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1 CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR A DISTÂNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CURSO: Letras DISCIPLINA: Português VIII CONTEUDISTAS: Ana Cláudia Machado Teixeira Luciana Sanchez Mendes Nadja Pattresi de Souza e Silva José Carlos Gonçalves Aula 5 – Pesquisa da Variação Sociolinguística Diatópica Meta Nesta aula, apresentamos a importância dos estudos da variação linguística diatópica e do reconhecimento da língua como um sistema vivo influenciado pelas relações culturais da comunidade linguística de um dado espaço geográfico. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: 1. Reconhecer e identificar a variabilidade da língua em função de seus contextos de uso responsáveis pelos regionalismos e falares locais; 2. Refletir criticamente sobre o uso da língua como representante dos costumes e da cultura de determinada região; 3. Constatar que as diferenças se localizam nas formas de pronúncias das palavras, no uso de diferentes vocábulos e nas estruturas sintáticas entre as regiões geográficas; 4. Compreender que as diferenças não representam valores, portanto não devem ser alvo de preconceito linguístico. 2 Introdução A língua natural é um sistema vivo e, por essa razão, ela se modifica, se matiza, se diversifica. Tais características são compreendidas como a variabilidade natural da língua e, nesta aula, estudaremos uma modalidade de variação: a diatópica (do grego “dia” = através de + “topos” = lugar). Em se tratando da língua portuguesa, um primeiro recorte geográfico que podemos promover é entre os falares do Brasil e de Portugal. As variantes fonético-fonológicas, lexicais, morfológicas e sintáticas entre esses falares ressaltam o quanto o espaço geográfico impacta e marca comunidades linguísticas. Por exemplo, podemos citar a diferença na pronúncia tanto das vogais átonas quanto das tônicas que aqui são claramente pronunciadas e, em Portugal, costuma-se "eliminar" as vogais átonas, pronunciando bem apenas as vogais tônicas, como em esperança > esp'rança. Com relação a variantes lexicais, ressaltamos as do tipo fila/bicha, banheiro/casa de banho, trem/comboio, moça/rapariga, ponto de ônibus/paragem, pedestre/peão e tantas outras. Além disso, na variedade não-padrão do português do Brasil, há uma simplificação da morfologia verbal que fica reduzida a duas pessoas: a 1ª do singular e as demais, como em: eu como e tu/ele/nós/vós/eles come, enquanto que, em Portugal, mantém-se uma morfologia mais variada/diversificada. No que se refere à sintaxe, em Portugal, usam-se, com mais frequência, os pronomes clíticos (eu o promovi), enquanto, no Brasil, é mais comum o uso do pronome pessoal nominativo em função acusativa: eu promovi ele. Como se pode perceber, diferenças geográficas marcam culturalmente comunidades linguísticas. É importante lembrar, conforme estudamos na aula sobre a formação do léxico, que o português foi estabelecido como língua oficial do Brasil em 17 de agosto de 1758 por meio do Diretório de Marques de Pombal, proibindo-se o uso da língua geral. Nessa altura, devido à evolução natural da língua, o português falado no Brasil já tinha características próprias que o diferenciavam do falado em Portugal. 3 INÍCIO DO VERBETE Conforme Rodrigues (1996) aponta, língua geral é um termo que especifica determinada categoria de línguas oriundas da América do Sul nos séculos XVI e XVII em condições especiais de contato entre europeus e povos indígenas. Tal termo recebeu sentido bem definido no Brasil nos séculos XVII e XVIII, quando passou a designar as línguas de origem indígena faladas por toda a população originada no cruzamento de europeus e índios tupi-guaranis (especificamente os tupis em São Paulo e os tupinambás no Maranhão e Pará), a essa população foi se agregando um contingente de origem africana e contingentes de vários outros povos indígenas, incorporados ao regime colonial, em geral na qualidade de escravos ou de índios de missão. FINAL DO VERBETE Nesse sentido, afirmamos que língua é identidade. Não iremos nos aprofundar nessa questão já que refletimos sobre esse tópico na aula 04. Convém ressaltar, entretanto, que essa identidade, dentre outros fatores, deve-se ao fato de que “a inserção de qualquer falante na língua é sempre altamente pessoal, circunstancial, e isso faz da língua um fator de identificação muito eficaz; […] as pessoas se identificam com uma língua, ou se identificam entre si através de uma língua” (ILARI, 2004). Embora nossa língua seja altamente organizada, é variável, ou seja, é um sistema flexível. Dessa forma, nenhuma língua viva é fixa, fechada ou sólida. No Brasil, em que a língua portuguesa é o único idioma oficial, a língua pode sofrer diversas alterações feitas por seus falantes. O português que é falado no Nordeste do Brasil pode ser diferente do português falado no Sul do país. Obviamente, um idioma nos une, mas as variações podem ser consideráveis e justificadas de acordo com a comunidade na qual se manifestam. Calcula-se que existem mais de 200 milhões de pessoas que falam português em todo o mundo. Difícil manter uma uniformidade dentro dessa diversidade, certo? Dentro dessa diversidade toda não existe uma unidade linguística. Só no Brasil, temos por volta de duzentas línguas faladas em diversas partes do país, temos sobreviventes das antigas nações indígenas e comunidades de imigrantes estrangeiros que até hoje mantêm 4 viva a língua de seus ancestrais. Essa constatação refere-se apenas à diversidade do português em função das diversas línguas aqui faladas, apesar de predominar a ideia de que o português do Brasil é monolíngue. Imagine se compararmos com o português europeu, as variedades do português africano... Você conhece alguma pessoa brasileira que tem um sotaque diferente? Como é o sotaque? Já se perguntou de onde ele herdou essa maneira de falar? Você sabe por que as pessoas falam de diferentes maneiras? Citando um exemplo regional mais específico, notamos que o português falado em algumas cidades do interior do estado de São Paulo e de Minas Gerais pode ganhar o estigma pejorativo de incorreto ou inculto, mas, na verdade, essas diferenças enriquecem esse patrimônio cultural que é a nossa língua portuguesa. Observe o quadrinho do site HumorTadela e veja como essa variação linguística pode ocorrer: Nesse caso, há, na fala do personagem, um exemplo comum de variação linguística. É importante ressaltar que o código escrito, ou seja, a língua sistematizada e convencionalizada na gramática, geralmente não sofre grandes alterações, uma vez que é preservada. 5 Isso acontece em função de uma pressão por estabilidade porque não podemos decidir aleatoriamente como falamos. Se, de um lado, a variabilidade é um processo intrínseco a uma língua natural, de outro, a comunicação precisa ser estabelecida e, para isso, não podemos prescindir de um sistema linguístico determinado por certas regras que visam a possibilitar a comunicação. Contudo, o que o desenhista da tira fez pode ser compreendido como expressividade de um determinado falar, já que ele reproduziu, para a modalidade escrita, a variação linguística presente na modalidade oral. 2. Variação geográfica A variação geográfica é a mais conhecida e fácil de identificar, é a variante de uma determinada região, chamada também de variação diatópica. É marcada por distinções na pronúncia das palavras, no uso de diferentes vocabulários e nas estruturas sintáticas. Nocaso específico da variação diatópica, um conjunto de marcas singulares de determinado grupo recebe o nome de dialeto regional. Como exemplo de dialeto regional representativo da variação diatópica, encontramos certas palavras com significados que necessitam de “tradução”. Esse é o caso de “pastelaria” que, no Brasil, designa um local em que se vendem principalmente pastéis. Porém, em Portugal, vamos à pastelaria comprar pães, doces, bolinhos e outras guloseimas do gênero. Ainda tomando por base o léxico regional Brasil-Portugal, no último, um carro velho e muito usado é apelidado de chocolataria, já no Brasil vamos à chocolataria comprar ou comer bombons e outros produtos à base de cacau. INÍCIO DE VERBETE Definição de dialeto do Dicionário Houaiss: “Um dialeto é qualquer variação regional de um idioma que não chegue a comprometer a inteligibilidade mútua entre o falante da língua principal com o falante do dialeto". FINAL DE VERBETE 6 É importante mencionar que não podemos confundir sotaque com dialeto, pois, o que caracteriza o primeiro é apenas a diferença de pronúncia dos falantes. Conforme ressalta Lyons (1981: 252), “A questão é que certas diferenças fonéticas entre sotaque podem ser estigmatizadas pela sociedade, da mesma forma como certas diferenças lexicais e gramaticais entre os dialetos o são. O sotaque e o dialeto de uma pessoa variam sistematicamente segundo a formalidade ou a informalidade da situação em que se encontra.” Em nosso país, são inúmeros os exemplos de dialetos regionais. Para exemplificar, destacamos algumas expressões do dialeto paulistano que se vale de sentenças como: “Fulano me trinca os ovo!”, que é empregada quando se reclama de alguém ou de alguma atitude de certa pessoa ou “Cicrano mente pro tio”, quando se quer dizer que o fato ou acontecimento narrado é inacreditável. No exemplo mencionado, há, também, uma variação de outro tipo: a diastrática, ligada aos níveis sociais, que será estudada na aula 06. Neste momento, vamos nos ater à variação do tipo diatópico, porém há de se ressaltar que as variáveis se interpenetram em função de suas especificidades, ou seja, suas variações, e, portanto, numa determinada região geográfica determinados falares são caracterizados por fatores que têm a ver com a identidade dos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade de fala. Um exemplo bem conhecido é o “r” caipira que identifica um falante do interior do estado de São Paulo, por exemplo, mas também pode indicar a classe social desse mesmo falante. Nesse caso, o primeiro indicaria a variação diatópica e o segundo, a variação diastrática. Dialeto, então, pode ser definido como um conjunto de marcas linguísticas de natureza semântico-lexical, morfossintática e fonético-morfológica, restrito a certa comunidade inserida numa outra maior de falantes da mesma língua. Trata-se, portanto, de uma variedade linguística que pode coexistir com outra. Como no exemplo do quadrinho do HumorTadela, no português do Brasil, temos o dialeto caipira. 7 Algumas vezes, essa variante é muito distinta, a ponto de dificultar a troca interativa, mas, na grande maioria dos casos, a variante não impede a compreensão, principalmente, por causa dos fatores de textualidade, intencionalidade e aceitabilidade, que atuam na comunicação, a partir do engajamento dos interlocutores. Nesse sentido, de um lado o autor/falante/locutor busca construir seus textos de forma a produzir algo que seja compreendido assim como o leitor/ouvinte/interlocutor procura interpretar o texto como coerente, coeso, de utilidade e de relevância capaz de cooperar com os objetivos do seu interlocutor. INÍCIO PARA SABER MAIS Beaugrand e Dressler (1981) tomam por base sete fatores que visam a dar conta da textualidade de quaisquer discursos, são eles: a coerência e a coesão que se relacionam aos elementos conceituais e linguísticos dos textos; a informatividade ligada ao grau de previsibilidade do texto; a intencionalidade e aceitabilidade correspondem aos papéis dos interlocutores diante de um texto; a situacionalidade e a intertextualidade relacionadas ao contexto de produção. Os últimos cinco fatores, considerados pragmáticos, estão envolvidos no processo comunicativo. FIM DE PARA SABER MAIS Atividade 01 Para esquentar os tamborins... Leia a letra do conhecido Samba do Arnesto, de Adoniram Barbosa, e a famosa canção Asa Branca, imortalizada na voz de Luiz Gonzaga. Como é muito melhor ouvir a letra das músicas, sugerimos que você acesse o site Youtube pelos links: https://www.youtube.com/watch?v=plOezZ6936Y, Samba do Ernesto, e https://www.youtube.com/watch?v=zsFSHg2hxbc, Asa Branca. 8 Samba do Arnesto Adoniram Barbosa O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás Nós fumos não encontremos ninguém Nós voltermos com uma baita de uma reiva Da outra vez nós num vai mais Nós não semos tatu! (2x) No outro dia encontremo com o Arnesto Que pediu desculpas mais nós não aceitemos Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa Mas você devia ter ponhado um recado na porta O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás Nós fumos não encontremos ninguém Nós voltermos com uma baita de uma reiva Da outra vez nós num vai mais No outro dia encontremo com o Arnesto Que pediu desculpas mais nós não aceitemos Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa Mas você devia ter ponhado um recado na porta Um recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância, Assinado em cruz porque não sei escrever" Asa Branca Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira Quando “oiei” a terra ardendo Qual fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, uai Por que tamanha judiação (bis) Que braseiro, que “fornaia” Nem um pé de “prantação” Por “farta” d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão (bis) Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse adeus Rosinha Guarda contigo meu coração (bis) Hoje longe muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Para eu voltar pro meu sertão (bis) Quando o verde dos teus “óio” Se espalhar na prantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu, meu coração 9 a) Compare as letras e identifique as marcas linguísticas (palavras, estruturas sintáticas) que apontem regionalismos. b) Você saberia identificar qual região específica cada canção representa? c) Reescreva as letras das músicas de acordo com a variedade regional informal de sua cidade. Resposta comentada: Na questão “a”, é importante a identificação de todas as variantes, sejam lexicais, morfológicas ou sintáticas, como por exemplo: Arnesto, fumos não encontremos, Nós voltermos, nós não se importa, Quando oiei, uai, judiação, fornaia, um pé de prantação, por “farta” d'água , Hoje longe muitas léguas. A questão “b” requer que você pesquise a identidade dos autores e suas respectivas representatividades regionais. A reescritura a que se refere a questão “c” se relaciona a sua própria identidade cultural e regional, portanto é livre. A intenção é de que você perceba as diferenças entre as variantes e como a língua representa a identidade, neste caso, regional. 3. Contato Outro fator importante a ser verificado na variação diatópica são os casos de contato linguístico. Observamos, nesse particular,que a proximidade geográfica facilita o intercâmbio entre os falantes e, assim, promove o contato entre os falares de regiões distintas e, muitas vezes, até entre culturas muito diferentes como é o caso das áreas de fronteira do Brasil. Por essa razão, é importante frisar que as variações diatópicas ocorrem no tempo e no espaço demarcando regiões dialetais ou fronteiras geográficas de determinado plano linguístico, conhecidas como isoglossas. Essas variações são condicionadas a fatores sociais, políticos, econômicos, culturais que, como vimos na aula 04, são estudados em todas as pesquisas de cunho sociolinguístico. Lembrando que essa abordagem linguística tem por objetivo a análise da heterogeneidade da língua vista pela interseção língua- 10 sociedade. Um exemplo de uma isoglossa é a demarcação da região nordeste e da sudeste do Brasil por meio da variação da vogal pré-tônica de algumas palavras como em “meninu” – “méninu”. Essa isoglossa do plano fonético é chamada de isófona. Outra questão importante a se destacar é as áreas de fala dialetal não estão congeladas no tempo e no espaço. E por quê? Como falamos na mesma aula 04, a língua é um organismo vivo, mutável, por excelência. Ela é a expressão da identidade de grupos de humanos que sofrem a ação do tempo e se deslocam no espaço. Então, contatos interlinguísticos ocasionados por migrações, empreendimentos comerciais e outras iniciativas de caráter público e privado interferem normalmente e produtivamente na língua, tendo em vista que é este um movimento natural de uma comunidade linguística. Portanto, quanto mais isolada no tempo e no espaço for a comunidade, a isoglossa, a região dialetal mais chances a variedade local têm de ser preservada. BOX PARA SABER MAIS Um exemplo do caso de preservação de comunidade linguística são as comunidades quilombolas que se localizam em regiões mais afastadas, num “insulamento”. O professor Antonio Carlos Santana de Souza apresenta no artigo intitulado “COMUNIDADES QUILOMBOLAS ENTRE O PASSADO E O PRESENTE: HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA E VARIAÇÃO DO PORTUGUÊS” exemplo de variante no nível sintático típico do quilombola de Damásio situado no município de Guimarães, Baixada Ocidental maranhense, no Nordeste brasileiro. Em (1), reproduzimos um exemplo de variação na concordância verbo-nominal e de gênero, que se observa apenas nas "terras de preto" estudado pelo professor Antonio Souza: (1) Então são esses, que são esses pessoa religioso (Jos:351 G3 H). Apresentando outros exemplos a fim de demonstrar que a língua falada pelos quilombolas de Damásio se mantém nesse insulamento. (2) É dos primeiro habitantes (índios) que existiu nesta nação! 11 (2a) Português padrão: É dos primeiros habitantes que existi[ram] nesta nação (2b) Português popular: É dos primeiro habitante que existiu nesta nação. Leia mais em: http://www.celsul.org.br/Encontros/10/completos/xcelsul_artigo%20(24).pdf Visite o site: http://www.jacaonline.com.br/2013/12/estudos-linguisticos-em-comunidades- quilombolas/ Algumas produções de destaque nessa área: FERNANDES, Helane de Fátima; CRUZ, Regina Célia Fernandes. Os ideofones, Marcas de identidade linguística do português falado pelas comunidades quilombolas de cametá (PA). In: Maria do Socorro Simões. (Org.). Populações e tradições às margens do Tocantins. 7ed. Belém: Editora UFPA, 2004, v. , p. 123-139. CRUZ, Regina Célia Fernandes. Identidade Linguística dom Português Falado pelas Comunidades Quilombolas de Cametá. In: VII Encontro Nacional IFNOPAP. Populações e Tradições às Margens do Tocantins: um diálogo entre a Cultura e a Biodiversidade, 2003, Bel. Abaetetuba Cametá Tucuruí. Populações e Tradições às Margens do Tocantins: um diálogo entre a Cultura e a Biodiversidade, 2003, p. 47-47. SOUZA, A. C. S. Pesquisas sociolinguísticas na comunidade negra rural da caçandoca: a concordância de gênero entre o sujeito e o predicativo. Sociodialeto (Online), v. 1, p. 1-24, 2011. FINAL DO BOX PARA SABER MAIS Outro tipo de contato linguístico agrupado na variação diatópica se apresenta em função da migração dos povos dentro do nosso território. Um caso relevante, apresentado pela pesquisadora Carla Regina de Souza Figueiredo, da Universidade Estadual de Mato Grosso 12 do Sul (UEMS), retrata a variação do português gaúcho em áreas de contato intervarietal em Mato Grosso a partir do comportamento linguístico de migrantes gaúchos. A autora informou que estudos tradicionais se pautam em pesquisas topostáticas que se preocupavam em levantar as variantes diatópicas realizadas entre falantes nascidos e criados na localidade a fim de registrar o uso da língua em áreas dialetais historicamente estabelecidas. A relevância do estudo, então, recai sobre as comunidades de fala caracterizadas pelo fluxo migratório, pelo processo de ocupação recente e, dessa forma, pelo contato linguístico. Os casos que a pesquisadora reporta tratam de ocupação/povoamento do espaço devido à transferência de empresas particulares de outras regiões do país para o Mato Grosso. Para realizar esse trabalho, o estudo combinou critérios como processo de povoamento, aspectos geográficos, demográficos, históricos e culturais, antiguidade e grau de isolamento de um lugar em relação a outros mais dinâmicos e desenvolvidos. A autora conclui que, em termos de variação diatópica em razão do contato linguístico via migração, se destacaram: “a) manutenção de marcas linguísticas da variedade original do português rio- grandense; b) mudanças linguísticas da variedade original do português rio- grandense motivadas pelo contato com demais variedades regionais presentes na área em estudo, e c) variações do português rio-grandense dos falantes migrantes gaúchos, considerando diferentes dimensões de análise (princípio da pluridimensionalidade), além de identificar os condicionadores sociais que atuam na manutenção, variação e mudança do português falado por migrantes gaúchos em contato com demais variedades regionais, em áreas do centro-norte do Mato Grosso, considerando as diferentes dimensões de análise”. INÍCIO DO BOX PARA SABER MAIS Vale a pena se inteirar da pesquisa da professora Carla Regina de Souza Figueiredo. O estudo da variação diatópica realizado por ela retrata uma realidade muito comum no nosso país: o fluxo migratório em função das demandas profissionais e de carreira, além, é claro, das de ordem financeira. Consulte a tese em: 13 https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/114436/000953700.pdf?sequence=1> FIM DO BOX PARA SABER MAIS 4. Como traçar um mapa linguístico do Brasil? Estamos acostumados a ver mapas com informações do tipo “divisão política”, “clima”, “vegetação”, “atividade econômica”, etc.; mas como seria um mapa que trouxesse dados de natureza linguística? Isso é o que vamos ver nesta seção que apresenta o projeto de mapeamento dos falares do nosso país. A esta altura, você já compreendeu que uma língua não permanece a mesma em toda a extensão territorial, ainda mais se tratando de um país continental como o nosso. Nesse sentido, a origem geográfica de um falante é certamente um dos traços mais marcantes de sua identidade. Como o conjunto de características que compõem a variedade diatópica gira em torno de fatores de ordem lexical, fonológica, morfológica, sintática, é natural assinalar e até mesmo distinguir falares regionais brasileiros como, por exemplo, o carioca, o mineiro, o nordestino, o paulista, o campineiro, o caipira etc. No entanto, sabemos que tais classificações,muitas vezes, são imprecisas e podem destoar da realidade linguística, até por que, como mencionamos anteriormente, a língua é viva e mesmo regionalmente pode sofrer a ação de outros fatores ao longo do tempo. Assim, não é tão simples isolar os tipos de variantes de uma língua, uma vez que estamos falando dos mesmos falantes que compõem outras esferas de ordem distintas: classe social, estilo, gênero, grau de escolaridade, idade entre outras. Estudiosos da linguagem ligados a correntes da dialetologia mais tardiamente e da Geografia Linguística ou Geolinguística mais recentemente se debruçam sobre esses fatores de forma mais particular com a intenção de mapear essas especificidades e descrevê-las em atlas ou mapas linguísticos. O estudo geolinguístico mais conhecido foi realizado por meio das pesquisas elaboradas pelo alemão Wenker e pelos franceses Gilliéron e Edmont, 14 colaborador do primeiro. Estes últimos são reconhecidos pelo Atlas Linguístico da França, divulgado nos primeiros anos do século XX, tendo o colaborador Edmont utilizado uma bicicleta para visitar grande parte do território daquela nação, a fim de documentar os falares regionais. BOX CURIOSIDADE Segundo Rodriguez (1997), “o alemão Georg Wenker (1852-1911) quis comprovar a validade das leis fonéticas dos neogramáticos nos dialetos alemães. Para isso, planejou o Atlas Linguístico da Alemanha Setentrional e Central, do qual apenas um capítulo foi publicado em 1881. Não obteve sucesso porque as isoglossas de determinados fenômenos não conseguiram definir as fronteiras dialetais. Este atlas só continha material fonético porque seu autor era adepto das leis fonéticas dos neogramáticos e não levou em conta outros fatores interferentes na variação linguística, além da analogia e do empréstimo. Fatores de alteração linguística de ordem social não foram considerados, o que determinou o fracasso do plano, pois o autor chegou a resultados opostos aos que esperava. O método de pesquisa para a realização deste atlas limitou-se a questionários enviados a religiosos e professores da extensa área rural estudada”. De todo modo, é importante ressaltar a importância do estudo como vanguardista e, por isso, inspirador de outros mais complexos e produtivos. O mesmo Rodriguez (1997) salienta que se costuma “reivindicar para a França a prioridade na Geografia Linguística, embora não fossem nesse país realizados os primeiros trabalhos nessa área. (...) porém o que coloca a França em destaque é a realização do bem sucedido Atlas Linguístico da França, publicado em Paris entre 1902 e 1910 pelo linguista suíço Jules Guilliéron (1854-1926). (...) Sendo nomeado professor de dialetologia da École des Hautes Études de Paris, sentiu-se preparado para realizar o estudo intensivo dos dialetos franceses. O dialeto da Île de France, como dialeto oficial do país, por conta de uma política extremamente centralista, impunha-se sobre os demais dialetos do país, levando-os paulatinamente à sua quase extinção. Gilliéron sentia premente necessidade de preservar estes dialetos e a melhor forma de realizá-lo era sua fixação documental em um atlas linguístico de amplas proporções”. FIM DO BOX CURIOSIDADE 15 No Brasil, os pesquisadores da Bahia têm se destacado no avanço do mapeamento dos falares do nosso país. O projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) desenvolvido por pesquisadores da Universidade da Bahia, que tem se destacado, já há algum tempo, na abordagem geolinguística da língua portuguesa do Brasil, tem por meta a realização de um atlas geral do Brasil no que diz respeito à língua portuguesa. Desejo que permeia a atividade dialetal no Brasil, durante todo o desenvolvimento dos estudos linguísticos e filológicos, ganha corpo nesse final/começo de milênio. Tal empreendimento visa mapear toda a diversidade dos falares regionais que busquem descrever a realidade linguística do português do Brasil, priorizando o levantamento das diferenças diatópicas de caráter sintático e léxico- semântico. Num segundo momento, a que os pesquisadores denominam de segunda geração, o interesse se volta a acrescentar interpretações acerca desse levantamento. Tal objetivo é importante por que tende a contribuir de forma reflexiva e pontual, por que baseada nos dados empíricos, com o desenrolar desses falares no que se refere à influência e ao papel de outros fatores inerentes ao sistema vivo da língua, tais como o intercâmbio cultural e, ainda mais, a troca, a comunicação em função do mundo rápido, tecnológico e globalizado em que estamos inseridos. O projeto encontra-se na terceira geração dos atlas geolinguísticos que, segundo eles, compreende a inclusão de “informações de natureza acústica que permitam o acesso direto à voz do próprio informante, em sincronização com a indicação do ponto onde ele se situa, ou exibição, via Internet, de cartas e localização de pontos de inquérito e respectivas ocorrências registradas”. A expectativa é de que se possam disponibilizar esses estudos ligados, em primeiro plano, às variedades diatópicas a um círculo maior de profissionais que possam subsidiar “o 16 aprimoramento do ensino/aprendizagem e para uma melhor interpretação do caráter multidialetal do Brasil”. Vamos examinar a figura abaixo que indica a rede de pontos mapeada e representa a Carta V do Atlas Linguístico do Brasil, segundo a ALiB. BOX PARA SABER MAIS O Projeto ALiB fundamenta-se nos princípios gerais da Geolinguística contemporânea, que prioriza a variação espacial ou diatópica e atenta para as implicações de natureza social que não se pode, no estudo da língua, deixar de considerar, com objetivos bem definidos e assim consubstanciados: Descrever a realidade linguística do Brasil, no que tange à língua portuguesa, com enfoque prioritário na identificação das diferenças diatópicas (fônicas, morfossintáticas e léxico-semânticas) consideradas na perspectiva da Geolinguística. 17 Oferecer aos estudiosos da língua portuguesa (linguistas, lexicólogos, etimólogos, filólogos, etc.), aos pesquisadores de áreas afins (história, antropologia, sociologia, etc.) e aos pedagogos (gramáticos, autores de livros-texto, professores) subsídios para o aprimoramento do ensino/aprendizagem e para uma melhor interpretação do caráter multidialetal do Brasil. Estabelecer isoglossas com vistas a traçar a divisão dialetal do Brasil, tornando evidentes as diferenças regionais através de resultados cartografados em mapas linguísticos e realizar estudos interpretativos de fenômenos considerados. Examinar os dados coletados na perspectiva de sua interface com outros ramos do conhecimento – história, sociologia, antropologia, etc. – de modo a poder contribuir para fundamentar e definir posições teóricas sobre a natureza da implantação e desenvolvimento da língua portuguesa no Brasil. Oferecer aos interessados nos estudos linguísticos um considerável volume de dados que permita aos lexicógrafos aprimorarem os dicionários, ampliando o campo de informações; aos gramáticos atualizarem as informações com base na realidade documentada pela pesquisa empírica; aos autores de livros didáticos adequarem a sua produção à realidade cultural de cada região; aos professores aprofundar o conhecimento da realidade linguística, refletindo sobre as variantes de que se reveste a língua portuguesa no Brasil e, consequentemente, encontrando meios de, sem desprestigiar os seus dialetos de origem, levar os estudantes ao domínio de uma variante tida como culta. Contribuir para o entendimento da língua portuguesa no Brasil comoinstrumento social de comunicação diversificado, possuidor de várias normas de uso, mas dotado de uma unidade sistêmica. Fonte: http://www.alib.ufba.br/content/objetivos FINAL DO BOX PARA SABER MAIS A título de exemplo, citamos a pesquisa de base morfossintática de Lairson Barbosa da Costa, baseada no projeto ALiB, que objetivou identificar a variação dos pronomes tu/você nas capitais do Norte. Os resultados obtidos pelo pesquisador atestaram a alternância entre o pronome tu e o você nas seis capitais que foram alvo de seu estudo, sendo que o primeiro é mais favorecido nas capitais de Belém, Manaus e Rio Branco e o último se destaca nas demais, quais sejam: Boa Vista, Macapá 18 e Porto Velho. É interessante observar que o grupo de fatores que foram controlados por Lairson incluem outras questões mais ligadas à variação diastrática: explicitação do pronome, escolaridade, tempo e modo verbal, localidade geográfica, faixa etária e gênero. Esse fato corrobora nossa observação anterior de que os tipos de variação não são estanques e ratifica a condição de sistema vivo, mutável atribuído à língua. INÍCIO do BOX PARA SABER MAIS Consulte a dissertação de mestrado do pesquisador Lairson B. da Costa e identifique todas as características apontadas por ele, bem como os fatores intervenientes na sua análise. O texto está disponível em: < http://repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/4808/1/Dissertacao_VaiacaoPronomesTuVoce.pdf>. FIM DO BOX PARA SABER MAIS Atividade 02 Testando sua memória! Vamos verificar se você assimilou alguns pontos dessa seção através do quiz abaixo. Responda CERTO ou ERRADO: O estudo geolinguístico mais conhecido foi realizado por meio das pesquisas elaboradas pelo alemão Wenker e pelos franceses Gilliéron e Edmont. Estudiosos da linguagem ligados a correntes da dialetologia mais tardiamente e da Geografia Linguística ou Geolinguística mais recentemente se debruçam sobre fatores como cor do cabelo, modo de se vestir, número de filho entre outros, com a intenção de mapear essas especificidades e descrevê-las em atlas ou mapas linguísticos. O Projeto ALiB apesar de se basear nos princípios gerais da Geolinguística contemporânea, não prioriza a variação espacial ou diatópica e não atenta para as implicações de natureza social por não ser seu objetivo. 19 Os resultados obtidos pelo pesquisador Lairson Batista da Costa atestaram a alternância entre o pronome tu e o você nas seis capitais que foram alvo de seu estudo, sendo que o primeiro é mais favorecido nas capitais de Belém, Manaus e Rio Branco e o último se destaca nas demais, quais sejam: Boa Vista, Macapá e Porto Velho. Seu estudo foi baseado no corpus do projeto ALiB. Resposta comentada. Se você compreendeu o assunta desta seção você respondeu com: Certo, Errado, Errado, Certo. 5. Diferenças fônicas Quando ouvimos músicas sertanejas, do interior de Minas Gerais, São Paulo ou Goiás, ou tipicamente nordestinas, como o forró, é comum percebermos que o sotaque não é o mesmo que os de outras partes do país. O mesmo acontece, por exemplo, quando ouvimos um funk ou um samba carioca e os comparamos a uma música típica do Sul do Brasil. Essas diferenças na pronúncia e no ritmo das palavras respondem pelos falares das diferentes regiões brasileiras e, ainda, pelos falares que podem ser encontrados dentro da mesma região. Atividade 03 Assista ao vídeo do repente, poema musicado e improvisado típico do Nordeste, cantado por Caju e Castanha, dois artistas pernambucanos. Observe diferenças na pronúncia de algumas palavras e compare-as à pronúncia típica da sua região. (link:<https://youtbe/quehPqK8-fQ>) Resposta comentada: No repente, a pronúncia do “t” e do “d” em palavras como “mentir”, “novidade”, “capital”, “mentira”, “medir”, e do “s” em “mosca” e “Paris”, por exemplo, 20 podem ser contrastadas com a pronúncia típica do falar carioca e também com o falar típico da sua região de origem. Conforme já dissemos, o sotaque se diferencia de dialeto e não estabelece distinção fonológica na língua portuguesa. O que ocorre, nesses casos, entre o falar carioca, o nordestino e o paulista, por exemplo, são diferenças fonéticas, isto é, aquelas que dizem respeito ao modo de realização concreta de determinados traços distintivos na língua. BOX PARA SABER MAIS Um fonema se define como um traço sonoro distintivo na língua, ou seja, é um elemento que tem a propriedade de diferenciar uma palavra da outra. Por convenção, na representação escrita, os fonemas são colocados entre barras simples. Por exemplo, entre as palavras “bata” e “pata”, a única distinção está no uso do fonema /b/ em uma palavra e no uso do fonema /p/ na outra. Por isso, dizemos que /p/ e /b/ são dois fonemas do português. Um fone, por sua vez, diz respeito apenas à realização acústica dos fonemas, isto é, ao modo como são pronunciados, ao seu som, o que pode variar de acordo com a posição do fonema na palavra, com as regiões geográficas e até mesmo com as características de cada falante. Os fones são convencionalmente transcritos entre colchetes. Assim, o fonema /r/ em uma palavra como “corda” pode ser realizado como o [] retroflexo, o “r” dito caipira, ou como [X], o “r” forte, que raspa no fundo da garganta, se for pronunciado por um falante da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo. Quando as diferenças entre os sons não distinguem palavras na língua, isto é, quando não funcionam como fonemas, temos o que se chama de alofonia. Para o fonema /r/ no final de sílabas ou de palavras (“corda”, “mar” etc.), há diferentes realizações fônico-fonéticas possíveis, isto é, diferentes alofones (o “r” retroflexo, o “r” forte, o “r” mais fraco). Como, nesses casos, não se modificam as palavras, podemos representar todas essas realizações fonéticas possíveis por uma forma abstrata: o arquifonema /R/. Um arquifonema, então, indica a perda da função distintiva de um som em dada posição na palavra. 21 Podemos associar os fonemas de uma língua e sua uniformidade a um quadro estável, próximo à ideia de um sistema organizado, ao passo que a variedade fonética estaria relacionada ao dinamismo da fala, ao uso dinâmico da língua. FIM DO BOXE O Atlas Linguístico Brasileiro (ALiB), já mencionado, também traz importantes descrições a respeito dessas características que, de acordo com o espaço geográfico, constituem falares diferentes. Vejamos alguns exemplos. Os pesquisadores do projeto registram algumas pronúncias possíveis para o fonema /r/ de acordo com as regiões do Brasil. O “r” retroflexo, dito caipira, aparece em regiões do interior do país, por exemplo; o “r” dito mais forte, em cidades como o Rio de Janeiro; o “r” mais suave em cidades do Nordeste e o “r” vibrado, em cidades de São Paulo e do Rio Grande do Sul. BOX CURIOSIDADE Em 2014, na Rede Globo, foi exibida uma série de reportagens especiais em que se entrevistaram os professores envolvidos no projeto do ALiB e se apresentaram essas diferenças marcantes entre os falares brasileiros. Para assistir aos vídeos da série Os sotaques do Brasil, visite a página: <https://redeglobo.globo.com/rpctv/noticia/2014/08/jornal-hoje-veja-todas-reportagens-de- sotaques-do-brasil.htm>. FIM DO BOXE Outro típico caso de variação fonética ocorre com o “s” em final de sílabas e de palavras. Talvez, o caso mais famoso seja o do “s” chiado, comparado por muitos ao ruído de uma panela de pressão e presente no falar carioca. Curiosamente, o “s” chiado não é exclusividadedo Rio de Janeiro e é comum também em Belém do Pará e em Florianópolis. Além desse uso, há também o “s” sem o chiado, pronunciado em cidades do Rio Grande do Sul e de São Paulo, por exemplo. 22 O uso das consoantes “t” e “d” também varia. Em geral, em português, elas podem ser faladas com uma leve fricção, com a língua em atrito com o céu da boca, antes das vogais “e” e “i”. Esse fenômeno também é designado como palatização. É o que vemos, por exemplo, no falar carioca para as palavras “tia” e “dia”. No entanto, no falar nordestino e em algumas regiões de São Paulo, as duas consoantes preservam a pronúncia alveolar, isto é, aquela em que a língua toca apenas a parte posterior dos dentes superiores, em qualquer contexto, inclusive antes das vogais “i” e “e”. Observamos, ainda, uma variação interessante quanto à pronúncia do “l” no Sul e em outras regiões do país. Entre os sulistas, quando a consoante aparece em final de palavras (“sal”, “avental”) ou de sílabas (“malvada”, “salgada”), é comum que seja pronunciada com a elevação da língua em direção ao alto e ao fundo da boca, o que se aproxima bastante da pronúncia do português de Portugal. Já nas demais regiões do país, o “l”, nesses casos, tende a ser falado como se fosse um “u”. Quanto às vogais, observamos a variação entre o timbre aberto e o fechado para as vogais médias “e” e “o”. Isso acontece nas sílabas pretônicas, ou seja, nas sílabas que antecedem a sílaba tônica das palavras, e demarca, em geral, uma diferença entre as regiões Norte e Nordeste, e Sul e Sudeste do país. Em palavras como “perfume”, por exemplo, tem-se a pronúncia com o timbre aberto, como se fosse “pérfume”, entre nordestinos. Já entre falantes do Sudeste, o som mais comum seria o de timbre fechado para o “e”. Sugerimos que você retorne à disciplina de Fonética e Fonologia do português que você já estudou em Português V e relembre os vários tipos de fonemas, alofones e demais assuntos dessa matéria. BOX PARA SABER MAIS Como já estudamos, um dos modos de se classificarem as vogais é pela altura da língua em relação ao palato, popularmente conhecido como “céu da boca”. Assim, temos que o “a” se apresenta como uma vogal baixa, o “e” e o “o” como vogais médias, e o “i” e o “u” como vogais altas. 23 Já o timbre, segundo o Dicionário Caudas Aulete da Língua Portuguesa (2012, p. 842), é “a sonoridade de uma vogal resultante do grau de abertura da boca para ser articulada”. Na convenção fonético-fonológica, o “e” de timbre aberto é geralmente representado como [ԑ] e o de timbre fechado como [e]. É importante lembrar que, em outros contextos, os dois sons são distintivos, isto é, são fonemas porque diferenciam palavras. Em “eu pelo o meu gato” e “o pelo do meu gato”, a diferença entre a primeira pessoa do verbo “pelar” e o substantivo “pelo” está justamente na troca do fonema “e” de timbre aberto,/ԑ/, pelo “e” de timbre fechado, /e/. FIM DO BOXE PARA SABER MAIS Outro caso interessante que se observa entre falantes do Sul e os do restante do país é a pronúncia do “e” em final de palavras. Você deve conhecer a brincadeira com a expressão “leite quente”, não é? Um falante de Curitiba, por exemplo, pronunciaria, de forma mais clara, o fonema /e/ no fim de palavras. Na maior parte das outras regiões, porém, inclusive aqui no Rio de Janeiro, o fonema /e/ seria realizado como um “i” mais fraco, não tônico. No primeiro caso a transcrição fonética seria: leite [‘lejte] quente [‘k~ete] e no último seria: leite [‘lejtSi] quente [‘ke͂tSi]. Ao final dessa breve descrição, é importante, uma vez mais, destacar que os falares regionais são igualmente eficientes e legítimos para a comunicação e para a interação em língua portuguesa. Por essa razão, não deveriam gerar avaliações ou julgamentos preconceituosos, como os que os rotulam de “certo” ou “errado”, ou de “feio” ou “bonito”. 6. Diferenças lexicais As diferenças lexicais são, possivelmente, as que mais chamam a nossa atenção quando viajamos para outras regiões do Brasil. Quem já comeu macaxeira ou aipim no Norte e Nordeste e mandioca no Sudeste percebeu essa propriedade da nossa língua. Quem já foi para o Sul e comeu bergamota sabe que se trata da mesma fruta que é denominada mexerica 24 ou tangerina no Sudeste. Esses são só alguns exemplos de variação lexical nas regiões do Brasil. Curiosamente, essas diferenças motivaram a publicação de obras como o Dicionário de Baianês, escrito por Nivaldo Lariú, e o Dicionário da Ilha Falar & Falares da Ilha de Santa Catarina, de Fernando Alexandre. Veja a seguir o que poderia ser uma parte do capítulo “comidas” de um dicionário de gauchês. 25 Dicionários desse tipo valem como curiosidade e podem evitar que os turistas que visitam esses lugares se atrapalhem na hora de fazer o pedido em um restaurante, por exemplo. Algum desavisado que, na Bahia, pede seu prato quente pensando que está caracterizando a temperatura do alimento pode ficar bem surpreso com a quantidade de pimenta de sua comida. Acontece que na Bahia, “quente” e “frio”, quando estão associados à comida, dizem respeito ao grau de picância e não à temperatura. Do ponto de vista da investigação linguística, porém, há trabalhos acadêmicos que procuram delimitar geograficamente o uso de uma palavra com as ferramentas disponíveis da Dialetologia, da Geolinguística e da Lexicologia. Um exemplo de estudo desse tipo é a dissertação de mestrado de Danyelle Almeida Saraiva Portilho, intitulada “O falar amazônico, uma análise da proposta de Nascentes (1953) a partir de dados do projeto ALiB” e defendida em 2013, na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Portilho (2013) mensura e mapeia certas palavras na área dialetal do falar amazônico proposta por Nascentes (1953), que compreende atualmente a região dos estados do Acre, 26 Amazonas, Pará, Roraima e Amapá. Essa região apresenta uma diversidade bastante rica por conta da presença de muitos povos diversos. Além da grande presença indígena, essa área do país recebeu uma grande quantidade de açorianos no século XVII e de imigrantes nordestinos no período do ciclo da borracha (século XIX). “Tudo isso contribuiu para que a região amazônica guardasse em seu vocabulário, o mesmo em que se recontam suas lendas e mitos, palavras originárias de várias fontes, desde o elemento claramente indígena, até um português arcaizante, passando por criações e usos regionais” (Ilari e Basso, 2014: 166) Algumas das palavras investigadas no estudo de Portilho (2013) foram as utilizadas para o brinquedo que pode ser descrito como “as coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar” e que é denominado comumente de “bolinha de gude” no Sudeste. Por meio dos inquéritos linguísticos realizados pela equipe do Projeto ALiB, a autora observou as seguintes itens lexicais para designar o brinquedo: “peteca”, “bola de gude/bolinha de gude”, “bolita/bolica”, “bolinha/bila”. A palavra “peteca” foi a mais frequente em todas as regiões investigadas, com 75,7% das ocorrências. Em segundo lugar, ficou “bola/bolinha de gude”, com 17,1%. O item “bolinha” apresentou apenas 2% das ocorrências e ficou em terceiro lugar. “Bila” teve uma única ocorrência e representa, portanto, apenas 0,6%. “Bolita/bolica” foram os termos encontrados nas regiões de controle - outras regiões consideradas apenas para fim de controle - e, por isso, não estão sendo consideradas no gráfico abaixo, que apresenta o índice de ocorrência das variantes por localidade. 27 Gráfico 01: Distribuição diatópicadas unidades lexicais obtidas para representar “as coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar”. O estudo observou que a palavra “peteca” é mais frequente nas capitais. A ocorrência expressiva de “bola/bolinha de gude” em Manaus (AM) e em Belém (PA) explica-se pelo grande fluxo migratório que passou pela região no período do ciclo da borracha, de que falamos acima. Além disso, a maior ocorrência do item no Pará indica que é possível que o estado sofra influência de falares das áreas limítrofes. Dessa forma, vemos de que forma é possível aproximar a explicação das ocorrências linguísticas com informações históricas. O conjunto de palavras de uma língua falada em uma determinada região, ou seja, o seu léxico, pode ser entendido como um conjunto de pistas para a reconstrução da história do povo que habita esse lugar. E é nisso que está a importância de trabalhos como os que são desenvolvidos pelo projeto Atlas Linguístico do Brasil. Não apenas mensurar e calcular a distribuição de variantes linguísticas, mas ajudar a recontar a história do nosso país. Vamos fixar este conteúdo? 28 Atividade 04 Responda ao quiz abaixo, identificando a região e a palavra associada a ela de acordo com a seguinte identificação: a) Nordeste, b) Sudeste: Rio de Janeiro, c) Sudeste: São Paulo, d) Sul. pègar treta angu tipo assim bergamota arretado cacetinho guri macaxeira tri[Σ]te polenta bolacha urucum tramela caô pa[Σ]ta INÍCIO DO BOX PARA SABER MAIS Sobre palatalização, acesse os links abaixo e atualize seus conhecimentos despalatalização, na fala cearense: https://www.google.dk/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF- 8#q=dialetos%20socias%20cearenses https://books.google.com.br/books?id=uOqJCgAAQBAJ&pg=PA193&lpg=PA193&dq=pr ojeto+dialetos+sociais+cearenses&source=bl&ots=4lVDD6YyMk&sig=l8Nkx8HKZu167 Dn-RsMup9ySxzI&hl=pt- BR&sa=X&ved=0ahUKEwiI2ZqjoePJAhWKE5AKHXgUAq8Q6AEIOzAE#v=onepage& q=projeto%20dialetos%20sociais%20cearenses&f=false FIM DO BOX 7. Diferenças sintáticas Para falar acerca das diferenças sintáticas, apresentamos um caso de estudo muito divulgado tanto no âmbito da sociolinguística quanto no da linguística funcional. Trata-se da dupla negação que tende a apresentar uma distribuição em termos de dominância a partir 29 da localização da segunda negação na sentença, como destacado por Edair Gorski e Raquel Meister Ko. Freitag (2010, p. 26) em: a) a posposição da negação como em vou não é típica do Nordeste, b) a dupla negação como em não vou, não é comum no Sudeste (especialmente no Rio de Janeiro), e c) a anteposição da negação como em não vou é preferida no Sul. Outro estudo acerca desse mesmo tema é o de Soares (2009). A pesquisadora investiga a estrutura de sentenças negativas no Português Brasileiro, a partir do contato dialetal entre cariocas e cearenses, com foco sobre aquelas em que a partícula não aparece anterior ao verbo [não V], anterior e posterior ao verbo [não V não] ou somente posterior ao verbo [V não]. Seu objetivo principal foi o de verificar se determinados contextos linguísticos favoreceriam o aumento ou a diminuição do fenômeno em função do contato nas redes sociais. Nesse sentido, a pesquisa traz uma singularidade, uma vez que não se trata de contato geográfico físico concreto, ou seja, os indivíduos mantinham contato por meio do espaço virtual das redes sociais. A autora conclui que contextos específicos favorecem a acomodação das variantes. Destacamos uma das conclusões acerca da situação de contato e transcrevemos abaixo. Quanto à situação de contato investigada, nossos resultados parecem indicar que, mesmo o percentual da negativa padrão sendo superior àquele encontrado em falantes não migrados, a pouca mobilidade social e a baixa interação social com falantes cariocas dos informantes são barreiras para a diminuição percentual da variante pós-verbal. (SOARES, 2009: 101) Nossa intenção é fazê-los pesquisar o texto na íntegra e verificar pesquisas de destaque nessa área. Acesso o texto na íntegra em: http://www.letras.ufrj.br/poslinguistica/wp- content/uploads/2013/03/viviane-ramos-soares.pdf Essa distribuição marca, sobretudo, um falar tipicamente regional e, como ressaltamos no início desta aula, confere uma identidade. Por outro lado, a questão do preconceito 30 linguístico também pode advir dessa marcação. No âmbito dos estudos da negação, essa última abordagem é muito discutida. De todo modo, a dupla negação é uma ocorrência bem comum em nosso cotidiano. Tanto é assim que acaba por ser utilizada, de uma forma não muito convencional, quando se deseja dizer algo de forma velada. Como por exemplo: “eu não vi ninguém não”, significando que “eu vi alguém, mas não quero/posso/devo falar”. Para além do exemplo em questão e retomando as pesquisas de cunho variacionista diatópico, ressaltamos o estudo de Rafael Sttopa Rocha que se detém em analisar a variedade paulista do português do Brasil. No estudo de Rocha, foram levantadas três formas variantes da negação: a não pré-verbal do tipo “Não gosto de chocolate”, não pré e pós-verbal do tipo “Não gosto de chocolate não” e, por último, a não pós-verbal do tipo “Gosto de chocolate não”. O autor analisa restrições discursivo-pragmáticas, definindo os contextos em que as formas são semanticamente equivalentes e conclui que as duas primeiras formas são alternativas entre si quando a proposição que está sendo negada foi, de alguma forma, ativada no discurso anterior. Já a última, o autor conclui que não é produtiva no português paulistano, uma vez que encontrou menos de 1% dentro da amostra coletada. Nesse ponto, as duas pesquisas se entrelaçam tendo em vista que a primeira, de Gorski e Freitag, tratam de números mais gerais, em termos de predominância, da negação em distintas regiões e, na segunda, a de Rocha, o pesquisador se atém a dados circunscritos de um determinada região, ou seja, da variação diatópica do paulistano. Nesse sentido, a última posição exclusivamente pós-verbal do tipo “saio não” seria menos frequente na região pesquisada por se tratar, prioritariamente, de uma forma relacionada ao Nordeste do país, portanto com menos contato com o paulistano do que a da região do Rio de Janeiro. Com esses estudos, buscamos demonstrar como a pesquisa da variação diatópica tem desenvolvido seus estudos e pretendemos instigá-los a investigar outros tipos de variações no plano sintático a fim de ampliar seus conhecimentos na área. 31 Atividade 05 A partir dos resultados apresentados nessa seção, identifique quais são as variantes da negativa nos exemplos abaixo: (1) (...) e eu num paro mesmo... (2) Eu votaria nada... (3) Deixu não. (4) Ela nunca trabalhô. (5) Num vô não. (6) Eu num sei, eu num lembro bem Resposta comentada: (1) Negativa pré-verbal (2) Não é um exemplo de negativa com “não” (3) Negativa pós-verbal (4) Não é um exemplo de negativa com “não” (5) Negativa pré e pós-verbal (6) Negativa pré-verbal INÍCIO DO BOX PARA SABER MAIS Agora é a hora de aprofundar seus conhecimentos neste tipo de variante diatópica. Abaixo selecionamos alguns links, mas não se atenha somente neles. Aprofunde-se, vamos lá! http://www.letras.ufrj.br/poslinguistica/wp-content/uploads/2013/03/viviane-ramos- soares.pdf http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/miscelanea_em_homenagem_a_claudia_roncarati.pdf https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome- instant&rlz=1C1EQUG_enBR640BR640&ion=1&espv=2&ie=UTF- 8#q=roncaratti%20negativas%20na%20fala%20cearenseFIM DO BOX 32 REFERÊNCIAS: BEAUGRANDE, Robert de, DRESSLER, Wolfgan U. Introdution to Text Linguistics. Londres/New York: Longman, 1981. GORSKI, E.; FREITAG, R. M. Ko. Ensino de língua materna. Florianópolis, 2010. Disponível em: <http://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoEspecifica/ensinoDePrimeira Lingua/assets/249/TEXTO-BASE_ELM_2010.pdf, acessado em 12/12/2015>. Acesso em: 13 dez. 2015. ILARI, R. Reflexões sobre língua e identidade. Anais do 6º Encontro Celsul – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul. Florianópolis/SC, 2004. ILARI, R.; BASSO, R. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2014. LYONS, John. Linguagem e Linguística: Uma introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981. PORTILHO, D. A. S. “O falar amazônico, uma análise da proposta de Nascentes (1953) a partir de dados do projeto AliB”. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. RODRIGUES, Aryon Dall'Igna. As línguas gerais sul-americanas. PAPIA: Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 6-18, 1996. Site do Projeto ALiB: http://www.alib.ufba.br/ RODRIGUEZ, A. Macieira. Breve histórico da geografia linguística. In: Revista Philologus / Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Rio de Janeiro: 33 CiFEFiL, ano 4, v.10, 1997. Disponível em: http://www.filologia.org.br/revista/artigo/4(10)42-53.html, acessado em 09 de mai. 2015. CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR A DISTÂNCIA
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