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Mondin_B._O_homem_e_a_religiao

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x 
o HOMEM E A RELIGIAO 
(Homo religiosus) 
1. 0 fen6meno da religiosidade 
Vma manifestal,;ao tipicamente humana e a religiao. Ela nao esta 
presente nos outros seres vivos, mas somente no homem. :e e uma 
manifestac;;ao que, se abarcarmos a humanidade inteira seja com rela­
c;;ao ao espal,;o quanto ao tempo e nao somente este ou aquele outro 
grupo de uma epoca historica particular, assume proporc;;oes notabi­
Hssimas. Os antropologos informam-nos que 0 homem desenvolveu 
uma atividade religiosa desde a sua primeira aparil,;ao na cena da his· 
toria e que todas as tribos-' e todas as populac;;oes de qualquer nlve1 
c~utural cultivaram alguma forma de religiao. Ademais, e coisa mais 
que sabida que todas as culturas sao prcfundamente marcadas pe1a 
religiao e que as melhores produI,;oes artisticas e literarias, nao s6 das 
civilizal,;oes antigas, mas tambem das modernas, se inspiram em mo­
tivos religiosos. 
portanto, razoavel afirmar que 0 homem alem de sapiens, vo· 
lens, socialis, faber, loquens, ludens e tambem religiosus. 
Nem 0 fato de que, hoje, a reBgiao esteja atravessando uma cri· 
se profunda e se encontra muitos individuos que se afirmam ateus 
constitui um argumento plausfve1 contra a relevancia do fenomeno reo 
ligioso. Com efeito, nos consideramos 0 homem ludens, loquens, faber l 
sapiens, volens, socialis, mesmo se nem todos joguem, falem, traba· 
lhem, pensem, queiram, vivam em sociedade. Outro tanto vale para 
a dimensao religiosa: ela se impoe como uma constante do ser humano, 
mesmo se nao e cultivada por todos os indivfduos da especie. 
Daf a oportunidade, ou melhor, a necessidade de induir 0 estudo 
do fenomeno da religiosidade num tratado de antropologia: tamb~m 
ele pode fornecer dados interessantes, sugestoes tlteis, indfcios precio­
sos e eloqiientes para a determinal,;ao do sentido ultimo da vida e d. 
natureza essencial do ser do homem. . 
No nosso breve estudo do Homo religiosus, procederemos segun­
do a ordem seguinte: primeiramente tral,;aremos uma breve histar!. 
das interpretal,;oes do fenomeno religioso assim como £oi visto pelol 
fil6sofos, pelos te6Iogos, pelos historilldores, pelas soci6lo808 e pelol 
o HOMEM E A RELIGIAO 
fenomenologos; depois procuraremcs efetuar um aprofundamento 
teorico do problema, elaborando uma definil,;ao e examinando as rela­
c;;oes que eIa mantem com as outras atividades do homem. Por Hm, 
exploraremos as implical,;oes da religiao no que concerne a natureza 
propria do ser do homem. 
2. Hist6ria do problema religioso 
Precisemos, antes de mais nada, que com a expressao "historia do 
problema religioso" nao pretendemos referirmo-nos a historia das 
religioes, ao nascimento e ao desenvclvimento das varias instituic;;oes 
religiosas, mas a religiao como objeto de reflexao critica, e portanto, 
a historia da analise critica do fator religioso . .E dessa hi.storia que 
pretendemos oferecer um quadro sintetico nas paginas seguintes. 
'[ratar-se-a necessariamente de um quadro muito imperfeito, porque a 
historia do problema religioso e vastfssima e para ser narrada adequa­
damente exigiria muitos volumes. 
o problema religioso no passado, mas sobretudo durante 0 nosso 
seculo, esteve no centro da atenc;;ao dos cultores das seguintes disci­
pHnas: 
filosoHa; 
teologia; 
critica hist6rica; 
fenomenologia; 
sociologia. 
Para ser mais daros, na nossa expOSlc;;ao examinaremos separa­
damente a pensamento dos filosofos, dos teologos, dos historiadores 
das religioes, dos sociologos e dos fenomenologos. Iniciaremos com 
o dos filosofos. 
a) A critica filos6fica 
A questao religiosa esteve sempre preSente nas fases mais impor­
t~mtes da historia da filosofia. No pedodo antigo, por ela se interes­
saram Xenofanes, Protagoras, Platao, Aristote1es, Lucrecia e Plotino; 
na idade Media, Avicenas, Averroes, Maimonides, S. Tomas, Occan; 
nos primordios da epoca moderna, Giordano Bruno, Campanella, Spi­
noza, Hobbes, Locke. Mas foi sobretudo a p:!rtir de Hume e de Kant 
que a questao religiosa se tornou um dos pontos centrais da reflexao 
filos6£ica. 
Defronte a tal questao, os filosofos modernos perfilaram-se em 
. dUlls fileiras opostas. De uma parte, alguns procuraram mostrar que 
B religiio e privadll de qualquer fundamento objetivo: e1a seria uma 
FENOMENOLOGIA DO HOMEM220 
astuta invem;;ao do hcmem, devida ao medo (Feuerbach), a prepo­
tencia (Marx), a ignorancia (Corute), ao ressentimento (Nietzsche), 
a sublima~ao dos instintos (Freud), aos abusos linglifsticos (Carnap), 
etc. .. De outra parte, outros defendem 0 valor objetivo da religiao, 
porquanto ela se fundada em uma rela~ao conatural do homem com 
a "realidade ultima" (Hegel, Croce, James, Bergson, Scheler, Jaspers, 
etc. ). Os primeiros desenvolvem uma erftica negativa e desmistifi· 
cadora, enquanto os segundos elaboram uma critica positiva e cons­
trutiva do fenomeno religioso. 
Hume e Kant, embora indicassem bases diferentes para 0 fenome· 
no religioso (Hume a havia fundado no instinto e Kant na razao pra­
tica ), nao tinham posto em duvida 0 seu valor essencialmente obje. 
tivo. Tal valor foi, mais tarde, confirmado por idealistas, em partie 
cular por HegeL 
Mas as teses paradoxais do corifeu do idealismo fizeram com que 
a situa~ao se precipitasse e conduziram Feuerbach anega<;ao da realida· 
de religiosa e a a£irma~ao do atefsmo. Contra 0 postulado hegeliano 
segundo 0 qual tudo provem do Absoluto e cada coisa, inclusive 0 
homem, nao e senao urn momento do seu automanifestar-se, Feuerbach 
sustenta que as coisas ocortem exatamente do modo inverso: Deus 
e s6 uma ideia excogitada pe10 homem com 0 escopo de conseguir a 
plena realiza~ao de si mesmo; portanto, a realidade suprema nao ~ 
Deus, mas 0 hcmem. No famoso ensaio sobre a Essencia do Cristianis­
mo, Feuerbach argumenta que a religiao tem origem em urn processo 
hipostlhico das necessidades e dos ideais do homem: 0 homem pro­
jeta todas as qualidades positivas que tern em si em uma pessoa (hipos. 
tasis) divina e faz dela uma realidade subsistente, capaz de suprir as 
suas pr6pdas necessidades e as suas pr6prias lacunas. Assim, por exem· 
plo, a ideia de Deus como pai, segundo 0 autor de Essencia do Cristia­
nismo, nasce da exigencia de seguran~a exigida pelo homem; a idei. 
de Deus feito carne expdme a excelencia do amor pelos outros~ 
a ideia de urn ser perfeitfssimo nasce para representar ao homem 0 
que 0 homem gostaria de ser mas nao consegue tornar-se; a idel. 
de uma existencia ultraterrena nao e senao a fe na vida terrestre nio 
como ela e atualmente, mas como deveria ser; a Trindade obscurece 
as tres faculdades supremas do homem (vontade, razao e amor) , 
tomadas na sua unidade e projetadas sobre 0 homem, e dai POI 
diante. Concluindo, a tese revolucionaria de Feuerbach e que "0 fun. 
damento da verdadeira filosofia nao e por 0 finito no Infinito, mas Q 
Infinito no finito". 
Para nao falsear 0 pensamento de Feuerbach, e necessario ter 
presente que com 0 desmantelamento dos conceitos religiosos tradl· 
donais ele nao pretende suprimir a religiao, que, alias, ele consider. 
necessaria porquanto torna presentes ao homem os seus ideais, mil 
s1m que e1e se prop6e coloca-Io em estado de alerta contra ali iiuli~. 
causadas pela religiao, em particular contra a Husio do conceber Q 
o HOMEM E A RELIGIAO 221 
Ser no qual se hipostatizam os ideais do homem como se fosse es­
tranho ao homem, como se fosse algo de existente em si mesmo. Essa 
e, de fato, para Feuerbach, a grande fraqueza da religiao e a causa 
de todos os erros e fanatismos. 
Karl Marx foi, como Feuerbach, disdpulo de Hegel e as criticas 
ao pensamento do mestre elaboradas por Feuerbach, sem duvida, COI1­
tribuiram para encaminha-lo em dire<;ao a nega~ao de Deus e da re­
ligiao. Mas os motivos que fizeram Karl Marx abra<;ar a causa do 
atefsmo, mais que argumentosde natureza filos6fica e metaHsica, foram 
de ordem hist6rica e social. A sua identifica~iio da sociedade ideal 
com a sociedade sem classes e a busca da instaura<;ao de tal sodedade 
mediante a demoli<;ao das estruturas sociais vigentes nos seus tempos 
1evaram-no necessariamente a confrontar-se com a religiao. Ora, toda 
uma serie de drcunstancias infaustas 1 0 fizeram erer que a religiao 
fosse urn dos maiores obstaculos a realiza~ao da nova sociedade e, 
portanto, 0 induziram a concluir que a religiao nao pode ser senao 
uma inven~ao da sodedade capitalista. Para Marx, a religiiio e urn 
produto imaginado por esta sodedade para realizar a explora<;iio de 
classes: a religiao e urn instrumento de evasiio para os oprimidos e de 
justifica<;iio para os opressores. Ela e 0 apio dos povos: "A miseda 
religiosa e, de urn lado, expressiio da miseria real e, de outro, protes­
to contra a miseria reaL A religiao e 0 suspir~ da cdatura oprimida 
pela desventura, a alma de uma epoca sem espfrito. E 6pio para 0 
povo. .. 0 fundamento da critica religiosa e este: 0 homem cria a 
religiao e nao e a religiao que cria 0 homem". Nela 0 homem aliena­
do busca uma felicidade ilus6ria, urn parafso artifidal:a conseqiien­
cia desse processo e uma postura de desconfian~a e de remissao, que 
induz 0 homem a aceitar as injusti~as presentes, mistificadas como 
"provas" e "puni<;5es", sem modificar a realidade hist6rico-social que 
delas e causa. A religiao nao e s6 urn produto da a1iena~ao, mas e 
ela mesma a causa, aliena<;ao, porquanto instrumento de evasao e de 
renuncia: "A religiao e, na realidade, a conscienda e 0 sentimento 
pr6prios do homem que ainda nao se achou ou que ja se perdeu de 
novo". "A religiao nao e senao 0 sol ilus6rio que se move em torno 
do homem, ate que ele nao se mova em torno de si mesmo. .. Vma 
vez desaparecida a vida futura da verdade, a hist6ria tern a missiio 
de estabelecer a verdade na vida presente" 2. 
1 Cf. H. GOLLWITZER, La crttica marxista della religione e la fede cristiana, 
Morcelliana, Brescia, 1970. Nessa obra G<>llwitzer mcstra que a adesao de Marx ao 
ateismo nasceu, em larga escala, mais por preconceitos do que por raz6es vMidas 
(pp. 34ss, 80ss), porem sao preccnceitos que foram favorecidos pela conduta da 
Igreja e dos cristaos: para elevar urn atelsmo individual a doutrina geral do movi· 
mento marxista, a experil!ncia com a Igreja e com os seus representantes vislveis foi 
um fato decisivo. 
2 K. MARX, Contributo alta critica della filosofia hegeliana del diritto. As cita­
. t;Cles sio retomadas por J. Y. CALVEZ, It pensiera de Carlo Marx, Turim, 1966, 
pp. 94••. 
FENOMENOLOGIA DO HOMEM222 
Os ecos da critica marxista da reHgiao no seculo passado foram 
um tanto fracos. Sera necessario esperar 0 seculo vinte para que eles 
comecem a res soar vigorosamente em toda parte. No seculo dezenove, 
a defensor do atefsmo que teve maior sucesso nao foi Marx nem 
Feuerbach, mas Comte, 0 pai do positivismo. Segundo esse filosofo, 
todo 0 universo procede da materia por meio da evolu~ao. Tambem 
o hemem e um produto da evolu~ao. Com 0 seu aparecimento sobre 
a cena do mundo tem infcio a historia, cujas fases principais, segundo 
a celebre classificar;ao de Comte, sao tres: religiosa, metaflska e cien­
tifica. As tres fases correspondem a tres modos diferentes de conce­
ber e de explicar as coisas. Na epoca religiosa, 0 homem concebe uma 
explicar;ao mftka dos fenomenos naturais excogitando causas sobre­
naturais; na epoca metaffsica, ele obtem uma explicar;ao dos fenome­
nos recorrendo a principios reconditos, tais quais substancia, acidentes, 
ser, etc.; na epoca positiva, enfim, ele elabora uma explicar;ao racional, 
cientffica das coisas por meio das leis naturais, as quais bastam sozi­
(sem que haja necessidade de recorrer a Deus ou a principios 
metaflsicos) para explicar todos os fenomenos que nos constatamos. 
Todas as atividades e todos os ramos do conhecimento passam por 
esses tres estados. Essa, segundo Comte, e uma lei imediatamente 
evidente: "Quem de nos, pergunta-se 0 fundador do positivismo, nao 
recorda, contemplando a sua propria historia, que foi sucessivamente, 
cem relar;ao as nor;6es mais importantes, te6logo na sua infancia, 
metafisico na sua juventude, e fisico na sua virilidade?" 
Com 0 desenvolvimento do metodo cientffico e das varias disci­
plinas cientHicas, a humanidade finalmente atingiu a idade adulta e 
pode deixar para tras tanto a religiao quanto a metafisica. Agora a 
humanidade e 0 unico Deus que merece 0 seu culto. A humanidade 
e 0 grande Ser, porquanto "conjunto dos seres passados, futuros e pre­
sentes que concorrem livremente para aperfei~oar a ordem universal". 
A esse grande· Ser se deve dirigir a religiao de todos os membros da 
sociedade. 0 proprio Comte delineou com minuciosos detalhes 0 culto 
positivista da humanidade, estabelecendo um "Calendario positivista" 
no qual 0 lugar dos santos e tomado pelas maiores figuras da arte, 
da poHtica e da ciencia e inventando ate mesmo um sinal da cruz, 
no qual no lugar da Trindade recorda-se 0 "Grande Ser" que e a 
humanidade, 0 "Grande fdolo" que e a terra e 0 "Grande Meio" 
que e 0 espar;o. 
o quarto maximo expoente da critica negativa do fenomeno reo 
ligioso no seculo passado e Frederico Nietzsche. Dele todos conhe­
cemos a famosa proclamar;ao: "Deus morreu". Essa sentenr;a que reo 
presenta 0 leitmotiv da predica~ao de Zaratustra e tambem 0 motivo 
dominante da reflexao filosofica de Nietzsche. Ele, na sua autobiogra. 
fia, gostaria de nos fazer pensar diversamente. No primeiro capitulo, 
de Ecce homo diz que a questao religiosa para ele nunca teve nenhu· 
rna importand::. e que as nor;6es de "Deus", "imortalidade da alma II 
o HOMEM E A RELIGIAO 223 
e "aMm" nao merecem nenhuma atenr;ao 3. E, no entanto, 0 proprio 
fato que ele fale expHcita e difusamente desses temas lege no primeiro 
capitulo de sua autobiografia e extremamente eloqiiente e demonstta 
o contrario. Com efeito, a questao religiosa figura constantemente no 
centro de todas as suas obras. 
Tambem para 0 autor de Assim fa/ou Zaratustra a reHgiao e 
uma engenhosa inveD/;ao dos homens, porem nao dos fortes para man,­
ter sob 0 seu juga os fracos como queria Marx, mas dos fracos para 
por urn freio na potencia dos fortes, dos super-homens. De tal 
origem da religiao, Nietzsche acha confirma~ao no cristianismo. Aqui 
os fracas, os humilhados, os oprimidos elevam 0 seu ideal de fraque­
za, de velhacaria, de resigna~ao a ideais e fazem de tudo para cons­
ttingir tambem as homens fortes, os potentes, os super-homens a acei­
ta-Io. "So 0 miseravel e bom, proclama 0 cristianismo, 0 pobre,o 
fraco, 0 humilde somente sao bons; somente 0 doente, 0 necessitado, 
aquele que produz repulsa e pio. So a eles e prometida a felicidade 
e a salv~r;ao eterna. Enquanto avos potentes, aristocratas, avos e dito 
que sois para toda a eternidade maus, perversos, vorazes, insaciaveis 
inimigos de Deus e que, por isso, sois eternamente infelizes, condena­
dos, malditos" ". 
Outta importante forma de crftica da religiao foi introduzida 
neste seculo por Sigmund Freud mediante a psicanaIise. A falta de 
fundamentos da religiao e dada como certa por Freud porquanto, 
via que fora do mundo e do homem nao existe 
nenhum outro ser. Ao estl'dioso fica, por isso, apenas 0 problema 
de explicar como nasceu a " ilusao religiosa". Para 0 fundador da 
psicanruise, ela nao nasceu de uma luta de classe entre burguesia 
e proletariado, como queria Marx, e nem mesmo em conseqiiencia 
de uma luta entre fracos e potentes, como sustentava Nietzsche, 
mas at raves .de um processo de sublimar;ao de uma luta primordial 
entre os membros do cla domestico. 
No homem, segundo Freud, existiu uma tendencia natural para 
o incesto: relar;oes edipianas prinlordiais estabeleceram-se entre fi­
lhos e mae. Ora, 0 pai proibiu tais relar;oese assim nasceu a proibi­
o tabu: proibido e, justarnente, 0 incesto. Mas ao tabu os filhos 
responderam com um delito primordial: devoraram 0 pai e Ihe 
roubaram as mulheres. A recordar;ao desse delito no totemismo (que, 
segundo Freud, e a forma religiosa mais primitiva) e celebrada 
com um banquete ritual, no qual e devorado 0 animal sagrado, S1m­
bolo da tribo (0 totem). Trata-se de um sacriffcio rememorativo 
vicario: atraves de um ato de culto se repoe aquela tragedia aconteci­
da nos primordios da humanidade. Nele, a relat;ao com 0 pai e 
sempre ambivalente: e, juntamente, uma relar;ao de deferencia e de 
3 F. NIETZSCHE, COSt parlo Zaratustra, Bocca, Milao, 1906. 
" lb. 
FENOMENOLOGIA DO HOMEM224 
temor. 0 sacrifkio totemico exerce a dupla fun~ao de sopitar 0 senti· 
do de remorso pela culpa cometida e de refor~ar 0 sentido de po­
tenda pela vitoria obtida sobre 0 paL Ora, 0 objeto da religiao ­
Deus - e 0 resultado de tal proje~ao, fora da psique, da ideia de 
pai; a ideia deste Ser supremo reflete, sobre 0 plano cosmico, a 
polaridade afetiva arnor-odio que as filhos sentem nos confrontos 
com a pal. 
A analise conduzida por Freud conclui fazendo derivar a reli· 
gHio do "complexo de :f:dipo", ou seja, da tendenda natural do fi· 
lho homem para possuir a mae e eliminar 0 pai. A religiao - como a 
arte, a meral, a EoHtica - entra no processo geral de sublima~ao do 
instinto da libido por obra do Super-ego. "No complexo de Edipo, 
escreve Freud na conclusao de Totem e tabu, acham-se juntos os 
prindpios da religiiio, da moral, da sociedade e da arte e isso em 
plena conformidade com os dados da psicanalise que ve neste com­
plexo 0 micleo de qualquer neurose" 5. Nada mais do que isso e a 
religiao, senao a «neurose obsessiva universal da humanidade", urn 
"delito coletivo" 6. 
Outras formas de crftica negativa do fenomeno religioso foram 
desenvolvidas durante 0 nosso seculo pelos existencialistas (em par· 
ticular por Heidegger e por Sartre) e pelos neopositivistas. 
Nao se pode estabelecer com seguran~a quais sejam os pontos 
de vista de Heidegger com rela~ao a religiao. Com' efeito, as suas 
obras mais recentes contem tra~os inconfundfveis de misticismo. Uma 
cGisa, porem, esta fora de duvida: segundo 0 autor de Sein und Zeit, 
a filosofia nao pode dar senao um juizo negativo no que concerne 
aideia de Deus. De fato, tal ideia e aberrante tanto nos confrontos 
da metaHsica, porquanto faz decair 0 problema do Ser no problema 
de um ente, como tambem nos confrontos do problema de existen­
cia hurnana, porque a desvia das suas possibilidades autenticas. 
Inequfvoca e, por seu lado, a posi~ao de Sartre. Ele ve na idei" 
de Deus uma impessivel tentativa de hipostatiza~ao da identifica~ao' 
da consdencia com 0 ser do pour-soi com l'en-soi. 0 seu juizo, 0 su­
jeito (0 pour-sot) tende ao ideal de uma coisa que seja, com a pura 
consciencia de si mesmo, tambem fundamento do seu proprio eel' 
em si. Ora, esse ideal e 0 que se pode chamar Deus. "Pode-se dizer, 
assim, que 0 que torna melhor concebfvel 0 projeto fundamental 
da realidade humana e que 0 homem e 0 ser que pro;eta ser Deus. 
Sejam quais forem es mitos e os ritos da religiao, Deus e em pd. 
meiro lugar senslvel ao cora~ao do homem como 0 que anunda • 
define no seu projeto Ultimo e fundamental" 7. "Toda a realidad. 
5 S. FREUD, Totem e tabu, tr. it., Rama, 1969, p. 221. 
6 Cf. S. FREUD, L.'avvenire di un'illusione. Esse e 0 estudo mals org&nlco, Ill" 
tambem rnenos s61ido de Freud sobre 0 fenorneno religioso, que ele procurll demoUr 
cern muitissimos argurnentos, compreendidos os mais discudveis e arbltrtlriol. 
7 J. P. SAR'I'RE, L'itre et Ie neant, Poris, 194', p. 6".' 
1/ 
I 
o HOMEM E A RElIGiAO 226 
hurnana. diz Sartre no final de L'§Ire et Ie neant, e uma palxao, 
porquanto ela (a realidade humana) aponta para perder-se, para 
fundar 0 ser e para constituir de urna vez 0 Ser em-si que foge a 
contingencia para ser 0 seu proprio fundamento, 0 Ens causa sui 
que as religioes chamam Deus. Assim, a paixao do hemem e oposta 
a de Cristo, porque 0 homem se perde enquanto homem para fazer 
nascer Deus. Mas a ideia de Deus e contraditoria e nos nos perdemos 
em VaG: 0 homem e uma paixao inutil" 8. 
A ultima importante tentativa do nosso tempo para dar uma 
base teorica ao atelsmo e a realizada pelo neopositivismo. Para esse 
mevimento, como e sabido, a filosofia consiste essencialmente na 
analise da linguagem: so desse modo ela pode determinar a verdade 
ou a falsidade de uma doutrina. Mas para efetuar a analise da lin­
guagem e necessario antes de mms nada um criterio para distinguir 
as proposi~oes que tern significado das que dele sao privadas. Ora, 
segundo os neopositivistas, os criterios possfveis sao somente dois: 
,a analise logica e a verifica~ao experimental. 0 primeiro vale para 
as proposi~oes tautologicas (e serve para estabelecer a verdade 10­
gica; 0 segundo vale para as proposi~oes de fato (e serve para es­
tabelecer a verdade factual). Portanto, todo 0 material lingiifstico 
que nao seja verificavel mediante um desses dois criterios nao pode 
!ler conhecido como significativo, ou seja, nao se lhe pode assinalar 
urn valor teoretico, cognitivo, mesmo se pode explicar uma fun~ao 
importante na ordem da pratica (porem nao se pode tratar senao de 
uma fun~ao emotiva) . 
No que concerne ao criterio da verifica~ao experimental, Ru­
dolf Carnap, que e 0 teorico mais brilhante do neopositivismo, defi­
ne-o assim: "Uma afirma~ao que nao e traduzlvel em proposi~6es 
de carater empfrico nao e de fato uma afirma~ao, nao diz nada; nao 
e senao uma serie de palavras vazias; e simplesmente sem sentido" 9. 
Dessas premissas os neopositivistas tiraram a condusao, 16gica 
e necessaria, de que as linguagens etica, estetica e religiosa sao pri­
vadas de sentido (non-sensical) , nao dizem nada: sao carentes de 
qualquer valor objetivo. Portanto "dizer que 'Deus existe' e uma 
expressao metaHsica que nao pede ser nem verdadeira nem falsa. 
E, pelo mesmo motivo, nenhuma proposi~ao que se intente descrever 
a natureza de urn Deus transcendente pode ter significado literal ... 
Todas as expressoes concernentes a natureza de Deus sao carentes de 
sentido (non-sensical) " 10. 
Porem, cemo fleou dito, nem todos os filosofos modernos i.e 
pronunciaram a favor de uma critica negativa do fenomeno reli· 
giose. Antes, muitos expressaram a seu respeito uma aprecia~ao po­
8 lb., p. 708. 
9 R. CARNAP, ·Ueberwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Spra­
che", in Erleenn#n;s II (19.31·1932), p. 238. 
10 A. J. AUI, L.",tllI", Truth and Log,ic, Nova Yor.k (aem data), p. 11'. 
FENOMENOLOGIA DO HOMEM226 
sitiva, considerando-o uma das manifesta\oes mais pr6prias, autenti­
cas e genufnas do espfrito humano. Aqui nao podemos citar os 
pontos de vista de todos aqueles que se expressaram nesse sentido. 
Limitar-nos-emos a re£edr 0 pensamento de alguns mais representa­
tivos, come\ando por Kierkegaard. 
Contra a concep\ao hegeliana da religiao, a qual ve nela pura­
mente um momento 16gico, natural da evolu\ao do Espirito Absoluto 
e contra a sua subordina\ao Ii reflexao filos6fica, Kierkegaard proda­
ma que a religiao nao pode ser reduzida a um momento 16gico de 
um sistema geral de pensamento, porque ela pertence a esfera da 
existencia, da vida. Ao estagio religioso nao se alcan\a atraves da 
intui\ao, como pretendia Hegel, mas mediante a fe. 0 encontro com 
Deus nao se da na imedia\ao da visao, mas nas trevas da fe. E essa 
nao e a conseqiiencia, a condusao de um arrazoamento, mas e urn 
ato de decisao, que comport a um salto para atem de tudo 0 que se 
ap6ia na seguran\a das leis cientfficas e dos codigos morais. Sendo ca­
rente de qualquer garantia cbjetiva, a fe e um risco. Para Kierkegaard 
o risco e urn elemento inseparavel da verdadeira ,experiencia religiosa: 
"Semrisco nao ha fe e quanto maior 0 risco tanto maior a fe" 11. 
Se bem que a fe e um risco, a sua aceita\ao nao e irracional: 
"0 crente nao so possui, mas usa a razao, respeita as cren\as comuns, 
nao atribui a falta de razao se. alguem nao e cristao; mas, no que diz 
respeito a religiao crista, ele cre contra a razao e, nesse caso, ele 
adota a razao para ter certeza de que cre contra a razao. .. 0 cristao 
nao pede aceitar 0 absurdo contra a razao porque ela perceberia que 
e absurdo e como tal 0 a£astaria. Ele adota, portanto, a razao pars 
tornar-se consciente do incompreensfvel e depois se agarra a ele e cre 
mesmo contra a razao" 12. 
Quando 0 homem cre em Deus e observa a infinita diferen\a que 
separa a natureza divina da sua, entao se prostra diante de Deus e 0 
adora. "A adora\ao e a maxima expressao da rela\ao com Deus de urn 
ser humano .. , 0 significado da adora\ao' e que Deus e absolutamen· 
te tudo para quem 0 adora" 13,"0 crente que se abandona a Deus 
deve renunciar a tudo e essa completa renuncia impliea sofrimento, 
sofrimento nao so par motivo do despego, mas tambem porque e 
consciente de que sozinho nao pode fazer nada. 0 sofrimento e 
inseparavel da Ie: ele e a caracterfstica da fe" 14. 
Essas singulares e importantes considera\oes de Soren Kierke­
gaard acerca do fenomeno religioso no seculo dezenove despertaram 
escasso interesse e nao conseguiram debicar as teorias dos desmistifics­
dores da religiao: Feuerbach, Marx, Comte, Nietzsche. 
11 S. KIERKEGAARD, Concluding unscientific postscript, Princeton, 1944, p. 188. 
12 lb., p. 504. 
13 lb., p. 504. 
14 lb., p. 412. 
o HOMEM E A RELIGIAO 227 
Maior sucesso conseguiram os expoentes do espiritualismo do 
come\o do seculo vinte (Bergson, Blondel, James, Scheler) , os 
quais, per U11;l lado, denunciaram os limites do cientifidsmo, do posi­
tivismo e do materialismo, e, por outro lado, propuseram uma visao 
da realidade tendo a religiao como a sua componente fundamental. 
Bergson, em As duas fontes do moral eda religiao, examina 0 
mistidsmo grego, 0 misticismo oriental, 0 profetismo hebraico e 0 
mistidsmo cristao. Atraves da experienda dos misticos ele chega a 
existenda de Deus: essa, ja pressentida na especula\ao filos6fica do 
impeto vital (elan vital), se impoe agora de maneira incondidonada. 
De que modo? Com base no testemunho daqueles que tem a ex­
periencia das coisas divinas. E preciso crer nos misticos sobre essas 
coisas assim como se ere nos medicos enos engenheiros quando se 
trata de problemas relacionados com as suas especiaHdades: uns e 
outros sao peritos; sabem 0 que dizem. 
Para Bergson, alma e cerpo, espirito e materia, razao e intui\ao 
sao inseparaveis, sendo aspectos complementares de uma mesma e 
aniea realidade. Essa doutrina e retomada nas Ultimas paginas de As 
duas fontes, onde Bergson susrenta que mecdnica (conhecimento 
tt"icnico das coisas) e mistica (experiencia religiosa do universo), lan­
ge de serem contrastantes entre si, se pedem para completar-se entre si. 
"0 homem, escreve Bergson, nao se erguera sobre a terra se um 
equipamento potente nao the fornecer uma base de lan\amento. Deve­
-se especar contra a materia se quer destacar-se da terra. Em outras 
palavras, a mistica pede a mecaniea. Esqueceu-se de nota-lo porque a 
medlniea addentalrLente se lan\ou sobre uma outra estrada em cujo 
termino esta um bem-estar exagerado, 0 luxo para poucos privilegia­
dos antes que a liberta\ao para todos... Mia s6 a mistiea exige a 
medlnica. E necessarie, tambem, adidonar que 0 corpo desenvolvido 
exige a alma e a medniea exige a mistica. As origens da mediniea sao 
provavelmente mais misticas do que se cre; ela nao achara a sua verda­
deira dire\ao, nao pres tara servi\os proporcionais Ii sua potencia senao 
quando a humanidade, que foi ate agora por ela desviada em dire\ao 
Ii terra, conseguir por meio dela endireitar-se e olhar 0 ceu" 15. 
Enquanto Bergson evidenda a fun\ao positiva da religiao nos 
cenfrontos da cienda, Blondel poe em relevo a sua importanda capi­
tal com rela\ao Ii filosofia. Para ele, nao se da autentica £Hosofia pres­
dndindo da religiao, antes, mais exatamente, prescindindo do cristla­
nismo: verdadeira filosofia e somente a filosoHa crista, porque sem 
o auriHo do cristianismo nenhuma filosofia esta em condie;oes de for­
necer uma solu\ao satisfatoria para os tres problemas que mais preo­
cupam 0 fn6sofo: 0 ser, 0 conhecer e 0 agir. E proprio da razao dis­
cutir esses tres problemas, mas e tambem seu dever reconhecer que 
U H. BERGSON, Le deux sources de la morale et de la religion) Paris, 1955, pp. 
329·)30. 
,
FENOMENOLOGIA DO HOMEM o HOMEM E A RELIGIAO228 229 
somente na revela~ao de Deus e na sua comunica~ao da gra~a se da 
a eles uma resposta valida, adequada, segura. 
Segundo Blondel, urn exame atento e aprofundado da a~ao con­
duz logicamente ao reconhecimento da existencia de Deus. Com efei­
to, "a a~ao esta em perpetuo devir, como atormentada pela aspira~ao 
de urn crescimento infinito. .. Nos somos constrangidos a querer tor­
narrno-nos 0 que por nos mesmos nao podemos nem acingir nem 
possuir ( ... ). E porque tenho a ambi~ao de ser infinitamente que 
sinto a minha impotencia: eu nao me fiz, nao posso 0 que quero, sou 
constrangido a superar-me. .. Ora, esse empurrao para. 0 infinito, que 
dilata continuamente a minha a<;ao e Deus. Ele nao tern outra razao 
de ser para nos senao porque e 0 que nao podemos ser nem fazer com 
as nossas for<;as unicamente" 16. Nos somos a despropor<;ao entre 0 
ideal e 0 real, mas tendemos para a sua identidade: tal identidade e 
o proprio Deus. 
Para provar a possibilidade da gra<;a e mostrar que ela consti­
tui a soluc;ao mais adequada do problema do nosso ser, Blondel parte 
para 0 estudo das caracteristicas de que ele se reveste tanto em nos 
quanta nas outras criaturas, que e a de ser finito. Ora, defronte a 
finitude nasce na criatura urn sentimento de insatisfac;ao e urn desejo 
de superar os proprios limites, urn desejo de atingir 0 infinito: a 
constata<;ao da finitude faz nttscer a exigencia do infinito, "porque a 
ideia do limite nasce e nao pode nascer em nos senao pelo testemunho 
de que 0 infinito se entrega a si mesmo na nossa finitude" 17. Mas 0 
desejo da criatura permanece ineficaz, porque entre criatura e criador 
ha incomensurabilidade e a criatura e consciente disso: a criatura e 
consciente de que 0 abscluto tern urn modo de ser e de conhecer 
que transcende 0 seu ser e 0 seu conhecer, e consciente da sua total 
dependencia com rela<;ao a ele e que, portanto, 0 abismo que os se­
para pode ser ultrapassado sornente por Deus, gratuitamente. Em ou­
tras palavras, a insatisfac;ao que vibra no. corac;ao do homem postula 
nao so a existencia de urn Ser absoluto, mas tambem a existencia da . 
ordem sobrenatural da grac;a. 
Vma habil defesa do valor e do significado da experiencia reli­
giosa foi conduzida pelo mosofo americano Willian James) em parti­
cular na obra As varias formas da experiencia religiosa. A sua defesa 
e baseada em motivac;oes de ordem mfstica como em Bergson, mais do 
que em especulac;oes de crdem teorica como em Blondel. James nao 
cre que seja possivel transformar a religHio em urn sistema de propo­
si<;oes ciendficas demonswtvds apoditieamente: "A pretensao da filo­
sofia e que a religiao possa ser transformada em uma ciencia apta a 
convencer universalmente. 0 fato e que nenhuma filosofia religiosa 
cenvenceu e£et.vamente a massa dos pensadores. ( ... ) Sinceramente, 
16 M. BI.ONDI~ /"'.,IOIf, Parll, 1893 PI'. 3'2·"4. 
17 M. BLONDII., Ill", " I" 11m, Parll, 193'. p. 41.5. 
crdo que se deva conduit que a tentativa de demonstrar atraves de 
processos puramente intelectuais a verdade das posi~oes da experiencia 
religiosa imediata seja absolutamente sem esperanc;a. ( ... ) Nos de­
vemos, por isso, parece-me, dar adeus definitivo a teologiadogmati- . 
ca. Sinceramente, a nossa fe deve passar sem aquela garantia" is. 
Para James, 0 fundamento da religiae nao e a religiao, mas a 
fe, 0 sentimento e outras experiencias particulares como a oraC;ao, 
conversac;oes com 0 invisivel, visoes, etc. "0 que sustenta a religHio 
e algo de diferente das abstratas defini~oes e dos sistemas de formulas 
logicamente concatenadas, e algo de diferente das faculdades de teolo­
gia e dos seus professores. Todas essas coisas sao efeitos posteriores, 
adjun~oes secundarias a urna massa de experiencias religiosas concretas, 
que se reunem ao sentimento e it conduta e que se renovam in saecula 
saeculorum na vida des particulares, humildes homens. Se me pergun­
tais 0 que sao essas experiencias, direi que elas sao conversac;oes com 
o invisivel, vozes e visoes, respostas a ora~ao, mudanc;as afetivas, li· 
.berta~oes do medo, concessoes de ajuda" 19, 
Tudo isso, porem, na~ signifiea que a religiao seja carente de 
conceitos e de doutrinas. Pelo contrario, James reconhece que uma 
religiao que seja verdadeiramente autentica deve logicamente olhar 
para urn certo tipo de metaHsica ou de cosmclogia telstica e que, 
por isso, a fe em urn Deus cujos atributos sao essencialmente "morais" 
ou relacionados com a experiencia humana pode ser defendida como 
urn elemento necessario da experienda religiosa, se bern que nao possa 
servir como base de urna teologia radonal. 
Max Scheler) urn dos mais conhecidos estudiosos da religiao, pas 
este fenameno no centro da sua pesquisa filosOfica. 
Em polemica com 0 positivismo, que reduzia a religiao a urn 
momento transitorio do desenvolvimento progressivo da historia 
humana, Scheler nao so critica 0 principal erro do positivismo, que 
consiste em desconhecer a censtitutiva e originaria tendencia religiosa 
do homem, mas critica tambem a teoria positivista do nascimento da 
religiao por urn processo evolutivo que vai do fetichismo ao animis­
mo, a magia, etc., e do polite1smo ao monoteismo. Reportando-se pela 
parte historico-positiva aos estudos de W. Schmidt 20, em particular 
it sua tese do monoteismo primitivo, Scheler rea1~a, por sua conta, 
como, fenomenelogicamente, "tambem 0 'idclo' mais primitivo apre· 
senta, ainda que rudemente, a essencia indedutivel do divino, qual es­
fera global do ser absoluto fortalecido com todas as caractedsticas do 
santo" 21. Nele e atraves dele, a inten~ae religiosa entende, sente, ve 
a totalidade do ser absoluto e santo e nao urn simples objeto natural 
no qual, por entropatia, introduz uma vida psiquica. 
18 W. JAMES, The Varietiet of Religious Experience, Nova York, 1903, p. 453s. 
19 W. JAMES, Collected Essays and Reviews, Nova York, 1920, pp. 427428. 
:lO Cf. 'W. SCHMXJ)T, D,,. UrspruIIg der Gottesidee, Miinster, 1912. 
21 M. SCHaLIR, Vo", Bw/"", im M,"schel1, 4 ed., Berna, 19'4, p. 3'1. 
FENOMENOLOGIA DO HOMEM230 
Mas, se por uma parte Scheler repele os pontos de vista dos des­
mistificadores da religiao, por outra nao esta nem mesmo disposto a 
subscrever os argumentos com que geralmente se quer justifica-la. 
Em particular ele critica as tentativas de fundar a verdade da religiao 
recorrendo a criterks extra-religiosos, como a metaffsiea, a moral, a 
cultma e condui com uma prodama~ao para procurar 0 fundamento 
da verdade da religiao no proprio fenomeno religioso. "Eu sustento 
_ escreve Scheler - que todas essas tentativas de achar fora da 
pr6pria religHio urn criterio com que se possa medir a verdade da 
religiao sao por principio erradas. Ate mesmo tudo que a religiao pode 
signifiear para os valores extra-religiosos (como as dencias, a moral, 
o estado, 0 direito, a arte) tern efetivamente urn significado s6 se a 
rellgiao e reconhecida e vivida nao em fun~aodaquele significado, mas 
sim para a evidencia e a certeza de que nela propria se demoram ... 
Os criterios para a verdade e para todo outro valor gnosiol6gico da 
religiao podem, portanto, ser achados partindo da propria essencia da 
religiao e nao podem ser tirados de nenhuma esfera extra-religiosa" 22. 
Como acontece para cada outra esfera do ser, tambem para 0 
que concerne a esfera religiosa Scheler sustenta que 0 fundamento 
ultimo da sua aceita~ao seja a evidenda imediata do objeto que se 
da como tal em atos de conhecimento espedfico, no caso, nos atos 
religiosos. Portanto, 0 fundamel1to ultimo da religiao nao pode ser 
outro que nao a automanifesta~ao de Deus. Tal automanifesta~ao da 
realidade pessoal de Deus, segundo Scheler, pode acontecer so atra­
yeS dos homens religiosos, que culminam no "santo originario", que 
ele individualiza na figura de Cristo 23. 
b) A critica' teol6gica 
Defronte a religiao, tambem os te6logos se enfileiraram em duas 
alas. Como os fil6sofos, os te6logos cat6licos assumiram uma postma 
positiva, vendo na religiao urn vinculo natural, legitimo e obriga­
t6rio do homem para com 0 seu Criador. Ao conwlrio, os te610gos 
protestantes assumiram uma postma cdtica, de refuta~ao e de conde­
na~ao, ccnsiderando a religiao como a aberra~ao mais grave e perni­
dosa da mente e do cora~ao do homem, a expressao mais clara da 
sua soberba. 
A posi~ao'dos te610gos cat6licos recebeu uma formu1a~ao oHcia! 
no CondHo Vaticano 1. E1e condenou 0 atdsmo como urn dos mais 
"perniciosos enos do tempo", antes 0 pas na frente de toda a sede 
de todos os erros, acrescentando ser ele fonte de muitfssimos efeitos 
desastrosos, em todos os setores do pensamento, da vida e da a~o, 
Declarou, aMm disso, sem hesita~ao, que 0 atefsmo e sempre repro­
22 lb., p. 237. , 
.2) Cf. G. FElUlB'1"1'%, 14M loll". P""oll' ~,Il. r,lla/em" II Siggiatore, Millo, 
1972. 
.._.-..,'- ~ 
o HOMEM E A RELIGIAO 231 
vavel e que, portanto, nao pode ser aceito sem culpa pelo individuo. 
E como razao de tal culpa aduzia a soberba do homem, a sua mania 
de autonomia afirmada especialmente na Idade Moderna, nao menos 
que 0 desdenhoso subjetivismo que a permeia inteira. E, assim, contra 
quem nao reconhece Deus, lan~ou a seguinte excomunhao: "Si quis 
dixerit, Deum unum et verum, creatorem et dominum nostrum per ea 
quae facta sunt, naturali rationis humanae lumine certo cognosci 
non posse, anathema sit" 24. 
No que concerne a postma negativa e cdtica dos te6logos protes­
tantes, merecem ser referidos os pontos de vista de Bat'th, Bultmann 
e Bcnhoeffer, por causa da sua originalidade e da sua grande influen­
cia no pensamento contemporaneo. 
A tese do valor negativo da religiao e da teologia natural, que e 
tambem uma das teses centrais dos Reformadores (Lutero e Calvino), 
foi repropcsta com vigor por Karl Barth. Para esse te610go, diante 
de Deus nao s6 0 mundo, a hist6ria e a filosofia, mas tambem a re­
ligiao e a especula~ao religiosa que se desenvolve sao problematicas, 
inautenticas, perversas, porque Deus nao e e nao pode ser nunca 
objeto das faculdades humanas cognitivas e da experiencia humana, da 
intui~ao e do sentimento, mas e 0 sujeito soberanamente livre de ca­
da desenvolvimento humano, livre na sua pr6pria a~ao auto-reveladora 
e sustentadora da fe. 0 te610go sUl~o nao nega que a re1igiao natu­
ral possa chegar a urn certo conhecimento de Deus, mas e1e condena 
esse conhecimento como falso e danoso, porque constitui urn obsta­
culo ao verdadeiro conhecimento de Deus fornecido pela revela~ao. 
o conhecimento natural da . existencia de Deus e de impedimento, 
antes que de ajuda, ao conhecimento cristao da Trindade. 0 conheci­
mento natural de Deus como causa suprema obscurece 0 conhecimento 
cristao de Deus como criador. Por esse motivo, Barth rejeita "qualquer 
liga~ao entre Deus e 0 homem, isto e, qualquer conhecimento da 
palavra de Deus por' parte do hornem, e, portanto, de qualquer capa­
cidade de conhecer a palavra de Deus, no sentido de que tal capa­
cidade estaria em condi~oes de estabelecer uma liga~ao com Deus, 
mesmo sem a Palavra de Deus" 25. 
Em umase~ao de Kirchliche Dogmatik (I/2), intitulada "A re­
vela~ao de Deus, elimina~ao (Aufhebung) da religiao", Barth distin­
gue a fe crista fundada exclusivamente no que Deus revelou de si 
mesmo por melo de Jesus Cristo, da religiao natural, busea inutil da 
verdade e do sentido ultimo da vida, condenada a falencia porque 
Deus e 0 "totalmente outro" e os homens nao teriam podido saber 
nada dele se ele, na sua suprema' ecndescendencia, nao tivesse ido 
ao seu encontro e nao se tivesse manifestado. A religiao e 0 es£or~o 
vao que fazem os hip6critas para se criar uma verdade sem ajuda da 
24 DINZINGIII. n. 3026. 
2' K. BARTII, ChlJrch DOl.maticl, Nov. York, 1936, vol Ill, p. 224. 
'I 
232 ; FENOMENOLOGIA DO HOMEM 
gra~a. Trata-se ~videntemente de uma falta de £e pecaminosa. A reli­
giao crista nao e de fato uma religHlo e nao e de nenhum modo com­
paravel as religi6es pagas: nao se pode fazer outra coisa senao con- . 
trapo-la a elas. A fe e fundada na revela~ao que Deus fez de si mes­
mo, nao na angilstia do homem ou nas suas experiencias dos fenome­
nos deste mundo. Tudo vern da £e e a fe vern de Deus; nada vern 
do homem, porque 0 homem caiu: epecador, e cego. Todas as praticas 
de piedade com que quem se diz cristao transforma a fe em religiao 
sao abomina~oes aos olhos de Deus. 
Na sua cdtica da religiao, Rudolf Buttmann, mais que a razoes de 
carater teologico, como Barth, faz apelo a razoes de ordem filosofica. 
Como Comte, ele ccnsidera a reHgiao urn result ado da mentalidade 
ingenua, imatura da humanidade antiga, a qual, ignorando a causa 
verdadeira, autentica das coisas, excogitou toda uma serie de seres 
sobrenaturais: acima de nos, urn ceu povoado por uma hierarquia 
de anjos sob 0 dominio dire to de Deus e sob n6s urn inferno repleto de 
espiritos malignos. "Tals potencias inserem-se nos acontecimentos na­
turais nao menos que no pensamento, na vontade e na a~ao do 
homem; 0 milagre, por isso, nao e uma coisa rara. 0 homem nao 
e senhorde si; os demonios podem possuf-Io; Satanas pode sugerir­
-lhes pensamentos maus; e Deus pode tambem infundir-lhes os pro­
prios pensamentos e a sua vdntade, fazer-lhes conhecer figuras celes­
tes e ouvir a. sua palavra de comando e de conforto, dar-Ihes a poten­
cia sobrenatural do seu espfrito. A historia, portanto, nao segue urn 
curso constante. e regular, mas recebe movimento e dire~ao das for­
~as sobrenaturais" 26. 
Mas, a partir do momento em que a ciencia forneceu a explica~ao 
verdadeira, efetiva dos fenomenos deste mundo, a hipotese religiosa 
tornou-se inutH, superflua. Dessas premissas, Boltmann elaborou a 
sua teoria da demitiza~ao do cristianismo: ela quer Bbertar 0 Evan­
gelho da componente religiosa de que 0 cobriram os autores neotes­
tamentarios, qualificando-a como elemento mitico e metaffsico. 
Tarefa da demitiza~ao e justamente separar 0 elemento mftico-me­
taHsico do conteudo salvlfico do Evangelho. Essa tarefa, para Bultmann, 
e muito urgente, porquanto da sua atua~ao depende a salva~ao do 
proprio cristianismo. Com efeito, 0 cristianismo moderno, nao tendo 
mais uma mentalidade mftico-metafisica, mas a cientffica, nao pode 
acolher a forma original do cristianismo, porque inatual e superada. 
Tal forma e superada com uma cutra que reflita a autocompreensao e 
a visao do mundo que tern 0 homem de hoje. Essas, segundo Bultmann, 
acharam a expressao perspfcua na filosofia de Heidegger e ele a es­
colheu, portanto, para interpretar a mensagem crista para a nossa 
gera~ao. 
26 R. BULTMAN~ N,,,,! T,sttJm'lfl """ MYlholoji" In K,r-;jmll """ Mythos 
101 c:uld...... Nt w. BAlTaCH, HlmbufjlO, 1960, vol. I, p. 1'. 
o HOMEM E A RELIGIAO 233 
Dietrich Bonhoeffer fez seus os pontos de vista de Barth e 
Bultmann a respeito da religiao e, por razoes tanto teol6gicas (0 abis­
mo em que naufragou a razao depois da queda original) quanta 
culturais (a maturidade do homem moderno), desenvolveu uma cdti­
ca inexoravel . do fenomeno religioso. Numa conhecidfssima pagina 
de Resistencia e entrega, Bonhoeffer descreve de modo extrema mente 
incisivo a supera~ao da religHio no momento hist6rico atual: "0 tem­
po em que se podia dizer tudo com palavras teologicas ou pias passou, 
assim como passou 0 tempo da interioridade e da consciencia, isto e, 
o tempo da religiao em geral. Vamos ao encontro de uma epoca com­
pletamente nao religiosa; os homens, assim como sao, nao podem 
mais ser religiosos. Mesmo aqueles que se definem sinceramente 
'religiosos' nao 0 praticam absolutamente; por 'religioso' des enten­
dem provavelmente algo de completamente diferente. Toda a nossa 
predica~ao e teologia crista do seculo vinte e construida no a priori 
religioso do homem. 0 'cristianismo' foi sempre uma forma (talvez 
a verdadeira forma) da 'religiao'. Mas quando urn dia sera evidente 
, que esse 'a priori' nao existe de fato, mas que foi uma forma ex­
pressiva do homem, historicamente determinada e transitoria, quando, 
isto e, os homens se tornarao realmente nao religiosos de maneira 
radical - e eu acho que ja, mais ou menos, e 0 nosso caso - 0 que 
significara entao isso para 0 cristianismo? E subtrafdo 0 terreno so­
bre 0 qual se apoiava ate agora todo 0 nosso 'cristianismo' ... "27. 
Portanto 0 teologo e 0 pastor de almas que querem continuar 
a a~ao do Cristo e querem levar a sua Nova de salva~ao aos homens 
de nosso tempo devem procurar propor tal Nova e a propria figura do 
Cristo nas categorias nao reHgiosas e ateias na cultura moderna. 
Movido por essas convic~oes, Bonhoeffer tentou essa diHcil em­
presa. EIe, assim, realizou uma nova figura do Cristo, uma figura nao 
mais enquadrada dentro de uma moidura teologica, mas simplesmente 
humanfstica e secular. Para Bonhoeffer, 0 que caracteriza 0 Cristo 
de modo inequfvoco e que pode garantir um seguro fundamento para 
a nossa fe nao e a divindade, mas a caridade, a submissao total, 0 seu 
completo "ser-para-os-outros". "0 existir.para-os-outros de Jesus ­
afirma 0 martir dos nazistas - e a tom ada de consciencia da trans­
cendencia. Da liberdade de si mesmo, da existencia para os outros 
ate a morte brotam a onisciencia, a onipotencia e a onipresen~a. Fe e 
participa~ao neste ser de Jesus (Encarna~ao, Cruz, Ressurrei~ao). 
A ncssa rela~ao com Deus nao e uma rela~ao 'religiosa' com 0 Ser 
mais alto, mais potente, melhor: essa nao everdadeira, autentica trans­
cendenda; a nossa rela~ao com Deus e uma nova vida no existir para 
os outros, na participa~ao no ser de Cristo. 0 transcendente nao tem 
deveres infinitos, inatingfveis, mas es clados, urn de cada vez, atingf­
veis. Deus em forma humana, nao como nas reHgioes orientais em 
27 D. BONHOEFFER, Resistenza e rcsa, tr. it, Bompiani, Milito, 1969, p. 213. 
234 	 FENOMENOLOGIA DO HOMEM 
forma ferina, 0 Monstruoso, Caotico, Longfnquo, Espantoso: mas 
nem mesmo nas fermas conceituais do Absoluto, do Metaflsico, do 
Infinito, etc., e nem mesmo a figura grega do deus-homem que e 0 
homem em e para si, mas 0 homem para os outros, portanto, 0 
Crudfixo" 28. 
As crfticas a religiao e1aboradas pelos maiores expoentes da 
teologia protestante contemporanea (Barth, Bultmann, Bonhoeffer) 
foram retomadas e levadas as extremas consequendas pelos seus dis­
dpulos, em particular pelos teologos da "Morte de Deus" (Hamilton, 
Altizer, van Buren) 29: aplicando cem l6gica ferrea os prindpios da 
absoluta alteridade de Deus, da maturidade do homem moderno e 
da demitiza~ao, eles conc1ufram que somente uma proclama~ao a-reli­
giosa e ateia do cristianismo pode ser acolhida pelo homem do se­
culo XX. 
De tal modo, os teologos protestantes na sua crftica negativa do 
fenomeno religioso nao evitaram fazer seus os argumentos que as 
fi16sofos da desmistifiea~ao da religiao haviam posta a sua disposi~ao. 
c) 	A crftica historica, a analise fenomenologica e a pes­
quisa sociologica 
De um seculo para ca, os fenomenosreligiosos foram tomados 
em considera~o alem de petos fi1osofos e pelos teologos, tambem 
pelos historiadores, pelos fenomenologos e pelos sodologos: valendo-se 
cada um do proprio metodo (os historiadores da critica historica, os 
fenomenologos da analise eidetica e os sod610gos da pesquisa das 
rela~oes sociais ) , eles buscaram esclarecer a erigem e a natureza 
desse fenomeno singular: a religiao. A nos, nao nos e consentido tra~ar 
aqui um quadro completo das suas teorias; limitar-nos-emos a assi­
nalar algumas entre 'as mais importantes e influentes. 0 grande es­
quadrao dos historiadores da religiao abre-se com 0 nome de Edward 
B. Tylor (1832-1917). Ele, vivendo numa epoca em que triunfavam 
as teorias evolucionistas de Darwin e Spencer, sustenta que pode 
aplicar 0 prindpio da evolu~ao t~mbem as religioes e explicar com 
ele as suas origens e desenvolvimentos. Para ele, no campo religioso as 
coisas caminharam do mesmo modo que no campo bio16gico, ou seja, 
primeiro se apresentaram as formas mais simples e imperfeitas e de­
pois as mais complex as e perfeitas. Portanto, a primeira ferma religio­
sa praticada pela humanidade fol 0 animismo} que e justamente a for­
ma mals rude, elementar de todas. Tylor sustenta que a concep~ao de 
alguns fenomenos (sono, morte) levaram 0 homem primitivo a for­
mular 0 conceito de algo diverso do corpo humano, isto e, a alma. 
o 	conceito de alma, adquirido pelo homem atraves dessa observat;ao, 
28 D. BoNHOEPFBR} Rtlsisll!nza tI r,sa} cit., p. 278. 
29 Sobre esses autore. cf. B. MONDIN. I Iloloai dl/lla morle di Dio, 2 ed., Borla, 
')'.'urim, 1970. 
(j HOMEM E A RELIGIAO 235 
refere-se so a alma hurnana. Mas bem rapido comelj;ou a tomar corpo 
a cren\;a da migrar,;ao das almas, a qual seguiu-se 0 cuidado para 
com os defuntos, como 0 cuIto des antepassados. Mais tarde, desen­
volveu-se 0 conceito de uma retribui~ao na outra vida. Dma fase 
sucessiva foi caracterizada pela cren~a de que todos os elementos da 
natureza fessem causados ou controlados pelos espfritos; daf a vene­
ra\;ao da natureza, isto e, da agua, das plantas, dos bosques, dos rios, 
das varias especies de animals. Assim se chegou a venerar as divinda­
des da espede, atribuindo a natureza divina nao a um tinieo indivfduo 
concreto, mas a especie inteira. Foi sobre essas premissas que se de­
senvolveu 0 polite1sme, como culto das divindades que governam os 
varios fenomenos naturais (como a chuva, os raios, os trovoes, 0 
vento, etc.) ou que representam a natureza (terra, lua, sol) ou que sao 
antepostas as varias fases e fun~oes da vida humana (guerra, trabalho, 
divertimento) ou enquanto culto dos antepassados divinizados. Pou­
co a pouco, porem, entre as varias divindades emerge uma superior, 
mais perfeita, mals potente que todas as outras. Assim, gradual­
- mente, teve origem 0 monotefsmo 30. 
A tese de Tylor, depois de uma primeira fase em que encontrou 
vastfssimos consensos, foi critieada e rejeitada por varios estudiosos, 
em particular por Lang, Schmidt e Pettazzoni e, mais recentemente, 
por Griaulle e Eliade. 
Andrew Lang, para refutar a opiniao de Tyler segundo a qual 
a origem da religiao e procurada no animismo, aduzia 0 argurnento 
da presen~a de uma fe em um Deus supremo existente junto a povos 
muito primitivos, como os Australlanos e os Andamaneses. Tylor sus­
tentava que semelhante crenc;:a nao podia absolutamente ser original 
e que a ideia de Deus provinha da crenc;:a nos espfritos da natureza 
e do culto das almas dos antepassados. Mas entre os Australianos e 
os Andamaneses, Andrew Lang nao achou nem 0 cuIto dos antepas­
sados nem 0 da natureza. 
Muito impressionado com as descobertas de Lang, Wilhelm 
Schmidt buscou corroboni-las fazendo uso de urn metodo historieo­
-cdtico mais rigoreso e seguro do que 0 do estudioso anglo-saxao. 0 
seu metodo conslstia em distinguir e esc1arecer as estratifica~oes his­
t6rieas nas assim chamadas culturas primitivas. Na sua obra monu­
mental Ursprung der Gottesidee (Origem da ideia de Deus), ele 
procurou provar como a crenc;:a em um Deus supremo estava presen­
te nos estratos mais antigos das popula\;oes da Australia, enquanto 0 
totemiSlDO caracteriza s6 as tribos culturalmente mais jovens. Segundo 
Schmidt, a Urreligion consistia na crenc;:a num eterno, onisciente e 
benefico Deus supremo, criador de todas as coisas, que se supunha 
vivesse ne ceu. Ele conclui que no prindpio existia por toda parte 
:uma especie de Urmonotheismus} mas 0 ulterior desenvolvimento das 
30 E. B., TUllIl, Researches into the early history of mankind, Londres, 186.5. 
236 FENOMENOLOGIA DO HOMEM 
sociedades humanas fez com que se degenerasse e, em muitos casos, 
quase se extingiiissem as cren~as originais. 
Formado sob a influencia do historicismo de Croce, Raffaele 
Pettazzoni considera a religiao como urn fenomeno puramente histo­
rico, mas ao inves de procurar as suas origens e naturezas em alguma 
tribo primitiva como haviam feito Lang e Schmidt, ele busca a sua 
explica~ao no estudo das religioes em geral. Pettazzoni considera 
erradas algumas conclusoes de Schmidt acerca da origem (por revela­
~ao) e da natureza (monoteistica) da religiao porquanto tornam 0 
presente indevidamente antigo; em outras palavras, atribuem aos pri­
mitivos atuais a permanencia de formas culturais proprias dos pri­
meiros homens. Quanto a: origem da religiao, a seu julzo nao teve 
lugar atraves de uma revela~ao primitiva, mas atraves da observa~ao 
dos fenomenos da natureza: 0 nascimento do sol, a chuva, a apari­
~ao das estrelas, a muta~ao do ceu, etc... Quanto, pois, a natureza 
da religiao da humanidade primitiva, ele nao esta disposto a aceitar 
nem a tese animistica de Tylor nem a monoteistica de Schmidt. Da 
analise dos atributos de celestialidade e de supremacia que as popula­
~oes primitivas atribuem a divindade, ele sustenta que se pode con­
duir a favor de uma especie de concep~ao monoteistica, mas de forma 
ainda pesadamente antropomorfica (porque celestiaHdade e referida 
imediatamente ao ceu e supremacia aos cimos das montanhas) e por 
isso polemiza com Schmidt su~entando ser indevidamente atribuida 
aos primitivos a qualifica~ao de monoteistas 31. 
Entre os autores que enfrentaram 0 fenomeno religioso com os 
instrumentos da critica historica, recordamos tambem Rudolf Otto) 
porquanto uma parte consideravel de seus estudos e, efetivamente, de 
indole hist6rica (neles ele expHca entre outras coisas em que sentido 
a historia das religioes poderia ter uma tarefa importante na reno­
va~ao da cultura ocidental contemporanea). Mas 0 seu nome esta Ii­
gado sobretudo a uma obra, Das Heilige (0 sagrado), que e essen­
cialmente de natureza filosofica e psicol6gica. Nessa obra, ele descreve 
com agudeza extraordinaria as diferentes mcidaIidades da experi~ncia 
religiosa. Ela se configura sobretudo como sentimento do numinoso. 
o numinoso e uma categoria que faz parte da categoria mais com­
plexa do "sagrado". E uma categoria totalmente sui generis) que e 
completamente inacesslvel a compreensao conceptual e, enquanto tal, 
constitui urn arreton, algo de indefinivel, inefavel, exatamente como 
o "belo" num outro plano. Nesse sentido, ela pertence ao dommio do 
"irracional" e representa 0 elemento mais intimo que pertence a todas 
as reHgioes. 0 numinoso, por sua vez, assume dais aspectos que 0 
caracterizam de modo inequlvoco: 
a) 0 aspecto de mysterium tremendum; 
31 R. PETTAZZONI, Dio. Formazione e sviluppo del monoteismo della storia d,U, 
r,lill.ioni, Bolonha, 1922. . 
o HOMEM E A RELIGIAO 237 
b) 0 aspecto de mysterium fascinans. 
o primeiro constitui 0 aspecto repulsivo do numinoso, enquanto 
o segundo dele representa 0 aspecto atrativo ou "fascinante". 
Porem, 0 sagrado, aMm de urn aspecto "irracional", representado 
pela categoria do numinoso, reveste-se tambem de urn aspecto "racio­
I;lal": ele achaexpressao sobretudo nos "slmbolos" enos "dogmas". 
Gra~as a essas categorias, atraves de "sinais" estabelecidos e univer­
salmente va1idos, 0 sagrado adquire uma estrutura solida que the con­
fere 0 carater de "doutrina" rigorosa, objetivamente valida, e 0 opoe 
por isso mesmo as extravagancias do "irracionalismo" fantastico e so­
nhador. 
Ate a primeira guerra mundial, os autores se serviram para 0 
estudo da religiao, como se viu, dos instrumentos da mosoHa, da 
teologia e da critica historica. Mas depois qu~ Husser! formulou as 
regras de urn novo metodo, 0 fenomenologico, alguns come~aram a 
servir-se de tal metodo tambem para 0 estudo da religiao. 0 primeiro 
!l faze-Io com sucesso foi Max Scheler, cujo pensamento ja expusemos 
mais aeima. 
o exemplo de Scheler foi seguido por muitos outros estudiosos, 
mas dois se destacaram sobre todos: Gerardos van der Leeuw e Mir­
cea Eliade. 
Van der Leeuw levou a fenomenologia a metodo exclusivo para 
o estudo da natureza e da essencia da religiao, de que procurou 
aprender a "intencionalidade" mediante uma descri~ao pormenorizada 
e penetrante dos dados religiosos. Ele demonstrou a irredutibilidade 
das representa~oes religiosas a fun~oes sodais, psico16gicas ou racio­
nais e refutou os preconceitos radonalis~as que procuram explicar a 
religiao atraves de algo de diferente. Para van der Leeuw, a tarefa 
principal da fenomenclogia da religiao e 0 de explicar as estruturas 
internas dos fenomenos religiosos. Ele considerou erroneamente poder 
reduzir a totalidade dos fenomenos religiosos a tres Grundstrukturen 
(estruturas de bases), isto e, dinamismo, animismo e defsmo 32. 
Mircea Eliade e um des mais autorizados estudiosos do feno­
meno religioso enl todos os seus ~lJ.ltiplos aspectos. Na base da sua 
investiga~ao de tal fenomeno, ele poe 0 principio: a ordena~ao cria 
o fenOmeno 33. Isso significa que, para ser entendido e interpretado 
corretamente, um fenomeno deve ser colocado e examinado segundo 
a escala que lhe e propria. A esse respeito ele evoca 0 exemplo de 
um grande estudioso frances, Poincare, 0 qual se perguntava: "Um 
naturalista que houvesse estudado 0 elefante somente no rrdcrosco­
pio poderia acreditar que 0 conhece sufidentemente?" 0 micros­
copio revela a estrutura e 0 mecanismo das celulas, que sao identicas 
em todos os orgaos pluricelulares e 0 elefante e, certamente, urn 
'l VAN DBR LEEUW, Fenomenologia della religione, Einaudi, Turim, 1960. 
JJ M. Er,rADE, La nostalgia delle origini, Morcelliana, Brescia, 1972. 
238 FENOMENOLOGIA DO HOMEM 
organismo pluricelular, mas isso nao basta para conhecer 0 elefante! 
Assim, um fenomeno religioso resultara tal somente com a condi~ao 
de ser entendido no proprio modo de ser, quer dizer, somente com 
a condi~ao de que venha a ser estudado numa escala religiosa. Girar 
em volta do fenomeno par meio da fisiologia, da psicolcgia, da sodo­
legia, da lingiHstica significa fugir ao elemento unico e irredutfvel que 
contem: 0 seu car::'iter sagrado; e isso embora considerando que 
nao existem fenomenos religiosos absolutamente "Puros", porque, 
sendo um fato humano, a religiao e tambem um fa to secial, lingiifstico, 
etc. Seria, portanto, inutil e ineficaz apelar para certos principios re­
ducionisticos e desmistificar a comportamento e as cancep~oes do 
Homo religiosus, demonstrando, por exemplo, que se trata de produ­
~oes do inconsciente au de esquemas surgidos por razoes sociais, eco­
n6micas, politicas, etc. Baste um exemplo:"Em certas culturas arcai­
cas au tradicionais, a templo, a casa, a vila sao considerados como 
situados no 'centro do mundo'. Nab ha sentido em buscar 'desmistifi. 
car' semelhante cren~a tentando chamar a aten~ao do leiter para 0 fa­
to de que nao existe um centro do mundo e que, desse modo, a mul­
tiplicidade de tais centros e uma no~ao absurda porque contraditoria. 
Ao contrario, so tomando em considera~ao esta cren~a e buscando 
esclarecer todas as suas implicacoes cosmologicas, rituais e sociais 
pode-se atingir a compreensao da condi~ao existencial de um homem 
que ere estar no centro do mundo" 34. 
De tal modo Mircea Eliade chega a conclusao tambem cientifica 
de que 0 sagrado e um elemento estrutural da consciencia e nao um 
estagio da historia e, por isso, nao podera nunca ser esqueddo. "0 
homem total nao e nunca totalmente dessacralizado e e duvidoso 
que isso seja de alguma forma possIve!. Ao nivel da vida consciente, 
a seculariza~ao tem IDlfito sucesso: as velhas ideias teologicas, os 
dogmas, as cren~as, as rituais, as institui~oes, etc. sao progressivamen­
te privadas de significado. Mas nenhum homem normal e dotado de 
vitali dade pode ser reduzido asua atividade consciente e racional. .. "35. 
E, com efeito, tambem na sociedade moderna, tao saturada de secula­
riza~ao, afloram em toda parte fen6menos de redescoberta dos sagra­
dos: esses nao compreendem so os fenomenos que tern claramente 
um carater religioso, mas tambem outros fen6menos que pretendem 
a recupera~ao das dimensoes religiosas de uma autentica e significati­
va existencia humana no universo. 
Uma das ciendas humanas que neste seculo fez maiores progres­
sos ea sociologia. Era, pois, natural que as suas tecnicas fossem aplica­
das tambem ao estudo da religiao. De fato,. assim agiram ultima­
mente muitos autores: Berger, Luckmann, Acquaviva, Herberg, Spi­
ro, Horton, etc. 
34 lb., p. 83. 
3' Ib., p. 10. 
o HOMEM E A RELIGIAO 239 
Para direr a verdade, um importante estudo sociologico da reli­
giaa fora ja realizado no inkio do seculo por Emile Durkhei'm. Tendo 
por base pesquisas sociologicas, ele havia concluldo que a religiao e 
uma proje~ao da experiencia social. Estudando os australianos, notara 
que 0 totem simbolizava contemporaneamente a sacralidade ou 0 sa­
grado e 0 cla. Disso argumentara que a sagrado ou "Deus" e a grupo 
social sao uma unica coisa. A explica~ao da natureza e da origem da 
religiao por parte de Durkheim foi duramente critic ada por alguns 
eminentes etnologos. Goldenweiser salientou que as tribos mais sim­
ples nao tem cla nem totem 37. 
Aqueles que enfrentam hoje a fenomeno religioso com a metodo 
sociol6gico se valem de tecnicas mais avan~adas e rigorosas do que as 
de Durkheim e conseguem, portanto, resultados menos discudveis do 
que os do celebre estudioso frances. 
Muito interesse suscitaram e continuam a suscitar os estudos do 
soci6lago alemaci Thomas Luckmann, cujo pensamento buscaremos re­
sumir brevemente flqui. Quatro sao as conclusoes principais das suas 
_pesquisas: 
I. A religiao nao e alga de secundario, periferico e nem mesmo 
algo de setorial com rela~ao a uma estrutura social. Pelo contratio, 
ela constitui 0 nucleo primario e fundamental da interpreta~ao que 
tal estrutura da a realidade. A religiao "e a forma interior da con­
cepr;ao do mundo de uma sociedade" 38. 
II. Existem duas formas principais de religiao, a religiao "ele­
men tar " e a religiao "especializada". A religiao elementar (ou origina­
ria) e "a ordem significativa", "0 complexo significativo" (Sinnzu­
sammenhang) que regula a existencia social humana, antes que a fun­
~ao de indicar 0 sentido ultimo das coisas seja reservada a uma 
institui~ao particular. "Tudo somado, a caracterfstica socialmente 
determinante da religiao deve ser procurada na sua fun~ao de dar um 
sentido a conduta da existencia humana, que com isso se transcende. 
A tal funr;ao corresponde, estruturalmente, a forma interior da con­
cep~ao do mundo de uma sociedade. Essa ultima e a forma social pti­
maria e fundamental da religiao.. Ela e universal" 39. A religiao espe­
cializada consiste nas cristaliza~5es historicas da forma absoluta da 
religiao. Na religiao especializada, "0 simbolismo que representa 0 
conteudo central da concep~ao da existencia obtem uma estrutura pro­
pria" 40, torna-se um mundo distinto dos outros mundos, dos outros36 E. DuRKHEIM, Les formes eiementaires de la vie religieuse, Paris, 1912. 
37 A. A. GOLDENWEISER, "Religion and Society: A Critique of Emile Durkheim's 
Theory of the Origin and Nature of Religion", in Journal of Philosophy, Psychology 
and Scientific Method, 1917, pp. 113-124. 
38 T. LUCKMAl'IN, Das Problem der Religion, Fdburgo, 1963, p. 36_ 
39 lb., p. 38. 
40 lb. 
240 	 FENOMENOLOGIA DO HOMEM 
aspectos e das outras estruturas da scciedade. A passagem da religiao 
elementar para a religiao especializada acontece quando a ordem sagra­
da e nitidamente separada dos outros niveis da sociedade. Entao, '" a 
fun~ao religiosa elementar da visao do mundo vern a suceder-se a fun­
~ao especial e exclusiva das representa~oes religiosas" 41. Os reflexos 
concretos de tal passagem da religiao elementar para as religioes espe­
dalizadas sao ilustrados por Luckmann nos termos seguintes: "Se­
parg~ao das representa~oes religiosas significa que, dentro da visao 
que se tern do mundo, se determina uma polaridade entre duas esfe­
ras principais e que os mcdelos culturalmente determinantes da expe­
riencia subjetiva vern a ser marcados por uma analoga polaridade. A 
relal;ao entre a vida quotidiana e 0 sagrado torna-se indireta e apenas 
o significado 'ultimo' das experiencias habituais, ordinarias, aMm 
naturalmente das experiencias 'extraordimirias', que quebram a routtl 
ne da vida quotidiana, sao consideradas referiveis ao nive! sagrado da 
refllidade, ao qual e freqiientemente conferido urn status de sobrena­
turalidade. 0 significado ordinario da conduta quotidiana, vice-versa, 
e determinado mencs rigidamente com relal;aO a logica da ordem 
sagrada. 0 mundo da vida quotidiana da, pois, origem a sistemas de 
referenda mais imediatamente praticos" 42. 
III. Nas sodedades arcaicas ou "tradidonais", "as representa­
I;oes religiosas penetram em institui~oes como 0 parentesco, a divisao 
do trabalho e a regulamental;ao e exerdcio do poder. Em tais sode­
dades, a ordem sagrada legitim a a con,duta em toda sorte de situa­
I;oes sociais e confere significado ao curso inteiro da existencia 
vidual. Por isso, nelas nao ha nada - inclusive a ecologia, a economia 
e os sistemas de conhecimento - que se possa entender plenamente 
sem se referir a religiao" 43. Enquanto nas sodedades evoluidas e 
nas mcdernas 0 sagrado assume uma colocal;ao distinta e, por assim 
dizer, visivel em um restrito segmento da estrutura social. E interio­
rizado em processos de sodalizal;ao espedficos que variam em fun~ao 
de uma estrutura social complex a e de um sistema de estratifica~ao 
diferenciado, em . que as instituil;oes religiosas adquirem diferentes 
gnms de especializal;ao. Pode-se, entao, dar que na propria sociedade 
moderna se formem simultaneamente numerosas instituil;oes especia­
lizadas. Quando isso ocorre, a .relal;ao da conscienda individual com 
o sagrado torna-se complicada e dificil, porque "a ordem sagrada nao 
simboliza mais de modo univoco a funl;ao religiosa elementar da visao 
do mundo" 44. "Os sistemas subjetivos dos conceitos e dos valores 
com significado 'ultimo' nao sao mais transmitidos atraves de urn 
41 T. LUCKMANN, "Credenza, non credenza e religione" in Religione ed ateismo 
nella sadeta secolarizzata, II Mulino, Bolonhe, 1972, p. 95. 
42 T. LUCKMANN; cit., pp. 94·95. 
43 lb., p. 96. 
'44 lb., p. 107. 
o HOMEM E A RELIGIAO 	 241 
processo que tambem so se assemelhe a urn processo homogeneo de so­
dalizal;ao, que permane\;a estavel por varias geral;oes, mas sao sempre 
mais construidos subjetivamente, em processos quase autonomos de 
sodalizal;ao secundaria" 45. 0 resultado dessa situal;ao e "a decom­
posi~ao do nexo significativo religioso institudonalmente estabele­
cido" 46. 
IV. A crise das religioes espedalizadas tradidonais deu origem 
a novas interpretal;oes religiosas da realidade. Segundo Luckmann, 0 
conteudofundamental de todas as novas interpretal;oes e a " auto­
nomia do individuo". Essas interpreta~oes nascem na esfera privada 
e sao "dramatizal;oes do individuo subjetivamente autonomo em busca 
da realizal;ao e afirmal;ao de si mesmo" 47. "A tematica da concepl;ao 
moderna do mundo simboliza 0 fenomeno historico-sodal e estrutural­
mente fundamentado do individualismo" 48. Mas, para Luckmann, 
essa aspiral;ao ao individualismo eilusoria e e continuamente frustrada. 
Ele e do parecer de que 0 homem da sociedade moderna "torne-se 
pessoa somente em minima parte". "0 individuo na sociedade mo­
-derna 	 tern muita liberdade (irrelevante) e pouca forma interior 
dutavel. .. Que esse fato tenha conseqiiendas para com a ordem 
social e para com a objetiva~ao do espfrito na sociedade humana e 
evidente, mesmo se nao se podem prever todas as suas possibilidades 
e todos os seus perigos" 49. 
3. Definic;ao da religiao 
"Todos os que se ocupam da ciencia da religiao - nota A. Lang 
, todc:s os que pretendem favorecer 0 desenvolvimento da religil'io, 
todos os que a querem extirpar of ere cern uma definil;ao da sua essen­
cia" 50. E sabido que Leuba, de tais definil;oes, recolheu bern umas 
quarenta e oito, acrescentando-lhes ainda duas por conta propria 51. 
Mas 0 numero esta bern longe de ser completo. Nos mesmos tivemos 
a ccasiao de assinalar algumas defini~oes importantes na nossa resenha 
das varias posil;oes assumidas pelos filosofos, teologos, historiadores, 
sodologos e fenomenologos 52. Mas, entao, como definir a religiao? 
45 Ibid. 
46 T. LUCKMANN, Das Problem deT Religion, cit., p. 62. 
47 lb., p. 68. 
48 lb., p. 70. 
49 lb., p. 76. 
50 A. LANG, Introduzione alta filosofia della religione, 2 ed., Morcelliana, Brescia, 
1959, p. 25.
'1 C. LEUBA, A Psychological Study of Religion, Nova York, 1912, e. 2, app. 1. 
~ Sobre 0 problema da defini~ao de religiao vide: A. LALANDE, Dizionario "i­
tico dl /IlOlofla, Milio. 1971, no verbete Religione; A. LANG, o.c., Parte I; K. 
RAHNBR N"olil ItJaai, Rome, 1968, pp. 29-60; H. GoLLWITZER, La "ilica marxista 
. dill' ;;/1,10'" , Itt I,d, "istiana, Morcelliana, Brescia, 1970, pp. 288S; A. VERGOTE, 
242 	 FENOMENOLOGIA DO HOMEM 
Vma boa defini-;ao, a nosso ver, poderia ser a seguinte: «A re­
ligiao e 0 conjunto de conhedmentos, de a~oes e de estruturas com 
que 0 homem exprime reconhedmento, dependenda, venera-;ao com 
rela-;ao ao Sagrado". 
A defini-;ao, como se ve, compreende dois elementos, urn a res­
peito do sujeito e outro a respeito do objeto. Quanto ao sujeito, ela 
indica a postura que 0 homem assume quando se exprime religiosa­
mente. Com e£eito, nem todas as rela-;oes com 0 Sagrado sao ativi­
dade «religiosa". Se, por exemplo, se toma por objeto de pesquisa 
e processo de transforma-;iio e de desenvolvimento, as manifesta-;oes 
e as influencias das religioes, nao se pode presdndir do objeto da 
experienda religiosa, embora nos movamos no plano da historia 
e nao da religiao. "Pode-se falar de urn ato religioso, sobretudo de 
urn ate religioso fundamental, apenas quando 0 homem assume de 
frente ao Sagrado e ao Divino uma postura subjetiva totalmente par­
ticular, iste e, quando e emotivamente atingido e atraido pelo objeto 
e entra em contato pessoal com ele. Esse e 0 lado psiquko ou interior 
da religiao" 53. Como fkou dito, 0 aspecto subjetivo do fenomeno 
religioso e constituido pelo reconhedmento da realidade do Sagrado, 
pele sentimento de total dependenda a seu respeito e na atitude de 
venera~ao para com ele. 
A nossa de£ini-;ao indica aquilo que caracteriza 0 objeto, de forma 
exdusiva, isto e, de ser Sagrl:l,do. Sagrado e urn conceito primario, 
fundamental, como os cenceitos de ser, de verdade, de bern e de 
bela e, portanto, nao pode ser explicado ulteriormente, reportando-nos 
a categorias estranhas a esfera religiosa. Sobre esse ponto, parece-me 
que Scheler, van der Leeuw, Eliade, Otto, Luckmann tenham razao. 
Mas nem por 1SS0 deve ser consideradourn conceito nao suscedvel 
de algurna eludda-;ao. De fato, no interior da esfera religiosa 0 Sagra­
do assume caracterfstkas proprias, inconfundiveis, que permitem des­
creve-Io de modo inequivcco. Entre as suas caracteristicas mais pers­
pkuas recordamos sobretudo as que foram tao bem evidendadas por 
Otto: a numinosidade, a misteriosidade, a majestade e 0 fascinio. 
Mas uma sua caracteristica importante e tambem esta: a objetividade. 
o Sagrado, enquanto permanece Sagrado e, portanto, objeto da reli­
giao, nao e nunca considerado urn achado da fantasia human.a, uma 
proje-;ao e hipostatiza-;ao das necessidades, dos desejos e dos ideais do 
homem. 0 ato religioso esta apontado para uma realidade efetiva­
mente existente: «sempre os conteudos religiosos se apresentam com 
a pretensao de ter consistenda e validez tambem fora da consdenda 
e da experienda religiosa" 54. A transcendencia: tambem se nao e 
Psychologie . religieuse, 2 ed., Bruxelas, 1966, pp. 16-22; A. PANNIKAR, Religione e 
religioni, Morcelliana, Brescia, 1964; U. PELLEGRINO, Rivelazioni di Dio e umanesi­
mo cristiano, Ancora, Milao, 1967. 
'3 A. LANG, o.c., p. 48. 
54 lb., p. 79. 
o HOMEM E A RELIGIAO 243 
colocado fora do mundo, 0 Sagrado e sempre considerado algo que su­
pera infinitamente 0 proprio mundo e tudo 0 que no mundo esta 
ccmpreendido, partkularmente 0 homem. A axiologia assume tambem 
o papel de caracteristica importante: 0 Sagrado representa 0 valor 
supremo ao qual se subordinam todos os outros valores. Enfim, a per­
sonalidade, que assume 0 mesmo carater importante das supracitadas 
caracteristicas: 0 hcmem religioso nao trata com um objeto, mas com 
urn Tu, com uma pessoa. "Ha alguem em frente a ele. Eu experimento 
urn Tu. E eu 0 imagino para mim sob a forma de urn demonio e de um 
deus" 55. 
Determinada desse modo a essenda da religiao, torna-se evidente 
que ela se distingue da filosofia, da arte e da moral. 0 que a 
distingue da filosofia e sobretudo 0 elemento subjetivo; de fato, 
tanto a religiao quanta a filosofia se ocupam do Sagrado, do Divino, 
da "realidade ultima", para adotar uma expressao cara a Tillkh, mas 
o fazem de urn modo tetalmente diferente. A filosofia procede abstra­
tamente e com finalidades puramente especulativas, enquanto a reli­
giao "e uma tomada de posi-;iio pessoal que vai alem do simples co­
nhecimento da verdade: e a postura na qual todo 0 eu se recolhe 
na suasingularidade" 56; com urn "empenho supremo" (ultimate 
concern) 57. 0 que distingue a religiiio da arte e, por sua vez, sobre­
tudo 0 elemento objetivo: a religiao tern por objeto 0 real; a arte, 
o ideal. Enfim, tambem religiiio e moral, nao obstante estejam ligadas 
entre si de modo bastante estreito, sao essendalmente distintas. "A 
primeira e encontro com Deus, contato pessoal com ele, reconhedmen­
to humilde e devoto do seu valor absoluto e da sua santidade. A se­
gunda cabe 0 cuidado e a realiza-;ao dos valores humanos; ela aspira 
a dar vida e forma a um sentir e a urn fazer que correspondam a 
essenda do homem" 58. 
4. 	Religiao e antropologia fiJos6fica 
Nesse ponto, se a nossa inten-;ao fosse a de realizar um tratado 
de mosofia da religiiio, devedamos enfrentar 0 problema da verdade 
do objeto da religiao, um problema de capital importancia, mas tam­
bern extremamente arduo para as fcr~as da razao. Para resolve-Io 
seria necessario apelar para todos os recursos da metaflsica. Mas 0 
nosso objetivo neste escrito e muito mais modesto: nos pretende­
mos efetuar apenas uma analise fenomenologica do Homo religiosus, 
sem empenharmo-nos no momento em escabrosas investiga~oes meta­
55 G. VAN DER LEEUW, L'uomo primitivo e la religione, Einaudi, Turim, 1961, 
p. 	 144. 
'0 A. l.ANG, o.c.) p. 110. 
" P. TILLlCH, Systematic Theology, Chicago, 1951, vol I, pp. 22s8. 
~ A, LANQ, O.C., p. 118. 
244 PENOMENOLOGIA DO HOMEM 
ffsicas. Por isso, neste ponto, n6s nos propomos a elucidar 0 signifi­
cado que tern a dimensao religiosa para a compreensao do ser do 
homem e nao a resolver 0 problema da verdade da religiao. Quanto 
a esse ultimo problema apontamos brevemente as quatro principais 
solw;cSes que foram propostas: 
1) Hipostatizat;ao das necessidades e dos ideais dos hom ens (e a 
solut;ao do humanismo ateu); 
2) Expressao da soberba e da vanidade da mente human a conta­
giada pelo pee ado original (solut;ao da teologia protestante); 
3) Expressao de uma mentalidade pre-cientffica, propria de uma 
humanidade nao ainda suficientemente adulta (e a solut;ao aventada 
por numerosos partidarios da secularizat;ao); 
4) Exigencia fundamental do homem (soIut;ao apoiada por mui­
tos autores espiritualistas). 
Querendo passar agora a questao que nos interessa, buscamos 
aprender as sugestcSes que nos sao fornecidas pelo fenomeno religioso 
para uma compreensao maior da realidade humana. Algumas sugestcSes 
podemos tirar diretamente da resenha das teorias relativas a origem 
e a natureza da religiao que apresentamos mais acima. De tal resenha 
resulta sobretudo que, nao obstante a disparidade de valorat;ao do 
fenomeno religioso e a discordia das explicat;cSes relativas a sua ori­
gem, todos os autores estao concordes em reconhecer que 0 homem 
se apresenta constantemente e em toda a parte como Homo religiosus. 
Em segundo lugar, para muitos autores a religiao e urn coeficiente 
fundamental e essencial da hominizat;ao. Para esses autores, 0 ho­
mem e naturalmente religiose nao so de fato mas tambem de direito: 
como ele nao e homem se e carente de inteligencia, de vontade, de 
cultura, de linguagem, assim tambem ele nao e homem se e carente 
de religiao. J a Feuerbach escrevia: "A religiao tern a sua base na 
diferent;a essencial entre 0 homem e 0 animal - os animais nao tern 
religiao" 59. Essa tese foi confirmada porScheler, James, Bergson, 
Blondel, Schmidt, van der Leeuw, Otto, Eliade, Luckmann e por 
muitos outros estudiosos. Para todos recordamos a opiniao de van 
der Leeuw. Em 0 homem primitivo e a religiao ele escreve: "So­
mente quem nao e ainda homem, quem nao e ainda 'Consciente' nao 
~ Homo religiosus. E quanto mais violentamente se apresenta 0 atefs­
mo, tanto mais claro vemos nele os trat;os de antigas experiencias 
religiosas, como as da escatologia e da religiao da comunidade huma­
na no atefsmo comunista. 0 homem que nao quer ser religioso 0 e 
justamente por essa sua vontade. Pode evitar a Deus, mas nao pode
fugir-Ihe" 6(). 
'9 1. FEU ERBACH, L'essem;a del cristianesimo, Feltrinelli, Milao, 1952, c. 1, p. 1. 
;5() G. VAN DER LEEUW, o.c., p. 146. 
o HOMEM E A RELIGIAO 245 
Mas por qual motivo 0 homem e religioso de direito, alem de de 
fato? 
Para nos, a razao fundamental e a finitude, a contingencia, a de­
pendencia (em particular a que ele observa com relat;ao a lei moral): 
Tomando consciencia dessas suas caracterfsticas, 0 homem abre-se 
espontanea e naturalmente a urn Ser superior. Da sua existencia, em 
seguida, ele pode adquirir urn conhecimento seguro atraves de muitos 
outros indfcios, em particular 0 da ordem espetacular do universo. 
Uma vez reconhecida a existencia de tal Ser, e logico que eles entrem 
em contato com ele: relat;cSes de orat;ao, de adorat;ao, de sacriffcio, 
etc. Entao, a dimensao religiosa assume uma estrutura precisa, regu­
lada, ordenada. 
Sobre essa plataforma religiosa natural, a nosso ver, instauram-se 
e desenvolvem-se as religicSes historicas, tanto as primitivas quanta 
as mais evolufdas. 
Do ponto de vista da razao pura, todas as religicSes historicas sao 
concretizat;cSes contingentes, fruto de urn determinado ambiente e de 
uma certa cultura, da mesma plataforma religiosa natural. 
Ora, se 0 homem e religioso tanto de fa to quanto de direito, 
se ele e naturalmerite religioso, quais sao as implicat;cSes que tal fe­
nomeno sugere no que concerne a realidade humana? 
As implicat;cSes mais importantes sao

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