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219 x o HOMEM E A RELIGIAO (Homo religiosus) 1. 0 fen6meno da religiosidade Vma manifestal,;ao tipicamente humana e a religiao. Ela nao esta presente nos outros seres vivos, mas somente no homem. :e e uma manifestac;;ao que, se abarcarmos a humanidade inteira seja com rela c;;ao ao espal,;o quanto ao tempo e nao somente este ou aquele outro grupo de uma epoca historica particular, assume proporc;;oes notabi Hssimas. Os antropologos informam-nos que 0 homem desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira aparil,;ao na cena da his· toria e que todas as tribos-' e todas as populac;;oes de qualquer nlve1 c~utural cultivaram alguma forma de religiao. Ademais, e coisa mais que sabida que todas as culturas sao prcfundamente marcadas pe1a religiao e que as melhores produI,;oes artisticas e literarias, nao s6 das civilizal,;oes antigas, mas tambem das modernas, se inspiram em mo tivos religiosos. portanto, razoavel afirmar que 0 homem alem de sapiens, vo· lens, socialis, faber, loquens, ludens e tambem religiosus. Nem 0 fato de que, hoje, a reBgiao esteja atravessando uma cri· se profunda e se encontra muitos individuos que se afirmam ateus constitui um argumento plausfve1 contra a relevancia do fenomeno reo ligioso. Com efeito, nos consideramos 0 homem ludens, loquens, faber l sapiens, volens, socialis, mesmo se nem todos joguem, falem, traba· lhem, pensem, queiram, vivam em sociedade. Outro tanto vale para a dimensao religiosa: ela se impoe como uma constante do ser humano, mesmo se nao e cultivada por todos os indivfduos da especie. Daf a oportunidade, ou melhor, a necessidade de induir 0 estudo do fenomeno da religiosidade num tratado de antropologia: tamb~m ele pode fornecer dados interessantes, sugestoes tlteis, indfcios precio sos e eloqiientes para a determinal,;ao do sentido ultimo da vida e d. natureza essencial do ser do homem. . No nosso breve estudo do Homo religiosus, procederemos segun do a ordem seguinte: primeiramente tral,;aremos uma breve histar!. das interpretal,;oes do fenomeno religioso assim como £oi visto pelol fil6sofos, pelos te6Iogos, pelos historilldores, pelas soci6lo808 e pelol o HOMEM E A RELIGIAO fenomenologos; depois procuraremcs efetuar um aprofundamento teorico do problema, elaborando uma definil,;ao e examinando as rela c;;oes que eIa mantem com as outras atividades do homem. Por Hm, exploraremos as implical,;oes da religiao no que concerne a natureza propria do ser do homem. 2. Hist6ria do problema religioso Precisemos, antes de mais nada, que com a expressao "historia do problema religioso" nao pretendemos referirmo-nos a historia das religioes, ao nascimento e ao desenvclvimento das varias instituic;;oes religiosas, mas a religiao como objeto de reflexao critica, e portanto, a historia da analise critica do fator religioso . .E dessa hi.storia que pretendemos oferecer um quadro sintetico nas paginas seguintes. '[ratar-se-a necessariamente de um quadro muito imperfeito, porque a historia do problema religioso e vastfssima e para ser narrada adequa damente exigiria muitos volumes. o problema religioso no passado, mas sobretudo durante 0 nosso seculo, esteve no centro da atenc;;ao dos cultores das seguintes disci pHnas: filosoHa; teologia; critica hist6rica; fenomenologia; sociologia. Para ser mais daros, na nossa expOSlc;;ao examinaremos separa damente a pensamento dos filosofos, dos teologos, dos historiadores das religioes, dos sociologos e dos fenomenologos. Iniciaremos com o dos filosofos. a) A critica filos6fica A questao religiosa esteve sempre preSente nas fases mais impor t~mtes da historia da filosofia. No pedodo antigo, por ela se interes saram Xenofanes, Protagoras, Platao, Aristote1es, Lucrecia e Plotino; na idade Media, Avicenas, Averroes, Maimonides, S. Tomas, Occan; nos primordios da epoca moderna, Giordano Bruno, Campanella, Spi noza, Hobbes, Locke. Mas foi sobretudo a p:!rtir de Hume e de Kant que a questao religiosa se tornou um dos pontos centrais da reflexao filos6£ica. Defronte a tal questao, os filosofos modernos perfilaram-se em . dUlls fileiras opostas. De uma parte, alguns procuraram mostrar que B religiio e privadll de qualquer fundamento objetivo: e1a seria uma FENOMENOLOGIA DO HOMEM220 astuta invem;;ao do hcmem, devida ao medo (Feuerbach), a prepo tencia (Marx), a ignorancia (Corute), ao ressentimento (Nietzsche), a sublima~ao dos instintos (Freud), aos abusos linglifsticos (Carnap), etc. .. De outra parte, outros defendem 0 valor objetivo da religiao, porquanto ela se fundada em uma rela~ao conatural do homem com a "realidade ultima" (Hegel, Croce, James, Bergson, Scheler, Jaspers, etc. ). Os primeiros desenvolvem uma erftica negativa e desmistifi· cadora, enquanto os segundos elaboram uma critica positiva e cons trutiva do fenomeno religioso. Hume e Kant, embora indicassem bases diferentes para 0 fenome· no religioso (Hume a havia fundado no instinto e Kant na razao pra tica ), nao tinham posto em duvida 0 seu valor essencialmente obje. tivo. Tal valor foi, mais tarde, confirmado por idealistas, em partie cular por HegeL Mas as teses paradoxais do corifeu do idealismo fizeram com que a situa~ao se precipitasse e conduziram Feuerbach anega<;ao da realida· de religiosa e a a£irma~ao do atefsmo. Contra 0 postulado hegeliano segundo 0 qual tudo provem do Absoluto e cada coisa, inclusive 0 homem, nao e senao urn momento do seu automanifestar-se, Feuerbach sustenta que as coisas ocortem exatamente do modo inverso: Deus e s6 uma ideia excogitada pe10 homem com 0 escopo de conseguir a plena realiza~ao de si mesmo; portanto, a realidade suprema nao ~ Deus, mas 0 hcmem. No famoso ensaio sobre a Essencia do Cristianis mo, Feuerbach argumenta que a religiao tem origem em urn processo hipostlhico das necessidades e dos ideais do homem: 0 homem pro jeta todas as qualidades positivas que tern em si em uma pessoa (hipos. tasis) divina e faz dela uma realidade subsistente, capaz de suprir as suas pr6pdas necessidades e as suas pr6prias lacunas. Assim, por exem· plo, a ideia de Deus como pai, segundo 0 autor de Essencia do Cristia nismo, nasce da exigencia de seguran~a exigida pelo homem; a idei. de Deus feito carne expdme a excelencia do amor pelos outros~ a ideia de urn ser perfeitfssimo nasce para representar ao homem 0 que 0 homem gostaria de ser mas nao consegue tornar-se; a idel. de uma existencia ultraterrena nao e senao a fe na vida terrestre nio como ela e atualmente, mas como deveria ser; a Trindade obscurece as tres faculdades supremas do homem (vontade, razao e amor) , tomadas na sua unidade e projetadas sobre 0 homem, e dai POI diante. Concluindo, a tese revolucionaria de Feuerbach e que "0 fun. damento da verdadeira filosofia nao e por 0 finito no Infinito, mas Q Infinito no finito". Para nao falsear 0 pensamento de Feuerbach, e necessario ter presente que com 0 desmantelamento dos conceitos religiosos tradl· donais ele nao pretende suprimir a religiao, que, alias, ele consider. necessaria porquanto torna presentes ao homem os seus ideais, mil s1m que e1e se prop6e coloca-Io em estado de alerta contra ali iiuli~. causadas pela religiao, em particular contra a Husio do conceber Q o HOMEM E A RELIGIAO 221 Ser no qual se hipostatizam os ideais do homem como se fosse es tranho ao homem, como se fosse algo de existente em si mesmo. Essa e, de fato, para Feuerbach, a grande fraqueza da religiao e a causa de todos os erros e fanatismos. Karl Marx foi, como Feuerbach, disdpulo de Hegel e as criticas ao pensamento do mestre elaboradas por Feuerbach, sem duvida, COI1 tribuiram para encaminha-lo em dire<;ao a nega~ao de Deus e da re ligiao. Mas os motivos que fizeram Karl Marx abra<;ar a causa do atefsmo, mais que argumentosde natureza filos6fica e metaHsica, foram de ordem hist6rica e social. A sua identifica~iio da sociedade ideal com a sociedade sem classes e a busca da instaura<;ao de tal sodedade mediante a demoli<;ao das estruturas sociais vigentes nos seus tempos 1evaram-no necessariamente a confrontar-se com a religiao. Ora, toda uma serie de drcunstancias infaustas 1 0 fizeram erer que a religiao fosse urn dos maiores obstaculos a realiza~ao da nova sociedade e, portanto, 0 induziram a concluir que a religiao nao pode ser senao uma inven~ao da sodedade capitalista. Para Marx, a religiiio e urn produto imaginado por esta sodedade para realizar a explora<;iio de classes: a religiao e urn instrumento de evasiio para os oprimidos e de justifica<;iio para os opressores. Ela e 0 apio dos povos: "A miseda religiosa e, de urn lado, expressiio da miseria real e, de outro, protes to contra a miseria reaL A religiao e 0 suspir~ da cdatura oprimida pela desventura, a alma de uma epoca sem espfrito. E 6pio para 0 povo. .. 0 fundamento da critica religiosa e este: 0 homem cria a religiao e nao e a religiao que cria 0 homem". Nela 0 homem aliena do busca uma felicidade ilus6ria, urn parafso artifidal:a conseqiien cia desse processo e uma postura de desconfian~a e de remissao, que induz 0 homem a aceitar as injusti~as presentes, mistificadas como "provas" e "puni<;5es", sem modificar a realidade hist6rico-social que delas e causa. A religiao nao e s6 urn produto da a1iena~ao, mas e ela mesma a causa, aliena<;ao, porquanto instrumento de evasao e de renuncia: "A religiao e, na realidade, a conscienda e 0 sentimento pr6prios do homem que ainda nao se achou ou que ja se perdeu de novo". "A religiao nao e senao 0 sol ilus6rio que se move em torno do homem, ate que ele nao se mova em torno de si mesmo. .. Vma vez desaparecida a vida futura da verdade, a hist6ria tern a missiio de estabelecer a verdade na vida presente" 2. 1 Cf. H. GOLLWITZER, La crttica marxista della religione e la fede cristiana, Morcelliana, Brescia, 1970. Nessa obra G<>llwitzer mcstra que a adesao de Marx ao ateismo nasceu, em larga escala, mais por preconceitos do que por raz6es vMidas (pp. 34ss, 80ss), porem sao preccnceitos que foram favorecidos pela conduta da Igreja e dos cristaos: para elevar urn atelsmo individual a doutrina geral do movi· mento marxista, a experil!ncia com a Igreja e com os seus representantes vislveis foi um fato decisivo. 2 K. MARX, Contributo alta critica della filosofia hegeliana del diritto. As cita . t;Cles sio retomadas por J. Y. CALVEZ, It pensiera de Carlo Marx, Turim, 1966, pp. 94••. FENOMENOLOGIA DO HOMEM222 Os ecos da critica marxista da reHgiao no seculo passado foram um tanto fracos. Sera necessario esperar 0 seculo vinte para que eles comecem a res soar vigorosamente em toda parte. No seculo dezenove, a defensor do atefsmo que teve maior sucesso nao foi Marx nem Feuerbach, mas Comte, 0 pai do positivismo. Segundo esse filosofo, todo 0 universo procede da materia por meio da evolu~ao. Tambem o hemem e um produto da evolu~ao. Com 0 seu aparecimento sobre a cena do mundo tem infcio a historia, cujas fases principais, segundo a celebre classificar;ao de Comte, sao tres: religiosa, metaflska e cien tifica. As tres fases correspondem a tres modos diferentes de conce ber e de explicar as coisas. Na epoca religiosa, 0 homem concebe uma explicar;ao mftka dos fenomenos naturais excogitando causas sobre naturais; na epoca metaffsica, ele obtem uma explicar;ao dos fenome nos recorrendo a principios reconditos, tais quais substancia, acidentes, ser, etc.; na epoca positiva, enfim, ele elabora uma explicar;ao racional, cientffica das coisas por meio das leis naturais, as quais bastam sozi (sem que haja necessidade de recorrer a Deus ou a principios metaflsicos) para explicar todos os fenomenos que nos constatamos. Todas as atividades e todos os ramos do conhecimento passam por esses tres estados. Essa, segundo Comte, e uma lei imediatamente evidente: "Quem de nos, pergunta-se 0 fundador do positivismo, nao recorda, contemplando a sua propria historia, que foi sucessivamente, cem relar;ao as nor;6es mais importantes, te6logo na sua infancia, metafisico na sua juventude, e fisico na sua virilidade?" Com 0 desenvolvimento do metodo cientffico e das varias disci plinas cientHicas, a humanidade finalmente atingiu a idade adulta e pode deixar para tras tanto a religiao quanto a metafisica. Agora a humanidade e 0 unico Deus que merece 0 seu culto. A humanidade e 0 grande Ser, porquanto "conjunto dos seres passados, futuros e pre sentes que concorrem livremente para aperfei~oar a ordem universal". A esse grande· Ser se deve dirigir a religiao de todos os membros da sociedade. 0 proprio Comte delineou com minuciosos detalhes 0 culto positivista da humanidade, estabelecendo um "Calendario positivista" no qual 0 lugar dos santos e tomado pelas maiores figuras da arte, da poHtica e da ciencia e inventando ate mesmo um sinal da cruz, no qual no lugar da Trindade recorda-se 0 "Grande Ser" que e a humanidade, 0 "Grande fdolo" que e a terra e 0 "Grande Meio" que e 0 espar;o. o quarto maximo expoente da critica negativa do fenomeno reo ligioso no seculo passado e Frederico Nietzsche. Dele todos conhe cemos a famosa proclamar;ao: "Deus morreu". Essa sentenr;a que reo presenta 0 leitmotiv da predica~ao de Zaratustra e tambem 0 motivo dominante da reflexao filosofica de Nietzsche. Ele, na sua autobiogra. fia, gostaria de nos fazer pensar diversamente. No primeiro capitulo, de Ecce homo diz que a questao religiosa para ele nunca teve nenhu· rna importand::. e que as nor;6es de "Deus", "imortalidade da alma II o HOMEM E A RELIGIAO 223 e "aMm" nao merecem nenhuma atenr;ao 3. E, no entanto, 0 proprio fato que ele fale expHcita e difusamente desses temas lege no primeiro capitulo de sua autobiografia e extremamente eloqiiente e demonstta o contrario. Com efeito, a questao religiosa figura constantemente no centro de todas as suas obras. Tambem para 0 autor de Assim fa/ou Zaratustra a reHgiao e uma engenhosa inveD/;ao dos homens, porem nao dos fortes para man, ter sob 0 seu juga os fracos como queria Marx, mas dos fracos para por urn freio na potencia dos fortes, dos super-homens. De tal origem da religiao, Nietzsche acha confirma~ao no cristianismo. Aqui os fracas, os humilhados, os oprimidos elevam 0 seu ideal de fraque za, de velhacaria, de resigna~ao a ideais e fazem de tudo para cons ttingir tambem as homens fortes, os potentes, os super-homens a acei ta-Io. "So 0 miseravel e bom, proclama 0 cristianismo, 0 pobre,o fraco, 0 humilde somente sao bons; somente 0 doente, 0 necessitado, aquele que produz repulsa e pio. So a eles e prometida a felicidade e a salv~r;ao eterna. Enquanto avos potentes, aristocratas, avos e dito que sois para toda a eternidade maus, perversos, vorazes, insaciaveis inimigos de Deus e que, por isso, sois eternamente infelizes, condena dos, malditos" ". Outta importante forma de crftica da religiao foi introduzida neste seculo por Sigmund Freud mediante a psicanaIise. A falta de fundamentos da religiao e dada como certa por Freud porquanto, via que fora do mundo e do homem nao existe nenhum outro ser. Ao estl'dioso fica, por isso, apenas 0 problema de explicar como nasceu a " ilusao religiosa". Para 0 fundador da psicanruise, ela nao nasceu de uma luta de classe entre burguesia e proletariado, como queria Marx, e nem mesmo em conseqiiencia de uma luta entre fracos e potentes, como sustentava Nietzsche, mas at raves .de um processo de sublimar;ao de uma luta primordial entre os membros do cla domestico. No homem, segundo Freud, existiu uma tendencia natural para o incesto: relar;oes edipianas prinlordiais estabeleceram-se entre fi lhos e mae. Ora, 0 pai proibiu tais relar;oese assim nasceu a proibi o tabu: proibido e, justarnente, 0 incesto. Mas ao tabu os filhos responderam com um delito primordial: devoraram 0 pai e Ihe roubaram as mulheres. A recordar;ao desse delito no totemismo (que, segundo Freud, e a forma religiosa mais primitiva) e celebrada com um banquete ritual, no qual e devorado 0 animal sagrado, S1m bolo da tribo (0 totem). Trata-se de um sacriffcio rememorativo vicario: atraves de um ato de culto se repoe aquela tragedia aconteci da nos primordios da humanidade. Nele, a relat;ao com 0 pai e sempre ambivalente: e, juntamente, uma relar;ao de deferencia e de 3 F. NIETZSCHE, COSt parlo Zaratustra, Bocca, Milao, 1906. " lb. FENOMENOLOGIA DO HOMEM224 temor. 0 sacrifkio totemico exerce a dupla fun~ao de sopitar 0 senti· do de remorso pela culpa cometida e de refor~ar 0 sentido de po tenda pela vitoria obtida sobre 0 paL Ora, 0 objeto da religiao Deus - e 0 resultado de tal proje~ao, fora da psique, da ideia de pai; a ideia deste Ser supremo reflete, sobre 0 plano cosmico, a polaridade afetiva arnor-odio que as filhos sentem nos confrontos com a pal. A analise conduzida por Freud conclui fazendo derivar a reli· gHio do "complexo de :f:dipo", ou seja, da tendenda natural do fi· lho homem para possuir a mae e eliminar 0 pai. A religiao - como a arte, a meral, a EoHtica - entra no processo geral de sublima~ao do instinto da libido por obra do Super-ego. "No complexo de Edipo, escreve Freud na conclusao de Totem e tabu, acham-se juntos os prindpios da religiiio, da moral, da sociedade e da arte e isso em plena conformidade com os dados da psicanalise que ve neste com plexo 0 micleo de qualquer neurose" 5. Nada mais do que isso e a religiao, senao a «neurose obsessiva universal da humanidade", urn "delito coletivo" 6. Outras formas de crftica negativa do fenomeno religioso foram desenvolvidas durante 0 nosso seculo pelos existencialistas (em par· ticular por Heidegger e por Sartre) e pelos neopositivistas. Nao se pode estabelecer com seguran~a quais sejam os pontos de vista de Heidegger com rela~ao a religiao. Com' efeito, as suas obras mais recentes contem tra~os inconfundfveis de misticismo. Uma cGisa, porem, esta fora de duvida: segundo 0 autor de Sein und Zeit, a filosofia nao pode dar senao um juizo negativo no que concerne aideia de Deus. De fato, tal ideia e aberrante tanto nos confrontos da metaHsica, porquanto faz decair 0 problema do Ser no problema de um ente, como tambem nos confrontos do problema de existen cia hurnana, porque a desvia das suas possibilidades autenticas. Inequfvoca e, por seu lado, a posi~ao de Sartre. Ele ve na idei" de Deus uma impessivel tentativa de hipostatiza~ao da identifica~ao' da consdencia com 0 ser do pour-soi com l'en-soi. 0 seu juizo, 0 su jeito (0 pour-sot) tende ao ideal de uma coisa que seja, com a pura consciencia de si mesmo, tambem fundamento do seu proprio eel' em si. Ora, esse ideal e 0 que se pode chamar Deus. "Pode-se dizer, assim, que 0 que torna melhor concebfvel 0 projeto fundamental da realidade humana e que 0 homem e 0 ser que pro;eta ser Deus. Sejam quais forem es mitos e os ritos da religiao, Deus e em pd. meiro lugar senslvel ao cora~ao do homem como 0 que anunda • define no seu projeto Ultimo e fundamental" 7. "Toda a realidad. 5 S. FREUD, Totem e tabu, tr. it., Rama, 1969, p. 221. 6 Cf. S. FREUD, L.'avvenire di un'illusione. Esse e 0 estudo mals org&nlco, Ill" tambem rnenos s61ido de Freud sobre 0 fenorneno religioso, que ele procurll demoUr cern muitissimos argurnentos, compreendidos os mais discudveis e arbltrtlriol. 7 J. P. SAR'I'RE, L'itre et Ie neant, Poris, 194', p. 6".' 1/ I o HOMEM E A RElIGiAO 226 hurnana. diz Sartre no final de L'§Ire et Ie neant, e uma palxao, porquanto ela (a realidade humana) aponta para perder-se, para fundar 0 ser e para constituir de urna vez 0 Ser em-si que foge a contingencia para ser 0 seu proprio fundamento, 0 Ens causa sui que as religioes chamam Deus. Assim, a paixao do hemem e oposta a de Cristo, porque 0 homem se perde enquanto homem para fazer nascer Deus. Mas a ideia de Deus e contraditoria e nos nos perdemos em VaG: 0 homem e uma paixao inutil" 8. A ultima importante tentativa do nosso tempo para dar uma base teorica ao atelsmo e a realizada pelo neopositivismo. Para esse mevimento, como e sabido, a filosofia consiste essencialmente na analise da linguagem: so desse modo ela pode determinar a verdade ou a falsidade de uma doutrina. Mas para efetuar a analise da lin guagem e necessario antes de mms nada um criterio para distinguir as proposi~oes que tern significado das que dele sao privadas. Ora, segundo os neopositivistas, os criterios possfveis sao somente dois: ,a analise logica e a verifica~ao experimental. 0 primeiro vale para as proposi~oes tautologicas (e serve para estabelecer a verdade 10 gica; 0 segundo vale para as proposi~oes de fato (e serve para es tabelecer a verdade factual). Portanto, todo 0 material lingiifstico que nao seja verificavel mediante um desses dois criterios nao pode !ler conhecido como significativo, ou seja, nao se lhe pode assinalar urn valor teoretico, cognitivo, mesmo se pode explicar uma fun~ao importante na ordem da pratica (porem nao se pode tratar senao de uma fun~ao emotiva) . No que concerne ao criterio da verifica~ao experimental, Ru dolf Carnap, que e 0 teorico mais brilhante do neopositivismo, defi ne-o assim: "Uma afirma~ao que nao e traduzlvel em proposi~6es de carater empfrico nao e de fato uma afirma~ao, nao diz nada; nao e senao uma serie de palavras vazias; e simplesmente sem sentido" 9. Dessas premissas os neopositivistas tiraram a condusao, 16gica e necessaria, de que as linguagens etica, estetica e religiosa sao pri vadas de sentido (non-sensical) , nao dizem nada: sao carentes de qualquer valor objetivo. Portanto "dizer que 'Deus existe' e uma expressao metaHsica que nao pede ser nem verdadeira nem falsa. E, pelo mesmo motivo, nenhuma proposi~ao que se intente descrever a natureza de urn Deus transcendente pode ter significado literal ... Todas as expressoes concernentes a natureza de Deus sao carentes de sentido (non-sensical) " 10. Porem, cemo fleou dito, nem todos os filosofos modernos i.e pronunciaram a favor de uma critica negativa do fenomeno reli· giose. Antes, muitos expressaram a seu respeito uma aprecia~ao po 8 lb., p. 708. 9 R. CARNAP, ·Ueberwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Spra che", in Erleenn#n;s II (19.31·1932), p. 238. 10 A. J. AUI, L.",tllI", Truth and Log,ic, Nova Yor.k (aem data), p. 11'. FENOMENOLOGIA DO HOMEM226 sitiva, considerando-o uma das manifesta\oes mais pr6prias, autenti cas e genufnas do espfrito humano. Aqui nao podemos citar os pontos de vista de todos aqueles que se expressaram nesse sentido. Limitar-nos-emos a re£edr 0 pensamento de alguns mais representa tivos, come\ando por Kierkegaard. Contra a concep\ao hegeliana da religiao, a qual ve nela pura mente um momento 16gico, natural da evolu\ao do Espirito Absoluto e contra a sua subordina\ao Ii reflexao filos6fica, Kierkegaard proda ma que a religiao nao pode ser reduzida a um momento 16gico de um sistema geral de pensamento, porque ela pertence a esfera da existencia, da vida. Ao estagio religioso nao se alcan\a atraves da intui\ao, como pretendia Hegel, mas mediante a fe. 0 encontro com Deus nao se da na imedia\ao da visao, mas nas trevas da fe. E essa nao e a conseqiiencia, a condusao de um arrazoamento, mas e urn ato de decisao, que comport a um salto para atem de tudo 0 que se ap6ia na seguran\a das leis cientfficas e dos codigos morais. Sendo ca rente de qualquer garantia cbjetiva, a fe e um risco. Para Kierkegaard o risco e urn elemento inseparavel da verdadeira ,experiencia religiosa: "Semrisco nao ha fe e quanto maior 0 risco tanto maior a fe" 11. Se bem que a fe e um risco, a sua aceita\ao nao e irracional: "0 crente nao so possui, mas usa a razao, respeita as cren\as comuns, nao atribui a falta de razao se. alguem nao e cristao; mas, no que diz respeito a religiao crista, ele cre contra a razao e, nesse caso, ele adota a razao para ter certeza de que cre contra a razao. .. 0 cristao nao pede aceitar 0 absurdo contra a razao porque ela perceberia que e absurdo e como tal 0 a£astaria. Ele adota, portanto, a razao pars tornar-se consciente do incompreensfvel e depois se agarra a ele e cre mesmo contra a razao" 12. Quando 0 homem cre em Deus e observa a infinita diferen\a que separa a natureza divina da sua, entao se prostra diante de Deus e 0 adora. "A adora\ao e a maxima expressao da rela\ao com Deus de urn ser humano .. , 0 significado da adora\ao' e que Deus e absolutamen· te tudo para quem 0 adora" 13,"0 crente que se abandona a Deus deve renunciar a tudo e essa completa renuncia impliea sofrimento, sofrimento nao so par motivo do despego, mas tambem porque e consciente de que sozinho nao pode fazer nada. 0 sofrimento e inseparavel da Ie: ele e a caracterfstica da fe" 14. Essas singulares e importantes considera\oes de Soren Kierke gaard acerca do fenomeno religioso no seculo dezenove despertaram escasso interesse e nao conseguiram debicar as teorias dos desmistifics dores da religiao: Feuerbach, Marx, Comte, Nietzsche. 11 S. KIERKEGAARD, Concluding unscientific postscript, Princeton, 1944, p. 188. 12 lb., p. 504. 13 lb., p. 504. 14 lb., p. 412. o HOMEM E A RELIGIAO 227 Maior sucesso conseguiram os expoentes do espiritualismo do come\o do seculo vinte (Bergson, Blondel, James, Scheler) , os quais, per U11;l lado, denunciaram os limites do cientifidsmo, do posi tivismo e do materialismo, e, por outro lado, propuseram uma visao da realidade tendo a religiao como a sua componente fundamental. Bergson, em As duas fontes do moral eda religiao, examina 0 mistidsmo grego, 0 misticismo oriental, 0 profetismo hebraico e 0 mistidsmo cristao. Atraves da experienda dos misticos ele chega a existenda de Deus: essa, ja pressentida na especula\ao filos6fica do impeto vital (elan vital), se impoe agora de maneira incondidonada. De que modo? Com base no testemunho daqueles que tem a ex periencia das coisas divinas. E preciso crer nos misticos sobre essas coisas assim como se ere nos medicos enos engenheiros quando se trata de problemas relacionados com as suas especiaHdades: uns e outros sao peritos; sabem 0 que dizem. Para Bergson, alma e cerpo, espirito e materia, razao e intui\ao sao inseparaveis, sendo aspectos complementares de uma mesma e aniea realidade. Essa doutrina e retomada nas Ultimas paginas de As duas fontes, onde Bergson susrenta que mecdnica (conhecimento tt"icnico das coisas) e mistica (experiencia religiosa do universo), lan ge de serem contrastantes entre si, se pedem para completar-se entre si. "0 homem, escreve Bergson, nao se erguera sobre a terra se um equipamento potente nao the fornecer uma base de lan\amento. Deve -se especar contra a materia se quer destacar-se da terra. Em outras palavras, a mistica pede a mecaniea. Esqueceu-se de nota-lo porque a medlniea addentalrLente se lan\ou sobre uma outra estrada em cujo termino esta um bem-estar exagerado, 0 luxo para poucos privilegia dos antes que a liberta\ao para todos... Mia s6 a mistiea exige a medlnica. E necessarie, tambem, adidonar que 0 corpo desenvolvido exige a alma e a medniea exige a mistica. As origens da mediniea sao provavelmente mais misticas do que se cre; ela nao achara a sua verda deira dire\ao, nao pres tara servi\os proporcionais Ii sua potencia senao quando a humanidade, que foi ate agora por ela desviada em dire\ao Ii terra, conseguir por meio dela endireitar-se e olhar 0 ceu" 15. Enquanto Bergson evidenda a fun\ao positiva da religiao nos cenfrontos da cienda, Blondel poe em relevo a sua importanda capi tal com rela\ao Ii filosofia. Para ele, nao se da autentica £Hosofia pres dndindo da religiao, antes, mais exatamente, prescindindo do cristla nismo: verdadeira filosofia e somente a filosoHa crista, porque sem o auriHo do cristianismo nenhuma filosofia esta em condie;oes de for necer uma solu\ao satisfatoria para os tres problemas que mais preo cupam 0 fn6sofo: 0 ser, 0 conhecer e 0 agir. E proprio da razao dis cutir esses tres problemas, mas e tambem seu dever reconhecer que U H. BERGSON, Le deux sources de la morale et de la religion) Paris, 1955, pp. 329·)30. , FENOMENOLOGIA DO HOMEM o HOMEM E A RELIGIAO228 229 somente na revela~ao de Deus e na sua comunica~ao da gra~a se da a eles uma resposta valida, adequada, segura. Segundo Blondel, urn exame atento e aprofundado da a~ao con duz logicamente ao reconhecimento da existencia de Deus. Com efei to, "a a~ao esta em perpetuo devir, como atormentada pela aspira~ao de urn crescimento infinito. .. Nos somos constrangidos a querer tor narrno-nos 0 que por nos mesmos nao podemos nem acingir nem possuir ( ... ). E porque tenho a ambi~ao de ser infinitamente que sinto a minha impotencia: eu nao me fiz, nao posso 0 que quero, sou constrangido a superar-me. .. Ora, esse empurrao para. 0 infinito, que dilata continuamente a minha a<;ao e Deus. Ele nao tern outra razao de ser para nos senao porque e 0 que nao podemos ser nem fazer com as nossas for<;as unicamente" 16. Nos somos a despropor<;ao entre 0 ideal e 0 real, mas tendemos para a sua identidade: tal identidade e o proprio Deus. Para provar a possibilidade da gra<;a e mostrar que ela consti tui a soluc;ao mais adequada do problema do nosso ser, Blondel parte para 0 estudo das caracteristicas de que ele se reveste tanto em nos quanta nas outras criaturas, que e a de ser finito. Ora, defronte a finitude nasce na criatura urn sentimento de insatisfac;ao e urn desejo de superar os proprios limites, urn desejo de atingir 0 infinito: a constata<;ao da finitude faz nttscer a exigencia do infinito, "porque a ideia do limite nasce e nao pode nascer em nos senao pelo testemunho de que 0 infinito se entrega a si mesmo na nossa finitude" 17. Mas 0 desejo da criatura permanece ineficaz, porque entre criatura e criador ha incomensurabilidade e a criatura e consciente disso: a criatura e consciente de que 0 abscluto tern urn modo de ser e de conhecer que transcende 0 seu ser e 0 seu conhecer, e consciente da sua total dependencia com rela<;ao a ele e que, portanto, 0 abismo que os se para pode ser ultrapassado sornente por Deus, gratuitamente. Em ou tras palavras, a insatisfac;ao que vibra no. corac;ao do homem postula nao so a existencia de urn Ser absoluto, mas tambem a existencia da . ordem sobrenatural da grac;a. Vma habil defesa do valor e do significado da experiencia reli giosa foi conduzida pelo mosofo americano Willian James) em parti cular na obra As varias formas da experiencia religiosa. A sua defesa e baseada em motivac;oes de ordem mfstica como em Bergson, mais do que em especulac;oes de crdem teorica como em Blondel. James nao cre que seja possivel transformar a religHio em urn sistema de propo si<;oes ciendficas demonswtvds apoditieamente: "A pretensao da filo sofia e que a religiao possa ser transformada em uma ciencia apta a convencer universalmente. 0 fato e que nenhuma filosofia religiosa cenvenceu e£et.vamente a massa dos pensadores. ( ... ) Sinceramente, 16 M. BI.ONDI~ /"'.,IOIf, Parll, 1893 PI'. 3'2·"4. 17 M. BLONDII., Ill", " I" 11m, Parll, 193'. p. 41.5. crdo que se deva conduit que a tentativa de demonstrar atraves de processos puramente intelectuais a verdade das posi~oes da experiencia religiosa imediata seja absolutamente sem esperanc;a. ( ... ) Nos de vemos, por isso, parece-me, dar adeus definitivo a teologiadogmati- . ca. Sinceramente, a nossa fe deve passar sem aquela garantia" is. Para James, 0 fundamento da religiae nao e a religiao, mas a fe, 0 sentimento e outras experiencias particulares como a oraC;ao, conversac;oes com 0 invisivel, visoes, etc. "0 que sustenta a religHio e algo de diferente das abstratas defini~oes e dos sistemas de formulas logicamente concatenadas, e algo de diferente das faculdades de teolo gia e dos seus professores. Todas essas coisas sao efeitos posteriores, adjun~oes secundarias a urna massa de experiencias religiosas concretas, que se reunem ao sentimento e it conduta e que se renovam in saecula saeculorum na vida des particulares, humildes homens. Se me pergun tais 0 que sao essas experiencias, direi que elas sao conversac;oes com o invisivel, vozes e visoes, respostas a ora~ao, mudanc;as afetivas, li· .berta~oes do medo, concessoes de ajuda" 19, Tudo isso, porem, na~ signifiea que a religiao seja carente de conceitos e de doutrinas. Pelo contrario, James reconhece que uma religiao que seja verdadeiramente autentica deve logicamente olhar para urn certo tipo de metaHsica ou de cosmclogia telstica e que, por isso, a fe em urn Deus cujos atributos sao essencialmente "morais" ou relacionados com a experiencia humana pode ser defendida como urn elemento necessario da experienda religiosa, se bern que nao possa servir como base de urna teologia radonal. Max Scheler) urn dos mais conhecidos estudiosos da religiao, pas este fenameno no centro da sua pesquisa filosOfica. Em polemica com 0 positivismo, que reduzia a religiao a urn momento transitorio do desenvolvimento progressivo da historia humana, Scheler nao so critica 0 principal erro do positivismo, que consiste em desconhecer a censtitutiva e originaria tendencia religiosa do homem, mas critica tambem a teoria positivista do nascimento da religiao por urn processo evolutivo que vai do fetichismo ao animis mo, a magia, etc., e do polite1smo ao monoteismo. Reportando-se pela parte historico-positiva aos estudos de W. Schmidt 20, em particular it sua tese do monoteismo primitivo, Scheler rea1~a, por sua conta, como, fenomenelogicamente, "tambem 0 'idclo' mais primitivo apre· senta, ainda que rudemente, a essencia indedutivel do divino, qual es fera global do ser absoluto fortalecido com todas as caractedsticas do santo" 21. Nele e atraves dele, a inten~ae religiosa entende, sente, ve a totalidade do ser absoluto e santo e nao urn simples objeto natural no qual, por entropatia, introduz uma vida psiquica. 18 W. JAMES, The Varietiet of Religious Experience, Nova York, 1903, p. 453s. 19 W. JAMES, Collected Essays and Reviews, Nova York, 1920, pp. 427428. :lO Cf. 'W. SCHMXJ)T, D,,. UrspruIIg der Gottesidee, Miinster, 1912. 21 M. SCHaLIR, Vo", Bw/"", im M,"schel1, 4 ed., Berna, 19'4, p. 3'1. FENOMENOLOGIA DO HOMEM230 Mas, se por uma parte Scheler repele os pontos de vista dos des mistificadores da religiao, por outra nao esta nem mesmo disposto a subscrever os argumentos com que geralmente se quer justifica-la. Em particular ele critica as tentativas de fundar a verdade da religiao recorrendo a criterks extra-religiosos, como a metaffsiea, a moral, a cultma e condui com uma prodama~ao para procurar 0 fundamento da verdade da religiao no proprio fenomeno religioso. "Eu sustento _ escreve Scheler - que todas essas tentativas de achar fora da pr6pria religHio urn criterio com que se possa medir a verdade da religiao sao por principio erradas. Ate mesmo tudo que a religiao pode signifiear para os valores extra-religiosos (como as dencias, a moral, o estado, 0 direito, a arte) tern efetivamente urn significado s6 se a rellgiao e reconhecida e vivida nao em fun~aodaquele significado, mas sim para a evidencia e a certeza de que nela propria se demoram ... Os criterios para a verdade e para todo outro valor gnosiol6gico da religiao podem, portanto, ser achados partindo da propria essencia da religiao e nao podem ser tirados de nenhuma esfera extra-religiosa" 22. Como acontece para cada outra esfera do ser, tambem para 0 que concerne a esfera religiosa Scheler sustenta que 0 fundamento ultimo da sua aceita~ao seja a evidenda imediata do objeto que se da como tal em atos de conhecimento espedfico, no caso, nos atos religiosos. Portanto, 0 fundamel1to ultimo da religiao nao pode ser outro que nao a automanifesta~ao de Deus. Tal automanifesta~ao da realidade pessoal de Deus, segundo Scheler, pode acontecer so atra yeS dos homens religiosos, que culminam no "santo originario", que ele individualiza na figura de Cristo 23. b) A critica' teol6gica Defronte a religiao, tambem os te6logos se enfileiraram em duas alas. Como os fil6sofos, os te6logos cat6licos assumiram uma postma positiva, vendo na religiao urn vinculo natural, legitimo e obriga t6rio do homem para com 0 seu Criador. Ao conwlrio, os te610gos protestantes assumiram uma postma cdtica, de refuta~ao e de conde na~ao, ccnsiderando a religiao como a aberra~ao mais grave e perni dosa da mente e do cora~ao do homem, a expressao mais clara da sua soberba. A posi~ao'dos te610gos cat6licos recebeu uma formu1a~ao oHcia! no CondHo Vaticano 1. E1e condenou 0 atdsmo como urn dos mais "perniciosos enos do tempo", antes 0 pas na frente de toda a sede de todos os erros, acrescentando ser ele fonte de muitfssimos efeitos desastrosos, em todos os setores do pensamento, da vida e da a~o, Declarou, aMm disso, sem hesita~ao, que 0 atefsmo e sempre repro 22 lb., p. 237. , .2) Cf. G. FElUlB'1"1'%, 14M loll". P""oll' ~,Il. r,lla/em" II Siggiatore, Millo, 1972. .._.-..,'- ~ o HOMEM E A RELIGIAO 231 vavel e que, portanto, nao pode ser aceito sem culpa pelo individuo. E como razao de tal culpa aduzia a soberba do homem, a sua mania de autonomia afirmada especialmente na Idade Moderna, nao menos que 0 desdenhoso subjetivismo que a permeia inteira. E, assim, contra quem nao reconhece Deus, lan~ou a seguinte excomunhao: "Si quis dixerit, Deum unum et verum, creatorem et dominum nostrum per ea quae facta sunt, naturali rationis humanae lumine certo cognosci non posse, anathema sit" 24. No que concerne a postma negativa e cdtica dos te6logos protes tantes, merecem ser referidos os pontos de vista de Bat'th, Bultmann e Bcnhoeffer, por causa da sua originalidade e da sua grande influen cia no pensamento contemporaneo. A tese do valor negativo da religiao e da teologia natural, que e tambem uma das teses centrais dos Reformadores (Lutero e Calvino), foi repropcsta com vigor por Karl Barth. Para esse te610go, diante de Deus nao s6 0 mundo, a hist6ria e a filosofia, mas tambem a re ligiao e a especula~ao religiosa que se desenvolve sao problematicas, inautenticas, perversas, porque Deus nao e e nao pode ser nunca objeto das faculdades humanas cognitivas e da experiencia humana, da intui~ao e do sentimento, mas e 0 sujeito soberanamente livre de ca da desenvolvimento humano, livre na sua pr6pria a~ao auto-reveladora e sustentadora da fe. 0 te610go sUl~o nao nega que a re1igiao natu ral possa chegar a urn certo conhecimento de Deus, mas e1e condena esse conhecimento como falso e danoso, porque constitui urn obsta culo ao verdadeiro conhecimento de Deus fornecido pela revela~ao. o conhecimento natural da . existencia de Deus e de impedimento, antes que de ajuda, ao conhecimento cristao da Trindade. 0 conheci mento natural de Deus como causa suprema obscurece 0 conhecimento cristao de Deus como criador. Por esse motivo, Barth rejeita "qualquer liga~ao entre Deus e 0 homem, isto e, qualquer conhecimento da palavra de Deus por' parte do hornem, e, portanto, de qualquer capa cidade de conhecer a palavra de Deus, no sentido de que tal capa cidade estaria em condi~oes de estabelecer uma liga~ao com Deus, mesmo sem a Palavra de Deus" 25. Em umase~ao de Kirchliche Dogmatik (I/2), intitulada "A re vela~ao de Deus, elimina~ao (Aufhebung) da religiao", Barth distin gue a fe crista fundada exclusivamente no que Deus revelou de si mesmo por melo de Jesus Cristo, da religiao natural, busea inutil da verdade e do sentido ultimo da vida, condenada a falencia porque Deus e 0 "totalmente outro" e os homens nao teriam podido saber nada dele se ele, na sua suprema' ecndescendencia, nao tivesse ido ao seu encontro e nao se tivesse manifestado. A religiao e 0 es£or~o vao que fazem os hip6critas para se criar uma verdade sem ajuda da 24 DINZINGIII. n. 3026. 2' K. BARTII, ChlJrch DOl.maticl, Nov. York, 1936, vol Ill, p. 224. 'I 232 ; FENOMENOLOGIA DO HOMEM gra~a. Trata-se ~videntemente de uma falta de £e pecaminosa. A reli giao crista nao e de fato uma religHlo e nao e de nenhum modo com paravel as religi6es pagas: nao se pode fazer outra coisa senao con- . trapo-la a elas. A fe e fundada na revela~ao que Deus fez de si mes mo, nao na angilstia do homem ou nas suas experiencias dos fenome nos deste mundo. Tudo vern da £e e a fe vern de Deus; nada vern do homem, porque 0 homem caiu: epecador, e cego. Todas as praticas de piedade com que quem se diz cristao transforma a fe em religiao sao abomina~oes aos olhos de Deus. Na sua cdtica da religiao, Rudolf Buttmann, mais que a razoes de carater teologico, como Barth, faz apelo a razoes de ordem filosofica. Como Comte, ele ccnsidera a reHgiao urn result ado da mentalidade ingenua, imatura da humanidade antiga, a qual, ignorando a causa verdadeira, autentica das coisas, excogitou toda uma serie de seres sobrenaturais: acima de nos, urn ceu povoado por uma hierarquia de anjos sob 0 dominio dire to de Deus e sob n6s urn inferno repleto de espiritos malignos. "Tals potencias inserem-se nos acontecimentos na turais nao menos que no pensamento, na vontade e na a~ao do homem; 0 milagre, por isso, nao e uma coisa rara. 0 homem nao e senhorde si; os demonios podem possuf-Io; Satanas pode sugerir -lhes pensamentos maus; e Deus pode tambem infundir-lhes os pro prios pensamentos e a sua vdntade, fazer-lhes conhecer figuras celes tes e ouvir a. sua palavra de comando e de conforto, dar-Ihes a poten cia sobrenatural do seu espfrito. A historia, portanto, nao segue urn curso constante. e regular, mas recebe movimento e dire~ao das for ~as sobrenaturais" 26. Mas, a partir do momento em que a ciencia forneceu a explica~ao verdadeira, efetiva dos fenomenos deste mundo, a hipotese religiosa tornou-se inutH, superflua. Dessas premissas, Boltmann elaborou a sua teoria da demitiza~ao do cristianismo: ela quer Bbertar 0 Evan gelho da componente religiosa de que 0 cobriram os autores neotes tamentarios, qualificando-a como elemento mitico e metaffsico. Tarefa da demitiza~ao e justamente separar 0 elemento mftico-me taHsico do conteudo salvlfico do Evangelho. Essa tarefa, para Bultmann, e muito urgente, porquanto da sua atua~ao depende a salva~ao do proprio cristianismo. Com efeito, 0 cristianismo moderno, nao tendo mais uma mentalidade mftico-metafisica, mas a cientffica, nao pode acolher a forma original do cristianismo, porque inatual e superada. Tal forma e superada com uma cutra que reflita a autocompreensao e a visao do mundo que tern 0 homem de hoje. Essas, segundo Bultmann, acharam a expressao perspfcua na filosofia de Heidegger e ele a es colheu, portanto, para interpretar a mensagem crista para a nossa gera~ao. 26 R. BULTMAN~ N,,,,! T,sttJm'lfl """ MYlholoji" In K,r-;jmll """ Mythos 101 c:uld...... Nt w. BAlTaCH, HlmbufjlO, 1960, vol. I, p. 1'. o HOMEM E A RELIGIAO 233 Dietrich Bonhoeffer fez seus os pontos de vista de Barth e Bultmann a respeito da religiao e, por razoes tanto teol6gicas (0 abis mo em que naufragou a razao depois da queda original) quanta culturais (a maturidade do homem moderno), desenvolveu uma cdti ca inexoravel . do fenomeno religioso. Numa conhecidfssima pagina de Resistencia e entrega, Bonhoeffer descreve de modo extrema mente incisivo a supera~ao da religHio no momento hist6rico atual: "0 tem po em que se podia dizer tudo com palavras teologicas ou pias passou, assim como passou 0 tempo da interioridade e da consciencia, isto e, o tempo da religiao em geral. Vamos ao encontro de uma epoca com pletamente nao religiosa; os homens, assim como sao, nao podem mais ser religiosos. Mesmo aqueles que se definem sinceramente 'religiosos' nao 0 praticam absolutamente; por 'religioso' des enten dem provavelmente algo de completamente diferente. Toda a nossa predica~ao e teologia crista do seculo vinte e construida no a priori religioso do homem. 0 'cristianismo' foi sempre uma forma (talvez a verdadeira forma) da 'religiao'. Mas quando urn dia sera evidente , que esse 'a priori' nao existe de fato, mas que foi uma forma ex pressiva do homem, historicamente determinada e transitoria, quando, isto e, os homens se tornarao realmente nao religiosos de maneira radical - e eu acho que ja, mais ou menos, e 0 nosso caso - 0 que significara entao isso para 0 cristianismo? E subtrafdo 0 terreno so bre 0 qual se apoiava ate agora todo 0 nosso 'cristianismo' ... "27. Portanto 0 teologo e 0 pastor de almas que querem continuar a a~ao do Cristo e querem levar a sua Nova de salva~ao aos homens de nosso tempo devem procurar propor tal Nova e a propria figura do Cristo nas categorias nao reHgiosas e ateias na cultura moderna. Movido por essas convic~oes, Bonhoeffer tentou essa diHcil em presa. EIe, assim, realizou uma nova figura do Cristo, uma figura nao mais enquadrada dentro de uma moidura teologica, mas simplesmente humanfstica e secular. Para Bonhoeffer, 0 que caracteriza 0 Cristo de modo inequfvoco e que pode garantir um seguro fundamento para a nossa fe nao e a divindade, mas a caridade, a submissao total, 0 seu completo "ser-para-os-outros". "0 existir.para-os-outros de Jesus afirma 0 martir dos nazistas - e a tom ada de consciencia da trans cendencia. Da liberdade de si mesmo, da existencia para os outros ate a morte brotam a onisciencia, a onipotencia e a onipresen~a. Fe e participa~ao neste ser de Jesus (Encarna~ao, Cruz, Ressurrei~ao). A ncssa rela~ao com Deus nao e uma rela~ao 'religiosa' com 0 Ser mais alto, mais potente, melhor: essa nao everdadeira, autentica trans cendenda; a nossa rela~ao com Deus e uma nova vida no existir para os outros, na participa~ao no ser de Cristo. 0 transcendente nao tem deveres infinitos, inatingfveis, mas es clados, urn de cada vez, atingf veis. Deus em forma humana, nao como nas reHgioes orientais em 27 D. BONHOEFFER, Resistenza e rcsa, tr. it, Bompiani, Milito, 1969, p. 213. 234 FENOMENOLOGIA DO HOMEM forma ferina, 0 Monstruoso, Caotico, Longfnquo, Espantoso: mas nem mesmo nas fermas conceituais do Absoluto, do Metaflsico, do Infinito, etc., e nem mesmo a figura grega do deus-homem que e 0 homem em e para si, mas 0 homem para os outros, portanto, 0 Crudfixo" 28. As crfticas a religiao e1aboradas pelos maiores expoentes da teologia protestante contemporanea (Barth, Bultmann, Bonhoeffer) foram retomadas e levadas as extremas consequendas pelos seus dis dpulos, em particular pelos teologos da "Morte de Deus" (Hamilton, Altizer, van Buren) 29: aplicando cem l6gica ferrea os prindpios da absoluta alteridade de Deus, da maturidade do homem moderno e da demitiza~ao, eles conc1ufram que somente uma proclama~ao a-reli giosa e ateia do cristianismo pode ser acolhida pelo homem do se culo XX. De tal modo, os teologos protestantes na sua crftica negativa do fenomeno religioso nao evitaram fazer seus os argumentos que as fi16sofos da desmistifiea~ao da religiao haviam posta a sua disposi~ao. c) A crftica historica, a analise fenomenologica e a pes quisa sociologica De um seculo para ca, os fenomenosreligiosos foram tomados em considera~o alem de petos fi1osofos e pelos teologos, tambem pelos historiadores, pelos fenomenologos e pelos sodologos: valendo-se cada um do proprio metodo (os historiadores da critica historica, os fenomenologos da analise eidetica e os sod610gos da pesquisa das rela~oes sociais ) , eles buscaram esclarecer a erigem e a natureza desse fenomeno singular: a religiao. A nos, nao nos e consentido tra~ar aqui um quadro completo das suas teorias; limitar-nos-emos a assi nalar algumas entre 'as mais importantes e influentes. 0 grande es quadrao dos historiadores da religiao abre-se com 0 nome de Edward B. Tylor (1832-1917). Ele, vivendo numa epoca em que triunfavam as teorias evolucionistas de Darwin e Spencer, sustenta que pode aplicar 0 prindpio da evolu~ao t~mbem as religioes e explicar com ele as suas origens e desenvolvimentos. Para ele, no campo religioso as coisas caminharam do mesmo modo que no campo bio16gico, ou seja, primeiro se apresentaram as formas mais simples e imperfeitas e de pois as mais complex as e perfeitas. Portanto, a primeira ferma religio sa praticada pela humanidade fol 0 animismo} que e justamente a for ma mals rude, elementar de todas. Tylor sustenta que a concep~ao de alguns fenomenos (sono, morte) levaram 0 homem primitivo a for mular 0 conceito de algo diverso do corpo humano, isto e, a alma. o conceito de alma, adquirido pelo homem atraves dessa observat;ao, 28 D. BoNHOEPFBR} Rtlsisll!nza tI r,sa} cit., p. 278. 29 Sobre esses autore. cf. B. MONDIN. I Iloloai dl/lla morle di Dio, 2 ed., Borla, ')'.'urim, 1970. (j HOMEM E A RELIGIAO 235 refere-se so a alma hurnana. Mas bem rapido comelj;ou a tomar corpo a cren\;a da migrar,;ao das almas, a qual seguiu-se 0 cuidado para com os defuntos, como 0 cuIto des antepassados. Mais tarde, desen volveu-se 0 conceito de uma retribui~ao na outra vida. Dma fase sucessiva foi caracterizada pela cren~a de que todos os elementos da natureza fessem causados ou controlados pelos espfritos; daf a vene ra\;ao da natureza, isto e, da agua, das plantas, dos bosques, dos rios, das varias especies de animals. Assim se chegou a venerar as divinda des da espede, atribuindo a natureza divina nao a um tinieo indivfduo concreto, mas a especie inteira. Foi sobre essas premissas que se de senvolveu 0 polite1sme, como culto das divindades que governam os varios fenomenos naturais (como a chuva, os raios, os trovoes, 0 vento, etc.) ou que representam a natureza (terra, lua, sol) ou que sao antepostas as varias fases e fun~oes da vida humana (guerra, trabalho, divertimento) ou enquanto culto dos antepassados divinizados. Pou co a pouco, porem, entre as varias divindades emerge uma superior, mais perfeita, mals potente que todas as outras. Assim, gradual - mente, teve origem 0 monotefsmo 30. A tese de Tylor, depois de uma primeira fase em que encontrou vastfssimos consensos, foi critieada e rejeitada por varios estudiosos, em particular por Lang, Schmidt e Pettazzoni e, mais recentemente, por Griaulle e Eliade. Andrew Lang, para refutar a opiniao de Tyler segundo a qual a origem da religiao e procurada no animismo, aduzia 0 argurnento da presen~a de uma fe em um Deus supremo existente junto a povos muito primitivos, como os Australlanos e os Andamaneses. Tylor sus tentava que semelhante crenc;:a nao podia absolutamente ser original e que a ideia de Deus provinha da crenc;:a nos espfritos da natureza e do culto das almas dos antepassados. Mas entre os Australianos e os Andamaneses, Andrew Lang nao achou nem 0 cuIto dos antepas sados nem 0 da natureza. Muito impressionado com as descobertas de Lang, Wilhelm Schmidt buscou corroboni-las fazendo uso de urn metodo historieo -cdtico mais rigoreso e seguro do que 0 do estudioso anglo-saxao. 0 seu metodo conslstia em distinguir e esc1arecer as estratifica~oes his t6rieas nas assim chamadas culturas primitivas. Na sua obra monu mental Ursprung der Gottesidee (Origem da ideia de Deus), ele procurou provar como a crenc;:a em um Deus supremo estava presen te nos estratos mais antigos das popula\;oes da Australia, enquanto 0 totemiSlDO caracteriza s6 as tribos culturalmente mais jovens. Segundo Schmidt, a Urreligion consistia na crenc;:a num eterno, onisciente e benefico Deus supremo, criador de todas as coisas, que se supunha vivesse ne ceu. Ele conclui que no prindpio existia por toda parte :uma especie de Urmonotheismus} mas 0 ulterior desenvolvimento das 30 E. B., TUllIl, Researches into the early history of mankind, Londres, 186.5. 236 FENOMENOLOGIA DO HOMEM sociedades humanas fez com que se degenerasse e, em muitos casos, quase se extingiiissem as cren~as originais. Formado sob a influencia do historicismo de Croce, Raffaele Pettazzoni considera a religiao como urn fenomeno puramente histo rico, mas ao inves de procurar as suas origens e naturezas em alguma tribo primitiva como haviam feito Lang e Schmidt, ele busca a sua explica~ao no estudo das religioes em geral. Pettazzoni considera erradas algumas conclusoes de Schmidt acerca da origem (por revela ~ao) e da natureza (monoteistica) da religiao porquanto tornam 0 presente indevidamente antigo; em outras palavras, atribuem aos pri mitivos atuais a permanencia de formas culturais proprias dos pri meiros homens. Quanto a: origem da religiao, a seu julzo nao teve lugar atraves de uma revela~ao primitiva, mas atraves da observa~ao dos fenomenos da natureza: 0 nascimento do sol, a chuva, a apari ~ao das estrelas, a muta~ao do ceu, etc... Quanto, pois, a natureza da religiao da humanidade primitiva, ele nao esta disposto a aceitar nem a tese animistica de Tylor nem a monoteistica de Schmidt. Da analise dos atributos de celestialidade e de supremacia que as popula ~oes primitivas atribuem a divindade, ele sustenta que se pode con duir a favor de uma especie de concep~ao monoteistica, mas de forma ainda pesadamente antropomorfica (porque celestiaHdade e referida imediatamente ao ceu e supremacia aos cimos das montanhas) e por isso polemiza com Schmidt su~entando ser indevidamente atribuida aos primitivos a qualifica~ao de monoteistas 31. Entre os autores que enfrentaram 0 fenomeno religioso com os instrumentos da critica historica, recordamos tambem Rudolf Otto) porquanto uma parte consideravel de seus estudos e, efetivamente, de indole hist6rica (neles ele expHca entre outras coisas em que sentido a historia das religioes poderia ter uma tarefa importante na reno va~ao da cultura ocidental contemporanea). Mas 0 seu nome esta Ii gado sobretudo a uma obra, Das Heilige (0 sagrado), que e essen cialmente de natureza filosofica e psicol6gica. Nessa obra, ele descreve com agudeza extraordinaria as diferentes mcidaIidades da experi~ncia religiosa. Ela se configura sobretudo como sentimento do numinoso. o numinoso e uma categoria que faz parte da categoria mais com plexa do "sagrado". E uma categoria totalmente sui generis) que e completamente inacesslvel a compreensao conceptual e, enquanto tal, constitui urn arreton, algo de indefinivel, inefavel, exatamente como o "belo" num outro plano. Nesse sentido, ela pertence ao dommio do "irracional" e representa 0 elemento mais intimo que pertence a todas as reHgioes. 0 numinoso, por sua vez, assume dais aspectos que 0 caracterizam de modo inequlvoco: a) 0 aspecto de mysterium tremendum; 31 R. PETTAZZONI, Dio. Formazione e sviluppo del monoteismo della storia d,U, r,lill.ioni, Bolonha, 1922. . o HOMEM E A RELIGIAO 237 b) 0 aspecto de mysterium fascinans. o primeiro constitui 0 aspecto repulsivo do numinoso, enquanto o segundo dele representa 0 aspecto atrativo ou "fascinante". Porem, 0 sagrado, aMm de urn aspecto "irracional", representado pela categoria do numinoso, reveste-se tambem de urn aspecto "racio I;lal": ele achaexpressao sobretudo nos "slmbolos" enos "dogmas". Gra~as a essas categorias, atraves de "sinais" estabelecidos e univer salmente va1idos, 0 sagrado adquire uma estrutura solida que the con fere 0 carater de "doutrina" rigorosa, objetivamente valida, e 0 opoe por isso mesmo as extravagancias do "irracionalismo" fantastico e so nhador. Ate a primeira guerra mundial, os autores se serviram para 0 estudo da religiao, como se viu, dos instrumentos da mosoHa, da teologia e da critica historica. Mas depois qu~ Husser! formulou as regras de urn novo metodo, 0 fenomenologico, alguns come~aram a servir-se de tal metodo tambem para 0 estudo da religiao. 0 primeiro !l faze-Io com sucesso foi Max Scheler, cujo pensamento ja expusemos mais aeima. o exemplo de Scheler foi seguido por muitos outros estudiosos, mas dois se destacaram sobre todos: Gerardos van der Leeuw e Mir cea Eliade. Van der Leeuw levou a fenomenologia a metodo exclusivo para o estudo da natureza e da essencia da religiao, de que procurou aprender a "intencionalidade" mediante uma descri~ao pormenorizada e penetrante dos dados religiosos. Ele demonstrou a irredutibilidade das representa~oes religiosas a fun~oes sodais, psico16gicas ou racio nais e refutou os preconceitos radonalis~as que procuram explicar a religiao atraves de algo de diferente. Para van der Leeuw, a tarefa principal da fenomenclogia da religiao e 0 de explicar as estruturas internas dos fenomenos religiosos. Ele considerou erroneamente poder reduzir a totalidade dos fenomenos religiosos a tres Grundstrukturen (estruturas de bases), isto e, dinamismo, animismo e defsmo 32. Mircea Eliade e um des mais autorizados estudiosos do feno meno religioso enl todos os seus ~lJ.ltiplos aspectos. Na base da sua investiga~ao de tal fenomeno, ele poe 0 principio: a ordena~ao cria o fenOmeno 33. Isso significa que, para ser entendido e interpretado corretamente, um fenomeno deve ser colocado e examinado segundo a escala que lhe e propria. A esse respeito ele evoca 0 exemplo de um grande estudioso frances, Poincare, 0 qual se perguntava: "Um naturalista que houvesse estudado 0 elefante somente no rrdcrosco pio poderia acreditar que 0 conhece sufidentemente?" 0 micros copio revela a estrutura e 0 mecanismo das celulas, que sao identicas em todos os orgaos pluricelulares e 0 elefante e, certamente, urn 'l VAN DBR LEEUW, Fenomenologia della religione, Einaudi, Turim, 1960. JJ M. Er,rADE, La nostalgia delle origini, Morcelliana, Brescia, 1972. 238 FENOMENOLOGIA DO HOMEM organismo pluricelular, mas isso nao basta para conhecer 0 elefante! Assim, um fenomeno religioso resultara tal somente com a condi~ao de ser entendido no proprio modo de ser, quer dizer, somente com a condi~ao de que venha a ser estudado numa escala religiosa. Girar em volta do fenomeno par meio da fisiologia, da psicolcgia, da sodo legia, da lingiHstica significa fugir ao elemento unico e irredutfvel que contem: 0 seu car::'iter sagrado; e isso embora considerando que nao existem fenomenos religiosos absolutamente "Puros", porque, sendo um fato humano, a religiao e tambem um fa to secial, lingiifstico, etc. Seria, portanto, inutil e ineficaz apelar para certos principios re ducionisticos e desmistificar a comportamento e as cancep~oes do Homo religiosus, demonstrando, por exemplo, que se trata de produ ~oes do inconsciente au de esquemas surgidos por razoes sociais, eco n6micas, politicas, etc. Baste um exemplo:"Em certas culturas arcai cas au tradicionais, a templo, a casa, a vila sao considerados como situados no 'centro do mundo'. Nab ha sentido em buscar 'desmistifi. car' semelhante cren~a tentando chamar a aten~ao do leiter para 0 fa to de que nao existe um centro do mundo e que, desse modo, a mul tiplicidade de tais centros e uma no~ao absurda porque contraditoria. Ao contrario, so tomando em considera~ao esta cren~a e buscando esclarecer todas as suas implicacoes cosmologicas, rituais e sociais pode-se atingir a compreensao da condi~ao existencial de um homem que ere estar no centro do mundo" 34. De tal modo Mircea Eliade chega a conclusao tambem cientifica de que 0 sagrado e um elemento estrutural da consciencia e nao um estagio da historia e, por isso, nao podera nunca ser esqueddo. "0 homem total nao e nunca totalmente dessacralizado e e duvidoso que isso seja de alguma forma possIve!. Ao nivel da vida consciente, a seculariza~ao tem IDlfito sucesso: as velhas ideias teologicas, os dogmas, as cren~as, as rituais, as institui~oes, etc. sao progressivamen te privadas de significado. Mas nenhum homem normal e dotado de vitali dade pode ser reduzido asua atividade consciente e racional. .. "35. E, com efeito, tambem na sociedade moderna, tao saturada de secula riza~ao, afloram em toda parte fen6menos de redescoberta dos sagra dos: esses nao compreendem so os fenomenos que tern claramente um carater religioso, mas tambem outros fen6menos que pretendem a recupera~ao das dimensoes religiosas de uma autentica e significati va existencia humana no universo. Uma das ciendas humanas que neste seculo fez maiores progres sos ea sociologia. Era, pois, natural que as suas tecnicas fossem aplica das tambem ao estudo da religiao. De fato,. assim agiram ultima mente muitos autores: Berger, Luckmann, Acquaviva, Herberg, Spi ro, Horton, etc. 34 lb., p. 83. 3' Ib., p. 10. o HOMEM E A RELIGIAO 239 Para direr a verdade, um importante estudo sociologico da reli giaa fora ja realizado no inkio do seculo por Emile Durkhei'm. Tendo por base pesquisas sociologicas, ele havia concluldo que a religiao e uma proje~ao da experiencia social. Estudando os australianos, notara que 0 totem simbolizava contemporaneamente a sacralidade ou 0 sa grado e 0 cla. Disso argumentara que a sagrado ou "Deus" e a grupo social sao uma unica coisa. A explica~ao da natureza e da origem da religiao por parte de Durkheim foi duramente critic ada por alguns eminentes etnologos. Goldenweiser salientou que as tribos mais sim ples nao tem cla nem totem 37. Aqueles que enfrentam hoje a fenomeno religioso com a metodo sociol6gico se valem de tecnicas mais avan~adas e rigorosas do que as de Durkheim e conseguem, portanto, resultados menos discudveis do que os do celebre estudioso frances. Muito interesse suscitaram e continuam a suscitar os estudos do soci6lago alemaci Thomas Luckmann, cujo pensamento buscaremos re sumir brevemente flqui. Quatro sao as conclusoes principais das suas _pesquisas: I. A religiao nao e alga de secundario, periferico e nem mesmo algo de setorial com rela~ao a uma estrutura social. Pelo contratio, ela constitui 0 nucleo primario e fundamental da interpreta~ao que tal estrutura da a realidade. A religiao "e a forma interior da con cepr;ao do mundo de uma sociedade" 38. II. Existem duas formas principais de religiao, a religiao "ele men tar " e a religiao "especializada". A religiao elementar (ou origina ria) e "a ordem significativa", "0 complexo significativo" (Sinnzu sammenhang) que regula a existencia social humana, antes que a fun ~ao de indicar 0 sentido ultimo das coisas seja reservada a uma institui~ao particular. "Tudo somado, a caracterfstica socialmente determinante da religiao deve ser procurada na sua fun~ao de dar um sentido a conduta da existencia humana, que com isso se transcende. A tal funr;ao corresponde, estruturalmente, a forma interior da con cep~ao do mundo de uma sociedade. Essa ultima e a forma social pti maria e fundamental da religiao.. Ela e universal" 39. A religiao espe cializada consiste nas cristaliza~5es historicas da forma absoluta da religiao. Na religiao especializada, "0 simbolismo que representa 0 conteudo central da concep~ao da existencia obtem uma estrutura pro pria" 40, torna-se um mundo distinto dos outros mundos, dos outros36 E. DuRKHEIM, Les formes eiementaires de la vie religieuse, Paris, 1912. 37 A. A. GOLDENWEISER, "Religion and Society: A Critique of Emile Durkheim's Theory of the Origin and Nature of Religion", in Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Method, 1917, pp. 113-124. 38 T. LUCKMAl'IN, Das Problem der Religion, Fdburgo, 1963, p. 36_ 39 lb., p. 38. 40 lb. 240 FENOMENOLOGIA DO HOMEM aspectos e das outras estruturas da scciedade. A passagem da religiao elementar para a religiao especializada acontece quando a ordem sagra da e nitidamente separada dos outros niveis da sociedade. Entao, '" a fun~ao religiosa elementar da visao do mundo vern a suceder-se a fun ~ao especial e exclusiva das representa~oes religiosas" 41. Os reflexos concretos de tal passagem da religiao elementar para as religioes espe dalizadas sao ilustrados por Luckmann nos termos seguintes: "Se parg~ao das representa~oes religiosas significa que, dentro da visao que se tern do mundo, se determina uma polaridade entre duas esfe ras principais e que os mcdelos culturalmente determinantes da expe riencia subjetiva vern a ser marcados por uma analoga polaridade. A relal;ao entre a vida quotidiana e 0 sagrado torna-se indireta e apenas o significado 'ultimo' das experiencias habituais, ordinarias, aMm naturalmente das experiencias 'extraordimirias', que quebram a routtl ne da vida quotidiana, sao consideradas referiveis ao nive! sagrado da refllidade, ao qual e freqiientemente conferido urn status de sobrena turalidade. 0 significado ordinario da conduta quotidiana, vice-versa, e determinado mencs rigidamente com relal;aO a logica da ordem sagrada. 0 mundo da vida quotidiana da, pois, origem a sistemas de referenda mais imediatamente praticos" 42. III. Nas sodedades arcaicas ou "tradidonais", "as representa I;oes religiosas penetram em institui~oes como 0 parentesco, a divisao do trabalho e a regulamental;ao e exerdcio do poder. Em tais sode dades, a ordem sagrada legitim a a con,duta em toda sorte de situa I;oes sociais e confere significado ao curso inteiro da existencia vidual. Por isso, nelas nao ha nada - inclusive a ecologia, a economia e os sistemas de conhecimento - que se possa entender plenamente sem se referir a religiao" 43. Enquanto nas sodedades evoluidas e nas mcdernas 0 sagrado assume uma colocal;ao distinta e, por assim dizer, visivel em um restrito segmento da estrutura social. E interio rizado em processos de sodalizal;ao espedficos que variam em fun~ao de uma estrutura social complex a e de um sistema de estratifica~ao diferenciado, em . que as instituil;oes religiosas adquirem diferentes gnms de especializal;ao. Pode-se, entao, dar que na propria sociedade moderna se formem simultaneamente numerosas instituil;oes especia lizadas. Quando isso ocorre, a .relal;ao da conscienda individual com o sagrado torna-se complicada e dificil, porque "a ordem sagrada nao simboliza mais de modo univoco a funl;ao religiosa elementar da visao do mundo" 44. "Os sistemas subjetivos dos conceitos e dos valores com significado 'ultimo' nao sao mais transmitidos atraves de urn 41 T. LUCKMANN, "Credenza, non credenza e religione" in Religione ed ateismo nella sadeta secolarizzata, II Mulino, Bolonhe, 1972, p. 95. 42 T. LUCKMANN; cit., pp. 94·95. 43 lb., p. 96. '44 lb., p. 107. o HOMEM E A RELIGIAO 241 processo que tambem so se assemelhe a urn processo homogeneo de so dalizal;ao, que permane\;a estavel por varias geral;oes, mas sao sempre mais construidos subjetivamente, em processos quase autonomos de sodalizal;ao secundaria" 45. 0 resultado dessa situal;ao e "a decom posi~ao do nexo significativo religioso institudonalmente estabele cido" 46. IV. A crise das religioes espedalizadas tradidonais deu origem a novas interpretal;oes religiosas da realidade. Segundo Luckmann, 0 conteudofundamental de todas as novas interpretal;oes e a " auto nomia do individuo". Essas interpreta~oes nascem na esfera privada e sao "dramatizal;oes do individuo subjetivamente autonomo em busca da realizal;ao e afirmal;ao de si mesmo" 47. "A tematica da concepl;ao moderna do mundo simboliza 0 fenomeno historico-sodal e estrutural mente fundamentado do individualismo" 48. Mas, para Luckmann, essa aspiral;ao ao individualismo eilusoria e e continuamente frustrada. Ele e do parecer de que 0 homem da sociedade moderna "torne-se pessoa somente em minima parte". "0 individuo na sociedade mo -derna tern muita liberdade (irrelevante) e pouca forma interior dutavel. .. Que esse fato tenha conseqiiendas para com a ordem social e para com a objetiva~ao do espfrito na sociedade humana e evidente, mesmo se nao se podem prever todas as suas possibilidades e todos os seus perigos" 49. 3. Definic;ao da religiao "Todos os que se ocupam da ciencia da religiao - nota A. Lang , todc:s os que pretendem favorecer 0 desenvolvimento da religil'io, todos os que a querem extirpar of ere cern uma definil;ao da sua essen cia" 50. E sabido que Leuba, de tais definil;oes, recolheu bern umas quarenta e oito, acrescentando-lhes ainda duas por conta propria 51. Mas 0 numero esta bern longe de ser completo. Nos mesmos tivemos a ccasiao de assinalar algumas defini~oes importantes na nossa resenha das varias posil;oes assumidas pelos filosofos, teologos, historiadores, sodologos e fenomenologos 52. Mas, entao, como definir a religiao? 45 Ibid. 46 T. LUCKMANN, Das Problem deT Religion, cit., p. 62. 47 lb., p. 68. 48 lb., p. 70. 49 lb., p. 76. 50 A. LANG, Introduzione alta filosofia della religione, 2 ed., Morcelliana, Brescia, 1959, p. 25. '1 C. LEUBA, A Psychological Study of Religion, Nova York, 1912, e. 2, app. 1. ~ Sobre 0 problema da defini~ao de religiao vide: A. LALANDE, Dizionario "i tico dl /IlOlofla, Milio. 1971, no verbete Religione; A. LANG, o.c., Parte I; K. RAHNBR N"olil ItJaai, Rome, 1968, pp. 29-60; H. GoLLWITZER, La "ilica marxista . dill' ;;/1,10'" , Itt I,d, "istiana, Morcelliana, Brescia, 1970, pp. 288S; A. VERGOTE, 242 FENOMENOLOGIA DO HOMEM Vma boa defini-;ao, a nosso ver, poderia ser a seguinte: «A re ligiao e 0 conjunto de conhedmentos, de a~oes e de estruturas com que 0 homem exprime reconhedmento, dependenda, venera-;ao com rela-;ao ao Sagrado". A defini-;ao, como se ve, compreende dois elementos, urn a res peito do sujeito e outro a respeito do objeto. Quanto ao sujeito, ela indica a postura que 0 homem assume quando se exprime religiosa mente. Com e£eito, nem todas as rela-;oes com 0 Sagrado sao ativi dade «religiosa". Se, por exemplo, se toma por objeto de pesquisa e processo de transforma-;iio e de desenvolvimento, as manifesta-;oes e as influencias das religioes, nao se pode presdndir do objeto da experienda religiosa, embora nos movamos no plano da historia e nao da religiao. "Pode-se falar de urn ato religioso, sobretudo de urn ate religioso fundamental, apenas quando 0 homem assume de frente ao Sagrado e ao Divino uma postura subjetiva totalmente par ticular, iste e, quando e emotivamente atingido e atraido pelo objeto e entra em contato pessoal com ele. Esse e 0 lado psiquko ou interior da religiao" 53. Como fkou dito, 0 aspecto subjetivo do fenomeno religioso e constituido pelo reconhedmento da realidade do Sagrado, pele sentimento de total dependenda a seu respeito e na atitude de venera~ao para com ele. A nossa de£ini-;ao indica aquilo que caracteriza 0 objeto, de forma exdusiva, isto e, de ser Sagrl:l,do. Sagrado e urn conceito primario, fundamental, como os cenceitos de ser, de verdade, de bern e de bela e, portanto, nao pode ser explicado ulteriormente, reportando-nos a categorias estranhas a esfera religiosa. Sobre esse ponto, parece-me que Scheler, van der Leeuw, Eliade, Otto, Luckmann tenham razao. Mas nem por 1SS0 deve ser consideradourn conceito nao suscedvel de algurna eludda-;ao. De fato, no interior da esfera religiosa 0 Sagra do assume caracterfstkas proprias, inconfundiveis, que permitem des creve-Io de modo inequivcco. Entre as suas caracteristicas mais pers pkuas recordamos sobretudo as que foram tao bem evidendadas por Otto: a numinosidade, a misteriosidade, a majestade e 0 fascinio. Mas uma sua caracteristica importante e tambem esta: a objetividade. o Sagrado, enquanto permanece Sagrado e, portanto, objeto da reli giao, nao e nunca considerado urn achado da fantasia human.a, uma proje-;ao e hipostatiza-;ao das necessidades, dos desejos e dos ideais do homem. 0 ato religioso esta apontado para uma realidade efetiva mente existente: «sempre os conteudos religiosos se apresentam com a pretensao de ter consistenda e validez tambem fora da consdenda e da experienda religiosa" 54. A transcendencia: tambem se nao e Psychologie . religieuse, 2 ed., Bruxelas, 1966, pp. 16-22; A. PANNIKAR, Religione e religioni, Morcelliana, Brescia, 1964; U. PELLEGRINO, Rivelazioni di Dio e umanesi mo cristiano, Ancora, Milao, 1967. '3 A. LANG, o.c., p. 48. 54 lb., p. 79. o HOMEM E A RELIGIAO 243 colocado fora do mundo, 0 Sagrado e sempre considerado algo que su pera infinitamente 0 proprio mundo e tudo 0 que no mundo esta ccmpreendido, partkularmente 0 homem. A axiologia assume tambem o papel de caracteristica importante: 0 Sagrado representa 0 valor supremo ao qual se subordinam todos os outros valores. Enfim, a per sonalidade, que assume 0 mesmo carater importante das supracitadas caracteristicas: 0 hcmem religioso nao trata com um objeto, mas com urn Tu, com uma pessoa. "Ha alguem em frente a ele. Eu experimento urn Tu. E eu 0 imagino para mim sob a forma de urn demonio e de um deus" 55. Determinada desse modo a essenda da religiao, torna-se evidente que ela se distingue da filosofia, da arte e da moral. 0 que a distingue da filosofia e sobretudo 0 elemento subjetivo; de fato, tanto a religiao quanta a filosofia se ocupam do Sagrado, do Divino, da "realidade ultima", para adotar uma expressao cara a Tillkh, mas o fazem de urn modo tetalmente diferente. A filosofia procede abstra tamente e com finalidades puramente especulativas, enquanto a reli giao "e uma tomada de posi-;iio pessoal que vai alem do simples co nhecimento da verdade: e a postura na qual todo 0 eu se recolhe na suasingularidade" 56; com urn "empenho supremo" (ultimate concern) 57. 0 que distingue a religiiio da arte e, por sua vez, sobre tudo 0 elemento objetivo: a religiao tern por objeto 0 real; a arte, o ideal. Enfim, tambem religiiio e moral, nao obstante estejam ligadas entre si de modo bastante estreito, sao essendalmente distintas. "A primeira e encontro com Deus, contato pessoal com ele, reconhedmen to humilde e devoto do seu valor absoluto e da sua santidade. A se gunda cabe 0 cuidado e a realiza-;ao dos valores humanos; ela aspira a dar vida e forma a um sentir e a urn fazer que correspondam a essenda do homem" 58. 4. Religiao e antropologia fiJos6fica Nesse ponto, se a nossa inten-;ao fosse a de realizar um tratado de mosofia da religiiio, devedamos enfrentar 0 problema da verdade do objeto da religiao, um problema de capital importancia, mas tam bern extremamente arduo para as fcr~as da razao. Para resolve-Io seria necessario apelar para todos os recursos da metaflsica. Mas 0 nosso objetivo neste escrito e muito mais modesto: nos pretende mos efetuar apenas uma analise fenomenologica do Homo religiosus, sem empenharmo-nos no momento em escabrosas investiga~oes meta 55 G. VAN DER LEEUW, L'uomo primitivo e la religione, Einaudi, Turim, 1961, p. 144. '0 A. l.ANG, o.c.) p. 110. " P. TILLlCH, Systematic Theology, Chicago, 1951, vol I, pp. 22s8. ~ A, LANQ, O.C., p. 118. 244 PENOMENOLOGIA DO HOMEM ffsicas. Por isso, neste ponto, n6s nos propomos a elucidar 0 signifi cado que tern a dimensao religiosa para a compreensao do ser do homem e nao a resolver 0 problema da verdade da religiao. Quanto a esse ultimo problema apontamos brevemente as quatro principais solw;cSes que foram propostas: 1) Hipostatizat;ao das necessidades e dos ideais dos hom ens (e a solut;ao do humanismo ateu); 2) Expressao da soberba e da vanidade da mente human a conta giada pelo pee ado original (solut;ao da teologia protestante); 3) Expressao de uma mentalidade pre-cientffica, propria de uma humanidade nao ainda suficientemente adulta (e a solut;ao aventada por numerosos partidarios da secularizat;ao); 4) Exigencia fundamental do homem (soIut;ao apoiada por mui tos autores espiritualistas). Querendo passar agora a questao que nos interessa, buscamos aprender as sugestcSes que nos sao fornecidas pelo fenomeno religioso para uma compreensao maior da realidade humana. Algumas sugestcSes podemos tirar diretamente da resenha das teorias relativas a origem e a natureza da religiao que apresentamos mais acima. De tal resenha resulta sobretudo que, nao obstante a disparidade de valorat;ao do fenomeno religioso e a discordia das explicat;cSes relativas a sua ori gem, todos os autores estao concordes em reconhecer que 0 homem se apresenta constantemente e em toda a parte como Homo religiosus. Em segundo lugar, para muitos autores a religiao e urn coeficiente fundamental e essencial da hominizat;ao. Para esses autores, 0 ho mem e naturalmente religiose nao so de fato mas tambem de direito: como ele nao e homem se e carente de inteligencia, de vontade, de cultura, de linguagem, assim tambem ele nao e homem se e carente de religiao. J a Feuerbach escrevia: "A religiao tern a sua base na diferent;a essencial entre 0 homem e 0 animal - os animais nao tern religiao" 59. Essa tese foi confirmada porScheler, James, Bergson, Blondel, Schmidt, van der Leeuw, Otto, Eliade, Luckmann e por muitos outros estudiosos. Para todos recordamos a opiniao de van der Leeuw. Em 0 homem primitivo e a religiao ele escreve: "So mente quem nao e ainda homem, quem nao e ainda 'Consciente' nao ~ Homo religiosus. E quanto mais violentamente se apresenta 0 atefs mo, tanto mais claro vemos nele os trat;os de antigas experiencias religiosas, como as da escatologia e da religiao da comunidade huma na no atefsmo comunista. 0 homem que nao quer ser religioso 0 e justamente por essa sua vontade. Pode evitar a Deus, mas nao pode fugir-Ihe" 6(). '9 1. FEU ERBACH, L'essem;a del cristianesimo, Feltrinelli, Milao, 1952, c. 1, p. 1. ;5() G. VAN DER LEEUW, o.c., p. 146. o HOMEM E A RELIGIAO 245 Mas por qual motivo 0 homem e religioso de direito, alem de de fato? Para nos, a razao fundamental e a finitude, a contingencia, a de pendencia (em particular a que ele observa com relat;ao a lei moral): Tomando consciencia dessas suas caracterfsticas, 0 homem abre-se espontanea e naturalmente a urn Ser superior. Da sua existencia, em seguida, ele pode adquirir urn conhecimento seguro atraves de muitos outros indfcios, em particular 0 da ordem espetacular do universo. Uma vez reconhecida a existencia de tal Ser, e logico que eles entrem em contato com ele: relat;cSes de orat;ao, de adorat;ao, de sacriffcio, etc. Entao, a dimensao religiosa assume uma estrutura precisa, regu lada, ordenada. Sobre essa plataforma religiosa natural, a nosso ver, instauram-se e desenvolvem-se as religicSes historicas, tanto as primitivas quanta as mais evolufdas. Do ponto de vista da razao pura, todas as religicSes historicas sao concretizat;cSes contingentes, fruto de urn determinado ambiente e de uma certa cultura, da mesma plataforma religiosa natural. Ora, se 0 homem e religioso tanto de fa to quanto de direito, se ele e naturalmerite religioso, quais sao as implicat;cSes que tal fe nomeno sugere no que concerne a realidade humana? As implicat;cSes mais importantes sao
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