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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA
CURSO DE GESTÃO EM SAÚDE COLETIVA
DISCIPLINAS INTRODUÇÃO À BIOÉTICA e BIOÉTICA E SAÚDE PÚBLICA
Apostila Didática
FUNDAMENTOS DE BIOÉTICA
Noções Preliminares
Cláudio Lorenzo [1: Professor Adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Bioética e em Saúde Coletiva da UnB. ]
Preâmbulo
Vocês estão recebendo uma apostila didática que tem como objetivo sintetizar algumas noções fundamentais para o conhecimento da Bioética enquanto disciplina e para a formação inicial de uma racionalidade bioética que busque a resolução de conflitos ou a tomada de decisão diante de situações reais. A razão de sua existência é o fato de que conteúdo aqui apresentado encontra-se de forma dispersa entre livros de filosofia e de bioética e muitas vezes com uma linguagem inadequada ao nível de graduação. Ainda assim, com todo o esforço feito para tornar a linguagem mais acessível, o que muitas vezes pode ter sacrificado a profundidade das ideias, seguramente não será uma leitura fácil, uma vez que há grande número de novos conceitos a conhecer e a temática está distanciada das leituras que os alunos, em especial aqueles egressos do 2 grau, tiveram a oportunidade de fazer. Por isso mesmo a estudaremos pouco a pouco no decorrer das primeiras seis aulas da disciplina Introdução à Bioética e a reestudaremos também nas duas primeiras aulas da disciplina Bioética e Saúde Pública. 
Certamente, para a apreensão de seu conteúdo a leitura de cada parte estudada não pode ser feita uma só vez, e cada leitura precisa ser um ato de estudo, onde outras pesquisas e buscas de significados de palavras desconhecidas precisarão ser feitas. O professor estará sempre disponível para tirar as dúvidas que surgirem e as estratégias pedagógicas das buscarão facilitar a fixação das ideias e conceitos centrais. Boa leitura!
Introdução
Não é possível definirmos Bioética, sem antes dizer o que entendemos por Ética. Em geral, nas áreas de saúde, a palavra nos leva a pensar nos códigos de conduta profissional, associando o conceito ao conjunto de normas deontológicas. Mas, Ética tem, na verdade, sentidos muito mais amplos. 
Se recorrermos à sua origem etimológica, encontraremos no grego a palavra ethos que lhe deu origem. Ela significa costume, no sentido de regras de conduta de uma determinada sociedade e também caráter no sentido de um conjunto de atributos psíquicos que faz os sujeitos possuírem tais e quais vícios ou virtudes. Esta palavra tem uma correspondente em latim, a palavra Mores, significando os comportamentos tradicionais de uma determinada sociedade o qual está mais próximo do primeiro entre os dois sentidos da palavra grega ethos. Essa correspondência de significados gerou confusão em relação aos conceitos de Ética e Moral. Na verdade, alguns autores chegam mesmo a considerar Ética e Moral como sinônimos, e, a depender do seu contexto de utilização, elas podem ser realmente ser tomadas de maneira indistinta. Por exemplo, na afirmação: “a crise do país é mais ética que política” a palavra ética poderia ser substituída pela palavra moral sem nenhum prejuízo de sentido. É por isso que é comum encontrar autores que tratam moral e ética como sinônimos. Mas, nem sempre é possível tratar os dois termos pelo mesmo sentido, donde a necessidade de distinguirmos, mais claramente, esses dois conceitos. [1: Chauí M. Convite à Filosofia, 5aed, Ática, São Paulo, 440p, 1995]
Ética e Moral nos reportam tanto à nossa participação na vida social, quanto à nossa capacidade íntima de discernir sobre o que é certo e o que é errado em nossas tomadas de decisão particulares. Ambos os sentidos estão, portanto, relacionados com os valores a partir dos quais nós julgamos os atos alheios e os nossos próprios atos. Valores esses que são inseparáveis de nossa vida cultural, pois é a cultura que os definirá como positivos ou negativos. Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por elas como bons. Nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são influenciados pelas condições em que vivemos (família, classe social, escola, religião, circunstâncias políticas). Aí está a chave para diferenciar Moral de Ética. Moral toma principalmente o sentido do conjunto de valores vigentes em uma dada sociedade ou coletividade em um determinado tempo. 
Podemos dar dois exemplos, um histórico e um atual, para sustentar esta distinção. Quando lembramos, por exemplo, que até a segunda metade do século XIX, adolescentes entre 12 a 18 anos das classes altas eram entregues como esposas a homens, que muitas vezes nem conheciam, apenas para atender aos interesses patrimoniais da família, estávamos diante de uma situação moralmente aceita e até desejada, mas eticamente condenável. E, foi através dessa condenação ética que as mulheres se mobilizaram para mudar as regras morais vigentes. Já em nosso tempo, questionou-se a moralidade da interdição da união civil entre pessoas do mesmo sexo uma vez que, já é bem conhecido que a sexualidade humana não atende apenas aos impulsos biológicos de procriação, mais a toda uma extensa e complexa rede de estímulos socioculturais e psicológicos, presentes em todas as sociedades, desde o início das civilizações. Assim o conhecimento de que a homossexualidade é uma variante comportamental humana e não um desvio de caráter ou uma enfermidade tornou-se a base para a garantia dos direitos civis das uniões homoafetivas, apesar de persistir estigmas e preconceitos nos diversos meios sociais. 
O nosso conceito de Ética é, então, o de problematização, discussão e interpretação dos valores morais vigentes, ora para reafirmá-los, ora para negá-los, ora para propor novos valores como princípios de ação. 
 
A reflexão intelectual sobre os valores morais vigentes constituiu-se também como um campo de saber, que passou a ser denominado Ética fundamental ou Filosofia moral. Desde a antiguidade esse campo vem gerando uma grande quantidade de teorias que pretendem fornecer aos seres humanos o caminho para o bem ou para o justo. Para que compreendamos como esse campo de saber, que a ética se constituiu, veio a se distanciar das práticas sociais e qual a influência deste distanciamento no surgimento do movimento das éticas aplicadas, entre as quais se encontra a Bioética, precisaremos conhecer um pouco mais da visão ética do mundo nos grandes períodos da história. Aqui o faremos basicamente através de algumas tradições filosóficas ocidentais. 
Da Ética fundamental às Éticas Aplicadas
O nascimento da filosofia na antiguidade grega propõe, em certa medida, uma ruptura com o mito. Não era mais diretamente aos deuses do Olimpo a quem os homens deveriam pedir orientação para suas condutas. Era à razão humana, a qual, investigando o mundo em torno de si passava a investigar também a melhor maneira de estar nesse mundo. A razão humana passa a ser vista como um produto da natureza e, portanto, a perfeição natural do universo deveria ser o modelo para a perfeição moral dos seres humanos. A ética na antiguidade é uma ética naturalista e racionalista.
Aristóteles fez uma distinção muito importante, útil ainda para os nossos dias, quando pela primeira vez definiu a ética como um campo do saber. Ele dividiu os saberes humanos entre os teóricos e os práticos. Os saberes que são extraídos diretamente da natureza, que os homens apenas descobrem e descrevem constituem o campo da Teoria. Estes saberes podem ser aprendidos simplesmente através da leitura ou da transmissão oral. Já no campo da Práxis (prática) estariam os saberes que sofrem a intervenção direta do homem para sua existência e estes só poderiam ser aprendidos a partir do hábito de praticá-los. Entre os saberes da Práxis estariam a Técnica, a Política, e a Ética. Assim, se tomarmos o exemplo da técnica, podemos afirmar queninguém seria capaz de aprender a realizar uma cirurgia ou andar de bicicleta apenas através da leitura de um livro sobre técnica cirúrgica ou de manual de funcionamento das bicicletas. É necessário praticar a cirurgia e repetir as tentativas de domínio da bicicleta para adestrar os movimentos ao uso dos instrumentos, ao equilíbrio e firmeza necessários. No sentido inverso, o estudo da ética fundamental e o conhecimento de diversas teorias morais filosóficas não significa qualquer garantia de que seu conhecedor comporta-se melhor eticamente, que pessoas que desconhecem essas teorias. A Ética para Aristóteles implicaria, pois, na prática de controlar e moderar em si mesmo as paixões e fraquezas que poderiam interpor-se no caminho entre a consciência do que é o bem e realização do ato bom. Por isso, ele acreditava também que a política era fundamental para criar nas sociedades um ambiente propício à ética nas relações e práticas sociais. Essa é uma outra característica da ética elaborada pela filosofia da antiguidade, a sua vinculação à política. [2: Aristóteles. Ética a Nicômaco. Ediouro, Rio de Janeiro, 1998]
Aristóteles faz ainda uma distinção interessante entre dois dos saberes práticos, a técnica e ética. Ele irá dizer que a prática de uma técnica é externa ao caráter do indivíduo, dominá-la não o transforma, enquanto a prática da ética retorna ao indivíduo transformando-o. A ética é uma via de mão dupla que ao tempo que transforma o meio trasnforma o indivíduo. O exemplo usado por Aristóteles é o do carpinteiro. De forma aqui simplificada, o que ele afirma é que o carpinteiro ao fabricar uma mesa, não passa a ser um sujeito “mesado”, ou seja, o resultado de sua prática não o altera, mas quando esse carpinteiro resiste à tentação de mentir e fala a verdade, ele se torna um sujeito verdadeiro. A ética vinha do homem e retornava ao homem enquanto produto de uma razão natural. 
O ideal de harmonia humana com a natureza, sustentada pela ética da antiguidade, só é quebrado com o advento e predomínio do pensamento judaico-cristão nas civilizações ocidentais. O modelo de concepção ética da era medieval passa a entender os valores morais como algo que foi ditado por um único e verdadeiro Deus, onisciente, onipresente e onipotente que criou o universo inteiro. A natureza deixa de ser um mistério a ser explorado e passa a ser vista como uma dádiva de Deus, sobre a qual, todas as informações relevantes estão contidas nas escrituras. A noção de equilíbrio cósmico é substituída pela noção de ordem divina. A interioridade dos seres humanos, representada por sua alma, passa a ser privilegiada em relação à naturalidade representada por seu corpo. Instaura-se a noção de culpa, pecado e temor a Deus como o sustentáculo maior do cumprimento dos valores morais. A vida terrena torna-se apenas o caminho que o espírito deve percorrer para alcançar uma outra vida, perfeita e eterna. A ética passa a estar em relação mais íntima com o divino que com o humano: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”; “ A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. O compromisso com o divino passa a estar acima do compromisso com o semelhante, divide-se a existência entre um mundo divino e um mundo terreno, desvalorizando-se o último. Esse processo contribui para a quebra de todos os elos entre a Ética e a Política, o que no início do Renascimento passa a ser claramente teorizado, atingindo seu auge com a publicação em 1512 da obra O Príncipe de Maquiavel, na qual o autor analisa a natureza do poder dos principados e os meios práticos para conquistar e manter esse poder. Essas concepções da ética medieval, entre outras, transformadas em práticas sociais seriam mais tarde, extremamente úteis ao desenvolvimento do capitalismo.[3: Maquiavel, N. O Príncipe. Trad. Fulvio Lubisco. 5ª Ed. Jardim de Livros, São Paulo, 2007. ]
A espiritualidade e a relação com a divindade enquanto orientadores éticos da condição humana persistiu por toda a Idade Média e por pelo menos dois séculos após o período renascentista, só sofrendo modificações significantes a partir do século XVIII através da obra dos iluministas entre os quais se destaca Emanuel Kant. Kant pode ser considerado o fundador da ética moderna. Ele a concebe como um saber independente de conteúdos ou de saberes específicos como a ciência ou a religião. A razão, autônoma e livre deveria outra vez buscar a base da ética. Kant formulou o célebre Imperativo Categórico: “Age somente segundo uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que esta se torne lei universal”, o que transposto para uma linguagem coloquial quer dizer, mais ou menos, o seguinte: Quando for agir diante de uma situação onde você tem uma dúvida moral, aja como se o seu modo de agir e a justificativa para sua ação pudessem se tornar uma lei para todos os seres humanos. Ou seja, se você resolve ficar com o troco que te deram a mais no supermercado significa que você considera a possibilidade da existência de uma lei garantindo às pessoas a apropriação de valores monetários excedentes repassados por equívoco. O imperativo categórico serve portanto, como um teste para verificar a moralidade das ações. Ele afirma assim a autonomia como princípio de todas as regras de conduta. A ética deve formular leis autoimpostas para qual acreditamos que os outros seres humanos também deveriam seguir. Daí o seu segundo imperativo categórico: Age de forma que o homem seja sempre um fim e jamais um meio. Para Kant, a lei moral sendo autoimposta, ela não feriria a liberdade individual, ao contrário, ela se tornaria indispensável à existência de todas as liberdades em conjunto. [4: Kant E. Fundamentos da metafísica dos costumes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1979]
A ética kantiana é especialmente importante porque tornou-se a base para praticamente todos os códigos de ética profissionais. No entanto, a evolução de outras áreas do conhecimento como a história, a psicanálise e a sociologia acabou lançando dúvidas sobre essa incondicionalidade do ato moral kantiano. Se os sujeitos julgam a partir de seus valores e os seus valores são desenvolvidos em contextos culturais, sociais e históricos distintos, como garantir que aquilo é válido para um individuo pode será válido para todos os seres humanos? Alguns autores consideram que o universalismo kantiano é um universalismo abstrato, incapaz de ser atingido. Por, outro lado, como deixar de considerar o papel das motivações e dos desejos inconscientes na formulação das leis autoimpostas? 
Diversas teorias éticas distintas da de Kant foram produzidas entre o século XVIII e XIX, desde aquelas que se aproximavam deste ideal acético de Kant, até as que a negam violentamente, como a feroz crítica de Nietzsche, para quem apesar das novas formulações da filosofia, os valores morais continuavam vinculados ao ideal acético e universalista do cristianismo, exigindo dos seres humanos, uma abnegação de anjos, que nega sua alegria, seus desejos e paixões. A Ética de Kant, na visão de Nietzsche é um dos melhores exemplos dessas formulações que seguem os preceitos religiosos de universalidade, dissolvendo as individualidades em uma espécie de rebanho cristão. Por isso o projeto de Nietzsche é o da transvaloração dos valores, através da qual ele nega a possibilidade de fundar a moral em razão. Nós não trabalharemos a perspectiva de Nietzsche, mas trata-se de uma leitura instigante que funda na filosofia moral uma via inteiramente nova e distinta de tudo o que foi produzido. [5: Nietzsche, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo Sousa. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009 ]
Uma das teorias éticas fundadas nesse período que merece aqui algum destaque é o Utilitarismo, uma vez que a Saúde Coletiva usa-a frequentemente para justificar alocação de recursos e elaboração de políticas públicas. O Utilitarismo é uma doutrina que define a eticidade das ações a partir de suas consequências, por isso se inclui nos chamados modelos consequencialistas. Ela surge principalmenteda obra de dois filósofos ingleses, também envolvidos na construção do pensamento político liberal, Jeremy Bethan e John Stuart Mill. Para eles ações são éticas, quando promovem felicidade ou bem-estar para o maior número de pessoas, durante o maior intervalo de tempo possível, ou quando se dirigem ao bem geral. Entre as principais críticas que se faz à teoria é que devido às dificuldades de se definir um bem geral, dada a diversidade dos grupos que conformam a sociedade, as escolhas baseadas no “bem geral” apenas refletem as ideologias ou interesses escondidos por trás das escolhas de ações. Outra é o fato de que a doutrina pode considerar ético o sacrifício de minorias para favorecer a maioria, e ainda devido a sua justificativa se dirigir apenas às consequências das ações negligenciando suas intenções e motivações. [6: Japiassu, H. Dicionário Básico de Filosofia, São Paulo: Zahar, 1990]
De certa maneira, o debate em filosofia moral que se seguiu a Kant, até nossos dias, tem sido polarizado entre universalistas que acreditam na possibilidade de leis morais universais e relativistas que não acreditam nesta possibilidade. 
Nas primeiras décadas do século XX, uma mudança muito importante ocorrerá na filosofia. Ela começa a se interessar cada vez mais e mais profundamente pelo papel da linguagem, pela estrutura dos enunciados e suas possibilidades de comunicação precisa e pelas vias possíveis de entendimento entre os sujeitos de fala. Esse interesse supera aquele pela forma como se compõe, funciona e se altera a consciência ou o espírito humano, que eram o centro das investigações filosóficas até o momento. A transformação ganhou o nome de “virada linguística” da filosofia. 
Durante todo o século XX a Filosofia da Linguagem desenvolveu-se e acabou dando origem a teorias éticas que tomam a linguagem como fundamento para a avaliação dos valores e o diálogo como via de solução dos conflitos. Linguagem como fundamento implica no reconhecimento de que é através da linguagem que nós nos constituímos, que adquirimos uma personalidade, que organizamos o pensamento, que expressamos ideias e sentimentos e que desenvolvemos uma identidade de si, de grupo e de sociedade. Ou seja, é a partir da linguagem que nós nos tornamos nós mesmos como sujeitos e como coletividade. A linguagem é como o alicerce da existência humana, logo o fundamento da ética deve estar nessa possibilidade de trocas operadas pela linguagem. 
Diálogo como solução quer dizer, que se nós reconhecemos que cada povo tem seus valores e seus deuses ou formas diferentes de perceber e se relacionar com os mesmos valores e deuses, que as pessoas compreendem de formas diferentes os princípios de ação enunciados, e que formulações ideológicas, políticas, morais e científicas são mutáveis pelo tempo, a resolução dos conflitos éticos não poderá estar jamais nos dogmas religiosos ou ideológicos, nem na ciência, nem na autoridade intelectual das obras de grandes filósofos. A solução para a tomada de uma decisão ética está na construção cotidiana desta decisão através das trocas de ideias intermediadas pela linguagem entre os implicados nos conflitos a regular. 
Para ser possível estabelecer um diálogo neste nível é preciso levar em conta duas considerações sobre o sentido das palavras: 1. As palavras não estão no mundo da mesma forma que estão no dicionário, elas se relacionam com os contextos de uso e não significam as mesmas coisas para todas as pessoas, mesmo quando seu sentido nos parece absolutamente óbvio. 2. Existe por trás das palavras um sujeito e uma história de vida que está sempre acompanhado por um universo de valores e crenças particulares, por isso é necessário adequar a linguagem a este espaço intersubjetivo que se forma quando dois sujeitos culturalmente distintos estão dialogando. Ou seja, não pode existir decisão ética se não existe comunicação entre os implicados no conflito.
Essas ideias se tornaram tão importantes que passaram a definir o que seria uma ética para o mundo pluralista contemporâneo. Para o filósofo francês Luc Ferry o caráter argumentativo é a característica central que define a ética de nosso tempo e a distingue claramente das Éticas Tradicionais. Segundo ele, a formulação de normas ou a deliberação através da prática da argumentação livre significa buscar em si, na essência mesma do humano e não mais no divino ou em outras formulações metafísicas, um ponto de vista que seja válido para todos. [7: Ferry, L. (1991). Tradition ou argumentation? Des comités de sages aux comités de délibération. Pouvoirs ; 56, 5-21.]
Uma teoria ética contemporânea que nos interessa é a de Jurgen Habermas, em sua por sua tentativa de conciliar as perspectivas universalistas e relativistas através de uma ética comunicativa ,. Neste sentido, Habermas é na verdade um reformador do pensamento Kantiano. Ele irá concordar com Kant de que a norma moral deve ser buscada pela razão e que há um elo indissolúvel entre o sujeito moral e o universo de sujeitos vivenciando a mesma situação, ou seja, a norma moral deve ser válida no coletivo. O erro de Kant, para Habermas, foi pensar que a norma moral poderia derivar da consciência de um só sujeito. Habermas propõe então a substituição do primeiro imperativo categórico de Kant, pelo princípio da discussão. [8: Habermas, J. The theory of communicative action. McCarthy, T. (trad), London: Beacon Press. 1986][9: Habermas, J. Moral consciousness and communicative action. Lenhardt,C. & Weber, S. (trad), Cambridge: MIT press. 1983][10: Habermas, J. The theory of communicative action. McCarthy, T. (trad), London: Beacon Press. 1986]
Ou seja, o teste para a moralidade de uma proposta de ação, não pode depender da consciência de um indivíduo que a julga capaz de ser uma lei universal, uma vez que os valores de onde ele deriva essa lei variam de compreensão entre indivíduos e coletivos. A regra moral só pode derivar do universo dos indivíduos atingidos por uma determinada situação de ação, postos em condições de diálogo em um espaço público, livres de coerções e no qual a única autoridade legitimada é a força racional dos argumentos. O universal para Habermas não é, portanto, o universal abstrato de Kant, mas o universal dos envolvidos no problema e representados nos espaços públicos de discussão. Desta forma, Habermas acredita ter ultrapassado a querela entre um universalismo abstrato e um relativismo moral inoperante que não contribuem em nada quando se tem que decidir sobre uma ação que sai de um contexto cultural e atinge outro contexto cultural. 
Muitas ações propostas pela saúde coletiva saem do contexto cultural da academia e das instituições governamentais para se dirigir a grupos e comunidades culturalmente diversos. Daí que é importante orientar os processos de construção de espaços de diálogo entre esses profissionais e acadêmicos com as comunidades alvo, visando uma tomada de decisão ética. Por esse motivo, nós estudaremos em seguida as propostas de validação dos argumentos nos espaços de discussão feitas por Habermas. 
Reconhecimento da validade dos argumentos em Habermas. 
Um bom argumento deve ser sustentado por informações e essas informações se relacionam com os três mundos do saber: 
O mundo objetivo onde estão as verdades verificáveis, aquelas que podem ser comprovadas por processos de observação direta, ou derivem de informações científicas; 
O mundo social onde estão as informações sobre os contextos sociais, sobre os hábitos culturais, normas de conduta formais e informais, leis, etc; 
O mundo subjetivo que pertence apenas a cada indivíduo, representado por suas motivações e interesses. 
Existem três possibilidades de um argumento ser reconhecido como válido pelo restante do grupo de discussão (na linguagem de Habermas três tipos de pretensão à validade): verdade objetiva, coerência social (ou correção normativa) e autenticidade subjetiva. 
Verdade objetiva significa dizer que quando o conteúdo de um argumento está relacionado com dadosdo mundo objetivo, sejam eles resultados de pesquisas científicas ou dados estatísticos e socio-démográficos ou mesmo uma simples observação empírica é necessário que esta verdade, na medida de seus limites, possa ser comprovada por verificação. A apresentação de dados de forma insegura, imprecisa ou claramente falsa é incompatível com uma tomada de decisão ética. 
Coerência social que dizer que o argumento deve considerar também as interações que a sua proposição de resolução terá no meio social, em relação ao universo de hábitos, valores e normas já existentes naquele meio.
Autenticidade subjetiva se relaciona diretamente com o mundo interior de cada participante na discussão. Esse critério exige que cada sujeito tome parte na discussão de forma aberta à força dos argumentos, de maneira que possa aceitar uma decisão que é diferente da que ele propunha inicialmente. Ele não estará participando de forma autêntica se estiver conduzindo sua argumentação a partir de dogmas religiosos, ideológicos ou disciplinares, se exerce ou se sente atingido por autoridade, se esconde terceiros interesses, ou se utiliza recursos ilegítimos de linguagem como a indução, a coerção, a mentira, a ofensa. 
Atendido esses três critérios é necessário ainda que a decisão ética atenda ao princípio único da universalização, o qual exige que a solução encontrada possa ser aceita por todos os implicados na discussão. A decisão ética não é, portanto, imposição, nem escolha da maioria. Ela deve ser consenso. 
Para entendermos melhor isso, passemos a um exemplo: imaginemos que durante uma reunião para formulação de políticas públicas de saúde para comunidades rurais, um determinado agente da discussão afirmasse que a alta incidência de uma certa doença de pele nestas comunidades é decorrente do tipo de material de origem vegetal com o qual é fabricado uma ferramenta de agricultura muito utilizada em várias regiões do país. Em seguida ele propõe duas soluções, uma em curto prazo e outra em médio e longo prazo. A curto prazo a solução está na identificação e tratamento dos portadores da doença e a compra e distribuição pelo governo de uma ferramenta com as mesmas características e funções, mas feita em aço inoxidável. A solução em médio prazo está no acesso facilitado e subsidiado à compra dessa mesma ferramenta por comunidades rurais de todo o país. 
A Verdade objetiva exigiria que agente da discussão apresentasse os cálculos comprobatórios da relação da doença com o material da ferramenta, a partir de estudos epidemiológicos de nexo causal. A Coerência social exigiria que ele demonstrasse que a mudança de hábito implicada na troca de ferramentas é capaz de ser absolvida pela cultura e pelas normas de conduta inerentes às formas de vida cotidianas locais. Finalmente, a Autenticidade subjetiva exigiria que o agente tenha a autenticidade de sua argumentação reconhecida pelo grupo. Se algum outro agente de discussão demonstrasse, por exemplo, que ele comprou um grande número de ações da única empresa no país que produz aquela ferramenta em aço inoxidável, a validade de seus argumentos anteriores estariam imediatamente sob forte suspeitas, invalidando a influência de sua argumentação na tomada de decisão e tornando necessária uma investigação muito mais aprofundada sobre a verdade dos dados apresentados. 
A ética comunicativa apresenta-se assim como uma possibilidade concreta de adequação com vistas ao encaminhamento das tomadas de decisão nas práticas de saúde. É necessário, no entanto, construir os espaços democráticos de discussão, onde todos os implicados estejam representados e tenham o mesmo direito à palavra. 
No Brasil, a participação da comunidade passou a ser uma das diretrizes organizacionais do próprio SUS, descrita na própria Constituição, garantida através das Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde nos níveis federal, estadual e municipal. O desafio passa a ser então conferir cada vez maior legitimidade à representação dos usuários e ao trabalho desses conselhos. Entretanto esses espaços formais ligados à formulação das políticas de saúde não são suficientes, é necessário que a implementação das políticas se dê sempre através da formação de espaços democráticos de discussão dentro de cada comunidade visada pelas políticas e que outros espaços democráticos sejam abertos em outros campos de atuação da Bioética como, por exemplo, no encontro entre um médico e seu paciente ou entre um grupo de pesquisa e os potenciais participantes do estudo.
É claro que nem sempre esse espaço democrático de discussão existirá, nem sempre os agentes sociais presentes na discussão conseguirão atender às exigências de validade dos argumentos, mas, ao mesmo tempo, parece difícil crer que existe uma saída para tomadas de decisão nas práticas de saúde sem ser através de um diálogo livre entre todos os implicados.
O Conceito de Ética Aplicada e o lugar da Bioética. 
O século XX trouxe, no entanto, questões absolutamente inéditas para ética. Pela primeira vez a técnica desenvolveu-se de uma maneira a tornasse capaz de ameaçar a própria existência do planeta e a integridade genética das gerações futuras. A tecnologia e a ciência aliadas ao capital se integraram numa relação de interdependência definitiva transformando-se no principal instrumento de poder da modernidade. Enquanto isso a Ética mergulhava em um universo de reflexão cada vez mais teórico, hermeticamente fechada em teorias complexas exibidas em livros e artigos e cada vez mais distante das práticas humanas cotidianas. Tudo isso acontece em meio à crise radical que sofreram as instituições tradicionais no século XX.[11: Rocher, G La Bioéthique comme processus de régulation sociale : Le point de vue de la sociologie, in Bioéthique : Méthodes et Fondements. Association Canadien-Française pour l’avecement de la Sciences. 1989]
 
As instituições no século XX passaram por uma crise talvez sem precedentes. As igrejas estavam sob suspeita. A ciência parecia se distanciar cada vez mais do objetivo de controlar a natureza para gerar felicidade ao homem, como sonhou Francis Bacon no século XVI. Prova disso é que a descoberta da cura de inúmeras doenças continuou coexistindo com milhões de mortes causadas por elas e o desenvolvimento científico da agricultura com índices de fome jamais vistos. O estado hiper-burocratizado passa a se mostrar distante das aspirações dos cidadãos. O direito mostrava-se, muitas vezes, comprometido com os poderes instituídos, e, na prática, inacessível a maioria dos cidadãos. Revelam-se publicamente as violentas discriminações raciais e sexistas que existam em sociedades que se autointitulavam democráticas e iniciam-se em todo o ocidente os movimentos sociais por liberdades civis das minorias. O ser humano conclui definitivamente no século XX que seu poder de gerar novos conhecimentos era muito maior que seu poder de refletir sobre seu uso e de usá-los na direção do bem comum. 
É a crise gerada a partir desta realidade, o que acabou por estimular o aparecimento, na segunda metade do século XX do que viria se chamar de Movimento das Éticas Aplicadas, entre as quais se encontra a Bioética. O movimento significou uma tentativa de resgate da ética para uma reflexão que implicasse diretamente nas tomada de decisão envolvidas em questões de interesse social e onde a análise das consequências e do contexto tivessem importância fundamental para o estatuto ético desta decisão. Ela significou também uma retomada da participação mais ativa da sociedade civil nas decisões políticas relacionadas com os negócios ou com uso de tecnologias que implicassem riscos para a sociedade ou para o ambiente. Desta maneira o movimento se propunha também como uma forma alternativa ao Direito para o exercício da regulação social das ações políticas e institucionais. 
De certa maneira, podemos dizer que as transformações filosóficas da ética até atingir seu caráter eminentemente argumentativo, como definido por Luc Ferry na página 8 desta apostila,favoreceram o surgimento da Ética aplicada, uma vez que não existe ética aplicada sem espaços de diálogo construídos em torno da situação a regular. Na maneira de abordar os problemas, a Ética Aplicada significou uma inversão em relação à Ética Fundamental (ou Filosofia Moral). Ao invés de partir do estudo ou formulações de teorias morais, tentando depois aplicá-los a problemas reais, ela parte do problema real e busca de forma dialógica as soluções, mesmo que durante a discussão utilize referenciais teóricos na análise dos problemas. Alguns autores acreditam que a Ética aplicada pode até mesmo se tornar uma fonte de renovação para a Ética Fundamental a partir dos novos parâmetros que ela estabelece como consequência do debate moral sobre situações práticas . [12: Hare, R. (1986) Why do applied ethics? In New Directions of Ethics : The Challenge of Applied Ethics? Demarco, J. and Fox, R. (Dir.) Routledge & Keegan Paul, New York.]
É importante distinguir também a Ética Aplicada da Deontologia, no sentido de formulação e aplicação de códigos de conduta profissionais. Segundo Legault o estabelecimento de uma autoridade moral, representada por um grupo de notáveis que pretendem possuir a verdade ética para impor a outros, como acontece com a deontologia convencional, é completamente incompatível com a construção dialógica da decisão que é o que caracteriza uma ética aplicada. [13: Legault, G. Les disciplines qui étudient l’éthique in Questions fondamentales en éthique. Cahiers de philosophie, Presses de l’Université de Sherbrooke, Sherbrooke. 1994 p. 23-46]
Parizeau afirma que três campos de interesse concernentes a três preocupações maiores das nossas sociedades foram os primeiros a se distinguirem em ética aplicada: os avanços da biomedicina; as relações socioeconômicas entre os Estados de direito; e o futuro do equilíbrio ambiental do planeta. A ética aplicada implica também a criação de mecanismos de regulação e controle social das práticas sociais através de espaços democráticos de discussão, onde o exercício do diálogo intercultural e interdisciplinar seja a base da tomada da decisão ética. Os comitês hospitalares, os comitês de ética da pesquisa, os conselhos de saúde e as comissões governamentais de Bioética representam alguns desses espaços criados no bojo do desenvolvimento da Bioética. [14: Parizeau, M. Dictionnaire d’Éthique et Philosofie Morale, Flamarion, Paris pg 585]
A Bioética pode ser definida então como uma Ética Aplicada às Ciências da Vida e foi, sem dúvida, entre as Éticas Aplicadas a que mais se desenvolveu teoricamente e mais se expandiu por todo o mundo. Vamos estudar um pouco agora a história do surgimento da Bioética e alguns de seus modelos teóricos. 
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O Surgimento da Bioética
O primeiro registro que se tem da palavra Bioética é em um artigo de 1927 no periódico alemão Kosmos, no qual o seu autor Fritz Jaar, defendia a ampliação dos deveres morais em direção a todos os seres vivos . Entretanto, a descoberta desse registro deu-se, como fruto de uma pesquisa histórica após já ter ocorrido todo o movimento que culminou na criação da Bioética, enquanto disciplina específica. [15: Goldim, JR. Bioética: Origens e Complexidade. Rev HCPA 2006;26(2):86-92]
Como a conhecemos hoje, a palavra bioética apareceu como conceito definido em janeiro de 1971 nos Estados Unidos da América do Norte, no artigo intitulado Bioethics: bridge to the future , do Doutor em bioquímica, biólogo e oncologista Van Rensselaer Potter, da Universidade de Winsconsin, Madison. Ele pensou a Bioética como um campo de reflexão moral sobre o uso da ciência e das tecnologias, como uma espécie de estudo necessário à sobrevivência humana, dado o destino histórico da ciência, no qual os mais impressionantes avanços científicos conviviam com condições de vida degradantes para grande parte da população planetária e onde a própria preservação do planeta apresentava-se ameaçada. Para Potter a ciência deveria caminhar na direção de resolver os quatro grandes bioproblemas da humanidade: alimentação, saúde, degradação ambiental e crescimento demográfico desordenado. Os bioeticistas deveriam ser condutores e arautos de uma forma mais eticamente correta de conduzir os avanços científicos e utilizar as tecnologias. 	[16: Potter VR. Bioethics: bridge to the future. Englewod Gliffs: Prentice-Hall,Madson, 276p, 1987]
Segundo Albert Jonsen, autor que estudou a história do surgimento da Bioética nos Estados Unidos, seis meses após a publicação do artigo de Potter, o obstetra André Hellegers, usa a palavra bioética em sentido dissociado daquele, restringindo-a a um novo campo de pesquisa: o da ética aplicada às ciências biológicas ao nível do humano, e cria o The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reprodution and Bioethics. Foi no sentido utilizado por Hellegers que a Bioética permaneceu e cresceu, movida pelos novos questionamentos éticos que se apresentavam com o avanço das tecnologias biomédicas e com escândalos que surgiam revelando exploração de indivíduos e comunidades por pesquisas biomédicas. [17: Jonsen AR. The birth of bioethics. Hasting Center Report; 6: 1-5, 1993]
Jonsen, já filiado a esta perspectiva biomédica, aponta três impulsos considerados primordiais para o surgimento da Bioética. O primeiro destes o artigo de Henry Beecher, professor de anestesia da Havard Medical School, na revista New England Journal of Medicine, em 1966, intitulado: “ Ethics and Clinical Research”. Nele o autor classificava de desprovido de ética o desenho e a condução de vinte e dois trabalhos científicos publicados em importantes periódicos médicos. Nesse momento, havia menos de 20 anos que o Tribunal de Nuremberg havia revelado ao mundo, os horrores das pesquisas nazistas nos campos de concentração, e, deste modo, a comparação foi inevitável. Isso veio despertar em muitos pesquisadores e na sociedade em geral, a demanda de que os experimentos médicos fossem conduzidos visando não apenas o avanço da ciência, mas também a manutenção dos direitos e do bem-estar dos indivíduos envolvidos. 
O segundo impulso teria sido o primeiro transplante cardíaco realizado por Christiaan Barnard em 1967. Em torno deste período surge a técnica de reanimação cardiovascular e instrumentos como o respirador artificial, que contribuem para a mudança dos critérios de morte da antiga parada cardíaca para ausência de função e circulação cerebral. Esses fatores trouxeram enormes conflitos éticos para as tomadas de decisão médica. 
O terceiro impulso teria sido o caso Karen Ann Quinlan. A moça de 22 anos de idade entra em coma irreversível em 1975 após acidente e é mantida viva artificialmente por aparelhos em um Hospital de Nova Jersey. Os pais solicitaram à suprema corte do Estado, o desligamento do respirador que à mantinha viva. O caso teve grande repercussão na mídia em todo o mundo desencadeando muitas discussões tanto acadêmicas quanto leigas, sobre vida orgânica versus vida humana e direito de morrer sem intervenção de novas tecnologias. 
Rothman, outro teórico da bioética estadunidense, identifica outros impulsos que contribuíram originariamente para a criação da Bioética, entre eles, as pesquisas no ADN que prepararam e lançaram o Projeto Genoma Humano; a nomeação do comitê em New Hamptom para avaliar as descobertas da engenharia genética e a concretização da técnica de fecundação in vitro com e sem congelamento do embrião. [18: Rothman D. A History of How Law and Bioethics Transformed Medical Decision Making. 1.ed., Basic, New York, 1991]
Apesar de tratar de conflitos relevantes e legítimos, a Bioética, tal como Potter a concebeu, sofre um profundo reducionismo a partir dessa nova perspectiva biomédica. Reducionismo este que irá se consolidar com o surgimento da teoria principialista de Beauchamp e Childress, assumidamente dedicada aos conflitos éticos biomédicos nas relações de assistência e pesquisa e baseado em quatro princípios extraídos segundo os autoresda moralidade comum da sociedade: respeito à autonomia, beneficência, não-maleficência, e justiça, os quais deveriam guiar as tomadas de decisão. Estudaremos mais tarde com mais detalhes esse modelo que viria se tornar hegemônico em todo mundo. 
Não obstante a força hegemônica do principialismo e dos esforços ideológicos para manter a Bioética estritamente ligada ao campo biomédico, não foi possível impedir sua tendência original a uma abordagem mais ampla e global, como sonhava Potter. Questões como, saúde das populações e acessibilidade a tratamentos, as práticas e funções de saúde pública, o bem-estar animal e a preservação ambiental voltaram nas décadas mais recentes a retomar lugar entre as preocupações bioéticas. 
 
Segundo Drane : “devido à sua transcendência na sociedade contemporânea, a Bioética experimentou um desenvolvimento meteórico nas últimas três décadas (...) A conexão entre as preocupações da Bioética e as da sociedade contemporânea é óbvia. Com razão a Bioética tem sido considerada como uma disciplina arquetípica em nossa era.”[19: Drane FJ. Cuestiones de justicia en la prestacion de servicios de salud. Bol of Sanit Panam; 108(5-6) : 586-98, 1990]
Podemos distinguir quatro fases no desenvolvimento da Bioética . A primeira, a fase de sua fundação e consolidação enquanto nova disciplina entre as décadas de 70 e 80. A segunda, a fase da expansão, entre as decadas de 80 e 90, foi caracterizada pela afirmação do principialismo como principal corrente da bioética em praticamente todos os continentes. No Brasil a Bioetica chega nesse período sob significativa influência do modelo principialista. A terceira fase dá-se mais claramente a partir de meados da década de 90, com a expansão do desenvolvimento de novos modelos teóricos e dos campos de atuação da Bioética, em resposta às criticas ao principialismo e ao reducionismo biomédico. Mesmo no campo biomédico, a comunidade acadêmica, sobretudo na Europa e America Latina passa a reconhecer que o principialismo era insuficiente para a tomada de decisão em situações clínicas mais complexas, sobretudo quando influenciadas por contextos de injustiças sociais e diversidades culturais. Surgem diversas novas propostas de modelos teóricos alternativos para tomadas de decisão na prática clínica e para ampliação dos campos de atuação da bioética para questões sanitárias e ambientais. Finalmente, a quarta fase, que se inicia na virada do século XXI e se mantém até hoje, vem mantendo a tendência de ampliação dos campos de atuação, buscando modelos capazes de examinar a influencia dos interesses de mercado nos conflitos éticos da saúde, o lugar no Estado na proteção dos sujeitos e comunidades, e a garantia da universalidade do acesso de indivíduos e comunidades aos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico. [20: Garrafa V. Bioética. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 853-68.][21: Garrafa V. Radiografía bioética do Brasil. Acta bioeth. 6(1): 163-181, 2000.]
Passado todo esse período de desenvolvimento, podemos hoje identificar 6 campos principais de atuação da bioética: 
Mediação de conflitos éticos entre profissionais de saúde e pacientes, envolvendo questões relacionadas a tomadas de decisão difíceis, ou recusas de tratamento, e ainda questões tradicionais como eutanásia e obstinação terapêutica;
Controle ético da produção e uso de novas biotecnologias, tanto na dimensão restrita de uma relação interpessoal de assistência, quanto na dimensão ampla e coletiva da sua aprovação para comercialização ou uso por sistemas de saúde;
Ética da Pesquisa envolvendo Seres Humanos, que envolve tanto os grandes ensaios clínicos multicêntricos para novos medicamentos, avaliando o grau de entendimento dos sujeitos envolvidos e a distribuição justa de riscos e benefícios quanto as pesquisas qualitativas que podem oferecer riscos sociais ou morais aos participantes. Sua base de decisão são os comitês de ética da pesquisa;
Preservação e Justiça ambiental, onde estão tanto as questões de destruição ambiental por atividades industriais, de mineração, de produção agrícola, de obras de infra-estrutura, como a distribuição dos diversos segmentos da população em ambientes mais ou menos ecologicamente comprometidos;
Bioética em Saúde Pública que trata dos problemas éticos envolvidos com as práticas e funções da saúde pública, em especial, conflitos na alocação de recursos, planejamento e gestão; elaboração e implementação de políticas em contextos de diversidade sociocultural; estigmas e discriminações e seus impactos enquanto determinantes de saúde e qualidade de serviços; concepções morais influenciando leis com impacto negativo sobre a saúde coletiva, tais como a criminalização do aborto e do uso de substâncias psicoativas, entre outros;
Bioética e proteção animal, que discute a eticidade no uso de animais em procedimentos de pesquisa e ensino, bem como sua exploração pela indústria de alimentos e pelo agronegócio. 
Nas próximas seções conheceremos um pouco melhor o principialismo, enquanto modelo hegemônico arquetípico da perspectiva bioética dirigida ao campo biomédico e alguns dos modelos teóricos de Bioética que vem sendo desenvolvidos na America Latina. 
A Teoria Principialista. 
Tendo a bioética nascido nos Estados Unidos, os novos modelos para resolução de conflitos éticos nascidos da relação médico-paciente desenvolveram-se a partir das tradições filosóficas deste país e das influências das formas de vida da sociedade estadunidense. O modelo principialista de Beauchamp e Childress, apresentado no livro “ Principles of Biomedical Ethics” , tornou-se, na opinião de muitos autores, o melhor modelo. É ele o que tem sido mais utilizado pelos comitês hospitalares de Ética em grande parte do mundo, e também no Brasil é o mais utilizado nos cursos da área da saúde ministrados no país. [22: Beauchamp T. Childress J. Principles of Biomedical Ethics, 3.ed. N.Y. Oxford University Press, 546p, 1989][23: Figueiredo, A. Perfil acadêmico dos professores de bioética nos cursos de pós-graduação no Brasil. Rev. bras. educ. med. 35(2): 163-170, 2011. ]
Os autores definem o modelo, como baseado em quatro princípios universalmente aceitos pela moralidade comum. São eles o respeito à autonomia; a beneficência; a não-maleficência e a justiça. É o atendimento a esses princípios o que deve ser buscado na resolução dos conflitos. Estes princípios estão postos entre si em uma relação Prima facie o que significa dizer que nenhum desses princípios é superior ao outro e que o atendimento a eles é irrecusável. Quando, no entanto, o atendimento a um princípio negar outro, a escolha do princípio a seguir deve ser analisada no contexto de cada caso, invariavelmente como reflexão particularizada, em um balanço de compromisso, mediação e negociação. Assim, por exemplo, em um caso de um paciente que recusa um tratamento que oferece uma possibilidade de melhora ou cura de seu quadro, estão em jogo os princípios de respeito à autonomia e beneficência. A solução, no entanto, só poderá se dar conhecendo maiores detalhes sobre o caso, como o grau de autonomia do sujeito, as circunstâncias que podem influenciar sua decisão, a qualidade da melhora de saúde oferecida e suas conseqüências, etc. 
O princípio da autonomia é discutido pelos autores, após uma diferenciação entre pessoa autônoma e decisão ou ato autônomo. Dizem eles que seu foco principal está no segundo. Desta forma autonomia não seria entendida em termos absolutos. Um indivíduo poderia ser considerado autônomo para uma determinada ação ou escolha e não para outra. Os critérios utilizados para considerar uma escolha ou ação como autônomas seriam três: (1) Intencionalidade; (2) Entendimento; (3) Ausência de influências coercivas. O respeito a autonomia se refletiria na relação médico-paciente em condutas práticas, entre as quais se destacariam: “Dizer a verdade”;“Respeitar a privacidade do outro”; “Proteger a informação confidencial”; “Obter consentimento para intervenções”; “Quando solicitado, ajudar o outro na tomada de decisão”. Estas regras de conduta também não seriam absolutas e sim prima facie. Em termos de política de cuidado à saúde o “paradigma da autonomia é o consentimento informado e expresso”. Outras formas como o consentimento tácito, obtido pela omissão do paciente diante de uma informação para uma determinada ação médica, ou o consentimento presumido, considerando a certeza de uma determinada escolha do paciente, seriam passíveis de erro por não apresentarem uma referência clara de uma ação ou inação própria do indivíduo, na certeza da expressão de sua autonomia. Os autores enumeram ainda as situações que demonstrariam uma incompetência para o exercício da escolha autônoma. Seriam elas: (1) Inabilidade para expressar uma escolha; (2) Inabilidade para entender uma situação e suas consequências; (3) Inabilidade para entender uma informação relevante; (4) Inabilidade para fornecer um motivo; (5) Inabilidade para fornecer um motivo racional (alguns autores considerariam apenas o motivo, sem qualificação); (6)Inabilidade para medir racionalmente riscos/benefícios; (7) Inabilidade para tomar uma decisão razoavél. Finalmente defendem o desenvolvimento de testes que possam ser aplicados para que se possa medir o nível de autonomia de uma determinada pessoa ou sua escolha.
O princípio da não-maleficência é apresentado por Beauchamp e Childress como aquele que implica na obrigação de não infligir intencionalmente nenhum dano. Afirmam que ele tem sido relacionado a uma máxima freqüentemente atribuída a Hipócrates, onde está dito: “Ao menos não prejudique” Os autores no entanto indicam uma passagem do juramento hipocrático, onde tanto o princípio da beneficência como o da não-maleficência estariam anunciados: “ Eu usarei o tratamento para ajudar o doente de acordo com minha habilidade e julgamento, mas nunca o usarei para prejudicar ou ofender”. Colocando-o na dimensão prima facie Beauchamp e Childress, discutem-no na prática clínica, e o consideram diante de questões como eutanásia, interrupções de gravidez, situações duplo-efeito, suicídio assistido, entre outros.
O princípio da beneficência é entendido como “todas as formas de ação direcionadas ao benefício de outras pessoas”. No entanto, as ações para produzirem beneficência além de conferir benefícios, precisariam prevenir ou remover danos e pesar possíveis bens contra possíveis injúrias ou contra os custos de algumas ações. Como o princípio da beneficência não é amplo o bastante para abarcar todos esses outros princípios e porque a vida prática não pode prover sempre oportunidade de produzir benefícios ou remover danos, sem criar riscos ou gerar custos, o princípio da utilidade teria que ser posto como uma extensão essencial do princípio de beneficência positiva. Beauchamp e Childress não conseguem critérios objetivos para diferenciar atos de beneficência obrigatórios dos eletivos, mas oferecem exemplos considerados importantes de regras de beneficência: (1) Proteger e defender o direito dos outros; (2) Prevenir danos que possam ocorrer a outros; (3) Remover condições que possam causar danos a outros; (4) Ajudar pessoas com deficiências; (5) Socorrer pessoas em perigo.
A Justiça é o quarto e último princípio apresentado como obrigação Prima Facie. Na discussão introdutória os autores afirmam que as inigualdades no acesso aos cuidados de saúde em relação aos seguros privados, combinado com o dramático aumento nos custos desses cuidados, tem provocado muitas discussões sobre justiça social nos Estados Unidos e em muitos outros países. Eles começam levantando alguns questionamentos: a inigualdade de acesso é um sério problema moral? Devem todos os grupos etários ter igual acesso aos cuidados de saúde?. A tentativa de responder a essas perguntas nos colocaria em frente a muitas incertezas envolvendo a escolha de planos, acesso igualitário, promoção de saúde, economia de livre-mercado, eficiência social, estado beneficente, etc. Uma injustiça básica considerada pelos autores é aquela que diferencia os homens no momento do nascimento e que eles chamam “loteria social”. Os autores discutem as várias teorias correntes de justiça, que serão posteriormente tratados nesta dissertação em capítulo específico. Comum a todas as teorias, seria segundo eles, um requerimento mínimo Aristotélico: “Iguais devem ser tratados igualmente”. Uma das formas de entender essa igualdade seriam os princípios materiais de justiça, que considera como critério para identificar os iguais o da necessidade. Justiça aí seria entendida como distributiva. Outros critérios para a distribuição seriam: interesse, esforço, contribuição, mérito e competência no livre-mercado. Os autores não se definem claramente favoráveis a qualquer teoria, apesar de notar-se uma maior influência da obra de Ralws, Uma Teoria de Justiça e não vêem problema em que se utilize dois ou mais dos critérios apresentados para uma ação justa. O próprio critério utilizado poderá variar de acordo com as situações e com as obrigações prima facie. 
Críticas ao modelo principialista
O modelo principialista, representou, sem dúvida, um avanço em relação ao autoritarismo paternalista que o antecedia, mas ele sofreu também severas críticas. Em primeiro lugar ele desconhece todo o conhecimento trazido pelo desenvolvimento da filosofia da linguagem do século XX. Por muitas vias diferentes, foi demonstrado que o significado das palavras não é exatamente o mesmo em contextos distintos e que muitas das querelas em filosofia eram antes causadas pela variedade de sentidos que podiam conter as palavras.. Assim, mesmo que em um primeiro momento todos concordem que autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça são princípios pertinentes e significativos em uma decisão ética, ninguém garante que eles estão sendo compreendidos da mesma forma, por todos os sujeitos e grupos. 
Logo, é muito difícil que um modelo baseado na moralidade comum de um povo, possa ser diretamente transferido para o universo cultural de outro. A proposta de utilização de um modelo baseado em uma moralidade comum de uma em outra sociedade pressupõe a existência de um homem universal e desconsidera o fato de que o senso de moralidade de uma determinada sociedade está firmemente arraigada ao seu desenvolvimento histórico e às heranças culturais do povo que a constituiu. O modelo principialista foi construído para funcionar dentro das tradições morais da forma de vida americana e para um sistema privatista-assistencialista de política de saúde. Por isso, talvez ele funcione razoavelmente no Brasil no momento em que estamos diante de conflitos gerados em um contexto social que se assemelhe ao daquele país, como, por exemplo, uma recusa de tratamento por um paciente de classe alta portador de seguro de saúde privado, mas será muito difícil que funcione bem, por exemplo, no caso de um lavrador analfabeto que passou a vida sob situação de exclusão de atenção à saúde. 
No modelo principialista a definição dos princípios é herdada da filosofia política liberal. A autonomia é vista como um atributo individualista da razão e não como uma capacidade que se atinge através das relações com a coletividade, onde fatores educacionais e de posição social influenciam diretamente no seu grau. Um respeito à autonomia entendido de forma individualista, pode servir claramente como instrumento para os interesses de terceiros. É o que se pode chamar de instrumentalização da autonomia. Os termos de consentimento informado para pesquisa de medicamentos é frequentemente usado como instrumentalização da autonomia, na medida em que participantes o assinam sem ter realmente compreendido os objetivos e riscos envolvidos. Além disso, beneficência, não-maleficência e justiça são entendidos pelo modelo, dentro de uma lógica de racionalidade econômica, ou seja, dentro de um balanço custo-benefício que de certa formavisa adapta-lo ao sistema de saúde vigente . [24: Charles Taylor Grandeur et Misère de la Modernité. 1ed. Berlamin Québec,1991]
Se tomarmos o exemplo do Brasil veremos que a grande maioria dos conflitos éticos envolvendo o médico e paciente são gerados pela realidade de exclusão social e carência de serviços de saúde . Situações, como por exemplo, a de pacientes que precisam de um equipamento ou medicação salvadores de suas vidas e não os dispõe é muito mais frequente que as situações geralmente relatadas no modelo principialista, em que os pacientes querem exercer sua autonomia em recusar um tratamento. As peculiaridades históricas e culturais dos diversos povos apontam para a impossibilidade de trabalharmos como modelos baseados em princípios de moralidade comum propostos como receitas para resolução de conflitos, importando-os de países centrais, da mesma forma como se importa tecnologia de última geração. [25: Lorenzo C. Estudo da Atuaçao da Bioética no Brasil e de sua Aplicabilidade à uma Realidade Brasileira. Dissertaçao de Mestrado apresentada à Universidade Federal da Bahia para o Grau de Mestre em Medicina, 1998 ]
Modelos teóricos contra-hegemônicos em Bioética.
Independentemente da corrente teórica, podemos dizer que a estrutura da Bioética, enquanto disciplina é formada por dois componentes principais: um analítico e um prescritivo. Por meio do primeiro componente um conflito ou desvio ético envolvendo as ciências da vida é investigado com base em referenciais teóricos pré-estabelecidos, e por meio de um segundo, um processo de tomada de decisão é iniciado buscando seja a proposição de uma ação para resolver ou prevenir o conflito, seja a elaboração de uma norma de conduta em um determinado campo científico. 
Os marcos teóricos e metodológicos escolhidos refletem, obviamente as posições políticas, ideológicas, intelectuais e morais de seus autores, de maneira que enquanto falamos de Bioética no singular para a definir como disciplina, devemos falar de bioéticas no plural quando pensamos em seus fundamentos teóricos e ideológicos. Existem modelos, por exemplo, como o de Tristhan Engerlhardt, que afirmam não existir um direito universal à saúde e que afirma textualmente, que não existe desvio ético se uma mulher dá a luz no estacionamento de um hospital por recusa de atendimento, se ela não havia contratado em seu plano de saúde aquele hospital. Esse contratualismo ultraliberal é bastante estranha às tradições políticas e morais da América Latina. [26: Engelhardt HT. The Fundations of Bioethics. 2.ed., N.Y. Oxford University Press, New York, 446p, 1996.]
Nós já comentamos a pouca pertinência que muitos modelos teóricos da Bioética, sobretudo os estadunidenses, têm para a resolução prática de conflitos em contextos socioculturais distintos. O processo de globalização põe a Bioética em contato uma multiplicidade de culturas e de formas de vida, de maneira que, dificilmente modelos apoiados na moralidade comum de um povo poderão ser utilizados de forma eficiente para solucionar conflitos de outro povo. Além disso, a desigualdade social que caracteriza os países em desenvolvimento cria formas de vida muito diferentes entre as diversas classes sociais e comunidades que coabitam, muitas vezes, na mesma cidade. Essas diferenças nas formas de vida se expressam não apenas no cotidiano das condições de moradia, transporte, saúde, lazer e trabalho, mas também nos valores e crenças compartilhados. 
A mistura étnica e racial da América Latina, e sua história de exploração e dominação política, sempre provocou lutas tanto físicas quanto intelectuais pela libertação, o que favoreceu o florescimento de pensamentos críticos em nosso território. A Bioética Latino-americana seguiu essa tendência, e tem se destacado por uma abordagem que se contrapõe aos modelos teóricos de resolução de conflitos baseados na filosofia política neoliberal, como é próprio aos modelos hegemônicos estadunidenses. Alguns autores latino-americanos, tem nomeado esse conjuntos de reflexões e proposições que ultrapassam as dimensão clínica e biomédica atingindo as dimensões coletivas dos conflitos éticos no campo das ciências da vida, com atenção especial às injustiças historicamente estabelecidas, de Bioética Social,,. [27: León FJ. De los principios de la bioética clínica a una bioética social para Chile. Revista Médica de Chile 2008; 136: 1084-1088.][28: Pessini, L. e Barchifontaine, C. Bioética na Ibero-América: história e perspectivas. São Paulo, Ed Loyola, 2007.]
Dois modelos latino-americanos têm alcançado maior destaque: a Bioética de Proteção do Prof. Fermin Roland Schram da FIOCRUZ – Rio e Miguel Kotow da Universidade do Chile e a Bioética de Intervenção dos pesquisadores da Cátedra UNESCO de Bioética da UnB, Prof. Volnei Garrafa e Profa. Dora Porto. Mais recentemente, Lorenzo e Cunha tem trabalhado uma proposta de Bioética Crítica fundamentada em conteúdos da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e nos Estudos da Colonialidade. 
Bioética de Proteção. 
A Bioética de Proteção se fundamenta na tradição da filosofia moral e política que compreende a existência da ética, do direito e do próprio Estado, como tendo função primordial de proteção dos mais fracos, buscando impedir o estabelecimento nas relações sociais da “Lei do mais forte”.
É exatamente no contexto da Saúde Pública, que o modelo está melhor delineado. O compromisso da Bioética de Proteção é, segundo seus autores, com aqueles que foram atingidos pelas vias injustas do processo histórico e se encontram excluídos ( vulnerados) do acesso a atenção à saúde, desde os elementos mais primordiais, como acesso a água, até os mais complexo como tecnologias de última geração. Eles defendem um compromisso da Bioética com a ação, antes mesmo, da reflexão. A identificação de vulnerados e a proposição de ações sanitárias de proteção deve ser o objetivo primordial da Bioética. [29: Kottow, M. Bioética de Proteccíon. IN Tealdi, JC (org). Dicionário latinoamericano de Bioética. 1ed. Bogotá: UNESCO, 2008. P 164-167. ]
Segundo o Prof. Schram [30: Schram, F. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Revista Bioética 2008 16 (1): 11 – 23]
“A Bioética da Proteção é um subconjunto da bioética, constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o capacitam para realizar sua vida e quem não os tem. Ao priorizar os "vulnerados" que não dispõem de tais meios, pretende respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplica a eqüidade como condição sine qua non da efetivação do próprio princípio de justiça para atingir a igualdade. Este é o sentido stricto sensu da Bioética da Proteção. Mas existe um sentido lato sensu, que aplica no contexto da globalização e visa proteger todos os seres vivos contra o sofrimento e a destruição evitáveis. ” 
 Revista Bioética, 2008, p 12 
Essa proposta teórica, além de seu compromisso com a equidade nas práticas de saúde pública, busca também retornar a uma visão ampla da Bioética, como queria Potter, e a dimensionar em uma perspectiva global, que além de se dirigir a todos os povos, dirige-se também aos demais seres vivos e ao planeta como um todo. 
Bioética de Intervenção
Desenvolvida por autores ligados Cátedra de Bioética da Universidade de Brasília, é talvez o modelo contra-hegemônico mais difundido na América Latina. Trata-se de um modelo que emergiu das discussões ao fim da década de 90 sobre a insuficiência do modelo principialista para dar conta dos conflitos éticos no campo da saúde ocorridos no contexto dos países com grandes contingentes de pobreza e exclusão. 
Se aproxima da Bioética de Proteção na medida em que considera a equidade um princípio de ação que busca a igualdade de acesso e oportunidades entre os diversos grupos sociais e por declarar-se com um vínculo estrito com as parcelasda população em desvantagem socioeconômica. 
No que se refere a seus fundamentos, a teoria se anuncia como consequencialista, ou seja, a moralidade de uma ação deve ser julgada pelas consequências positivas ou negativas que provoca. E como utilitarista, ou seja, privilegia ações e políticas que beneficiem ao maior número de pessoas pelo maior intervalo de tempo, trazendo as melhores consequências para o coletivo mesmo que isso implique no prejuízo de questões individuais, que devem ser tratadas, caso a caso.
Este componente utilitarista da Bioética de Intervenção é a que tem sido mais criticada, uma vez que o utilitarismo tem sido considerado como incompatível com as políticas de equidade, já que grupos minoritários são muitas vezes os que necessitam de maiores investimentos para a aquisição de direitos. Se pensarmos nos Povos Indígenas, por exemplo, que representam cerca de 1 milhão de pessoas no Brasil, em um contingente de 200 milhões, ou o grupo social dos transexuais, talvez ainda menor, uma interpretação rigorosamente utilitarista, poderia justificar a ausência de políticas públicas dirigidas a esses grupos dada as necessidades de grupos muito maiores. Para responder a estas críticas os autores vem desenvolvendo um conceito de utilitarismo solidário e buscando complementar seus fundamentos com novos referenciais como os estudos da colonialidade. [31: Nascimento, W. e Garrafa, V. Por uma vida não colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade. Saude soc. 20(2) 2011: 287-299, 2011. ]
O campo de investigação e atuação da Bioética de Intervenção é dividida em duas áreas: Bioética das Situações Emergentes, onde estão os conflitos e desafios éticos que surgem com as novas tecnologias e Bioética das Situações Persistentes, onde estão os conflitos provocados pelas injustiças históricas no campo da saúde e da pesquisa e questões éticas tradicionais como aborto e eutanásia. 
O Modelo propõe ainda outras quatro diretrizes de ação, reunidas sob o signo dos 4 Ps: Prudência diante dos avanços científicos; Prevenção de possíveis danos; Precaução frente ao desconhecido; e Proteção dos mais frágeis. Essas diretrizes devem ser pensadas, tanto na análise crítica de novas tecnologias na área da Bioética de Situações Emergentes, quanto nas práticas de saúde coletiva e políticas públicas, na área da Bioética de Situações Persistentes. 
Finalmente, um último conceito indispensável à compreensão do modelo é o de corporiedade. Esse conceito traz a marca de laicidade da proposta, uma vez que o corpo passa a ser o registro da existência propriamente dita e o objeto específico das intervenções éticas. Para isso compreende os aspectos psíquicos como integrados ao corpo e o corpo físico como a estrutura última a partir do qual se estabelecem todas as estruturas sociais. É ele o lócus final do sofrimento e do prazer que podem advir das ações individuais e coletivas. 
Vejamos como Garrafa e Porto, primeiros autores do modelo definem a Bioética de Intervenção: [32: Porto, D. e Garrafa, V. Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado. Revista Bioética 2005, 13(1): 111-123]
“A bioética de intervenção pretende legitimar,no campo de estudo das moralidades e da aplicação dos valores éticos, uma perspectiva ampla, que envolva os aspectos sociais da produção das doenças, contribuindo para a construção de uma bioética crítica que possa ser aplicada nos países periféricos e, especialmente,no Brasil. A bioética de intervenção preconiza como moralmente justificável, no campo público e coletivo, a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas durante o maior espaço de tempo possível e que resulte nas melhores conseqüências; e no campo privado e individual, a busca de soluções viáveis e práticas para os conflitos localmente identificados, levando em consideração o contexto em que ocorrem e as contradições que os fomentam. Assim, essa nova proposta teórica busca uma aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade, incluindo a re-análise de diferentes dilemas, entre os quais: autonomia versus justiça/eqüidade; benefícios individuais versus benefícios coletivos; individualismo versus solidariedade; omissão versus participação; mudanças superficiais e temporárias versus transformações concretas e permanentes”
 Revista Bioética 2005, 13(1): 111-123
Bioética Crítica
Se entendermos pensamento crítico como um questionamento filosoficamente sustentado sobre os discursos hegemônicos próprios as ideologias de dominação, outros modelos como a Bioética de Intervenção ou a Bioética de Proteção são, obviamente, propostas críticas de Bioética. De desenvolvimento mais recente, a Bioética Crítica, , ,recebe especificamente esse nome por estar fundamentada em uma teoria social conhecida por Teoria Crítica . Neste sentido enquanto nos demais modelos o termo crítica é adjetivo, aqui ele é substantivo. [33: Astraín, R. Pensamiento crítico latinoamericano. IN: Tealdi, JC. (Dir.) Diccionario Latinoamericano de Bioética. Bogotá: Unibiblos, UNESCO, 2008, p. 3-5. ][34: Lorenzo C. Teoria crítica e bioética: um exercício de fundamentação. In: Porto D, Garrafa V, Martins GZ, Barbosa SN. Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Brasília: CFM/Cátedra UNESCO de Bioética/SBB. 2012. p.173-189.][35: Cunha,T e Lorenzo, C. Bioética Global na Perspectiva da Bioética Crítica. Rev. Bioét., 22 (1): 116-125, 2014. ][36: Nobre, M. Curso Livre de Teoria Crítica. São Paulo: Ed Papirus, 2011. ]
No mesmo sentido, nem toda crítica social pode ser chamada de Teoria Crítica. A Teoria Crítica foi uma proposta iniciada pelo Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, fundado no início do Século XX, reunindo interdisciplinarmente intelectuais de várias áreas do conhecimento com o intuito de utilizar conteúdos da obra filosófica e econômica de Karl Marx para a geração e expansão de conhecimentos que contribuíssem para a emancipação dos sujeitos e comunidades vítimas da exploração no processo histórico do desenvolvimento do capitalismo. A Teoria Crítica tem, portanto, diretrizes e conceitos próprios e bem definidos que a distinguem de outras abordagens teóricas de crítica social. Algumas dessas diretrizes e conceitos formam parte da estrutura de desenvolvimento da Bioética Crítica. 
Uma primeira diretriz da Bioética Crítica então é que a História deve ser usada como fonte de conhecimento para se compreender as estruturas sociais, sua organização, suas formas de interação, e de como elas determinam os conflitos éticos relacionados ao desenvolvimento, aplicação, distribuição e controle de conhecimentos, produtos e tecnologias, bem como suas consequências para seres humanos e ambiente, sobretudo no que se refere às injustiças relacionadas à acessibilidade e à exposição a danos e riscos. 
Assim sendo, quando a Bioética Crítica analisa os conflitos éticos em nível global, gerados pelas iniquidades no acesso a saúde e pela dependência econômica e científico-tecnológica de países pobres em relação a países ricos, toma em consideração os três séculos de exploração dos recursos naturais de nações asiáticas, africanas e americanas, bem como a escravização de muitos povos autóctones, estratégia que foi capaz de gerar as riquezas suficientes para sustentar as revoluções científica e industrial da Europa. É a partir daí, desse processo de dominação que se mantém em nossos tempos por outros dispositivos reguladores que a Bioética Crítica vai analisar, por exemplo, a exploração de populações vulneráveis pelos ensaios clínicos da grande indústria farmacêutica, a dependência dos países periféricos ao capital estrangeiro para o desenvolvimento de pesquisas e geração de tecnologias, ou a transferência para países pobres de lixo industrial extremamente lesivos ao ambiente. 
De forma semelhante, ao analisar conflitos internos do país, relacionados à geração de estigmas responsáveis pelas exclusõesespecialmente dirigidas a determinados grupos sociais, tais como a população negra, os povos indígenas ou o grupo LGBT no Brasil, a Bioética Crítica buscará compreender historicamente, como esses estigmas foram desenvolvidos, incluindo o papel da religião, do Estado, da escola e da grande mídia, enquanto mediadores e anunciadores de princípios morais. 
Aqui aparece uma segunda diretriz da Bioética Crítica extraída, não da Teoria Crítica propriamente dita, mas dos estudos da colonialidade, uma teoria social nascida aqui mesmo na América Latina. A Bioética Crítica compreende as relações internacionais a partir da concepção de Colonialidade do Poder e do Saber . Estes conceitos referem-se às novas formas de dominação desenvolvidas na modernidade, que tiveram como elemento central a noção de raça, inexistente anteriormente na história, o que serviu para classificar os povos colonizados como identidades opostas ao colonizador. [37: Quijano, A. Colonialidad del poder y clasificación social. p 93 a 126. IN Castro-Gómez, S y Grosfoguel, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007, 308 p]
Enquanto as demais raças representavam o passado, o atraso, a barbárie, a ignorância, a raça branca europeia representava o desenvolvimento, o progresso a civilidade, a ciência. Desta forma a exploração colonial foi legitimada, sustentada e estimulada, até que, a dominação dos territórios e corpos pôde ser substituída por dispositivos normalizadores dos países centrais, em direção aos países periféricos, inscritos na própria estrutura do mundo globalizado. Neste processo as formas de dominação são também travestidas de valores culturais no campo do saber como, ciência avançada, belas artes, filosofia profunda, os quais inferiorizam os saberes locais e põe os valores dos dominadores como o modelo a ser copiado. Assim, sendo, a busca de soluções para conflitos éticos no campo das ciências, saúde e ambiente por uma Bioética crítica que se queira também descolonial, deve estar centrada na autocompreensão de povos, e na busca de valores pela investigação e análise de suas próprias culturas e na negação da importação acrítica, seja de modelos teóricos, seja de procedimentos de resolução de conflitos. [38: Dussel, E. Ética de la liberación en la edad de la globalización y exclusión. 2ed. 147p. Madrid: Editorial Trota, 1998]
A terceira diretriz da Bioética Crítica que apresentaremos nessa apostila é a negação da neutralidade moral e ideológica da ciência. A Bioética Crítica compreende que a ciência já nasceu a partir de um ideal de dominação dirigida à natureza, mas também a outros povos. Este modelo de ciência foi responsável pela hiperespecialização das áreas científicas, pondo o pesquisador em um mero papel de observador de uma realidade estrita e específica, contribuindo para sua alienação em relação às consequências sociais e ambientais dos conhecimentos e tecnologias gerados, por seu trabalho. Compreende também que o objetivismo radical da ciência e a alienação social dos cientistas foram muito favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo, de maneira que a busca do conhecimento pôde ser dirigida, sobretudo, para desenvolvimento de tecnologias e aplicações técnicas capazes de serem exploradas pelo mercado, sem nenhuma ou poucas críticas dos cientistas envolvidos. 
Se observarmos, por exemplo, a produção de medicamentos frente às necessidades de saúde da população planetária, veremos que ele segue o mesmo nicho de mercado, formado pelas parcelas das populações capazes de pagar cada vez mais por medicamentos de última geração dirigidos a uma mesmo conjunto de enfermidades. Um famoso relatório da OMS, de 2002 demonstrou que 90% de todos os investimentos feitos em pesquisa de medicamentos se dirigiam a 10% das doenças que afetam as populações do mundo. Um importante estudo também mostrou que entre as 1556 novas drogas desenvolvidas e registradas pelas indústrias farmacêuticas entre 1974 e 2004, apenas 10 que se dirigiam a doenças que acometiam exclusivamente países em desenvolvimento. [39: Chirac P, Torreele E. Global framework on essential health R&D. Lancet 2006; 367 (9522): 1560-61.]
A alienação dos cientistas também é flagrante. Não é comum que os pesquisadores que trabalham no desenvolvimento dos ensaios clínicos para novos medicamentos da industria farmacêutica tenham uma percepção crítica dessa realidade. De forma semelhante, não há muitas reflexões críticas sobre as consequências para o ambiente e populações locais produzidas por cientistas envolvidos nas tecnologias de extração das atividades de mineração, ou de produção do agronegócio. É por isso que a análise de novos tecnologias pela Bioética Crítica, não se limita às análises dos riscos pessoais ou locais, mas envolve as relações entre mercado e Estado, suas influências e impactos para saúde coletiva, seus interesses, seus processos de produção. 
A quarta e última diretriz da Bioética Crítica que apresentaremos para o propósito desta apostila é aquela que concebe o processo de tomada de decisão para a proposição de soluções de conflitos ou elaboração de normas de forma inspirada na Ética do Discurso e na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, tal com sucintamente apresentados nesta apostila nas páginas 8 a 11, quando apresentávamos modelos éticos contemporâneos. Obviamente, essa utilização não deixa de considerar importantes críticas existentes a este modelo, nem seus limites para atuar em contextos fora do qual foi concebido. 
A Bioética Crítica estrutura-se então a partir de um componente analítico baseado nas produções das primeira geração da Teoria Crítica, complementada pelos estudos da colonialidade, e de um componente prescritivo deliberativo apoiado na construção dialógica da decisão, que toma como base a produção de Habermas, maior representante da segunda geração da Teoria Crítica, de forma atenta às críticas que apontam suas contradições e limites.
Finalizando, a Bioética Crítica tem como objetivo principal ao analisar os conflitos éticos envolvendo as ciências da vida, seja a produção biotecnológica, seja a exclusão de grupos sociais e populações a uma atenção à saúde digna, tomar os conflitos enquanto fatos sociais passíveis de transformação. E seu desafio é o de contribuir, pela perspectiva da ética, com os meios para a transformação da realidade, daí que para ela, faz-se necessário do ponto de vista prático, fortalecer os elos entre o meio universitário e os movimentos sociais. 
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos e sua importância para uma fundamentação da Bioética em nível Global. 
Em outubro de 2005, durante sua 33a conferência a UNESCO aprovou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH). Sua publicação foi considerada um marco para a Bioética mundial, uma vez que constituía um documento que tinha o objetivo de orientar os 191 países signatários na elaboração de leis e normativas relacionados aos temas da Bioética. As discussões entre os países membros, através das quais o texto foi elaborado, expressou de forma bastante concreta o embate entre as perspectivas hegemônicas e contra-hegemônicas da Bioética, que já apresentamos nessa apostila. Enquanto os representantes dos países centrais, em especial comunidade europeia e os Estados Unidos queriam manter a declaração no âmbito das questões biomédicas, centradas no desenvolvimento de novas tecnologias, os representantes dos países periféricos lutaram pela inclusão dos problemas sanitários, da vulnerabilidade, das questões interculturais, das discriminações, etc . Podemos dizer que a maior vitória foi dessa segunda perspectiva, o que referendou as tendências teóricas e práticas que em especial, a Bioética brasileira e latino-americana, vinha tendo. [40: UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf][41: Caetano, R.  e  Garrafa,

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