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A N T O N I O MANUEL HESPANHA 0 CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO O D I R E I T O E A JUSTIÇA NOS DIAS E NO MUNDO DE H O J E (2.a edição, reelaborada) «Pour les juristes aussi, la question se pose: savent-ils de quoi ils parlent ou parlent-ils de ce qu'ils savent?», Christian Atias, Epistémologie du droit, Paris, PUF, 1994, 29 . ALMEDINA 1. Es tadual i smo e antiestadualismo A intenção deste primeiro capítulo é destacar que a maior parte daquilo que se costuma expl icar nas comuns introduções a o direito - a começar peias que fazem parte dos programas do ensino secundário - é o resultado de u n i modelo de pensar o direi to e os saberes jur ídicos que se estabeleceu, há cerca de 2 0 0 anos, quando a general idade dos juristas pensava que o direito tinha que ser uma criação do Estado, um reflexo da sua soberania, um resultado da sua vontade. E m par te , isto era u m a consequência da implantação dos mode los democráticos de Estado, em que a vontade popula r se expr imia sob a forma das leis emanadas do Es t ado . Mas esta verdade, nas condições em que foi po l í t i ca e institucionalmente realizada, tinha pés de b a r r o . Por um lado, a democracia foi, no séc. X I X , um r e g i m e muito elitista, part icipado po r muito poucos c idadãos . O alheamento da general idade das pessoas em r e l a ç ã o à vida política e ao direito do Estado era muito g r a n d e e, por isso mesmo, outras formas de direito, o u t r o s direitos, desligados do Estado, surgiam e s p o n t a n e a - mente na comunidade, por vezes como sobicvi\ èiu i.is de antigas normas sociais ge ra lmen te aceites, ou t r . i s 2<i I C A l i l I >< >S< :( )IM( ) l)() DIKI I TO... vezes c o m o produto cia doutrina de unia elite de juristas q u e t ambém não esquecera nem as suas dou- trinas t r a d i c i o n a i s , nem o papel dirigente cjue ocupara na s o c i e d a d e de Antigo Reg ime 9 . Por outro lado, a d e m o c r a c i a - a fim de reduzir esta dispersão da tareia fundamen ta l de definir um novo direito - procurou impor um de t e rminado processo para emitir o direito. As razões p a r a se prescrever um processo regulado de lazer o d i r e i t o eram justificadas do ponto de vista d e m o c r á t i c o , mas a sua complexidade, artificialidade e demora a i n d a aumentavam mais a distância entre o direito e o s cidadãos. A c o n s e q u ê n c i a desta desconfiança em relação ao direito do E s t a d o foi uma revalorização dos elementos não estatais d o direito - a doutr ina dos juristas, o costume e essas formas espontâneas e dinâmicas de regular q u e surgiam da vida de todos os dias. Nesta r e a c ç ã o contra o direito do Fstado convergi- ram escolas de pensamento e intenções políticas muito diversas. U n s , pura e s implesmente, tinham em muito pouca con ta os princípios democrát icos e procuravam substituir o direi to das assembleias representativas por um direito aristocrático, oriundo da elite dos juristas ou das prát icas governativas das altas burocracias do Kstado. Foi o que aconteceu na Alemanha na última fase do II Impér io , sob a batuta do chanceler Bismarck e com a caução de uma elite respeitadíssima de juristas, 9 Cf. A. M. Hespaii l ia, (Uiltura jurídica europeia. Síntese de um milénio, Lisboa, Ki i ropa-Amér ica , 2 0 0 3 . IMU.I.IMINARKS | 27 que haveriam d e marcar o s abe r jur íd ico durante décadas (a c h a m a d a Pandedística, Pandektisitk, Pan- dektenwissenschafi). Outros, partidários de uma arquitec- tura liberal da sociedade, entendiam que a democracia era, sobretudo, a abs tenção do Estado, o Estado mí- nimo (Etat-veilleur de nuit, Etat-gendarme), com um direito que cor respondesse a esta ausência do Estado e ao mero livre curso das vontades individuais. Outros, ainda, levando mais sério todo o espectro de direitos não oficiais, valorizavam as instituições criadas pela vida, vendo nestas um verdadeiro direito do povo, liberto dos cons t rangimentos do direito oficial ou doutrinário, o que - valha a verdade - os transformava nas ovelhas negras da comunidade dos jur is tas bem pensantes. Out ros , finalmente, en tenderam que o direito, longe de se deixar enlear na legislação dos par lamentos ou dos governos po r eles eleitos, devia seguir a vontade ou o interesse do povo, definido por dirigentes ou partidos que se autodefíniam c o m o iden- tificados com o próprio "povo", fosse este en tendido c o m o uma Nação histórica, como uma raça predes- tinada ou c o m o uma classe que, tendo sido explorada , era agora d i r igente . Durante os últimos 2 0 0 anos, este movimento anti- estatalista não deixou de se fortalecer, insistindo alter- nadamen te nos seus vários argumentos. O s regimes políticos autoritários dos meados do séc. X X (fascismos, nazismo, bolchevismo), identificando o d i re i to com leis e com a autoridade totalitária do Kstado, Coram apenas a cere ja no topo do bolo. A partir daí , mesmo i í H I (lAI.KlI)í )S( :< )IM() l)() DIKl.no.. . < I c p o i s de se terem restabelecido as democracias na m a i o r parte da Europa ocidental, uma concepção l e g a l i s t a do direito passou a ser suspeita de t razer c o n s i g o novos riscos de absolutismo legalista e de t o t a l i t a r i s m o do Estado. Aparte isto, o certo é que as sociedades ocidentais s e tornavam cada vez mais dinâmicas e diferenciadas. N a s últimas décadas, a imigração acentuou ainda mais o p lura l i smo destas sociedades, ao trazer para dentro d e l a s comunidades com sentimentos jurídicos muito d i fe renc iados , nomeadamente em relação aos padrões usua i s na Europa central-ocidental e nas populações b r a n c a s dos Estados Unidos. Esta erupção do plura- l i s m o étnico-cultural, a que o direito oficial tem res- p o n d i d o de forma muito deficiente (entre o desconhe- c i m e n t o e um integracionismo violento), foi ainda a c o m p a n h a d a pela crescente importância atribuída a fo rmas alternativas de vida, cujo reconhec imento era ex ig ido pelos movimentos feministas, juvenis, ecologis- tas ou sexualmente dissidentes. Cada um destes movi- mentos trazia consigo propostas novas de viver a vida e, c o m elas, novos ideais de just iça e novas normas de compor t amen to . O próprio cidadão c o m u m , cada vez mais consciente dos seus direitos e ex ig indo ser bem governado e tratado pelas agencias públicas e privadas de aco rdo com "boas práticas", ensaia a construção autónoma de "direitos de proximidade", que instituam princípios de relacionamento correspondentes aos sen- t intentos de jus t iça da generalidade das pessoas, inde- pendentemente da sua consagração na legislação esta- dual. l'RKLlMINARKS | 2<) Por fim, a U n i ã o Europeia e, mais em geral, a glo- bal ização e c o n ó m i c a e comunicacional desvalorizaram também o Estado e o seu direito, ao proporem formas de organização polít ica e de regulação que atravessa- vam as fronteiras dos Estados, desafiando aquilo que e ra cons iderada a soberania destes. Iodos estes factos, que antes de serem jurídicos são civilizacionais, modificaram de forma decisiva as bases do direi to actual. Sé) muito simplificadamente - e de forma cada vez mais irrealista - é que este pode cont inuar a ser identificado com a lei. Esta profunda modificação na natureza do direito contemporâneo implica uma modificação, igualmente profunda, na sua teoria e na sua dogmática, não sendo mais possível continuar a utilizar conceitos e fórmulas que foram cunhados num per íodo de monopól io legislativo do direito para descrever um direito que se afasta progres- sivamente da lei. Embora t ambém seja certo, como veremos, que a adopção de uma perspectiva pluralista do direito não pode perder de vista o significado democrático hoje assumido pela constituiçãoe pelas leis. Por isso é que - apesar de todas as suas insufi- ciências - elas têm ainda que con t inuar a merecer a designação prestigiante de " fo rma da República" 1 0 , como a forma mais regulada, mais controlada e pro- vavelmente mais adequada de manifestação da vontade popular. 1 0 Cf. o título do r e c e n t e l ivro d e M a r i a l.iui.i Amaral, A forma da República, C o i m b r a , C o i m b r a Kdi lora , líOtM. M I CAl.KinoSÍ OIMO DO DlkKl 1 ( ) . . 1 . 1 Um saber dependente de pré-compreensões cul- turais Quem ler t ex tos q u e v i sam unia introdução ao direito ou à "c iênc ia d o d i r e i t o " 1 M l í fica muitas vcv.es com a impressão de que - a o contrário do que devia acontecer numa "c i ênc i a " l : * — as incertezas e as polé- micas sobre as ques tões mais básicas acerca do direito " As aspas são, n e s t e e n o s c a s o s seguintes , os sinais da m i n h a desconf iança p e r a n t e a f iabi l idade d a s expressões usadas. Iiso-as, p o r q u e são t o r r e n t e s e t r a n s l a t í c i a s ; m a s , em notas finais a este cap í tu lo , direi p o r q u e é q u e a c h o q u e se podem trans formar em "falsos amigos", c o n t r a b a n d i s t a s d e muitos pressupostos, senti- dos e impl icações n ã o d e c l a r a d o s . "Ciência d o d i r e i t o " ins inua q u e o saber jurídico obedece a u m m o d e l o de d i scurso s e m e l h a n t e a o das "ciências": ou seja, e m que há unia r e f e r ê n c i a " v e r d a d e " (e uma só), em que se p r o d u z e m resul tados object ivos , p o r métodos d o t a d o s de rigor e univocidade, s o b r e u m a r e a l i d a d e objectiva, e x t e r i o r a o obser- v a d o r ("positiva"), d e m o d o a o b t e r u m saber geral (de "leis"), sobre o qual as p r é - c o m p r e e n s õ e s ou as opções (filosóficas, pol í t icas , ex is tencia is ) d o e s t u d i o s o ( d o "cientista") n ã o têm qua lquer influência ("neutra l idade" da ciência) . Esta concepção d o m i n o u o estudo d o d ire i to a p a r t i r d o s meados d o séc. XVlii, p o r influência cio c i ent i smo cias Luzes e da teor ia kant iana da c iência . Embora , na sua m a i o r p a r t e , os pressupostos cienlílícos e n u n c i a d o s sejam a l t a m e n t e c o n t r o v e r s o s , s o b r e t u d o quando ap l i cados ao d ire i to , a e x p r e s s ã o c o n t i n u a a ser u s a d a , mesmo p o r aqueles que prob lemat i zam a l g u m a s das a n t e r i o r e s assun- ções . A expressão banalizou-se; mas , impl ic i tamente , continua a func ionar c o m o u m a certa forma de conferir l eg i t imidade ¡10 saber dos juristas. V. nota anter ior . 1'RKLIMINARl«:s | :t| se multiplicam incessantemente. Que ro , no en tan to , começar por realçar que, tendo em conta que a cultura jur íd ica do Ocidente j á tem mais de dois milénios, na verdade aquilo que, de fundamental, se tem discutido acerca do direito não tem variado assim tanto. Basicamente, juristas (e não jur is tas) têm-se pergun- tado: (/) Se o direito está cont ido nos próprios equilí- brios da natureza - i.e., se é uma ratio, uma razão, um equilíbrio, que provenha das pró- prias situações da vida - ou se, pelo contrár io, é o produto de uma vontade ocasional, arbi- trária, "livre" de a lguém - i.e., se é uma voluntas - (de Deus, do rei ou do povo). Se se responde que é uma ratio, há lugar para perguntar: (ii) Se essa razão pode ser reconhecida por meios gerais (sob a forma de regras ou normas gerais, a inda que mutáveis no t empo e localizadas em certa sociedade) \uonnativismo\\ se apenas pode ser reconhecida em relação aos rasos particulares (sob a forma de um sentido particular de jus t i ça , a que se tem c h a m a d o equidade) [casuísmo]; ou se, t ratando-se de um saber essencialmente particular, pode ser, em todo o caso, acumulável, de modo a que a partir do direito dos casos concretos já resolvidos se possa construir um saber prático, uma prudentia, por meio de indução de regras heuríst icas, que depois aju- :vj i CALI m o s c : ó i M o n o D I R K I T O . . . dcm a e n c o n t r a r o direito de outros easos {prudencial ismo, valor vinculativo dos ¡necedades]. (///) De qualquer destas respostas pode seguir-se um rosário de ques tões sobre a teoria do d/trilo, mas relevantes pa ra a prática jurídica: a o r igem 1 4 , os f i n s 1 5 e con teúdos do direito, as fontes pelas quais o d i re i to se manifesta, os métodos para encontrar o di re i to (ars inveniendi)u] e o aplicar aos casos (ars iudicandi). Se se responder que o direito é uma voluntas - ou, então, que é u m a razão divina incognoscível e, por- tanto, tão pouco possível de discutir c o m o o é uma vontade arbitrária [providencialis mo] - as questões que se podem colocar são de dois tipos: (/) Pode perguntar-se, num plano político-filosó- fico, sobre qual seja essa vontade: a de Deus, a do Povo, a da Nação, a do Estado. Pode, depois, perguntar-se sobre a legitimidade de tal vontade para criar direito. E, por fim, se essa vontade tem limites, sejam materiais (coisas que não podem ser queridas, v.g., a ofensa de 1 1 Km Deus, na natureza , na r a z ã o . l r > A m a x i m i z a ç ã o da felicidade individual, a observânc ia d e u m a r e g r a absoluta de justiça, a prossecução da u t i l i d a d e c o m u m (ou o b e m - e s t a r supra-individual d a c o m u n i d a d e ) . 1 ( ) De u m a forma "inspirada" ou "car i smát ica"; a partir de ev idênc ias racionais; a par t i r de evidências e m o t i v a s ("sentimen- tos p a r t i l h a d o s de just iça"); a partir d e um m é t o d o d e discussão g e r a l m e n t e reconhec ido como apto. FRKLIMfNARKS | M\ direitos naturais dos cidadãos), sejam formais (estabelecimento de formalidades a que a von- tade deve obedecer ao criar direito). (ii) Pode, por outro lado, perguntar-se - assu- mindo a validade da norma querida - uma série de coisas sobre esta declaração de vontade criadora de direito (teoria da norma): sobre qual a declaração de vontade do legislador a que um caso concreto deve ser referido (qualificação); sobre o sentido da declaração de vontade (interpretação); sobre a possibilidade da sua ex tensão a outros casos não expressamente previstos (integração); sobre a colisão entre duas ou mais manifestações de vontade (conflitos ou concurso de normas); sobre o processo intelectual de aplicação da norma geral a um caso con- cre to (aplicação). Estas perguntas surgiram também logo nos inícios da tradição ju r íd ica europeia, havendo muitas respostas para elas - mas nem sempre coerentes ent re si - logo no eno rme corpus textual do direito r o m a n o 1 7 . 1 7 Vale a p e n a , nesse sentido, lazer um 1 c< onbc< in i cn lo do l i vro 1 das I ustilutiones do I m p e r a d o r J u s t i n i a n o (.r>2(.) d . C . ) ou cios títulos 1 e III do l.ivio I do Digesto, do m e s m o (.r>!W d . C ) , q u e r e ú n e m t e x t o s dois ou (rês séculos mais ant igos . Cl'. Antonio M a n u e l H e s p a n b a , Cultura jurídica europeia. Síntese de um Milênio, Cishoa , K u r o p a - A m é i i ( a , (última versão, a l g o m o d i l i c a d a e c o r r i g i d a , ed . bras . , Florianópolis , F u n d a ç ã o I to i l cux , lí(M)."»). s e c ç ã o (*). 1 .1 . 34 I ( A i . K i n o s m i M o i x ) D I R I .n ( ) . Passando e m s i l ê n c i o muitas voltas que estas questões deram, ao longo de* do i s mil anos de história, apenas anotamos que, a p a r t i r da Revolução Francesa, mas sobretudo nos dias d e ho je , o princípio que se tornou dominante na E u r o p a iõi o de que o direi to é a manifestação da vontade, a vontade do povo [da Nação, do Estado] 1 *, e x p r e s s a pelos seus representantes (prin- cípio democrático, soberania nacioiud,soberania poptilar, soberania estad na e sco lh idos estes pela lórina que o próprio povo e s t a b e l e c e u na constituição- 0 , ( l o m o o povo, no momento consti tuinte originário, também (inis que certos d i re i tos do cidadão (mais tarde ( l lama- dos direitos fundamentais) presidissem à organização da República, a vontade dos representantes do povo ficou obr igada a garantir esses direitos. Daí que, na tradição europe ia ocidental m o d e r n a , o direito exprima a von- tade do povo, sob t rês pontos de vista: 1. Ao garantir os di re i tos fundamentais estabelecidos no momento constituinte; l s N o t e - s e que estas e n t i d a d e s não são s inónimos, se l>cm <|ue a d o u t r i n a política as r e l a c i o n e entre si. M > Q u e t a m b é m n ã o são s inónimos , só tendo u m e l e m e n t o c o m u m - ¿1 re ferência a s o b e r a n i a , c o m o "poder s u p r e m o |e 111 n u I < t Í 1< > 1 . - ° N e s t e p o n t o , as so luções p o d e m var iar : a e l e i ç ã o por s u f r á g i o universal , e l e i ç ã o p o r sufrágio restr i to , e s c o l h a por ó r g ã o s o u c o r p o s sociais (famíl ias, grupos d e interesses ( c o r p o r a - t i v i s m o | ) , a c l a m a ç ã o p o p u l a r n ã o eleitoral ( como é pres supos ta nos r e g i m e s di tatoriais ) . l ' R K U M I N . X R I . S l :ir> 2. Observando o processo de criar direito es tabele- cido n o momento consti tuinte. Estes dois pontos de vista expr imindo o primado da Constituição. 3. Validando como direito a vontade normativa expressa subsequentemente pelos representantes do povo, de acordo com os processos previstos no momento constituinte. Este ponto consubstanciando o princípio da lega- lidade (ruir of law). Formuladas como o foram nos últimos parágrafos, não se nota a tensão entre a soberania do povo e a garantia de direitos. Isto porque, de acordo com a formulação adoptada, os direitos garantidos foram aque- les que o povo quis que fossem garantidos, no momento constituinte, e pelos processos jurídicos também queri- dos por ele nesse momento . Porém, outras tradições jurídicas - nomeadamente a norte-americana (e, em menor medida, a tradição inglesa) - combinam, num equil íbrio diverso, o pr in- cípio democrát ico com os da garantia de direitos (liberalismo político) e do respeito pelos processos esta- belecidos pelo direito: rule of law, ou due process of laxo). Nesta perspectiva, o povo quis que os direitos naturais (i.e., provindos da natureza, logo, anteriores à organização política, ou longamente recebidos p e l a tradição jurídica) dos indivíduos constituíssem o direi to; de tal forma qtie o povo ou não pode querer n a d a 36 I CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO. . . contra eles (versão n o r t e - a m e r i c a n a 2 1 ) ou, mesmo que o queira (por meio de un i acto de vontade dos seus representantes, i.e., do P a r l a m e n t o ) , sempre terá que respeitar, na sua de r rogação , a rale o/ law ou o due jrrocess oj law (versão, mais a tenuada , dominante entre os juristas ingleses que, t radic ionalmente , insistem mais na soberania do Pa r l amen to ) - ou seja, os pro- cessos (antes, l ongamen te ) estabelecidos pelo direito. Verifica-se bo je uma c e r t a tendência paia importar para o contex to europeu o modelo anglo-saxónico, mesmo na sua versão mais radicalmente garantista de direitos prc-legais, que é a amer icana , destacando a anterioridade dos direitos (dos indivíduos) em relação ao direito (par lamentar) . Deve começar por se d izer que a revogação cie leis, pela Supre-me Court dos EUA, c o m o contrárias aos direitos representa uma evolução muito recente da prática jur íd ica nor te-americana. Durante todo o séc. X I X e uma boa parte do séc. X X , a Supreme Court não J l C o n s t i t u i c a o dos E l I A. 14 ." Aeto Adic iona l (amendment)'. " I . All p e r s o n s h o r n o r natural ized in t h e U n i t e d States , and subject t o the jurisdict ion thereof , are c i t izens o f the United States a n d ol the State wherein they reside. N o S t a l e shall make 01 e n f o r c e any law which shall abridge the pr iv i l eges o r immu- nities o f c i t i zens o f t h e Un i t ed States; n o r shall any Slate d e p r i v e any p e r s o n o f life, liberty, or p r o p e r t y , without due proces s o f law; n o r deny to any person within its jurisdiction the e q u a l p r o t e c t i o n of t h e laws". Sobre o s e n t i d o d e due process of law n o c o n t e x t o n o r t e - a m e r i c a n o : cf. l ittp://www.usconsiitu- t i o n . n e t / c o n s t t o p _ d a e p . h t m l . PRELIM 1 NARKS | :M ousou exercer esta prerrogativa. Com o actual vigor, só a partir dos anos 6 0 do séc. X X - a época em que surge nos EUA, com grande acuidade, a questão dos "direi- tos cívicos" e do combate à segregação racial - é que o Supremo Tribunal , então presidido por u m juiz famoso, Earl Warren, que marcou uma época na his- tória do direito na América do Norte , começou a exercer um controle aper tado sobre a conformidade das estaduais e federais com certos princípios consti- tucionais (judicial rcvmo)--. Por outro lado, os histo- riadores do direito norte-americano costumam salientar que o vigor desta anteposição dos direitos à lei decorre de dois factores absolutamente próprios da cultura jur íd ica e política dos EUA - o federalismo e o 2 2 S o b r e a lenta e m e r g ê n c i a d a judicial review ( c o n t r o l e da const i tucionalidacle das leis) nos Kl ¡A, v. a bela s íntese de L a w r e n c e M. Kriedman, IAIW in América / . . . / , máxime 1 2 - I S , 143 ("courts used ii rarely and g inger ly lor the first c e n t u r y of i n d e p e n d e n c e | . . . | not until the late n ine teen th c e n t u r y did judicial review ol legislation b e c o m e a n o r m a l part of t h e life cycle of major litigation" (p. IS). I 'm o u t r o livro d o mesmo a u t o r e m ijue estas questões são discut idas é American law in the Twentieth C.enltin, New Haven, Vale Lniv. Press, 2 0 0 2 . S o b r e o c a r á c t e r problemát ico clesle p r i m . i d o cio judiciário , n a tradição jurídica nor te -amer i cana , v. a súmula n o c a p . "Pros a n d cons" em http:/ /en.wikipedia.org/wiki/ ludicial_review [Virginia (lonsti- tution d e 1 7 7 0 : "All power o f suspending laws, o r t h e execution of laws, by any authority, without c o n s e n t ol t h e representat ives of t h e peop le , is injurious to the ir r ights , and o u g h t not to In- e x e r c i s e d . " (!)] . V., a inda, M a r i a n A h u m a d a , La jurisdiction constitucional en Europa / . . . / , cit. M I CALEIDOSCÓPIO IX) DIREITO.. . 2 3 L a w r e n c e M. F r i e d m a n , Law in America / . . . / , El. individualismo agressivo da cultura local, temerosa da concen t r ação do poder , desconfiada do Kstado e propícia a uni governo disperso e fragmentado2'*. A grande dificuldade que , a este propósito, se põe é a de que, ao passo que a cultura constitucional a m e - ricana, além das característ icas peculiares antes referi- das, se fundou num patr inmnio moral (/.c, quanto aos [bons] costumes) la rgamente partilhado e pôde, neste ambien te (boje, em cr ise) , consolidar um catálogo cie direitos constitucionais razoavelmente unânime, a cul- tura constitucional e jurídica europeia foi muito mais variada e divergente, não tendo podido chegar a posições unanimes quanto a estes direitos. Km virtude disso, é muito menos claro, para um jurista europeu, definir o elenco e pr ior idade relativa dos direitos consti tucionais sem o recurso àquilo que as consti- tuições e as leis efect ivamente consignaram (ou incor- poraram na ordem jur íd ica de cada país) e, por isso mesmo, o risco de arbitrariedade e de impressionismo deum direito baseado em direitos pré-constituc ionais é, aqui na Kuropa, se não muito maior, pelo menos mui to mais presente nos espíritos. O enunciado anter ior de perguntas (e de respostas) já mostra que responder e perguntar têm a ver entre si. Ou seja, que, se se conceber o direi to de certo modo , daí flui uma série de questões pertinentes quanto ao seu método, enquanto outras não lêin lugar PRKLIMINARKS | M) nesse contexto . Alterado o grande modelo (o paradig- ma) segundo o qual o direito é encarado, certas q u e s - tões submergem, enquanto outras, novas, se manifes- tam. O saber jurídico mostra, assim, um perfil histórico que não evolui em linha recta , segundo uma l inha evolutiva sem rupturas. Pelo contrário, segue um r u m o inconstante, explorando, segundo estratégias mui to variadas, um capital de regras e de problemáticas que, ao longo de mais de dois mil anos, não variou tanto c o m o isso- 1 . Por isso é que é indispensável ter em conta, ao analisar as "proposições técnicas" do direito, os gran- des modelos de entender o direito. Pois tais "propo- sições técnicas" variam de sentido consoante o con- texto filosófico ou cultural em que andem inseridas. 1.2 Uma primeira e provisória aproximação Costuma dizer-se que o direito é um conjunto de normas que rege a vida em sociedade. Nesta regulação da vida social, o direito coexiste , no entanto , com outros complexos de normas, como - nas modernas sociedades oc iden ta i s 2 5 - a religião, a moral, o s <<>s- 2 4 A s i tuação não é s ingular. Pense-se, apenas, c o m o tem sido d i v e r s a m e n t e recons tru ída a t r a d i ç ã o bíblica, d<> A n t i g o < do Novo T e s t a m e n t o , por judeus , p o r diversas conlissncs « I I M . I S e p o r d iversos r a m o s d o i s lamismo. - >; ' Q u a s e tudo e que é d i to nesta iniiodiiç.K• ao di ir i ln s e r e l a c i o n a c o m aquilo que hoje cons idc i amos dnei io . i i a t vme 40 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO... lumes, as n o r m a s técnicas , as "boas praticas" e as pró- prias "leis" cia na tu reza . Tradicionalmente,a distinção entre o d i re i to e a general idade destes outros comple- xos normat ivos e r a feita recorrendo à característica da coerc ib i l idade , o u seja, ao lacto de o direito ser virtualmente i m p o s t o pela força do l\sia<lo-r\ Deste cindes (to O c i d e n t e . S i - a b o r d á s s e m o s o u t r a s sociedades o u , m e s m o , a nossa n o u t r a s é p o c a s , pouco d o que não ler t er ia c a b i m e n t o . N e m as d i s t i n ç õ e s e n t r e direito e outros c o m p l e x o s n o r m a t i v o s s e r i a m a s m e s m a s (porventura , n e m haveria n a d a que pudesse ser i d e n t i f i c a d o c o m o o nosso d ire i to , mui pe la sua lor ina , q u e r p e l a s u a f u n ç ã o ) , n e m o d ire i to leriii a l o n n a d o nosso, n e m c u m p r i r i a as m e s m a s funções, nem seria g u i a d o pelos m e s m o s v a l o r e s . De t u d o isto se o c u p a a a n t r o p o l o g i a jurídica, cujos e n s i n a m e n t o s d e v e m ser t idos muito ein c o n t a , s o b r e t u d o n u m a é p o c a e m que a mobi l idade das pessoas e d a s e x p e r i ê n c i a s h u m a n a s t o r n a m q u o t i d i a n o o nosso c o n t a c t o d i r e c t o c o m p e s s o a s p o r t a d o r a s d e outras culturas, de o u t r a s c o n c e p ç õ e s d o d i r e i t o , d e o u t r o s valores jurídicos e m e s m o d e o u t r o e s t a t u t o j u r í d i c o pessoal , r e c o n h e c i d o pelo nosso d i r e i t o (d ire i to i n t e r n a c i o n a l p r i v a d o ) . V., sobre o assunto, A r m a n d o M a r q u e s G u e d e s , Entre Factos e Razões - Contextos c Enquadra- mentos da Antropologia Jurídica, C o i m b r a , Almedina, 2 0 0 1 . 2 U E s t e c r i t é r i o d e d i s t inção é, c o m o v e r e m o s , cada ve/. m a i s p r o b l e m á t i c o . Note - s e , de sde l o g o , q u e n e m todas as n o r m a s j u r í d i c a s c o n t ê m a a m e a ç a de u m a s a n ç ã o . Muitas apenas e s t a b e - l e c e m uni r e g i m e jur íd ico ( c f , e n t r e m u i t o s outros , o ar t ." 1 7 1 7 , ou 1 7 2 1 , e t c , d o C C ; art ." 1 1 , o u a r t . ° 1 1 0 da CRI'): a n o r m a que e s t a b e l e c e a s a n ç ã o ex is te , e faz p a r t e da ordem j u r í d i c a , mas , o m a i s das vezes, é p r e c i s o f i g u r a r u m a longa sér i e cie n o r m a s i n t e r m é d i a s a t é e n c o n t r a r a n o r m a que c o n t é m a s a n ç ã o : u m a pena , a p e r d a ( c a d u c i d a d e ) d e u m a v a n t a g e m o u b e m j u r í d i c o ; a nul idade ou inef icác ia d e u m ac to jur ídico e a c o n s e q u e n t e ex t inção dos seus efe i tos v a n t a j o s o s . Por o u t r o l a d o , PRKLIM1NARKS | 11 modo, a violação das normas jurídicas importaria unia consequência forçosa (pena ou prémio) a ser efectivada pelos poderes públicos. Por isso se distinguiria da religião, cuja sanção, para os crentes, se efectivará no desamor de Deus (dos deuses), com as consequências que cada religião liga a i s so 2 7 . Por isso se distinguiria da moral, cuja sanção teria u m a natureza meramen te interior, no "foro" (note-se a l inguagem jur ídica, em todo o caso) da consciência. Por isso se distinguiria dos bons costumes ou da urbanidade ("cortesia", "boa educação"), cuja violação é objecto de uma censura a palavra "virtualmente" já p r e t e n d e sugerir que as soluções jurídicas não são s i s t e m a t i c a m e n t e impos tas c o e r c i v a m e n t e , d e i x a n d o a soc iedade que subsistam muitas s i tuações n ã o jurídi- cas: cr imes n ã o punidos , r e n d i m e n t o s não d e c l a r a d o s e impos- tos não pagos , obr igações j u r i d i c a m e n t e const i tu ídas m a s não c u m p r i d a s , e tc . Kstas e o u t r a s s i tuações cie n o r m a s jurídicas não c u m p r i d a s p o d e m m e s m o ser e s ta t i s t i camente d o m i n a n t e s . Por isso, a coerc ibiliclacle c a p e n a s u m a v ir tual idade d e c o e r ç ã o , não u m a c o e r ç ã o electiva. Mas há mais . d o m a p r o p o s t a liberal de "ret irada do Ksiado", c lamo-nos c o n t a cie que, p a r a se lazer cumprir , o direito c o n t a c a d a vez mai s c o m a i m p o s i ç ã o de m e r a s desvantagens, no c a s o d e i n c u m p r i m e n t o , q u e são de natureza p u r a m e n t e e c o n ó m i c a ( c o i m a s , por vezes r id ículas em lace das vantagens cie não c u m p r i r as n o r m a s , p o r e x e m p l o no domín io do direito do a m b i e n t e , d o o r d e n a m e n t o d o territó- r io , da violação das r e g r a s d e t r a n s p a r ê n c i a n o m e r c a d o de valores imobiliários, e t c ) , r e s u l t a n d o a dec i são de c u m p r i r <> direito de u m a mera análise "custos-benel íc ios" e n ã o d o teor de u m a acção compulsiva d o E s t a d o (v., a d i a n t e , c a p . 10) . 2 / Algumas das quais p o d e m ter, e m t o d o o c a s o , reflexos e x t e r n o s (penitência, e x c o m u n h ã o ) . V2 I CALEIDOSCÓPIO l>< ) D I R I M O social, inas d i fusa 2 8 . Por isso se distinguiria da "vin- gança privada" (ou da "justiça popular"), eni <jue a comunidade ou a lguns dos seus elementos se encarre- gam de inlligir unia sanção a quem violaras regras de convívio es tabelec idas . 1'or isso se distinguiria das "boas praticas", cu ja violação apenas daria lugar a uma censura dir igida à consciência deontológica do agente, mas não a u m cast igo cjue lhe losse imposto pelo Estado. J á q u a n t o ás "leis da natureza" (a "natu- reza das coisas", humanas ou do mundo Tísico), elas estão garantidas, t an to pela impossibilidade de as violar, c o m o pelo au tomat i smo da sanção (por exem- plo: estar em dois lugaresao mesmo tempo; lalar uma língua que nunca se aprendeu; cruzar os céus no cabo de uma vassoura; c a m i n h a r sobre as águas). A esta o rdem normativa que comanda a actividade livre das pessoas p o r meio da ameaça de sanções se chama "direi to object ivo", po r oposição a "direito subjectivo", que se pode definir - agora encarando as coisas do lado dos sujeitos de direito - como a (acuidade que o direito confere a cada uni de agir (de acordo com a sua vontade, facultas agevdt, WUIensmacht; mas também de acordo com o d i r e i t o ) 2 9 . J S Dis t ingui i - se-á tias "leis da e c o n o m i a " ? As consequênc ias negativas da p e r d a de eficiência (de c o m p e t i t i v i d a d e ) ou do peso excess ivo d a s despesas públ icas n ã o s erá u m a das lais desvantagens a s s o c i a d a s à v io lação d e u m a lei? N o m e a d a m e n t e , em face d a t e n d ê n c i a para "desestat izar" o d i re i to? Veremos isso mais a d i a n t e , c a p . 10. 2 9 N ã o p o d e r e m o s ver as coisas d e u m p o n t o de vista opos to , c o l o c a n d o os d i r e i t o s subjectivos c o m o a var iáve l i n d e p e n d e n t e 3 . O que é, para nós, o d ire i to? Tratemos, agora, de operac iona l i / a r um concei to de direito que tenha em consideração as considerações anteriores e que permita reconstruir, sobre isso, uma dogmática mais actualizada, ou seja, mais l iberta da dependência estadual i st a. Segundo as regras da lógica, a definição faz-se pela indicação do género e da diferença espec í f i ca 6 0 . O género a que o direi to per tence é o dos comple- xos normativos que regulam as acções livres (depen- dentes da vontade) dos h o m e n s . A questão principal reside na diferença específica do direito em relação às outras ordens normativas que também regulam estas acções (religião, moral, bons costumes, boa educação). E comum a opinião de que a diferença específica reside na coercibil idade estadual das normas j u r í d i c a s 6 1 . 0 0 Ou seja, a d i ferença e n t r e u m a espéc ie e as o u t r a s que integrara o m e s m o g é n e r o . 6 1 Ou seja, n a v i r tua l idade d e o seu c o m p o r t a m e n t o ser imposto p e l o E s t a d o sob a a m e a ç a d e u m a sanção . Note - se , e m todo o caso, eme há n o r m a s a p e n a s permiss ivas ou disposit ivas, outras que a p e n a s c o n t ê m def inições , e tc . A coerc ib i l idade t e m que se referir a c o n j u n t o s de n o r m a s e não , s e m p r e , a n o r m a s isoladas. H2 I CALI IDOSt .ÓPIO 1K) DIKI I IO. Esta o p i n i ã o liga indissociavclmciitc direito c Estado e, por isso, é característ ica das concepções legalistas do direito, cujas limitações e irrealismo já lórani abor - dados. Mas há mais. Será, realmente , que basta q u e o Kstado a m e a c e , com uma sanção, quem violar u m a norma, para que, por esta simples característica ex te rna (ou formal), essa norma se torne numa norma jurídica'? Por outras palavras: não haverá nada de substancial, de interno - t o m o , por exemplo , uma certa lõnte de legi t imidade (gerando uma razão específica para o b e - decer) , a referência a um certo valor a proteger (a uma certa f inalidade a prosseguir) , distinto de outros, pro- tegidos (ou prosseguidos) por outras ordens normat i - vas ( ) 2 no conce i to de direito? E será que, por ou t ro lado, tudo o que estiver privado dessa es tampilha estadtial es tá , i r remediavelente , fora do d i r e i t o ? 0 3 Perguntar isto significa, nomeadamente , questionar se o direi to n ã o se distingue p o r estar ao serviço (por ter c o m o função assegurar a realização) de certos valores específicos (digamos, a jus t iça deste mundo, a ordem da c idade) , seja ele formulado por quem for. (> -' Por e x e m p l o , o d ire i to i e f e r i r - s e - i a à Just iça; c o m o a c i ê n c i a se re fere à Verdade; a m o r a l , à perfe ição individual; a r e l i g i ã o , à c o m u n h ã o c o m Deus; o u a estét ica, à IWle/.a. ( ) í Por e x e m p l o , n ã o se n e g a r á o c a r á c t e r de jurídica a u m a n o r m a que n ã o vise a J u s t i ç a ( m a s a oportunidade , o de senvo l - v i m e n t o e c o n ó m i c o , a sa lvação d a a l m a , a perfeição individual)? O q u e , p o r sua vez, nos r e m e t e p a r a u m outro r o s á r i o d e q u e s t õ e s , a g o r a sobre o c o n t e ú d o e a forma da Justiça: o q u e é a J u s t i ç a ? c o m o se es tabelece , c o n h e c e ( reconhece ) a Jus t i ça? UMA DKFINIÇÃO RK ALISTA DC) DIREITO | 8 3 N o início de um livro seu - que se tornou c lás- sico - o jurista inglês Herbert L. A Hart ( 1 9 0 7 - 1 9 9 2 ) 6 4 afirma que "poucas questões relativas à sociedade foram postas com tanta persistência e respondidas por gran- des pensadores de forma tão diversa, estranha o u mesmo contraditória, como a questão «o que é o direito?»" Mas ele m e s m o também observa que, se passarmos dos grandes pensadores ao senso comum, se verifica uma situação paradoxal, que também ocorre em relação a entidades de todos os dias, como o "tempo" ou o "amor": somos incapazes de as definir, apesar de todos as reconhecermos no plano da expe- riência 6" 1. Os juristas romanos - que, a partir de certa altura (aprox. séc. Il l a . C ) , também tiveram uma noção específica ("diferenciada") de direito, definiram-no como "a arte do bom e do justo" - "ut eleganter Celsus definit, jus est ais boni et aequi", prosseguindo com frases que exprimiam muito claramente a auto-estima que os dominava: "é por isto que nos chamam sacer- dotes. Na verdade, prestamos culto à just iça , t i rando partido do conhec imento do bom e do equitativo: separando o justo do injusto, o lícito do ilícito, no intuito de promover os bons costumes não apenas pelo í v l ( X , para aspectos biográficos: http://www.law.ox.ac.uk/juris- prudence/hart .°shtml; h t tp : / /www.oup .co .uk / i sbn /0 -19-927497-r ) . , K ' Herbert L. Hart , The concept of law, cit., 13 s. (existe | b o a | t r a d . port.: de A r m i n d o Ribe iro Mendes . L i sboa , C a l o u s t e Gulbenkian, 1 9 8 6 ) . 84 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO... medo d a s penas , mas também pela promessa de pré- mios [ . . . ]"«« (Ulpiano, (t 2 2 8 ) , em Digesto, 1,1,1, pr./ 1). Trata-se, c o m o se vê, de uma definição de direito muito densa de sentidos, pois pressupõe que é possível ident i f icar objec t ivamente o que seja o bem especifi- camente p r o c u r a d o pelo direito (o 4 jus to") e una série de va lo res a e le relativos ("bom e equitativo'', "bons cos tumes") , dos quais depende a t ontra-distinçio entre o direi to e não-direi to, por um lado, e, depois, entre direito e ou t r a s ordens normativas. Mas, além disso, é uma d e f i n i ç ã o que não toma, tão pouco, grandes cautelas, q u e r quanto à objectividade do conhecimento desses va lo re s densos que se pressupõe, quer quanto aos m e i o s adequados a real i /a r tais valores - já que Ulpiano n ã o t inha grandes dúvidas acerca (his espe- ciais capac idades dos juristas para sondar estas coisas. Quem (e c o m o ) reconhece objectivamente o "bem", em termos de o poder impor c o m o norma de acção a toda a comun idade? C o m o se identificam, também objecti- vamente, os meios (as "penas", os "prémios", os cri- térios da sua distribuição) que são "bons" para atingir o bem? Mas, mais do que isso, c o m o se distingue o bem procurado pelo direito do bem procurado pela moral ou pela religião? , ) ( ) "Cuius m é r i t o quis nos s a c e r d o t e s appe l l e i ; iuslitiam n a m - que coli inus, et boni et aequi not i t iam p r o í i t c m u r , a e q j u m ab iníquo separantes , l icitum ab illicito disc e m e n t e s , boiios non solum m e t u p o e n a r u m , v er u m et iani p i a e m i o r u m qnoque e x h o r - tat ione e i l i ccrc cupientes" U M A D E F I N I Ç Ã O R E A L I S T A D O D I R E I T O J 8 5 As perplexidades ainda aumentam quando nos der- mos conta de que muitas culturas diferentes da nossa - como também a nossa, se recuarmos uns trezentos anos - não distinguiam, pe los seus objectivos, o direito da moral ou da religião, confundindo mesmo, frequen- temente, o direito com a o rdem do mundo (a "natureza das coisas"), a qual também era expressa pela religião, pela moral , pelos costumes legados pela tradição. Os riscos de uma def inição assim densa - da qual transparece a autoconfiança que um grupo de espe- cialistas, que se presumiam dotados de poderes quase divinos para reconhecer o justo e o injusto, de forma a extrair daí normas jurídicas concretas - são, po r isso, muito grandes. Não apenas não se estabelece nenhum critério objectivo para reconhecer o direito na socie- dade, distinguindo-o de outras ordens normativas vizinhas que também aí existem (religião, moral social, utilidade comum) , como também não se definem, de forma objectiva ("argumentável", "inteicomunicável"), noçc~)es tão abstractas e dependentes dos sentimentos de cada um como as de "justo" ou "injusto" (em suma, de "justiça"). Finalmente, nada se diz sobre a legiti- midade dos processos adequados ou legítimos para prosseguir os valores visados. K neste sentido que se tem afirmado que uma definição de direito tão densa ([tlikk], M. Walzer r > 7 ) , tão dependente de "valores", e ( > 7 Michael Wal /er , Thick and Thin: Moral Argument at Home and Abroad, N o t r e D a m e , University ol Notre D a m e Press, 19(H). 8(> l C:AI . I i n o s c o i M o n o DIRKITO. . tão ind i fe ren te aos "processos" para os atingir, corres- p o n d e a unia Corina de totalitarismo. Poi\ ainda que os v a l o r e s estejam certos (e consensualmente certos para todos, ou para a maioria), todos os meios usados para os prosseguir íicam automaticamente legitimados (a m a g n i t u d e dos (ins justifica a pluralidade dos n ie ios ) ( i 8 . V i n t e séculos depois, uni jurista português notável, João Baptista Mat liado (1927-1991 ) r > < \ relaciona a exis- tência e a nature/a do direito com a abertura e indeterminação naturais ao homem (a que normalmente c h a m a m o s livre arbítrio, ou liberdade) e com a neces- sidade de compatibil izar estas características com a necess idade de vida em sociedade segundo regras c o m u n s 7 0 . Parece, à partida, uma noção menos exigen- M C o m o , q u a n d o es tamos p r e o c u p a d o s e m reilizar c e r t o s valores , "o c r i t é r i o d e validade da a c ç ã o ou d o juízo é a sua eficiência ein r e l a ç ã o a o fim ( . . . ] , p o d e n d o o mais nobre va lor justificar a m a i s abjec ta acção", isto leva C u s i a v o /agrebclsky a concluir q u e "o a g i r e o julgar "por valores" sã>, de l a c t o , re frac tár ios a c r i t é r i o s regulativos o u del imita i ivos de n a t u r e z a objectiva, n ã o p o d e n d o ser reconduz idos a r a z õ e s rac iona lmente controláveis [e as s imJ são incompatíve is c o m as es igencias d o Kstado d e Dire i to , pois contém i m p l i c i t a m e n t e u m ; p r o p e n s ã o totalitária" ("Dirit to p e r valori, pr incipi o r e g o l c (;i p r o p ó s i t o delia do t t r ina d e i principi di R o n a l d Dworkin)", em Qjiaderni 1'iomitini per la storia dei pensiero giuridico moderno, vol. . ' 11 (2002) . , , ( ) Sobre e le , v. h t tp: / /www.f í l ( )S í ) í iay( lerec l io .com / rt íd /n i in ie - r o 6 7 p o r t u g a l . h t m . 7 0 João B . M a c h a d o , Introdução ao direito e ao discurso legitima- dor, Co imbra , A l m e d i n a , 1 9 8 3 . I M A DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO I 87 te, pelo menos porque não liga o direito a um valor geral e abstracto (e "denso") como a justiça, mas apenas à necessidade de conduzir o homem para formas mínimas (e variáveis) de convívio. Tratar-se-ia, assim, de uma forma de amsensitalismo, estruturalmente semelhante á que subjaz às diversas concepções de contra to social desde o séc. xv i i l . N o entanto, o tema da Jus t iça retorna, a propósi to da dist inção entre a ordem jurídica e outras ordens normativas presentes na sociedade. Na verdade, c o m o o di re i to real i /a a sua função educativa a par com muitas outras instituições (i.e., s implificando, conjuntos orgânicos de normas), diz-se no rma lmen te que o que dis t ingue o direito dessas outras ordens normativas é o facto de as normas jur íd icas deverem ser cumpridas, n ã o apenas por um imperat ivo in terno, mas também - c o m o j á dizia Ulpiano - pela ameaça de sanções ou pela promessa de prémios . Porém, Baptis ta M a c h a d o - que escreve numa época muito sensível ao a b u s o da força por regimes autori tár ios ou total i tár ios, o t e rce i ro quartel do século X X - não se con ten ta c o m esta definição externa, pois caracter izar o direi to a p e n a s pe la coerci- bil idade das suas normas seria c o n s i d e r a r jur ídicas as normas aberrantes de a lguns desses r e g i m e s (persegui- ção po r motivos é tnicos , re l ig iosos o u pol í t icos, por e x e m p l o ) . Para u l t rapassar esta d i f i cu ldade , Baptista Machado apoia-se em Kar l L a r e n z ( 1 9 0 3 - 1 9 9 3 ) , um c o n h e c i d o ju r i s t a a l e m ã o dos m e a d o s do séc. X X , quando ele def ine o d i re i to c o m o " u m a ordem de convivência humana or ientada pela ide ia de uma ordem 88 I CALKIDOSCÓIMO DO DIREITO... «justa»" 7 1 . Seria esta referência à justiça que permitiria distinguir as normas do direito de uma ordem de força ou da regra que a si mesmo se dá um bando de salteadores (p. 3 2 ) , repet indo uma questão que já tinha sido posta, nestes mesmos termos, por Santo Agostinho ( 3 5 4 - 4 3 0 d.C.). Voltando aos clássicos - que é sempre uma forma eficaz de dispor bem o auditório - lembremos um outro texto do Digesto. Aquele em que Gaius (séc. III?) dis t ingue o direi to natural, baseado na natureza humana (outro valor denso e, logo, proble- mático nos dias de hoje) , do direito civil (i.e., da cidade), definindo este c o m o "o que cada povo ins- tituiu para si, a que se chama civil, como que «próprio da cidade»" (1)., I, I, 9 ) ; e que, portanto, constituía como uma "promessa comum e solene da cidade", como acrescentará Papinianus (D., 1, 3, 1). Estes dois textos - típicos do republicanismo romano - introduzem uma ideia que nós hoje podemos entender muito bem e que expr imimos pelo pr incípio do direito democrá- tico: o direito é aquilo que um povo estabeleceu, solenemente (ou seja, respeitando certas formalidades), Para l e v a r m o s es ta a f i r m a ç ã o a sério, temos q u e e squecer p i e d o s a m e n t e a l g u m a s d a s pos ições d e Larenz sobre a exc lusão dos j u d e u s d a c o m u n i d a d e j u r í d i c a a l e m ã . Ele p r ó p r i o o c u p o u a c á t e d r a d o filósofo d o d ire i to G. Husserl , a fas tado do e n s i n o p o r ser j u d e u . Enf im, e r a m os t e m p o s d o nazismo, e m que os tais sent idos d e j u s t i ç a se o b s c u r e c e r a m para muita gente . C) que j á diz a lgo s o b r e a sua fal ibil idade. . . UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 89 para se reger a si mesmo. Princípio este que, hoje, está estreitamente ligado ao da soberania popular. Normalmente , este direito querido pe lo povo con- cretiza-se (i) num momen to consti tuinte originário, numa Constituição; (ii) em momentos constituintes sub- sequentes, e m reformas ou revisões (ou emendas [angli- cismo]) a essa constituição; e, instituída a constituição, (iii) na edição de normas jurídicas pelos órgãos que ela declare competen tes para tal. Esta posiçãoquanto à definição do direito - que identifica o direito com uma vontade, a vontade expressa mais ou menos so lenemente pelo povo - é denominada, tradicionalmente, de positivismo legalista ou legalismo. A fama de que o positivismo gozou, sobretudo nos últimos c inquenta anos, não foi br i lhante , porque ele apareceu no rma lmen te associado à conversão da von- tade arbitrária de Estados autoritários em direito legí- timo - ou seja, em direito a que se devia o b e d e c e r 7 2 . E, por isso, muito se tem escri to con t ra esta con- cepção7'*. / 2 Veja-se, a i n d a ho je , o ar t ." 8 . ° d o C C ( s o b r e t u d o o seu n.° 2 ) . A sua g e n e a l o g i a a s c e n d e , e m P o r t u g a l , a o E s t a t u t o Jud ic iár io d o E s t a d o N o v o , nos a n o s 3 0 d o séc . XX. l S A v u l g a r i z a ç ã o des ta ideia d a r e l a ç ã o e n t r e l ega l i smo e total itarismo deve-se a G. R a d b r u c h ( d e m i t i d o pelos naz i s e m 1 9 3 3 : Gustav R a d b r u c h , "(¿esetzlich.es U n r e c h t und ü b e r g e s e t - zliches Recht" , Siiddeutsche Juristerizeitung, 1 ( 1 9 4 5 ) , 1 0 5 - 1 0 8 ) . Mas tem v i n d o a ser p o s t a em causa p o r e s t u d o s mais r e c e n t e s sobre o d i re i to sob o naz i smo e sob o l e n i n i s m o - c s t a l i n i s m o : 90 I CALEIDOSCÓPIO DO DIRKITO. Kin lace desta polémica, a pr imeira coisa que se deve observar é que o Icgalismo n ã o (oi, na época contem- porânea, um atributo c a r a c t e r í s t i c o das políticas auto- ritárias do direito. Pelo c o n t r á r i o . Ele prevaleceu na lase inicial da Revolução F r a n c e s a , justamente aquela que correspondeu ao p e r í o d o de mais enfática afirma- ção da soberania popular. )á antes , nos Estados Uni- dos, se manifestara coin u m e n o r m e vigor, logo no preâmbulo da Consti tuição federa l , de 1778 (21 .6) : "We lhe people of lhe United States, in order to form a more perfect union, establish justice, insure domestic tranquility, provide for the c o m m o n defense, promote the general welfare, and secure the blessings ol liberty to ourselves and our posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America"1 x. Constituição que, como j á vimos, t ambém declarava formal e enfaticamente que n inguém deveria ser tão ousado que se atrevesse a suspender ou de ixar de c f , Michael Stolleis, 77/./' Law under the Swastika: Studies on Legal History in Nazi Germany, C h i c a g o : I 'niversitv o f C h i c a g o Press, 1 9 9 8 ; Joerges /S ingh Ghalc igh ( eds . ) . Darker Legacies of Laic in Europe: The Shadow of National Socialism and Fascism over Europe and its Legal Traditions. With a prologue by Michael Stolleis and an epilogue by JHH Weiler, H a r t Publishing, 2()<>:i. / l Klementos his tóricos básicos sobre o p r o c e s s o cons t i tuc io - nal n o r t e - a m e r i c a n o , xig., e m http://vvwvv.archives.gov/national archives-exper ience /charters /const i tut ion_( i_and_a.html . Exaust iva ind icação das fontes do princípio const i tuc ional d e que é a v o n t a d e d o povo q u e deve decidir a c e r c a d a C o n s t i t u i ç ã o e d o direi to , eme está n a base da p r o c l a m a ç ã o "we the People [...]", e m ht tp : / /pres s -pubs .uch icago . edu / founders / to ( s/v 1 c h 2 . h t m l . UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 91 executar as leis ["All power o f suspending laws, or the execution o f laws, by any authority, without consent o f the representatives o f the people, is injurious to their rights, and ought not to be exerc i sed]" . O mesmo aconteceu em Inglaterra, país considerado, desde o início da época contemporânea , c o m o um modelo de liberdades e de democracia; aí, não só se prolongou até hoje o princípio da soberania do parlamento, como também a tradição jurídica inglesa tem sido, nos últimos duzentos anos, fortemente marcada pelo posi- tivismo legalista (John Austin [ 1 7 9 0 - 1 8 5 9 ] ; H. L. Hart [1907-1992] , Joseph Raz [ 1 9 3 9 - . . . ] ) 7 5 . Km contrapartida, as posições antilegalistas têm consti tuído um sinal característ ico da política do direito de Estados autori- tários, para os quais a lei (ou a const i tuição) - mesmo que sejam as suas leis e as suas consti tuições - podem ser sempre um embaraço para o arbítr io do poder. E, por isso, os líderes desses Estados frequentemente apelaram para normas ou valores supralegais (como o direi to natural, o génio nacional, o interesse do povo ou da Nação, a tradição, a opor tunidade política, a moral e os bons costumes, a religião, quando não para a simples vontade de chefes carismáticos) para ultra- passarem os limites rigorosos da lei ("decisionismo") 7 0 . 7 ; > C L unia breve s íntese e m http://en.wikipedia.org/wiki/ Legal_posit ivism Legal_positivism_in_the_Knglish_speaking_worlcl . / ( ) U m e x e m p l o : a C o n s t i t u i ç ã o d o E s t a d o Novo ( 1 9 3 3 ) d e c l a r a v a que "A N a ç ã o p o r t u g u e s a const i tui u m Estado inde- p e n d e n t e , cuja soberan ia só r e c o n h e c e c o m o limites, na ordem i n t e r n a , a m o r a l e o d i r e i t o [...]" ( a r t . ° 4 ) . O r a nem esta 92 I C A L E I I X X S C Ú P K ) I X ) DIREITO. M e s m o que fosse c e r t o q u e o impér io da lei serve os r e g i m e s autor i tár ios , h o j e e m dia, muitos dos argu- mentos ant i legal i s tas c o r r e n t e s n o imediato pé)s-guerra podem s e r revert idos ou acau te lados . Km p r i m e i r o lugar, t e m o s que constatar que a d e m o c r a c i a polí t ica - n o r m a l m e n t e na forma de d e m o c r a c i a representat iva - é a forma política larga- mente d o m i n a n t e no m u n d o cultural que constitui a nossa re fe rênc ia . K, por isso, todos os argumentos que se t i ravam do carácter autori tár io, arbitrário, ditatorial da lei (aqui lo a que i r on i camen te j á se chamou de r e f e r e n c i a , logo p r e l i m i n a r à m o r a l e a o d i re i to - que os juristas de e n t ã o t e n d i a m a ident i f icar c o m o d ire i to n a t u r a l - , impediu o c a r á c t e r autor i tár io e f r e q u e n t e m e n t e a r b i t r á r i o da a c ç ã o d o E s t a d o o u a p r o m u l g a ç ã o de leis p r i m a r i a m e n t e ofensivas das l iberdades de opin ião c d e e x p r e s s ã o d o p e n s a m e n t o . A impor- tânc ia d a lei na sa lvaguarda c o n t r a os ac tos arbi trários d o p o d e r a i n d a foi mais c l a r a nos to ta l i tar i smos n a / i e bolchevista, e m que a v o n t a d e do Führer , do P a r t i d o ú n i c o ou d o s seus comissár ios pol í t icos tinha força de lei. O dccis io i i i smn c o m o fundamento do d i re i to foi t eór ica e f i losof i camente justificado p o r C a r l Schmit t (Carl Schmitt , Ibldische Theologie: l'ier Kapitel zur Lehre von der Souveränität, M ü n c h e n , 1 9 2 2 ) , m e m b r o d o Pan ido Nacio- nal-socialista (ab 1 9 3 3 ) e p r i n c i p a l t eor i zado! d o direito nazi ( m a x . Staat, Bewegung, Volk: Die Dreigliederung der politisdien Einheit, 1 9 3 3 ) , m e m b r o d o C o n s e l h o de E s t a d o d a Prúss ia , e de fensor de que o princípio const i tuc ional f u n d a m e n t a l d o III Re ich e r a a vontade do F ü h r e r ( „ F ü h r e r t u m " ) e n ã o a m e r a l ega l idade („Der Wille des Führers ist Cesetz") . Dito isto, não é justo i g n o r a r como os valores ' jusnatural i s tas" (ou "supralegalistas") da justiça, da l iberdade, da igualdade, e tc . , fundaram a r g u m e n - tos políticos muito importantes n o c o m b a t e ás d i taduras . UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 93 redução ad Hitlerwn11) constituem sobrevivencias de um m o m e n t o histórico que não existe mais. E m segundo lugar, segundo o antilegalismo,a recusa do n o m e de direi to às "leis injustas" teria a vantagem de lhes negar o carácter jur íd ico e, logo, cogen te ou obrigatór io. Ora , se estudarmos a história da resistência aos regimes totalitários dos anos 3 0 e 4 0 do séc. X X , consta taremos duas coisas. A primeira delas é que a esmagadora maioria dos juristas - mesmo em países de bri lhante tradição jurídica - raramente usou este argumento para justificar o direito (ou mesmo dever) de resistência às leis aberrantes; pelo contrário, elas foram invariavelmente aplicadas com o assenti- men to ou colaboração do corpo dos juristas e dos juízes . Mas, mais do que isso, a existência potencial deste argumento a favor de um "combate jur íd ico às ditaduras" não raramente constituiu uma diversão de formas mais eficazes de se lhes opor, desde as formas aber tamente políticas (a começar pela crítica política da lei, que não lhe nega o valor de lei, mas a critica nos seus fundamentos políticos, morais ou religiosos) às formas de resistência ou de revolta, legal ou ilegal, passiva ou activa. Hoje , em contrapartida, o contexto político é outro. E, sobretudo, outros são os riscos que ameaçam o princípio do direito democrático. 7 / Tra ta - se d e u m trocadi lho c o m a e x p r e s s ã o reduvtio ad absurdinn, a r g u m e n t o que consiste e m a t a c a r u m a propos ição m o s t r a n d o que e la conduz a resultados absurdos . 94 I CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO. . O p r i m e i r o risco é o de que alguém se substitua ao povo na tare ia de c r i a r d i re i to . Isto pode acon tece r de vár ias formas, algumas das quais bas tan te ant igas na t rad ição ju r íd i ca ocidental, d o m tuna delas já nos def rontámos , nesta curta intro- dução: pressupondo (i) que exis te um direito "natural", oti " rac ional" , ou " c e r t o " - ou seja, que existem respostas independen tes da cultura, dos interesses ou das opin iões , para a pergunta "isto é ou não justo?" 7 8 - e (ii) que os juristas, pelo seti saber ou pelo seu t re ino, são capa/.es de descobr i r essas respostas, a ten tação é grande pa ta substituir ao direi to de raiz democrá t ica um outro de raiz aristocrática, formulado por uma eli te de especial is tas. Pois se passaria no direi to aquilo que se passa e m outros ramos do saber - c o m o a matemática ou (em m e n o r grau.. .) a medicina - em qtie as decisões sobre as "soluções certas" não d e p e n d e m do voto. Daí que o dire i to - c o m o "ciência do j u s t o " - não pudesse ser dir igido por um princípio / H Q u e ex i s t e um dire i to "certo" , n a r e e e n t e forniulacao de R o n a l d Dworkin (V. Dvvorkin, "No right a n s w e r ? ' , in Law, Morality and Society, Essays in Honour of II. L. Hart, P. M. S. H a c k e r & J o s e p h R a / ( e d . ) . C l a r e n d o n Press, O x f o r d , 1 9 7 7 , 5 8 ss. e "Is t h e r e Really N o Right Answer in H a r d Cases", in A Matter of Principle, H a r v a r d Univ. Press, C a m b r i d g e ( M a . ) , 1 9 8 4 , 1 1 9 ss.). O u t r o t e x t o i t i teressante ( a g o r a m i m sentido posi t iv is ta): E u g e n i o Bulygin, "Objectivity o f Law in the View o f L e g a l Positivism", Analisi e diritlo 2 0 0 4 , a cura di P. C o m a n d u c c i e R . Guast in i ( = http:/ /www.giuri . i inige. i t / intro/dipist /digita/t i lo/ t e s t i / a n a l i s i _ 2 0 0 4 / 1 5 b u l y g i n . p d f ) . UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 95 democrático, sendo, antes pelo contrário, um domín io própr io de um saber de autoridades (um saber "dog- mático", i.e., que devia ser aprendido de uma aristocra- cia de especialistas, e não estabelecido pela vontade dos cidadãos). Não é raro que esta argumentação seja reforçada, salientando as deficiências conhecidas do sistema democrático, nas suas várias versões, nomeada- mente na actuais democracias representativas, proble- matizando ainda mais a bondade, só por esta razão, de um direito democrát ico, d o m o veremos (cf. infra, I I I , n.° 11.4), esta suposição de que os juristas consti- tuem um grupo socialmente neutro, dominando uma ciência e dotado de uma especial perspicácia axiológica ou de uma autoridade intelectual que torna as suas decisões indiscutíveis, tem sido posta em causa pela generalidade dos cientistas sociais e dos epis temólo- g o s 7 9 . Dadas estas dúvidas, não há fundamentos bas- tantes para substituir um direi to de raiz democrát ica , fundado na sensibi l idade comuni tá r ia da jus t i ça , expressa pelos processos democra t i camente estabele- cidos, por uni outro de raiz aristocrática, baseado numa pretensão de sabedoria que nem a epistemologia, nem a sociologia, têm podido demonstrar . O segundo risco para o pr inc íp io do direito demo- crát ico é o da substituição de um direito de raiz 7 9 Não se exc lu i , c o m o q u e a c a b o d e dizer, a f u n ç ã o e s c l a r e c e d o r a , o r i e n t a d o r a d a d i s c u s s ã o e e s tab i l i zadora d a s so luções , que os jur i s tas p o d e m d e s e m p e n h a r na rea l i zação d o d i r e i t o . <)<> I C A L E I D O S C Ó P I O D O D I R E I T O . . . democrática p o r um outro baseado em normas preten- samente na tu ra i s , impostas pela própria natureza das relações h u m a n a s . A ideia é antiga. Km todas as épocas houve a t e n d ê n c i a para crer, ingenuamente, que as normas de vida e n t ã o aceites eram as normas ditadas pela natureza, das coisas, do homem, das relações sociais e h u m a n a s (das relações familiares, das relações amorosas, do exe rc íc io cio poder, cios negócios, e t c ) . Abordaremos brevemente duas manifestações desta tendência. Hoje, insiste-se muito na lé>gica das relações econó- micas - segundo os padrões do actual capitalismo avançado - c o m o um modelo forçoso de organização das relações, não apenas económicas, mas, em geral , das relações humanas . Nesta perspectiva, valores como o da rentabi l idade económica, da expansão do mercado, da submissão de todos os juízos de valor (incluindo os do direito) a uma análise custos-benefí- cios, seriam tão incontornáveis que contra eles não poderia valer a soberania popular ou o princípio da decisão democrá t ica do direito. Todavia, a observação das sociedades históricas, ou mesmo das actuais, mostra que a economia já prosseguiu de muitas formas o combate à escassez, a produção de bens, a optimização social das vantagens, a distribuição cio produto, a ponderação dos custos e dos benefícios, a distribuição de uns e outros ou pelos particulares ou pela comu- nidade; de tal modo que alegadas leis naturais ou inevitabilidades, neste domínio, não são empir icamente comprováveis , podendo, pelo contrário, constatar-se a UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 97 existência cie postulados culturais e polít icos subjacen- tes a todas as análises e c o n ó m i c a s 8 0 . S e n d o estes pos- tulados produto de convicções ou de escolhas contin- gentes (civilizacionais, comunitárias ou apenas de certos grupos), não têm lo iça bastante para se imporem às decisões comuni tár ias sobre o direito (v., infra, I I I . 10 e IV.14.2) . Uma outra manifestação de naturalização da cultura é algum do discurso que se taz em torno dos direitos naturais - ou "direitos fundamentais", consoante se adopte uma formulação mais "americana" ou uma mais "europeia". O princípio do direito democrát ico não tem outro fundamento senão o de garantir os direitos mais eminentes dos membros cia comunidade, a come- çar pelo direito de estabelecerem um direito como norma de vida comum, do qual decorrem, para todos, direitos e deveres. Naturalmente que este direito de estabelecer uma norma cie vida comum - uma ordem ou forma da República - só se justifica enquanto vise, em última análise, o respeito cios direitosdos cidadãos. Mas, como a vicia comum é impossível se os direitos pes- 8 0 K neste sent ido q u e soc ió logos , a n t r o p ó l o g o s e historiado- res insistem e m q u e o cá l cu lo e c o n ó m i c o é "culturalmente embebido" (a e x p r e s s ã o c d e Kar l Polanyi, 1 8 6 6 - 1 9 6 4 , sobre o qual , v. ht tp: / /en .wikipedia .org/wiki /Karl_Polanyi e a interessante n o t a , o r i e n t a d a j u s t a m e n t e p a r a a ques tão da desmistificação das "regras d o m e r c a d o " , e m http://www.tguide.org/Bulletin/polaii y i . h t m . ?)H I CALEIDOSCÓPIO ! ) ( ) DIREITO s o a i s , m e s m o os mais eminentes, forem intangíveis, n ã o pode haver direitos incomensuráveis, ou seja, não p o d e haver direitos que escapem, no seu exercício, a i i i n confronto , a uma ponderação, com os direitos dos o u t r o s (individuais ou de grupos 8 1 ) ou com os direitos d a própr ia comunidade , como garante do conjunto d o s direi tos de todos. Por isso, a defesa - hoje comum entre as mais rad ica i s correntes ideológicas liberais - cio princípio d e uma prevalência absoluta dos direitos individuais H [ E x e m p l o s d e d ire i tos d e grupos são o direito à identidade e s o b r e v i v ê n c i a cu l tura l , o d i r e i t o à paz e segurança colectiva, o d i r e i t o a u m a m b i e n t e são e acolhedor, o direito a um consumo s e g u r o , o d ire i to à p r e s e r v a ç ã o do patr i -mónio; estes direitos c o l e c t i v o s p o d e m ser p r o t e g i d o s p o r formas colectivas de reivin- d i c a ç ã o destes d i re i tos , c o m o a "acção popular" (art .° 52 da C R P ; sobre ela v. C a r l o s A d é r i t o Teixeira, "Acção Popular - Novo P a r a d i g m a " , e m http: / /ww\v.diramb. g o v . p t / d a t a / b a s c d o c / F C H _ 1 9 8 6 8 _ D . h t m ; M a r i a n a Sot to Maior, "O direito de acção popu- lar na C o n s t i t u i ç ã o da Repúbl ica Portuguesa", em Documentação e Direito Comparado, n . u s 7 5 / 7 6 ( 1 9 9 8 ) = http://www.gcldc.pt/ activiclacle-editoi ial/pclfs-public acoes/7f)7()-g.pdt; cí. Lei n.° 8 3 / 9 5 , d e :U d e A g o s t o - Direi to de par t i c ipação procedimental e de a c ç ã o p o p u l a r ; a lguns de les são sanc ionados penalmente : o caso mais p a t e n t e é o da c r i m i n a l i z a ç ã o d o genocídio p e l o dire i to pena l i n t e r n a c i o n a l e p o r muitos direitos nacionais; m a s poder - se - ia a p o n t a r a i n d a a cr imina l i zação d a guerra c o n t r á r i a aos pr inc íp ios d a C a r t a das N a ç õ e s Unidas , c o m o a t e n t a d o a o direito co lect ivo à p a z ; ou, n u m círculo a inda mais vasto, os delitos c o n t r a o a m b i e n t e , c o n t r a o p a t r i m ó n i o cultural, c o n t r a as boas prát icas nas re lações c o m os consumidores , etc. UMA DEFINIÇÃO REALISTA IX) D I R E I T O | 99 sobre o Direito (como ordem compat ib i l izadora , ou ponderadora, ou reguladora) pode ser cons iderada uma ameaça grave ao princípio do direito democrát ico. Por um lado, sem uma positivação (ou incorporação objectiva, um reconhec imento seguro) desses direi tos numa ordem jur íd ica , o que se instaura é o arbí t r io quanto à stta identificação, quanto ao estabelecimento do seu âmbito e quanto ao seu peso relativo perante outros direitos. K, com isto, corre-se o risco de que cada um ou cada juiz defina, recorte e valore o catálogo de direitos segundo as suas convicções pes- soais, impondo-as a todos c o m o o princípio ou fun- damento do Direito. Por outro lado, mesmo os direitos mais fundamentais não são abso lu tos 8 2 , pois têm que se medir com os direitos dos outros ou, se se quiser, com os deveres criados pela convivência no seio da República. O problema não é, em suma, o de "tomai' os direitos a sério" (R. Dworkin) ou não, pois todos quererão levar a sério os direitos seriamente estabele- cidos e ponderados. O problema é antes, por um lado, o de saber quem define séria e objectivamente esses direitos, sobretudo num mundo cultural e ideologica- men te plural como o de hoje; e, em segundo lugar, s i A vida c e d e , em cer tas o r d e n s jurídicas, p e r a n t e o direito d e punir; c o m o se e n t e n d e dever ceder , e m gera l , pelo devei de defesa da República (em g u e r r a justa); c e d e p e r a n t e o estado de necess idade ou a legí t ima defesa, que e x c l u e m a ilicitude doado d e m a t a r quando o a g r e s s o r se e n c o n t r e nessas situações de e x t r e m a inexigibi l idade. 100 I CALEIDOSCOPIO DO DIREITO... se se podem levar a sério os direitos de uns sem igualmente se levarem a sérios os direitos dos outros, isto é, sem se levar a sério a séria tarefa da sua ponderação. O terceiro risco que se coloca à democraticidade do direito é o da submissão do direito querido e posi- tivado por uma comunidade a um direito real ou alegadamente querido por uma comunidade mais glo- balizada. Embora a constituição de espaços jurídicos mais vastos, correspondentes a espaços de interacção humana também mais vastos, apareça como uma carac- terística dos nossos dias, há sempre que verificar se a participação nesses espaços de direito mais globalizado Ib i realmente querida pela comunidade mais restrita, se em relação a essa integração houve um momento constituinte em que a comunidade decidiu, segundo as normas da sua constituição, pelo menos aceitar como seu o direito instituído a um nível superior, de acordo com regras também pré-definidas e aceites. Caso con- trário, poderemos estar a submeter o direito consti- tuído democrat icamente a formas não democrat ica- mente legitimadas de estabelecer direit.o s :*. Dissemos que alguns dos argumentos contra o prin- cípio do direito democrát ico são obsoletos, que os outros não têm fundamentos empir icamente compro- váveis e que, por isso, o direito deve ser definido como 8 : i V., infra, a propós i to d o processo d e i n t e g r a ç ã o jur íd ica e u r o p e i a , cap . 12 .2 ( D e m o c r a t i c i d a d e d o d ire i to e i n t e g r a ç ã o jur íd i ca e u r o p e i a ) . UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO Dl REI'IX) | 101 aquela o rdem normativa que o povo soberanamente quis e constituiu para conviver. A questão qtie colocaremos de seguida é a de saber o que é isso de "o povo querer". Tratados têm sido escritos sobre esta pequena frase, in terrogando-se sobre o que é o povo? como é que o povo quer? como se manifesta a sua vontade? Sendo questões da teoria política pertinentes, mas pratica- men te indecidíveis, l imitar-nos-emos a explorar, no c a m p o mais especificamente jurídico, a resposta dada a esta questão pelas correntes do pensamento jur íd ico que, para não ficarem encerradas em posições dema- siado formalistas - c o m o as que só consideram c o m o expressão da vontade comunitária a lei parlamentar - , observam como é que, na real idade dos factos, a comunidade constitui direito. Referimo-nos às corren- tes realistas - vivazes, primeiro na França dos finais do sec. X I X , depois na Inglaterra e nos Estados Unidos e, mais recen temente , nos países escandinavos. 8 4 8 1 U s o p r o p o s i t a d a m e n t e o t e r m o I n g l a t e r r a , e não R e i n o U n i d o , p a r a s a l v a g u a r d a r a l g u m a s espec i f ic idades do d i r e i t o e scocês , p o r e x e m p l o .
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