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Uma história cultural do tempo

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Uma história cultural do tempo 
Peter Burke 
 
Em 1988 Stephen Hawking publicou sua hoje famosa "Uma Breve História do Tempo" 
(editada no Brasil pela Rocco), do ponto de vista de um físico teórico ou cosmólogo. 
No entanto essa não é a única história do tempo possível. Uma alternativa é escrever 
a história do tempo do ponto de vista de um historiador cultural ou social, examinando 
os sistemas de tempo de acordo com nossas construções sociais ou culturais. À 
primeira vista essa visão cultural do tempo pode parecer estranha, pois é difícil pensar 
nossa própria experiência de tempo ou percepção do tempo como algo que não seja 
natural, mas uma abordagem comparativa logo estabelece a variedade dessas 
experiências e percepções. A percepção do tempo de uma criança, por exemplo, é 
muito diferente da de um adulto. Lembro-me de minha mãe parando na rua para 
conversar com amigas durante o que para mim, com 4 anos, pareciam horas, 
enquanto pelo tempo do relógio a conversa provavelmente durava apenas 5 minutos. 
Também há diferenças nas noções de pontualidade em diferentes partes do mundo. 
Como inglês, eu tive de aprender a não me surpreender com que uma conferência na 
Itália, digamos, ou no Brasil comece pelo menos meia hora depois da hora impressa 
no programa, em vez de 5 minutos depois, o que me parece normal e "natural". O 
choque cultural é pelo menos tão grande no sentido inverso, como os ingleses 
percebem ao visitar uma cultura ainda mais rigidamente pontual, como a da 
Alemanha! Como Gilberto Freyre gostava de dizer, o mundo anglo-saxão era 
governado pelo "tempo mecânico", ao passo que os ibéricos viviam de acordo com o 
"tempo telúrico". 
 
Três grandes pontos 
Como se escreve uma história cultural do tempo? Há pelo menos três grandes pontos 
a abordar, assim como inúmeros outros menores. Um desses pontos se refere à 
cronologia, o segundo, à geografia, e o terceiro, à sociologia. O primeiro ponto é sobre 
uma grande tendência na história humana, a mudança de um tipo de experiência do 
tempo que pode ser descrita, para resumir e simplificar, como "ecológica", para outra 
que podemos chamar de "mecânica". A experiência tradicional do tempo depende 
intimamente do ambiente local, não apenas no sentido de que um "dia" pode se 
expandir no verão e se contrair no inverno, mas também porque o tempo é muitas 
vezes reconhecido em termos das tarefas necessárias para a sobrevivência. O 
antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard, estudando o povo nuer do Sudão, 
escreveu sobre seu "relógio do gado". Para os nueres, cujas vidas giravam em torno 
dos animais de que dependia sua sobrevivência, o ciclo de tarefas pastorais era 
central para a percepção do tempo, em nível de hora, dia, mês ou ano. Esse "tempo 
orientado por tarefas" já foi universal. No entanto a invenção e a gradual disseminação 
dos relógios mecânicos permitiram que o tempo fosse dividido em partes iguais, 
enquanto a iluminação artificial das ruas e casas, primeiro a gás e depois a 
eletricidade, libertou as atividades humanas da dependência do Sol e da Lua, ou pelo 
menos substituiu as restrições naturais pelas culturais. O segundo grande ponto a 
tratar é a geografia do tempo. Culturas diferentes têm maneiras muito diferentes de 
dividir e descrever o tempo. A idéia de que uma hora se divide em 60 minutos e 1 
minuto em 60 segundos é generalizada hoje, mas 7.000 anos atrás ela se limitava a 
um único povo do Oriente Médio, os sumérios. A semana de sete dias se disseminou a 
partir do antigo Israel ou possivelmente da Babilônia. Na década de 1930, Evans-
Pritchard encontrou os nueres se levantando ao nascer do Sol e usando o "relógio do 
gado", enquanto ele vinha de um país habituado aos relógios de pulso e à luz elétrica. 
No século 16, quando os europeus estavam invadindo e explorando tantas outras 
partes do mundo, descobriram diversas "culturas do tempo" diferentes, como 
poderíamos chamar: chinesa, japonesa, asteca, maia e assim por diante. No Japão, 
por exemplo, as horas eram mais longas no verão do que no inverno, uma semana 
tinha dez dias e os anos eram descritos em termos de animais, como o macaco ou o 
cavalo. Os visitantes não devem ter ficado surpresos com essas descobertas, já que 
na Europa os católicos, cristãos ortodoxos, judeus e muçulmanos usavam calendários 
diferentes. Ao longo dos últimos cinco séculos, porém, houve uma tendência para o 
estabelecimento de um sistema de tempo global, pelo menos em nível oficial. Em um 
país após o outro, os europeus incentivaram, quando não obrigaram, os habitantes 
locais a pensar em termos do tempo do relógio ocidental, considerado bom para a 
disciplina do trabalho, e na divisão dos "séculos" em antes ou depois de Cristo. A hora 
de Greenwich, adotada na Grã-Bretanha em 1848, chegou aos Estados Unidos em 
1873, ao Japão em 1888 e ao Brasil em 1914. Esse breve relato da divulgação do 
tempo ocidental e dos relógios ocidentais para o resto do mundo vem tratando a 
"cultura do tempo" européia como se fosse homogênea. Se examinarmos um pouco 
melhor a Europa, porém, logo descobriremos que não era o caso. Um dos pioneiros 
nesse campo, o historiador francês Jacques le Goff, escreveu sobre um conflito entre 
duas culturas do tempo na Europa medieval: "O tempo da igreja" e o "tempo dos 
mercadores". A igreja enfatizava o tempo sagrado e o ano litúrgico, enquanto os 
mercadores viam o tempo de maneira mais secular. Eles gostavam de dizer que 
"tempo é dinheiro", que o tempo pode ser calculado, usado sabiamente ou 
desperdiçado. 
 
Outros tempos 
Esse contraste entre dois tipos de tempo é esclarecedor, mas certamente é necessário 
pensar em termos de ainda mais variedades, incluindo o "tempo camponês", o tempo 
do ano agrícola. 
Também existe o "tempo industrial", não apenas a extensão do tempo do mercador às 
fábricas, primeiramente na Inglaterra e depois em todo o mundo, mas também a 
padronização do tempo seguindo o surgimento de novas formas de transporte. O 
estabelecimento de uma rede de carruagens públicas na Europa do século 18 
dependia de um "horário", um sistema de organização que mais tarde se estendeu às 
viagens de trem e avião. Hoje, nosso "tempo livre", "feriados" e lazer, assim como 
nossas horas de trabalho, são governados pelo relógio e pelo horário. 
Em suma, a comparação de Freyre entre o "tempo telúrico" e o "tempo mecânico" 
deve ser situada num quadro maior de contrastes e convergências. Do ponto de vista 
das estrelas ou mesmo dos cosmólogos, essas diferenças e mudanças de atitude em 
relação ao tempo podem parecer extremamente recentes e até relativamente sem 
importância. Do mesmo modo, do ponto de vista dos seres humanos comuns, elas são 
profundas. 
 
Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento 
Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!. 
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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