva, seu preceito, por ser incompleto, depende de complementação (expressa ou tácita) por outra norma, geralmente de nível inferior (decreto, regu- lamento, portaria etc.), de modo a precisar-lhe o significado e conteúdo exatos; leis penais em branco são tipos penais estruturalmente incompletos, portanto.130 Exemplo disso são os casos de tráfico ilícito de droga e a omissão de notificação de doença (CP, art. 269), que remetem a complementação do seu significado a uma norma inferior, determinando quais são as drogas proibidas e quais são as doenças de notificação compulsória. Mas não se deve confundir tipos penais em branco com tipos penais abertos ou vagos, uma vez que são conceitos distintos, embora não sejam incompatíveis entre si.131 A norma que criminaliza o tráfico de droga (norma penal em branco), por exemplo, não só é completa quanto à descrição do tipo, por descrever seus elementos essenciais, como é exaustiva ao fazê-lo, referindo uma dezena de verbos que o constituem. E a distinção é relevante, pois do contrário praticamente quase nenhum tipo ficaria imune à crítica que se fará a seguir. Convém notar, aliás, que, em virtude da estrutura aberta da linguagem, jurídica inclusive, todos os tipos são mais ou menos abertos, mais ou menos incompletos;também por isso a classificação entre elementos objetivos, subjetivos e normativos do tipo deve ser adotada com reservas e criticamente; talvez até abandonada. De todo modo, só há autêntica lei penal em branco quando o tipo legal de crime, apesar de descrever a ação típica com seus elementos essenciais (objeti- vos, subjetivos ou normativos) e cominar a respectiva pena, remeter, expressa ou tacitamente, a complementação do preceito primário incriminador a uma norma de mesmo grau hierárquico (homogênea) ou de grau inferior (heterogênea). Há autores que restringem ainda mais esse conceito, entendendo que não se pode considerar como lei penal em branco aquelas normas que remetem a sua com- plementação a uma norma de mesmo nível hierárquico.132 130. Utilizo aqui a expressão em sentido estrito (Binding), e não em sentido amplo (Mezger), pois, do contrário, confundir-se-ão leis penais em branco com leis penais incompletas. Conceito ainda mais restrito dá-nos Rodriguez Mourullo, para quem, as leis penais em branco são sempre leis que re- metem, expressa ou tacitamente, a determinação concreta do preceito a uma autoridade distinta de nível inferior. Derecho penal, cit., pp. 87-89. 131. Parece fazer essa confusão Sídio Rosa de Mesquita Júnior, que se posiciona no sentido da constitu- cionalidade das leis penais em branco, argumentando, dentre outras coisas, que o reconhecimento da inconstitucionalidade acabaria por inviabilizar praticamente toda a legislação penal. Comentá- rios à lei antidrogas. São Paulo: Atlas, 2007. 132. Nesse sentido, Rodrigues Mourullo. Derecho Penal. Parte general. Madrid: Civitas, 1978. 77 Capítulo II – prInCípIos penaIs Exatamente por isso, não são leis penais em branco os tipos ditos abertos, em virtude da vagueza da descrição de seus termos (v.g., culposos), nem tampouco os que simplesmente recorrem a elementos normativos, como, por exemplo, o “sem licença ou autorização da autoridade competente”, ou o “em desacordo com a lei” etc., presentes em muitos tipos penais, inclusive em tipos penais em branco, como a lei de droga, a demonstrar que, apesar da distinção que se deve fazer, tais classificações não são incompatíveis entre si, podendo a lei penal ser simultaneamente em branco e aberta. Pois bem, questão das mais relevantes diz respeito à constitucionalidade das leis penais em branco. A doutrina em geral tem as leis penais em branco como constitucionais e compatíveis com o princípio da reserva legal, embora exija o atendimento de certos requisitos. Assim, por exemplo, Luzón Peña, para quem o recurso à téc- nica de remissão há de ser absolutamente excepcional por resultar estritamente necessário e imprescindível para completar a descrição típica da conduta.133 De modo semelhante, Cerezo Mir diz que essa técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de técnica legislativa e pelo caráter sempre mutável da matéria objeto da regulação, que exigiria uma revisão muito frequente das ações proibidas ou ordenadas, motivo pelo qual na lei penal em branco já deve estar contida a descrição do núcleo essencial da ação proibida ou ordenada.134 E Jescheck considera que, quando a norma que há de completar a lei penal em branco tiver caráter delegado, o legislador deve prever a cominação legal, bem como descrever com precisão o conteúdo, a finalidade e o alcance da autorização que o cidadão possa extrair já na lei mesma os pressupostos da punibilidade e a classe de pena, pois do contrário não se respeitaria o princípio da determina- ção legal do delito e da pena.135 Entre nós, são pela constitucionalidade Luiz Régis Prado,136 Guilherme de Souza Nucci137 e Pablo Alfen,138 entre outros. Defendem a inconstitucionalidade Rogério Greco, André Copetti, Zaffaroni/ Batista139 e Andrei Schmidt.140 133. Curso de derecho penal. Madrid: Ed. Universitas, 1996, pp. 146 e ss. 134. Curso de derecho penal español: introducción. Madrid: Tecnos, 1997, p. 156. 135. Tratado, cit., p. 98. 136. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 137. Código Penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 138. Leis Penais em branco e o direito penal do risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 139. Direito penal brasileiro I, pp. 205-206, para os quais “a lei penal em branco sempre foi lesiva ao princípio da legalidade formal e, além disso, abriu as portas para a analogia e para a aplicação re- troativa, motivos suficientes para considerá-la inconstitucional”. 140. Princípio da legalidade penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, pp. 150-156. 78 Paulo Queiroz Sobre o assunto, o Tribunal Constitucional espanhol (Sentença 127/1990, de 5 de julho) já teve ocasião de se pronunciar pela constitucionalidade das leis penais em branco, exigindo, porém, que “o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado em razão do bem jurídico protegido pela norma penal; que a lei, além de prever a pena, contenha o núcleo essencial da proibição e seja satisfeita a exigência de certeza, ou… se dê a suficiente concreção, para que a conduta consi- derada criminosa fique suficientemente precisa com o complemento indispensável da norma a que a lei penal faz remissão e resulte, desta forma, salvaguardada a função de garantia do tipo com possibilidade de conhecimento da atuação penal- mente cominada”. De acordo com esse entendimento, portanto, são necessários os seguintes requisitos: a) necessidade estrita da remissão; b) que a norma, embora incompleta, já preveja a sanção específica; c) que o preceito contenha o “núcleo essencial da proibição”. Temos que as leis penais em branco que remetem o complemento à norma inferior (normas penais em branco heterogêneas) são inconstitucionais, por im- plicarem violação aos princípios da reserva legal e divisão de poderes. Com efeito, tomando como exemplo o tráfico ilícito de drogas, tem-se que a lei brasileira atende aos requisitos exigidos pelo tribunal espanhol, uma vez que, ao descrever o núcleo essencial da conduta típica, criminaliza mais de uma dezena de verbos e comina a pena cabível. Além disso, pode-se dizer que o bem jurídico supostamente protegido – a saúde pública141 – justifica plenamente a remissão. Estariam assim satisfeitas as exigências daquela Corte constitucional. No entanto, quando a lei permite que o “núcleo essencial da proibição” seja completado por simples ato administrativo, é o Poder Executivo quem dirá, em última análise, o que constitui ou não tráfico ilícito de drogas; afinal é ele que, um tanto arbitrariamente, discriminará as drogas que devem constar do rol do núcleo essencial da proibição. Convirá saber então: quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilícito de entorpecentes? Parece claro que não é o Poder Legislativo, mas o Poder Execu- tivo, mais exatamente o Ministério da Saúde (ANVISA), que se utiliza de simples portaria para tanto, decretando, dentro do vastíssimo universo das drogas, as que devem ser consideradas ilícitas. Enfim, quanto ao assunto drogas ilícitas, quem legisla sobre matéria penal é, em última instância, o próprio Ministério da Saúde (Poder Executivo), mesmo porque a lei penal em branco era até então uma “alma errante em busca de um corpo” (Binding), e, portanto, carente de autoaplicação, 141. Vide Paulo Queiroz, Alexandre Bizzoto e Andréia Rodrigues. Comentários Críticos à Lei de Dro- gas. Rio: Lumen Juris, 2010. 79 Capítulo II – prInCípIos penaIs ante a manifesta imprecisão de seus termos e consequente necessidade de com- plementação. Até aí a lei penal era uma espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo. Por conseguinte, semelhante ato viola a um tempo o princípio da reserva legal, por tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal, criminalizando uma dada conduta, e o princípio da divisãode po- deres, já que é aquele poder, e não o Legislativo, que acaba legislando em tal caso. Mas isso não quer dizer que as leis penais em branco sejam sempre inconsti- tucionais; inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o status de lei em sentido formal, bem assim o preceito de norma que não contenha o núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena. O primeiro obstáculo poderá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional de- claratória das drogas ilícitas, ainda que meramente homologatória de proposta (portaria) do Ministério da Saúde, de sorte a converter uma norma penal em branco heterogênea em homogênea; o segundo, com a redação de tipos penais com precisão de seus elementos constitutivos, conforme o princípio da taxatividade. Em isso não ocorrendo, tolerar-se-á mais uma violação ao princípio da reserva legal, entre tantas violações que o silêncio ou conveniência vai perpetuando. Por fim, quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser ordina- riamente instável, o que a justificaria, temos que a instabilidade e a incerteza recomendam justamente o contrário: que não deveria ser objeto de criminalização ou que somente o fosse depois de exaustiva discussão sobre o assunto, motivo pelo qual, também por essa razão, o Poder Legislativo deveria se manifestar previamente sobre o assunto. 3. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE (EM SENTIDO AMPLO) O princípio da proporcionalidade,142 entendido como mandado de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental (Alexy), compreende os princípios (ou subprincípios) de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, já que a intervenção do poder público sobre a liberdade dos cidadãos só pode ser legítima na medida em que seja necessária, adequada e proporcional, 142. O princípio da proporcionalidade é hoje o mais importante princípio de todo o direito e, em parti- cular, do direito penal. Pode-se mesmo dizer que tudo em direito penal é uma questão de propor- cionalidade, desde a sua existência mesma, passando pelos conceitos de erro de tipo, de legítima defesa, de coação irresistível, incluindo toda a controvérsia em derredor da responsabilidade penal da pessoa jurídica, até chegar às causas de extinção de punibilidade (v.g., prescrição), pois o que se discute é, em última análise, em todos esses casos, a necessidade, adequação, proporcionalidade, enfim, da intervenção jurídico-penal.
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