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Costa, Ronaldo Pamplona da. 1941. Os onze sexos: as múltiplas faces da sexualidade humana / Ronaldo Pamplona da Costa. São Paulo. Editora Gente, 1994. A VAl?Tr= r= () T()()() Sexualidade é o termo que se refere ao conjunto de fenómenos da vida sexual. Ela é o aspecto central de nossa personalidade, por meio da qual nos relacionamos com os outros, conseguimos amar, ter prazer e procriar. Entendemos o ser humano como um todo, indivisí- vel. Nossas partes podem e devem ser estudadas em separado, mas não confundidas ou tomadas pelo todo. Quando se implanta uma ponte safena, não se faz isso apenas num coração, um órgão que pulsa e faz circular o sangue pelo corpo. Na verdade, opera-se um coração que está no corpo vivo de um ser humano, que tem nome, profissão, família, medo, inquietudes, dúvidas, necessidades. Não é só o coração que precisa ficar bom, sarar, mas sim o ser humano ao qual essa pequena parte pertence. Este livro pretende abordar a sexualidade como parte integrante dos seres humanos, com suas sensa- ções, conflitos e relacionamentos sociais. O presente trabalho exclui os distúrbios sexuais, que são como sintomas secundários de doenças mentais. A apresentação segmentada tem apenas um objeti- vo prático: o de facilitar a leitura e a compreensão. Nas escalas que você vai encontrar nos primeiros capítulos e na Conclusão, os segmentos A, B, C, D e E não expressam a proporção de pessoas contidas em cada um deles, pois essa quantificação depende de pesquisas cientificas que deverão ser realizadas. Oscasos relatados são todos reais. Nomes, profissões e eventualmente detalhes de situações foram alterados em respeito à ética médica, salvo aqueles recolhidos direta- mente da mídia e que são de domínio público. Ainda não completamos nossos estudos a respeito da função dos hormõnios e das complexas redes do sistema nervoso sobre a sexualidade. Esses aspectos estão inseridos neste trabalho apenas a titulo de infor- mação geral. Neste livro estamos apresentando uma visão de sexualidade que não se atém especificamente à vida sexual, propriamente dita, e sim a uma visão mais ampla do ser humano. O papel de gênero, masculino ou femi- nino, é a base para o desenvolvimento de todos os demais papéis sociais. Portanto, é impossível dissociar esse primeiro papel de gênero da sexualidade, à qual está diretamente vinculado. A sexualidade é o aspecto mais conflituoso, contro- verso e desconhecido do ser humano. A nossa cultura lida mal com esse importante aspecto da vida e, para agravar, cria modelos estanques nos quais pretende encaixar e classificar as pessoas. Esses moldes, muitos dos quais baseados apenas no preconceito e na falta de informação, não nos permitem que sejamos exatamente aquilo que somos ou que poderíamos ser. A dimensão total do ser humano tem três aborda- gens básicas que são a biológica, a psicológica e a social. Essas três bases são inter-relacionadas e inseparáveis. A abordagem biológica nos diz que temos um corpo fisico, que sentimos, que vemos, e que somos vistos. A abordagem psicológica nos remete a nossa mente, ao Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight nosso psiquismo, as nossas emoções mais primárias, aos nossos afetos, aos nossos desejos, as nossas fantasias, aos nossos sonhos. O mundo social é o mundo que nos rodeia, povoado de outros seres, inseridos na natureza ou naquilo em que o homem a transformou, as cidades. O nosso corpo "contém" o psicológico e está no mundo em relaçâo com as outras pessoas. É impossível pensarmos em um desses três compartimentos de forma estanque. O ser humano não pode ser visto só pelo seu corpo, porque sem o psiquismo ele está morto. Um homem apenas "psicológico" também não exis- te, porque ele se expressa por meio da fala, da postura e do corpo. Além disso, um ser humano, com corpo e mente perfeitos, não sobrevive se não estiver EM RELA- çÃO com outras pessoas. Todos, quando nascemos, trazemos dentro de nós três potencialidades a serem desenvolvidas. A esponta- neidade, a criatividade e o fator tele: . A espontaneidade é a capacidade de responder adequadamente a uma situação nova ou dar uma resposta diferente a uma situação antiga. Essa adequação se refere, antes de mais nada, a nós mesmos. Nesse sentido, ser espontâneo é estar presente "de corpo e alma" nas relações existentes a nossa volta. A espontaneidade, por outro lado, é o fator que nos permite ser criativos, ou seja, criar algo novo. A criança, ao nascer, traz consigo o chamado fator tele em seu psiquismo, que em grego quer dizer à distância, e significa que todos nós, já nos primeiros anos de vida, somos capazes de, aos poucos, ir perce- bendo as outras pessoas com quem nos relacionamos, da forma mais aproximada possível de como elas são, na mesma medida em que também nos sentimos, e somos, percebidos. 1. Conceitos desenvolvidos pelo médico romeno J. L. Moreno (1889-1974), criador do psicodrama e da terapia de grupo, que emigrou para os EUA, onde completou e aplicou suas teorias. Esse movimento afetivo e emocional de mão dupla é responsável pela dinâmica do funcionamento das pessoas, a dois, a três ou em grupo. Quando essas capacidades inatas não são bem desenvolvidas, em funçâo do ambiente onde crescemos, podem acabar se distorcendo. Essas três potencialidades sâo "motores" para o desenvolvimento da identidade sexual. Nossa teoria é que a identidade sexual pode ser dividida em três aspectos: identidade genital, identidade de gênero e orientação afetivo-sexual. O corpo e o psiquismo precisam do social para se completar. E no social nos expressamos e nos relacio- namos através de papéis. Estamos também fazendo uma distinção entre papéis sociais de gênero e o papel afetivo- sexual. Para que possamos exercer a nossa sexualidade em toda a plenitude é indispensável que o corpo seja provido das necessidades básicas e o psiquismo tenha os três fatores inatos desenvolvidos. Isso, no entanto, só é possível a partir da convivência com outros seres. Um ser humano completo, porém, só pode ser enten- dido dessa forma se tiver a sua cidadania e seus direitos e deveres garantidos por leis. Se tiver direito ao trabalho, à moradia, à educação, à saúde, ao voto, à participação nos governos e, no tema de que estamos tratando, o direito de exercer a sua sexualidade independentemente da forma como ela se exteriorizar. Isso significa respeito ao seu corpo e aos seus sentimentos, bem como aos das outras pessoas. Se houver um mínimo dessas condições, o individuo poderá se de- senvolver saudavelmente e assumir os papéis por meio dos quais vai se relacionar com seus semelhantes. Aquilo que afirmamos ser indissociável, ou seja, corpo, mente e aspectos sociais, aparecem em capítulos separados ao longo deste livro apenas para facilitar a leitura e a compreensâo de um tema tão complexo. Os componentes da sexualidade humana, descritos em se- parado na primeira parte deste livro, também são total- mente interligados e interdependentes. Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight A cada capítulo do livro você vai se deparar com "fragmentos" que compõem um "caleidoscópio". A reu- nião das escalas que estamos propondo permitirá que você. quando chegar à Conclusão. gire esse "caleidoscó- pio". fazendo surgir as mais diversas "imagens" da se- xualidade humana. Não estamos afirmando que essas "imagens" são definitivas. Mas são como nós as vemos. Hoje. o Autor São Paulo. Setembro de 1994. COMPONENTES DA SEXUALIDADE HUMANA 1 CAMI/IllI/ti()§ ()CULT()§ Você, que está lendo este livro, foi gerado e nasceu. Isso é óbvio. Tanto que você nem se dá conta. Quando você nasceu, os seus pais, sua família ou os médicos da maternidade também não tiveram dúvidas. Tratava-se de um menino ou de uma menina. No entanto, portrás do que parece tão natural, há uma complicada "obra de engenharia". Essa "constru- ção" precisa ser "bem-executada" desde o primeiro ins- tante, para que hoje você seja o que é: um homem ou uma mulher. Ou, do ponto de vista biológico, um ser humano macho ou um ser humano fêmea. Alguns "projetos", no entanto, têm pequenos erros de cálculo, que podem levar a resultados ines- perados. Embora esses "erros" sejam raros, algumas crianças nascem sem serem totalmente fêmeas ou totalmente machos. Para ter uma idéia do que é o corpo humano, basta saber que somos formados pelo gigantesco número de la trilhões de células, e que todas elas estão interliga- das. Umas não funcionam sem as outras. Esses grupos de células formam os órgãos que nos permitem comer, pensar, amar. Enfim. existir. No centro de cada uma dessas células estão 23 pares de corpúsculos, os cromossomos, que contêm os genes. responsáveis por nossas características fisicas. São os genes. imaginados como um "rosário de contas", que vão definir se nossos olhos serão castanhos ou azuis. se o cabelo será ondulado ou crespo. se seremos altos ou baixos. se calçaremos 38 ou 42. Até mesmo se teremos predisposição para sofrer do coração, pulmão ou de outras doenças. Um par de cromossomos. os cromossomos sexuais. é o responsável. ou culpado. dependendo de como se enca- re a vida. por nascermos homem ou mulher. Na mulher. esse par foi batizado de xx, e no homem o par é xy. Ao contrário do que ocorre com todas as células do corpo. o espermatozóide e o óvulo contêm apenas 23 cromossomos cada. e não 23 pares. e só sobreviverão se puderem juntar-se. O espermatozóide morre horas de- pois da ejaculação. e o óvulo não-fecundado é expelido mensalmente pela menstruação. No óvulo. o cromosso- mo é sempre x. enquanto os espermatozóides presentes na ejaculação podem ter o cromossomo x ou y. O encontro desses dois cromossomos. no ato da fecundação. é o começo do futuro ser. Durante o tempo de gestação, todos nós passamos por momentos cruciais de definição biológica. O psicó- logo clínico norte-americano John Money chama esses "momentos", significativamente. de quatro encruzilha- das l . Para Money, são encruzilhadas porque o ser hu- 1. John Money, psicólogo clínico norte-americano, estudioso e pesquisador de intersexos no HospitalJohns Hopkíns, Universida- de de Baltimore, EUA. 2 mano poderá seguir o caminho feminino. masculino. ou um terceiro. como veremos ao longo deste livro. Do ponto de vista da Biologia. o sexo pode ser cromossômico. gonadal e genital. Cromossômico é o sexo identificado pelos pares xx e xy. Sexo gonadal está relacionado com um tipo especial de glândulas. ou gônadas, na linguagem científica. Essas glândulas sâo os ovários da futura mulher e os testículos do futuro homem. Finalmente. sexo genital sâo os órgãos sexuais visí- veis. Nos homens. o pênis e a bolsa escrotal. Nas mulhe- res. a vulva. a vagina e o clitóris. Não estamos falando de "sexos" diferentes. Apenas lembrando que sexo não é só aquela parte íntima do corpo que costuma ficar bem escondida debaixo da roupa. O sexo também está dentro do corpo. Mais adiante veremos que ele está principalmente na cabeça. A fecundação ocorre quando um espermatozóide do homem penetra no óvulo da mulher. Esse encontro acontece nas trompas. região próxima ao útero. Quando o homem ejacula, cerca de 100 milhões de espermato- zóides se deslocam em "grande velocidade" para as trompas e não há qualquer pista sobre "quem" vencerá a corrida. Se o espermatozóide mais veloz trouxer dentro de si um cromossomo x, este. ao juntar-se com o x do cromos- somo feminino, dará origem a uma menina. Por outro lado, se "no campeâo" estiver presente o cromossomo y. começará a ser gerado um menino. Quem define o sexo biológico da futura criança é sempre o pai. A fecundação é a primeira encruzilhada pela qual passa o desenvolvimento da sexualidade humana. embora nesse momento exista apenas uma única célula. chamada ovo. Quatro dias após a fecundação. o ovo alcança a cavidade do útero e já tem, mais ou menos. cem células. 3 Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Ao longo das primeiras semanas. o embrião desenvolve os órgãos rudimentares. Nesse momento. ele tem "bro- tos" tanto da estrutura sexual masculina quanto da feminina. Esses "brotos" são minúsculas estruturas. uma espécie de filamento. Elas foram descobertas por dois embriologistas alemães, Caspar Wolff e Johannes Mül- ler. há dois séculos. Wolff descobriu a estrutura que contém a potencia- lidade para o desenvolvimento sexual de um ser humano masculino. A estrutura que leva ao desenvolvimento feminino foi descoberta por Müller. São essas estruturas que darão origem aos órgãos sexuais internos e externos do homem e da mulher. Até o final do segundo mês. embora traga dentro de si uma combinação de cromossomos que o definirá como homem ou mulher. o embrião. do ponto de vista sexual, é "neutro". A partir da sétima semana de gravidez, o cromosso- mo y (do par xy) sente uma "irresistível" necessidade de ativar a estrutura de Wolff, o lado masculino do embrião. Por meio de uma combinação química, ele indica que está na hora de serem formados os testículos. Os testículos, que após o nascimento descerão para a bolsa escrotal do menino, são glândulas especializadas na produção de hormônios sexuais e espermatozóides. O desenvolvimento dos testículos, ainda no embrião. é fundamental para que todo o aparelho sexual masculi- no. interno e externo. seja adequadamente formado. Quando o cromossomo y "liga o motor" da estrutura de Wolff, a estrutura de Müller, feminina. se retrai, não se desenvolve. Mas continua existindo. não desaparece. Todos os homens carregam. até o fim de suas vidas. fragmentos da estrutura feminina de Müller. 4 Caso esteja em gestação o embrião de uma futura menina. "não precisa acontecer nada". Nenhum "motor precisa ser ligado". Quando o par é xx (mulher), a estrutura de Wolff fica quieta em seu canto, sem dar sinal de vida. Nos embriões femininos. a estrutura de Müller leva à formação dos ovários. Mas. como no caso anterior. também as mulheres vão sempre ter dentro de si "peda- ços" da velha estrutura masculina de Wolff. Biologicamente falando, por mais estranho que isso possa soar. é como se a "tendência natural" dos seres humanos fosse sempre ser mulher. Isso "só" não acon- tece porque o cromossomo y do par xy (homem) é "um inconformado", e logo que pode desencadeia uma forte reação química no embrião para que ele se desenvolva como macho. Essa é a segunda encruzilhada da vida. Nesse mo- mento. os cromossomos não podem bobear. Se eles não enviarem "mensagens" corretas. isso causará uma gran- de complicação nos órgãos sexuais internos e. mais à frente. nos externos. como acontece com as crianças que nascem com a genítálía dúbia ou malformada. ()UTI2() UI:SÁf'I() Quando chega o terceiro mês de gravidez o embrião tem que enfrentar a terceira encruzilhada. O desenvolvi- mento do embrião vai caminhando bem. no conforto do útero matemo. Esse clima de tranqüilidade é. na verda- de. aparente. Todas as partes de seu organismo conti- nuam em intensa atividade. A decisão agora sobre o caminho a ser seguido ficará por conta de uma complexa combinação de substãncias químicas. os hormônios sexuais, produzidos pelos tes- tículos no embrião masculino ou pelos ovários no em- brião feminino. 5 Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Os hormônios sexuais são responsáveis pelo desen- volvimento dos demais órgãos genitais internos ou ex- ternos, femininos ou masculinos. Tanto os testículos quanto os ovários produzem os mesmos tipos de hormô- nios, apenas em quantidade e em combinações diferen- tes, dependendo do sexo. Se tudo correr bem,a mistura hormonal no embrião masculino levará à formação das vesículas seminais, da próstata, do epidídimo e dos canais deferentes. Caso esteja em gestação um ser do sexo feminino, e se a sua mistura hormonal teve dosagem correta, seu desenvol- vimento será natural, com a formação do útero, das trompas e da parede superior da vagina. Nem tudo está completo. Os órgãos genitais internos já se formaram mas, no quarto mês de gravidez, nem mesmo com um exame de ultra-som é possível identificar o ser em gestação como um me- nino ou uma menina. Falta uma parte vital: a geni- tália externa. Vital porque é nesse órgão que a sociedade se baseia para designar o sexo de nasci- mento: macho ou fêmea. Chegou o momento da "moldagem" dos órgãos se- xuais externos. Chamamos de "moldagem" porque o "material" que vai formar o órgão sexual masculino e feminino é exatamente o mesmo. Essa é a quarta encru- zilhada. Entre o terceiro e o quarto mês de gravidez, o feto, tanto o masculino quanto o feminino, apresenta, na região localizada entre as pernas, uma estrutura cha- mada de tubérculo genital, duas faixas de pele e uma pequena protuberância de cada lado. 6 Se o bebê em gestação for fêmea, o tubérculo genital continua pequeno e se transforma no clitóris. As duas pregas de pele não se fundem e formam os pequenos lábios e a cobertura do clitóris, e as duas protuberân- cias ficam separadas e formam os grandes lábios. Com o mesmo material forma-se a genitália externa do bebê macho. O tubérculo genital cresce e dá origem ao pênis, as duas pregas de pele se fundem para formar a uretra e as duas protuberáncias se fecham, constituin- do a bolsa escrotal. Antes de se declarar a guerra dos sexos com base apenas nas diferenças da genitália, é bom lembrar que na "construção desses aparelhos" foi utilizada a mesma matéria-prima. Até agora, da fecundação ao nascimento, parece que o nosso piloto automático seguiu à risca, em cada uma das quatro encruzilhadas, o plano de vôo, tomando o rumo certo. No entanto, embora isso quase nunca acon- teça, mesmo os melhores mapas de navegação têm falhas. O hermafrodita é o resultado de uma dessas falhas. Ele é um ser que não seguiu um desses dois caminhos, normais para quase todas as pessoas. Ele é um inter- sexo. Logo na primeira encruzilhada a sua combinação cromossômica se complicou. Ele não tem o par xy ou xx, mas uma mistura desses, numa variação que pode ser muito grande. Esse problema surgido no ato da fecundação pode levar um hermafrodita, na segunda encruzilhada, a desenvolver um testículo e um ovário ao mesmo tempo, ou um único órgão, chamado ovotéstis, onde estão mesclados testiculos e ovário. 7 Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight Minha Linda Highlight o mesmo vai ocorrer nas outras duas encruzi- lhadas, quando os órgãos sexuais internos são mal- formados. indefinidos e não têm funcionamento normal. Isso também ocorre com os genitais exter- nos. que são dúbios e incompletos. Na realidade. não existem hermafroditas com genitais masculino e feminino inteiramente formados e conjugados. Isso é um mito. Essas e outras anomalias são raras e atingem apenas uma pequena parcela dos recém-nascidos. Nem todos podem ser consideradas verdadeiros her- mafroditas e apenas um médico poderá fazer um diagnóstico correto. () VÁV~L ()() CÁl?TÚl?I() Depois da adolescência, tanto um homem como uma mulher. que tenham nascido com um corpo nor- mal de macho ou fêmea. podem. com hormônios ou cirurgias, "adquirir" caracteres sexuais secundários do sexo oposto. O desenrolar de nossa existência não é uma linha reta, tenhamos ou não consciência disso, queiramos ou não. A verdade é que. aos poucos. a decisão sobre o caminho a seguir vai passando das mãos da Natureza para as nossas próprias mãos. É possível. através do uso de honnônios e de cirurgia plástica, uma pessoa MACHO (A) passar para o seg- mento B da escala e deste para E, assim como uma pessoa FÊMEA (E) passar para o segmento D e deste chegar a A. As pessoas de intersexos, dependendo de sua estrutura biológica, psicológica e social. podem tanto ir de C para A, quanto de C para E. I -ESCALA DO SEXO BIOLÓGICO (FENÓTIPO) É preciso fazer uma distinção entre o sexo genital. que é aquele com o qual nascemos. e o sexo registrado em cartório. Para as crianças que nascem com a genítá- lia normal, o erro no momento do registro não existe. No entanto, bebês com algum problema relacionado à formação dos órgãos sexuais, às vezes de fácil correção pela Medicina. podem ser registrados com o sexo troca- do, causando a essas futuras pessoas dificuldades imen- sas. Um casal que tenha um bebê com a genitália dúbia deve procurar orientação médica. o quanto antes, retar- dando o registro de nascimento até que se possa ter certeza do sexo da criança. A Ciência avança e novos tratamentos surgem para corrigir problemas congênitos. Esses fatores biológicos, juntamente com outros igualmente importantes. como a atitude dos pais. a educação e o meio social, vão influir na formação de nossa identidade sexual e no nosso comportamento ao longo da vida. MACHO A MACHO com caracteres sexuais sscundórlos de FÊMEA ItITER5EXOS (hermafrodita) c FÊMEA com caracteres sexuais secundórlos de MACHO o FÊMEA 8 9 Minha Linda Highlight Até agora, falamos de nossa constituição fisica, como se estivéssemos diante de uma fotografia. O passo seguinte é acompanhar um filme, movimentado, que se desenrola dentro de nós. Nesse "filme", vamos acom- panhar as nossas sensações e "ver" COMO NOS SENTIMOS. Se nasce um menino, no futuro ele SE SENTIRÁ HOMEM. Se nasce menina, SE SENTIRÁ MULHER. Óbvio, não? Nem sempre, como veremos ao longo desse livro. Essa sensação interna de pertencermos ao gênero masculino ou feminino, bem como a capacidade de nos relacionarmos socialmente, denominada identidade de gênero, é muito natural para a grande maioria das pessoas. O termo identidade de gênero foi criado em 1964 pelo médico e psicanalista norte-americano Robert Stol- ler '. Essa sensação interna, para se formar adequada- 1. Robert Stoller, pesquisador norte-americano. Através da investi- gação psicanalítica, estuda, há quarenta anos, pacientes ínterse- xuadosetransexuais. 11 mente, precisa passar por muitas fases, onde entram fatores biológicos e sociais. Um exemplo extremo de inadequação da identida- de de gênero ao corpo biológico de nascimento são os transexuais. Para eles, o corpo "é de um sexo e a alma é do outro". A sexualidade começa a se definir no ato da. fecun- dação e, desse momento até a hora de nascer, passamos por transformações fisiológicas e bioquímicas, que "re- forçaram" a nossa estrutura masculina ou feminina. Durante esse período, se a produção de hormônios sexuais ocorreu no momento certo e com a estrutura. química correta, uma região do cérebro denominada hipotálamo recebeu um "banho" de masculínízação ou de feminilização. As células do hipotálamo são muito sensiveis ao androgênío ou ao estrogênio, que são hormônios sexuais masculinos e femininos, respectivamente. Dependendo da quantidade dessas substâncias presentes no hípotá- lamo, o indivíduo pode ser predisposto a manifestar certos padrões de comportamento, característicos de homem ou de mulher. O hipotálamo é um centro integrador e coordena- dor das emoções, está conectado com o sistema límbí- co e outras áreas do cérebro. É essa rede do cérebro que regula a vida emocional, modula o desejo sexual e comanda o funcionamento das glândulas que produ- zem os hormônios sexuais. Um "excesso" de atividade do hipotálamo não transforma ninguém num grande conquistador, pois até aqui estamos falando das nos- sas sensações. O relacionamento com as demais pessoas é regula- do por outra parte do cérebro, o neocórtex, também 12 chamado de "cérebro inteligente".O neocórtex matiza o sentimento amoroso com fantasias, é responsável pela sensação erótica, pelos tabus e até pela noção de culpa. O prazer que sentimos diante de uma obra de arte, ou ao ouvir uma bela música, tem seu ponto de partida nessa região cerebral. O neocórtex não funciona auto- nomamente, sendo atingido e influenciado por fatores sócio-culturais. Para alguns pesquisadores, a "força biológica", presente em todos nós, faz com que nasçamos com "uma intuição" de que pertencemos ao gênero masculino ou feminino. Os estudos a respeito da influência hormonal durante a vida intra-uterina, assim como sobre o papel do hipotálamo e do neocórtex, são recentes e não estão concluídos. O desenvolvimento completo dessa consciência na criança só se dará a partir de inúmeros outros fatores, como o tratamento recebido da mãe, ou de quem estiver em seu lugar, da família e da sociedade na qual ela vive. Menino ou menina? Essa é a pergunta imediata que parentes e vizi- nhos fazem quando uma mulher tem um bebê. Hoje, com o exame de ultra-som, o nascimento perdeu muito "de sua surpresa". Na maioria dos casos, ao nascer, não há dúvida, é um menino ou uma menina, pela simples observação de sua genitália externa. Porém, alguns bebês nascem com o sexo malformado, duvidoso. Uma menina normal mas que tenha um clitóris um pouco maior, parecendo um "pintinho", corre o risco de ser considerada um menino. Um bebê fêmea nascido de 13 9 meses de gestação poderá ter um clitóris de 7 a 10 milímetros, variando conforme seu pes02 . Constatado o sexo da criança, providencia-se o registro em cartório. Esse documento público vai confir- mar, perante a sociedade e para toda a vida, se a pessoa pertence ao sexo masculino ou feminino. Não é apenas esse documento que vai pesar na formação da identida- de de gênero masculina ou feminina, pois para isso contribuem muitos fatores. A partir do momento em que a criança é identificada e registrada como menino ou como menina, toda a sociedade vai se comportar em relação a ela de uma maneira particular e diferente. Menina ou menino? A mãe que traz nos braços uma menina, ou alguém que ela julga ser uma menina, trata a criança de forma mais cuidadosa, terna. Não faltam expressões como "fofura", "gracínha", "um doce", seguindo-se enfeites como lacinhos no cabelo, fitinhas. Se o filho é "homem", o tratamento é um pouco mais "duro", segura-se a criança com mais firmeza. Pela casa ouvem-se frases como "que menino forte", "como é es- perto", "puxou o pai". Os enfeites, quando existem, são azuis e discretos. Os pais, sem se dar conta, estão tentando dizer que homens e mulheres devem ser e se comportar de forma diferente. Um caso conhecido nos Estados Unidos mostra como a atitude dos pais influencia na formação da identidade de gênero, mesmo que no caminho inverso da constituição biológica da criança. 2. Pesquisa sobre o tamanho do clitóris em recém-natos fêmeas realizada por A. Ltwín, I. Aitin e P. Merlob na Universidade de Tel Avív, Israel. em' 1990. 14 No final da década de 60, uma mulher teve gêmeos saudáveis, dois meninos. Como é comum naquele país, os bebês passaram por uma circuncisão, popularmente conhecida como "operação de fímose". Um dos bebês não teve qualquer problema, mas o outro, durante a cauterização, teve o pênis ofendido e ficou sem o órgão. A equipe do psicólogo John Money acompanhou o caso. O que fazer agora? O menino não poderia crescer sem pênis e a feitura de um novo órgão não seria possível nessa idade. Os pais foram consultados e tomaram, em conjunto com a equipe de especialistas, uma decisão. O menino foi submetido a algumas cirurgias, a bolsa escrotal e os testículos foram retirados e, no lugar, moldada uma vulva para a saída da uretra. Depois disso e da devida preparação psicológica da família, a criança teve o seu registro alterado e passou a ser criada pelos pais como uma menina. Segundo John Money, essa criança, aos cinco anos, já tinha desenvolvido a consciência de pertencer ao gê- nero feminino e se comportava como tal. Quando adulta resolveria se "construiria" cirurgicamente um canal vaginal ou não. Shakespeare usou essa famosa expressão em outro contexto, mas "ser ou não ser" também se aplica quando falamos da sexualidade humana. E podemos adicionar a essa frase a palavra "completamente". Por volta dos 2 anos e meio, a criança 'Já sabe" que é um menino ou uma menina e não perde tempo com o assunto porque o mundo oferece caminhos muito claros para o homem e para a mulher. Na infáncia apenas não há amadurecimento neurológico e psicológico para en- tender e distinguir essa sensação. 15 Nos primeiros meses de vida desenvolvemos a cons- ciência sobre o nosso próprio corpo e vamos criando uma "identidade corporal". principalmente sobre os órgãos genitais. No bebê. a primeira "noção" de possuir uma genitália vem do ato de urinar. A genitália masculina é tocada e manuseada sem grandes problemas pelos meninos. Ela é visível, e a nossa cultura valoriza a sua exibição pelos garotos. Em nossa cultura. a genitália da mulher. mesmo enquanto criança. é algo proibido. misterioso. intocável. Na menina. o que se vê é a vulva. ou seja. os grandes e pequenos lábios. O cuidado dos pais é maior. e ela é ensinada a não tocar no sexo. a não introduzir nada (até para não romper o hímen) e a não exíbí-lo. Cada parte do nosso corpo tem uma sensibilidade própria. Ela não é a mesma na língua. na palma da mão. na orelha e nos órgãos sexuais. No entanto. para que a criança conheça o seu corpo é preciso tocá-lo. o que poderá lhe dar prazer. Essas sensações prazerosas. vindas do toque nos genitais, não devem ser confundidas com sensações eróticas. O menino, mesmo na mais tenra idade, pode ter ereção. o que não significa que ele esteja sentindo desejo sexual. Embora o contato da menina com sua genitália seja menor. os homens estão mais propensos a carregar dúvidas sobre a identidade genital3 . Como o relaciona- mento entre os meninos é mais livre, o efeito comparativo das genitálias é mais freqüente. É comum o garotinho querer ver o "pipi" do amiguinho para comparar com o seu. Reconhecer e sentir a nossa anatomia sexual tem grande importáncia para desenvolvermos a consciência de pertencermos ao gênero masculino ou feminino. 3. O conceito de identidade sexual (consciência que se tem do próprio sexo biológico) foi proposto por Charlote Wolff, médica alemã, sexólogae exístencialístaradicadanaInglaterra. Preferimos dar a esse conceito o nome de Identidade genital. 16 Quando nascemos temos boca. cordas vocais, ouvidos, vias neurológicas, mas não sabemos falar. Da mesma forma, nascemos com uma genitália masculina ou femi- nina. mas "não sabemos SER homem ou mulher". Isso precisa ser aprendido a partir de nós mesmos. com nossos pais, com a família e com a sociedade. Trata-se de um processo longo e a identidade de gênero mas- culina ou feminina só se evidenciará por completo com o surgimento dos caracteres sexuais secundários. na fase da adolescência. Nascemos sozinhos. mas não podemos crescer iso- lados de outras pessoas. A consciência que temos de pertencer ao gênero masculino ou feminino vem do comportamento dos pais. dos familiares e da sociedade. A isso, soma-se a percepção de nosso próprio corpo. É impossível. do ponto de vista social, que alguém cresça sem pertencer ao gênero masculino ou feminino. Pes- soas "neutras". socialmente falando. não existem. Nem mesmo os travestis. os transexuais ou os hermafroditas são pessoas neutras. uma vez que têm "almas" masculinas ou femininas. ou uma combina- ção das duas. Os sexos podem ser 11. mas as "almas" são apenas duas. Não estamos nos referindo aqui ao que hoje se diz "meu lado feminino" ou "meu lado masculino". Trata-se de uma sensação particular e mais profunda que leva ao comportamento social dife- rente. comoveremos na segunda parte deste livro. Existem relatos de casos em que uma mãe. desejan- do muito ter uma filha. ao ter um filho. passa a tratá-lo como menina. Esse tipo de atitude pode atrapalhar a formação da identidade de gênero da criança. Durante muito tempo. como parte da nossa cul- tura popular. muitas mães. principalmente em situa- 17 ção de doença ou de aflição, faziam promessas de vestir o filho como menina até uma certa idade - o que poderia ou não alterar a sua identidade de gênero. Os travestis são pessoas com identidade de gênero diferente da maioria, pois SENTEM-SE ora homens, ora mulheres. Os transexuais, no entanto, têm uma identi- dade de gênero bem definida, embora em desacordo com o seu corpo biológico. Até o momento, não se conhece totalmente como se dá o desenvolvimento da identidade de gênero e as causas de suas alterações. Não há uma regra geral. Uma família pode criar adequadamente um menino saudável e ele, no entanto, acabar crescendo com UMSENTIMEN- TO de que É uma mulher, e tudo fará para conseguir moldar para si um corpo feminino. Ele é um transexual. Existem também relatos de meninos que foram criados como meninas, mas, com a explosão hormonal da adolescência, afirmaram-se como homens. Cresce- ram, casaram-se, tiveram filhos, numa trajetória de vida absolutamente comum. A família é uma referência importante, porque o desenvolvimento da identidade sexual também se faz pela semelhança e pela diferenciação. Para meninos e meninas, a presença dos pais, portanto de um homem e de uma mulher, cria a consciência de que existem seres iguais e diferentes deles mesmos. Estamos nos referindo a uma estrutura familiar convencional, sem discutir se esse modelo é válido ou não. Mesmo quando a formação familiar é pouco habi- tual, como no caso de duas lésbicas que criam as crianças nascidas de uma ou da outra, o desenvolvimen- to da identidade de gênero se dá adequadamente. Essas crianças sempre terão algum tipo de contato com a figura masculina, seja por meio dos pais, tios ou vizinhos. 18 O que é uma família? São pessoas que convivem, dividem o mesmo espaço numa casa, têm afinidade por parentesco ou não. Fazem parte da família os pais, tios, avós, irmãos, a empregada e até amigos que possam temporariamente estar morando na mesma casa. Esse núcleo familiar é de fundamental importãncia para o desenvolvimento da identidade de gênero, pois aí nasce e cresce uma criança. Chamaremos esse núcleo de Ma- triz de Identídade''. Mesmo na fase de gestação, o relacionamento da mãe e do pai com o bebê que ainda está no útero materno não é igual. A mãe e seu filho são um todo. A criança não "está" dentro dela, faz parte dela. Para o pai, o futuro filho ou filha existe apenas na sua imaginação. É extre- mamente difícil para um homem ter uma idéia aproxi- mada do que sente uma mulher quando está grávida, porque esta é uma das poucas experiências exclusivas do ser humano feminino. As outras são amamentar, menstruar e conceber. O relacionamento da mãe com a criança é primor- dial e obedecerá algumas etapas de desenvolvimento psicológico, a partir do desenvolvimento biológico. Para o bebê, ele e sua mãe são um todo. É como se o mundo tivesse se transformado num imenso útero e continuas- sem existindo apenas ele e ela. Aos.poucos, o bebê "percebe" que há "algo dife- rente". E como se ele pensasse assim: "Eu sou dife- rente dela, mas somos tão ligados que não nos sentimos separados". Vamos continuar "dando a palavra" a esse bebê que todos nós fomos um dia, para que ele "conte" a sua experiência: 4. O conceito de Matriz de Identidade, proposto por J. L. Moreno, refere-se ao lugar onde a criança se insere desde o nascimento. Esseconceitofoirevistopelomédico brasileiro,doutoremPsiquía- tr í a pela USP e psicodramatista José Fonseca. 19 "Aos pouquinhos vou me desligando dela e passo a perceber que EU existo em separado de minha mã~. Começo a me dar conta do meu corpinho, meu pe, minhas mãos, minhas sensações. Ao mesmo tempo, noto que ela é outro ser e o corpo dela é diferente do meu. Eu sou eu, e ela é ela. Mas, que engraçado, só consigo me perceber .e percebê-la como se eu estivesse "num corredor psícoló- gíco", onde só cabem eu e outra pessoa. Para um entrar o outro precisa sair. Se o outro é minha mãe, sou eu e ela. Se o outro é meu pai, sou eu e ele. Eu sei, é um pouco esquisito mesmo. Acho que é assim para todo mundo. Nesse "corredor" estranho não cabe um terceiro. Também não foi fácil, mas, de tanto olhar, começo a me dar conta de que existe um corpo macho e um corpo fêmea. E um dos dois é igual ao meu. Cheguei a essa conclusão pela maneira como me tratam e como os dois, meu pai e minha mãe, se comportam. Tudo isso foi possível porque tenho tempo de sobra. Não posso fazer muita coisa fora do berço, fico o tempo todo olhando, olhando". O tempo passou um pouco, o engatinhar e o esfolar dos joelhos ficou para trás. O bebê agora é uma criança, que há algumas semanas apagou duas velinhas no bolo de aniversário. Vamos deixá-la falar: "Agora as coisas estão mais fáceis. Posso andar pela casa, embora viva batendo a cabeça nas coisas. A mesa parece que está tão longe, dou um passo e pimba. Um galo. Tenho um bonequinha e às vezes finjo que sou a mãe dela, do mesmo jeito que minha mãe faz comigo. Alguma coisa dentro de mim diz que sou uma menina, mas eu não sei bem dizer que coisa é essa. Os psicólogos devem saber, pois vivem estudando as pes- soas por dentro. Tenho a impressão de que os garotos não sentem a mesma coisa. São tão diferentes de mim. Acho que também sentem alguma coisa de meninos. 20 Quando nasci, me lembro bem, trouxe duas coisas dentro de mim: a possibilidade de ser espontãnea e de ser criativa. E uma coisa com nome estranho, "tele" (como se usa na palavra televisão), que é a capacidade de perceber as pessoas. Quando meu pai olha feio para mim, ele não precisa dizer nada. Já entendi tudo! Faço bico de choro, fico quieta, e ele tira a carranca do rosto. Dizem que isso entre nós dois é uma tal de relação télica." Vamos voltar ao trabalho, nossa amiguinha tem mais o que fazer. De acordo com as psicólogas gaúchas Bebeth Fassa e Marta Echeníque', o relacionamento principalmente da mãe mas também do pai é diferente se estão criando um menino ou uma menina. E esse comportamento, por vezes é consciente, ou intuitivo e inconsciente. Quando se trata de um menino, embora ele se sinta fundido à mãe, ela, aos poucos, procura afastá- lo. Ela teme, inconscientemente, um sentimento in- cestuoso ou que ele cresça como mulher. Isso não é rejeição. Apenas a mãe deseja que seu filho desenvolva a sensação de que pertence ao gênero masculino. Com isso o garoto começará a se sentir macho (no corpo) e masculino (na mente). Quando a mãe tem uma filha, os sentimentos são outros. Ela a manterá por mais tempo perto de si, pois são criaturas iguais. É como se uma filha "mulher" fosse uma continuação de si mesma. A situação se inverte naturalmente com o pai e seu filho ou filha. Por volta dos 2 anos e meio, a criançajá possui uma identidade genital. Ela "sabe" que tem pênis e bolsa escrotal, ou vulva, vagina e clitóris. SENTEM-SE MENI- 5. As psícológa s e psicodramatistas Bebeth Fassa e Marta Echení- que estudaram o desenvolvimento do ser humano levando em conta o gênero a que pertence a criança, sua relação com os pais, e tendo como foco o "papel de gênero", em seu livro Poder e Amor. 21 NOS OU MENINAS. Sua identidade de gênero está sela- da e será imutável para toda a vida. 11 ·ESCALA DE IDENTIDADE DE GÊNERO (SENTIR-SE COMO) Segundo os estudiosos, por volta dos 2 anos e meio esta identidade é estabelecida e depois é imutável, ou seja, náo se mudará mais de A para C ou E. Até essa idade é possível educar-se alguém para sentir-se em A ou E, independentemente de seu sexo biológico. Quemsomos, afinal? A resposta a essa pergunta poderá ser mais fácil ou mais dífícil, dependendo de como vivemos cada uma das diversas fases, sem esquecer que muitas acontecem ao mesmo tempo. Pessoas que cresceram em ambientes sadios, com liberdade e podendo exercer toda a sua espontaneida- de e criatividade, talvez respondam com mais rapidez e segurança. Crescem a violência urbana e a incerteza econômi- ca, enquanto os meios de comunicação despersonalizam culturas e embotam os sentimentos. Num país como o Brasil, onde nem mesmo as necessidades básicas de sobrevivência são atendidas, é quase um "luxo" esperar que a grande maioria das pessoas possa crescer de maneira criativa e espontánea. 3 ~abemos quem somos, mas por que nos comporta- mos desta ou daquela maneira? Mais uma vez tudo parece muito natural. A menos que alguma coisa não vá bem. Quando falamos em identidade de gênero, nos refe- rimos ás sensaçôes internas, que estão dentro de cada um de nós. Essas sensações podem vir para fora ou não. SENTIMOS pertencer ao gênero masculino ou feminino, que SOMOS homens ou mulheres. Papel de gênero nada mais é que o nosso compor- tamento frente ás demais pessoas e á SOCiedade como um todo. Nesse caso, temos "uma maneira de ser" masculina ou feminina. É preciso haver uma perfeita sintonia entre o que sentimos e nossa maneira de agir. Do contrário, surgirá um conflito entre a nossa identi- dade de gênero e o papel que desempenhamos. "O papel é a forma de funcionamento que o indiví- duo assume num momento específico, ou quando reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou MULHER o MULHER um pouco homem c HOMEM E MULHER HOMEM um pouco mulher A HOMEM 22 23 objetos estão envolvidos"l. Ao longo de apenas um dia podemos desempenhar o papel de pai, em casa, de funcionário, no escritório, e de esportista, à noite. Somos sempre a mesma pessoa. No entanto, a maneira como nos comportamos com os demais não é a mesma, dependendo da situação, embora essas formas de comportamento tenham a nossa marca particular. Como definição de papel, podemos afirmar que se trata da "unidade de conduta que se dá entre duas ou mais pessoas, o que é observável e resultante de elemen- tos constitutivos da singularidade do agente e de sua inserção na vida social". Os nossos primeiros papéis têm sua origem na família, como vimos no capítulo anterior. O meio em que nascemos, somos criados e nos desenvolvemos será a base psicológica para o desempenho de todos os papéis. Nos primeiros meses de vida, o bebê tem apenas esboços de papéis. Esses papéis estão relacionados com as suas necessidades fisiológicas, como se alimentar. urinar, defecar. Para atender suas necessidades existe a mãe, ou a substituta, que lhe dá amor e carinho, ajudando-o a desenvolver-se. O atendimento a essas necessidades pela mãe é de fundamental importância. Cada cultura e cada socieda- de deixam claro como devem se comportar as mães nesses casos e até mesmo as diferentes formas de ama- mentar ou trocar um menino ou uma menina. 1. O termo "papel", proposto por J. L. Moreno, em inglês role, vem do latim rotula. Isso porque na Grêcia antiga, para as apresenta- ções teatrais, o texto era lido em "rolos" de papel. Moreno iniciou o desenvolvimento desse conceito, que pressupõe inter-relação e ação em todas as dimensões da vida, como o nascimento, a experiência vívencíada do individuo e a sua participação na sociedade. 24 Que normas são essas das quais ninguém fala, e que diferenças existem no tratamento da menina e do menino? São "regras" sobre as quais pouco pensamos porque estão incorporadas em nosso dia-a-dia. Esse tratamento "diferente" para meninos e meninas está nos gestos da mãe, na maneira de pegar a criança no colo, de dar o seio ou a mamadeira, e tantos outros. A higiene dos genitais do bebê, que é feita pela mãe, tem muita importáncia para o desenvolvimento da iden- tidade genital (a sensação de que se tem pênis ou vagina), da identidade de gênero (se sente pertencer ao gênero masculino ou feminino) e para a formação do papel de gênero, ou seja, se esse bebê, no futuro, terá um desempenho social masculino ou feminino. Isso acontece porque é no órgão genital do menino ou da menina que vai desembocar a uretra, canal por onde passa a urina. Dessa maneira, todas as vezes que a mãe faz a higiene da criança. ela está lhe dando a consciência da genitália que possui. A atitude do adulto diante dos órgãos sexuais difere dependendo do que "sentem" e "pensam" sobre eles. A mãe, ao amamentar. faz isso com sentimentos e emoções. O bebê, por sua vez, ao ser alimentado, não apenas ingere o leite, mas percebe o que há de mais profundo no ato realizado pela mãe. Quando esse ato está envolvido de muito amor, não é por acaso que as mães procuram, intuitivamente, os locais mais calmos e silenciosos para amamentar. Nesse momento. o bebê está recebendo e "reagindo". a seu modo, ao carinho materno. Essa "reação" do bebê às emoções da mãe também acontece na hora do banho ou da fralda limpinha. 25 Aos poucos, a criança aprende a falar. Seus movi- mentos tomam-se coordenados e ela reage diante de situações novas. Na medida em que ela percebe o que se passa entre as outras pessoas e a diferenciar a realidade da fantasia, começa a desenvolver-se o que chamamos de papéis sociais de gênero. "A função de realidade lhe é imposta por outras pessoas, suas relações, coisas e distãncias nos espa- ços, e atos e distãncias no tempo,,2. Assim, a criança aprende como deve se relacionar com seu corpo e também que atitude deverá tomar em cada papel que estiver desempenhando. Nos papéis sociais de gênero, entra em operação a função de realidade. A criança tem consciência de que é filho, sobrinho, neto. De que tem pais, avós, família, coleguinhas de rua ou de creche. A partir do momento em que a criança sabe o que é realidade, conquista os chamados papéis de fantasia. Esses papéis correspondem à dimensão mais indi- vidual da vida psíquica ou psicológica do ser humano. Esse é o momento em que a criança "viaja" com seus brinquedos, finge ser o herói da 'IV ou personagem de sua própria criação, com a consciência de que tudo isso é fantasia, é de brincadeira. Por volta dos 2 anos e meio, a criança já desenvol- veu, em situações de crescimento normal, uma identi- dade de gênero (já "sabe" que é um menino ou uma menina). Isso lhe permite relacionar-se com as pessoas e até mesmo assumir outros papéis. Nessa fase, a me- ninajá pode dizer "sou a mamãe" enquanto acaricia uma boneca. 2. Refere-se ao desenvolvimento da Matriz de Identidade, na fase denominada por Moreno de "brecha entre fantasia e realidade". 26 Na verdade, todos os papéis são complementares. Um não existe sem o outro. O modo de ser, a identi- dade de um indivíduo, decorre dos papéis que ele vai desenvolvendo ao longo de sua existência e de suas experiências. Não existe o papel do senhor se não existir o do servo, nem o do chefe sem o do funcionário. As contradições, crises e transformações nas relações humanas através dos papéis de gênero fazem parte do desenvolvimento de cada um de nós. Quando a criança "percebe o mundo" não apenas pelos olhos, pelos ouvidos e os outros órgãos dos senti- dos, ela começa a distinguir objetos materiais de seres humanos. Aos poucos, o fator inato chamado tele3 vai se desenvolvendo. Esse fator faz com que percebamos a outra pessoa, ao mesmo tempo que somos e nos senti- mos percebidos. Por volta dos seis meses, a criança já é capaz de reconhecer um sorriso num rosto humano e "correspon- der" sorrindo. Esse sorriso do bebê também é percebido pelas outras pessoas que estão a sua volta. Isso é possível graças ao fator tele. O encontro télico sugere que as pessoas são capazes de colocar-se uma no lugar da outra, realizando a inversão de papéis.Existe algo entre as pessoas que a maioria das teorias psicológicas não aborda, que é a relação co-in- 3. Fator Tele: J. L. Moreno afirma que todos os seres nascem com a potencialidade de perceber o mundo, o que vai se desenvolvendo desde os primeiros meses e se aprimorando ao longo da vida. É a capacidade de perceber a si próprio (autotele), perceber o outro de forma objetiva. e sentir-se percebido, numa comunicação de mão dupla. O fator tele é um dos pontos principais da teoria desenvol- vida por Moreno. 27 conscienté. Essa relação ocorre quando alguma coisa de mim passa para o outro sem que eu mesmo saiba. Como há uma relação co-inconsciente entre todas as pessoas, a mãe pode ter um desejo ou uma fantasia inconsciente em relação ao bebê. Isso, de alguma forma, será captado por ele e ficará registrado em seu inconsciente. O co-inconsciente pode ser grupal, como na comu- nicação entre as pessoas que estão juntas, convivendo em família. O melhor exemplo que se pode dar é o sexto sentido da mãe. Ela, de repente, diz que está acontecen- do alguma coisa com o seu filho, distante, e o fato se confirma. Mãe e filho têm um relacionamento muito próximo. Essa proximidade desenvolve muito a relação co-incons- ciente. Isso também acontece com o pai, que muitas vezes tem uma relação com seus filhos tão próxima quando a da mãe. () ()ISVAI2() ()() I2I:L{)C3I() O início do desempenho do papel de gênero, ou nosso comportamento social, se dá no momento .em que nos percebemos enquanto menino ou menina. E a fase em que o menino tem consciência do seu pênis, passan- do a ter uma identidade genital, e percebe que pertence ao gênero masculino. A menina vive o mesmo processo, e os dois passarão a ter comportamentos masculino e feminino, respectivamente. O desenvolvimento desse papel de gênero precisa ser o mais livre possível, e é de suma ímportãncía. por 4. Co-inconsciente: Para Moreno, esse estado pressupõe a relação entre duas ou mais pessoas, vivências, desejos, sentimentos e até fantasias que são comuns e se dão em "estado inconsciente". Esse estado se daria concomitantemente aos "estados co-conscientes" de comunicação entre as pessoas. 28 ser o papel-base. Ele servirá de eixo para o desenvolvi- mento de todos os outros papéis de gênero, inclusive o do papel afetivo-sexual. Na Infância, esse desenvolvimento é muito lento. Primeiro, a criança se relaciona com a mãe e com o pai, depois com os demais familiares, com a escola, com a sociedade. A cada momento os seus papéis de gênero vão sendo confirmados. Quando chega a adolescência, que muitos chamam de "aborrescência", o processo "explode" e se torna acele- rado. Então, rapidamente, em dois ou três anos, aquela criança, que tinha um papel degênero tranqüilo, pode ficar muito perturbada com a eclosão dos hormônios. Surgem os caracteres sexuais secundários, como barba nos rapazes e seios e menstruação nas moças, além do timbre de voz diferenciado. Também os carac- teres sexuais primários, os genitais externos, se trans- formam. O pênis e a bolsa escrotal se desenvolvem, a vulva toma outra conformação, e é como se aquele corpinho, que até então era igual para os dois sexos, com exceção da genitália, passasse a ter uma outra moldura biológi- ca. No entanto, só será possível ser um homem ou uma mulher, com os papéis de gênero bem desenvolvidos, na idade adulta. Em que momento podemos ter certeza sobre quem somos? Essa pergunta crucial para muitos de nós só pode ser respondida se a nossa identidade de gênero e nossos papéis de gênero foram completamente desenvolvidos, de tal maneira que exista uma total sintonia entre o que sentimos e a maneira como exteriorizamos esses senti- mentos, por meio do comportamento e das atitudes. 29 Existem alguns aspectos, a maioria de ordem cul- tural, que podem definir o papel de gênero masculino e o papel de gênero feminino. As diferenças entre as genitálias externas masculina e feminina e entre os caracteres sexuais secundários que surgem na adoles- cência são evidentes e não necessitam ser comentadas. Outro aspecto é a saúde do corpo, a aparência fisíca, a semelhança existente entre homens e mulheres muito magros ou obesos. Os homens e as mulheres saudáveis têm condições de mostrar mais claramente a sua mas- culinidade ou a sua feminilidade. Os cuidados com o corpo que os meninos e as meninas aprendem a ter são completamente diferentes. A menina aprende a escovar o cabelo, desde cedo usa xampu e outros cremes, passa esmalte nas unhas, começa a se embelezar. O menino limita os cuidados com o corpo à higiene. Na medida em que ocorre o desenvolvimento da sociedade, a transmissão desses papéis vai se tornando mais elástica e, felizmente, menos rígida. As pessoas aos poucos se dão conta de que não é um creme para a pele que o garoto usa, benéfico para a saúde, que vai, no futuro, torná-lo menos homem. Muitas dessas mudan- ças devem-se ao movimento feminista que começou nos Estados Unidos na década de 60 e chegou ao Brasil na década de 70. A postura do corpo, a gesticulação, tudo isso é "ensinado" muito cedo. A criança aprende muito pela imitação do comportamento dos pais. Assim, a menina aprende que não deve sentar de pernas abertas, não pode mostrar a calcinha. O menino é "treinado" de outra forma, e não há tanta preocupação com seus modos, limitando-se ao que se entende por boa educação. Como podemos ver, todos esses aspectos são rela- tivos a como um homem e uma mulher lidam com o seu corpo e o seu psiquismo e como se comportam em nossa sociedade. Isso vale para o modo de falar, a abordagem dos assuntos, o tipo de roupa e até o uso dos enfeites. 30 O homem não deve chorar, não deve exteriorizar muitos de seus sentimentos, porque isso seria uma característica feminina. A mulher, por sua vez, não pode demonstrar força nem determinação, pois isso é próprio do comportamento "masculino". Essa situação acaba criando dois seres pela metade. Hoje, a mulher já pode mostrar a sua força, mas o homem ainda não conquistou o direito de expor a sua fragilidade. E menos ainda de expor suas fraquezas. Nem sempre os papéis de gênero assumidos pelo indíviduo estão em consonância com os seus atributos fisicos. Um caso muito conhecido é o da modelo Roberta Close, que nasceu biologicamente homem mas desen- volveu papéis de gênero totalmente femininos. Se não conhecêssemos a sua história, diríamos sempre tratar- se de uma mulher, e nâo de um homem. O desempenho dos papéis de gênero são estabele- cidos pela sociedade. Existe, nessa sociedade, sempre uma linha mais ou menos comum a todos os homens e mulheres, em termos de comportamento. As diferenças vâo acontecer de cultura para cultura, ou de época para época. No mundo, a maior parte das relações entre as pessoas é de gênero e pouco envolve a sexualidade propriamente dita. Se considerarmos a grande quanti- dade de papéis que assumimos, o lado sexual só vai se manifestar com uma pessoa que amamos ou desejamos. No entanto, nossa cultura tende a erotizar muitas dessas relações. É fácil hoje ver anúncios dos mais diferentes produtos, de cigarros a peças para automó- veis, relacionados com situações em que estão envolvi- dos o sexo e "um convite ao prazer". É também comum ouvir que é impossível a amizade entre um homem e uma mulher, porque nessa relação estaria sempre presente uma segunda intençâo de cará- ter sexual. Isso nâo é verdade e, se ocorre na cabeça dessas pessoas, é porque está havendo uma mistura de 31 papéis: o papel de amigo (de gênero) e o papel afetivo-se- xual (relacionado ao sexo). É evidente que duas pessoas amigas podem fazer amor ou até se apaixonar, mas, nesse caso, estarão assumindo um novo papel. Esse amor pode, e até deve, conter a amizade, mas essas duas pessoas não estarão mais desempenhando o papel de amigos. 111 .ESCALA DE PAPÉIS DE GÊNERO (PAPELSOCIALI Nesta escala. as pessoas podem ir e vir. independente- mente do seu sexo biológico e de sua identidade de gênero. Os papéis de gênero podem ser treinados e desenvolvidos. Os atores profissionais mostram. atra- vés de sua arte. esta possibilidade. Os transexuais masculinos podem ir de A. passarpor B. C. e adaptar-se em E. O mesmo pode ocorrer com as transexuais femininas. no sentido inverso da escala. Algumas pes- soas. como por exemplo os travestis. podem passar parte do dia em A e outra em E. independentemente do sexo biológico. MASCUUNO A Afeminado MASCULINO E FEMININO c FEMININO Mascullnlzado FEMININO D ~ós podemos definir orientação afetivo-sexual como a sensação interna de que temos a capacidade para nos relacionarmos amorosa ou sexualmente com alguém. Ela é parte da identidade sexual, algo que pertence ao nosso mundo interno, ou ao psicológico. O termo "orientação sexual" é mundialmente usado para designar se esse relacionamento vai se dar com alguém do sexo oposto, do mesmo sexo, ou com pessoas de ambos os sexos. Preferimos acrescentar ao termo a palavra "afetivo" para deixar claro que esse relaciona- mento não é só de ordem sexual, mas também envolve o amor e o afeto. E os afetos podem ser de natureza positiva ou negativa. E também porque nem sempre afeto e sexo caminham de mãos dadas. A orientação afetivo-sexual está vinculada aos sen- timentos que existem dentro de todos nós em relação a outra pessoa. Entre esses sentimentos estão o desejo e o prazer sexual, as sensações do orgasmo, as fantasias sexuais, os sonhos eróticos, o amor e a paixão. Esses sentimentos têm seus contrários, como o ódio, a repulsa, a frieza, a indiferença e todas as outras 32 33 emoções que perpassam as relações humanas. Também pode ser acrescentado à orientação afetivo-sexual o sen- timento de se ter a capacidade da reprodução. Uma pessoa pode ser fértil, mas carregar a sensação de que não pode procriar, e muitas vezes ocorre a situação exatamente inversa. Não se trata, como vimos em capítulos anteriores, da sensação interna de que pertencemos ao gênero masculino ou feminino e nem mesmo se o nosso com- portamento, nas diversas atividades da vida, é masculi- no ou feminino. Estamos falando agora de uma questão tão específica quanto importante, que é a capacidade de escolher a pessoa que vamos amar ou com quem teremos um relacionamento sexual. As atuais pesquisas científicas consideram que a orientação afetivo-sexual é construída, psicologicamen- te, na primeira infância, até os quatro ou cinco anos de idade. No entanto, somente na adolescência passamos a ter consciência desses sentimentos, que se confirmam ou não na idade adulta. Quem não se lembra de suas grandes paixões de adolescente, muitas impossíveis, "amenizadas" com memoráveis bebedeiras? Relembradas anos depois com os olhos da realidade parecem não ter significa- do algum. a tempo é sábio e tudo acontece na hora certa. Com o despertar do desejo sexual na adolescência, a partir da explosão hormonal própria da idade, começamos a ter consciência de que nossos sentimentos amorosos e emoçôes dirigem-se para alguém do sexo oposto, para alguém do mesmo sexo ou para pessoas de ambos os sexos. Essa consciência nos revela como heterossexual, homossexual ou bissexual, o que poderá ou não ser confirmado mais tarde. 34 Anteriormente, ainda na infância, todos os senti- mentos, considerados prévios ou primários à orientação afetivo-sexual, são indefinidos ou discretos, e dos quais, nessa fase, temos pouca consciência. Não é difícil encon- trar casos de crianças, principalmente meninos, que se "apaixonam" por uma babá ou uma prima de mais idade. Mas, nessa "paixão", está ausente o componente erótico e, conseqüentemente, o desejo sexual. Na infáncia, desde os 4 ou 5 anos até a adolescência, é como se nós passássemos por um período de latência em relação a esses sentimentos. Na realidade, esses sentimentos ainda não emergiram. Na adolescência eclodem os hormônios sexuais, disparados pelo relógio biológico, o que pode ocorrer, conforme a pessoa, aos 10, 11, 12 anos ou até mais tarde um pouco. A explosão desses hormônios faz surgir os caracteres sexuais secundários. A orientação afetivo-sexual pode ser básica ou cir- cunstancial. Uma pessoa pode ser basicamente heteros- sexual, ou basicamente homossexual, mas somente na idade adulta terá essa certeza. No período da adolescên- cia, quando essa revelação acontece, a própria pessoa pode não ter muito claro qual é, afinal, a sua orientação. Mesmo na idade adulta, essa orientação pode ser temporária, dependendo das circunstáncias da vida. Em ambientes onde ficam confinadas por longo tempo pes- soas do mesmo sexo, como presídios, um indivíduo poderá ter um sentimento ou um comportamento hete- rossexual ou homossexual, retornando a sua orientação básica assim que a situação de vida se modifique. A bem da verdade, todos nós podemos "ser" heterossexuais ou "estar" heterossexuais, "ser" homossexuais ou "estar" homossexuais. 35 o mundo, em meados do século passado, foi dividi- do pela Medicina em pessoas heterossexuais e homos- sexuais. A partir de 18691, momento em que a homossexualidade, como comportamento, ganha esse nome, essa orientação afetivo-sexual entra para a Medi- cina como algo patológico ou doentio. Os sentimentos e os comportamentos heterosse- xuais e homossexuais, no entanto, são tão velhos quanto o mundo. Desde que o homem existe, esses sentimentos estão presentes, sempre aconteceram em todas as socie- dades e em todas as culturas, independentemente de serem primitivas ou avançadas. O fato é que até a metade do século passado não havia uma preocupação em considerar a homossexua- lidade como doença. Desde então, os homens passa- ram a ser categorizados como sendo normais os heterossexuais e patológicos os homossexuais. Dessa forma, a Medicina, a Genética, a Sociologia, a Antro- pologia passaram a estudar a orientação afetivo-sexual dos homossexuais. Na medida em que a grande maioria das pessoas tem uma orientação heterossexual, perto de 90% da população, isso foi considerado como o normal, e a homossexualidade, como o desvio. Essa visão levou as pesquisas a sempre se dirigir para a busca das "causas" da orientação afetivo-sexual homossexual. A Ciência pa- rece ter-se esquecido de perguntar quais são os mecanis- mos que levam uma pessoa a ser heterossexual. 1. Até 1869 a relação afetivo-sexual entre homens era objeto de estudo do campo da Filosofia, da Religião e do Direito. Naquele ano, quando o 11 Reich germânico havia introdl;lzido essa forma de sexualidade no código penal como sendo passívelde pena de morte, o médico húngaro Karoly Benkert passou a denominar esse com- portamento como "homossexual" e a defini-lo como de natureza congênita. Com isso, a homossexualidade deixou de ser crime e começou a serestudada pelaMedicina como "umadoençamental a ser tratada". Existem muitas teorias psicológicas sobre como se dá a construção da orientação afetivo-sexual, o que quer dizer que nenhuma delas é definitiva. As teorias desen- volvidas por Freud no ínícío do século procuram explicar a orientação afetivo-sexual como sendo algo que se estabelece a partir do relacionamento da criança com os pais, nos primeiros anos de vida. De acordo com Freud, nesse estágio de desenvolvi- mento, a criança experimentaria sentimentos incons- cientes de "desejo sexual" em relação a um dos pais, juntamente com sentimentos de "rivalidade", também inconscientes, para com o outro, e vice-versa. Para o médico-psiquiatra e psicodramatistaJosé Fon- seca, a criança, após manter uma relação apenas e exclu- sivamente com a mãe, ou só com o pai, se dá conta de que os dois, pai e mãe, têm um relacionamento entre si. Nesse momento, de acordo com Fonseca, que faz uma releitura do desenvolvimento da Matriz de Identi-dade ou núcleo familiar proposta por Moreno, a criança entra na chamada "crise da triangulação", podendo sentir-se rejeitada ou não, dependendo de como se dá a intercomunicação entre os três. A resolução dessa crise pode ser a criança aceitar que ela não é o centro do mundo, que as outras pessoas têm relacionamentos entre si, independentemente dela, o que não significa que ela receberá menos afeto por isso. Superada essa crise, ela estará pronta para relacionar-se com as demais pessoas, entrando na fase da socialização. Tudo isso acontece com a criança de forma incons- ciente, e por volta dos 5 ou 6 anos ela já pode ter resolvido essa crise. Nessa fase, a criança tem como primeiro modelo o relacionamento entre um casal, ge- ralmente heterossexual. E esse primeiro modelo poderá servir como ponto de partida para seus relacionamentos afetivos e sexuais no futuro. 36 Ronaldo Pamplona da Costa Os Onze Sexos 37 Acreditamos que, do ponto de vista psicológico, o primeiro passo para a construção da orientação afetivo-sexual é a definição da identidade de gênero. Antes de "sabermos" para quem dirigiremos nossos afetos e nossas emoções de cunho sexual, nós preci- samos saber se somos uma pessoa do gênero mascu- lino ou do gênero feminino. Esse é o primeiro passo, mas não o determinante. O segundo passo importante para a orientação afeti- vo-sexual é a resolução da crise da fase da triangula- ção, a partir do relacionamento da criança com o pai e com a mãe. O fato é que as teorias psicológicas não explicam, para a Ciência, como um todo, o modo como isso acon- tece. Os cientistas que desenvolvem seu trabalho de pesquisa sob um ponto de vista mais biológico ou social não aceitam que só isso explique a construção da orien- tação afetivo-sexual. Nos últimos tempos, cientistas especializados em Biologia e Genética desenvolveram estudos que pudes- sem indicar uma predisposição inata para a homosse- xualidade, mas nenhuma dessas teorias conseguiu ser conclusiva para explicar como se determina a orientação afetivo-sexual. Em agosto de 1991, o pesquisador norte-americano Simon LeVay publicou um importante artigo na revista Science. Nesse trabalho, o pesquisador mostra as dife- renças de tamanho de um determinado grupo de células que pode ser encontrado no hipotálamo, a região do cérebro responsável pela elaboração das emoções e dos sentimentos eróticos. Com base nesses estudos preliminares, Simon Le- Vay passou a estudar esse grupo de células cerebrais obtidas de autópsias de três grupos de indivíduos. Ao 38 todo, foram realizadas 41 autópsias de pacientes faleci- dos em decorrência da Aids, dentre os quais estavam mulheres, e homens homo e heterossexuais. O pesquisador concluiu que essas células estuda- das eram de tamanho menor nos homossexuais se . comparadas com as obtidas das mulheres e dos homens heterossexuais, o que indicaria alguma relação entre a conformação celular do hipotálamo e a orientação afeti- vo-sexual. Nessa pesquisa publicada por LeVay, ele não havia obtido material de mulheres lésbicas e também não descarta alguma implicação da "causa mortis" relacio- nada com a Aids no tamanho das células. Richard Pillard, professor de Psiquiatria da Uni- versidade de Boston, nos Estados Unidos, desenvolveu um estudo com gêmeos idênticos (unívítelínosl. com- parando-os com os não-idênticos (bivitelinos). Ele mostrou que existe uma incidência maior de homos- sexualidade nos dois univitelinos, mesmo que criados por famílias diferentes, do que no caso dos gêmeos não-idênticos. Isso faz pensar que poderia existir algo de genético determinando a orientação afetivo-sexual das pessoas, uma vez que os gêmeos idênticos têm a mesma configuração genética. Em julho de 1993 a revista Science publicou um artigo sobre uma pesquisa que estava sendo desenvol- vida pelo Instituto Nacional do Cáncer dos Estados Unidos, sob a coordenação do professor Dean Hamer. Hamer selecionou 76 homens homossexuais, e pas- sou a estudar seus familiares paternos e maternos. O resultado do estudo mostrou que entre os familiares paternos do pesquisado havia a incidência de 2% de pessoas homossexuais, índice que crescia para 7,5% quando se tratava do lado matemo. Isso levantou a hipótese de que a homossexualidade estaria vinculada a um fator genético do lado matemo, mais diretamente relacionado com o cromossomo x. 39 IV ·ESCALA DE ORIENTAÇÃO AFETIVO·SEXUAL (DESEJO) Uma pessoa, qualquer que seja sua orientação afe- tivo-sexual, só será feliz se estiver em sintonia e em paz consigo mesma. A partir da idade adulta estaremos, basicamente, em um segmento da escala. Entretanto, o deslocamento ao lon- go da escala é possível e dependerá dafase da vida, do momento psicológico e das circunstâncias sociais. Por exemplo, ir de A até E e voltar ao seu ponto básico e vice-versa. Ou., ainda, de A para C, de D para A e assim por diante. Ao nível das fantasias e dos sonhos o percur- so de cada um através de todos os segmentos poderá ser livre. O deslocamento do desejo básico não significa que o indivíduo viverá obrigatoriamente relações ao nível do papel afetivo-sexual pois. para muitas pessoas. este sentimento é passível de ser "controlado". A equipe de Hamer também selecionou, posterior- mente, 40 pares de irmãos homossexuais, que não tinham características semelhantes. Dentre essas 40 duplas, 33 delas, ou seja, 82,5%, tinham a mesma seqüência de DNA (a substância dos genes) em uma parte específica do cromossomo x da mãe. A partir desses dados ele levantou uma hipótese, a ser confirmada, de que alguns homossexuais apresen- tariam uma predisposição genética para ter essa orien- tação. O estudo de mulheres lésbicas não mostra os mesmos resultados e ainda não foi concluído. Dean Hamer deixa claro que seu achado poderá mostrar uma predisposição ou tendência, para esse comportamento. Como se trata de tendência, ao longo da vida ela será ou não confirmada, dependendo de inúmeros outros fatores. Preferimos considerar que as origens da orientação afetivo-sexual no ser humano seriam fruto de uma gama de fatores que podem ser de ordem orgãnica (neurológica ou genética), psicológica, e social, ainda não totalmente compreendidas e variando de pessoa para pessoa. O casal de pesquisadores norte-americanos Mas- ters e Johnson2 afirmou em 1979: "Até que se conheça mais sobre as origens da heterossexualidade é dificil acreditar que um entendimento significativo seja atingi- do. acerca das origens da homossexualidade". Somos seres dotados de inteligência, e é impor- tante que descubramos como e por que nos compor- tamos desta ou daquela maneira. No mínimo para nos entendermos melhor e vivermos mais saudáveis, do ponto de vista biológico, psicológico e social. 2. O médico William Masters e a psicóloga Vírgínía Johnson são pesquisadores norte-americanos especializados no estudo dase- xualidade. O livro do casal, Conduta Sexual Humana, lançado em 1966, é um marco na sexologia moderna. Masters e Johnson estudaram em laboratório relações sexuais de casais hetero e homossexuais. HETEROSSEXUAL HETEROSSEXUAl. fOOSEXUI.l. A BISSEXUAL c HOMOSSEXUAl. HmoossEXlW. o HOMOSSEX\W. 40 41 --Quem nunca viveu uma paixao, nunca vai ter nada não", dizia o poeta Vinicius de Moraes. Toda a história da humanidade está repleta de paixões, amor, sexo. Até mesmo se decidiu o destino de nações a partir do relacionamento amoroso entre ho- mens e mulheres ou entre homens. Verdade ou não, a famosa Guerra de Tróia começou com o rapto de Helena, mulher do rei de Esparta, por Páris, príncipe de Tróia. Ao que parece, ele se apaixonou perdidamente pela bela grega. Após dez longos anos de batalha, entre gregos e troianos, que teria acontecido por volta de 1300 a.C., a cidade de Tróia foi finalmente destruída, e com ela uma civilização. O amor tem sido tema constantena literatura mun- dial, em todas as épocas. Hoje milhões de pessoas acompanham, noite após noite, os encontros e desen- contros amorosos nas novelas da 1V. Por que esse assunto desperta tanto interesse? Uma resposta é que o afeto, o amor e o sexo são necessidades básicas para nós. E, de todas as relações humanas, estas são consideradas as menos resolvidas. 43 O papel afetivo-sexual é o mais importante de nossa vida. É através dele que conseguimos estabele- cer um vínculo que pode ser de amor e sexo, de amor sem sexo ou ainda de sexo sem amor. Somente nessa relação vamos poder experimentar o prazer da paixão e do amor, o prazer de nos entregar- mos um ao outro, o prazer sexual e o prazer de nos reproduzirmos, gerando filhos. Alguns dos mais dolorosos conflitos humanos estão direta ou indiretamente relacionados com a impossibili- dade ou dificuldade de se desempenhar adequadamente o papel afetivo-sexual. Essa parte de nossa vida é a única que precisamos desenvolver, por nossa própria conta, sem a presença "de um professor". Na sociedade moder- na, não existe nenhuma atividade que não possa ser ensinada e aprendida na escola ou na vida, salvo o papel afetivo-sexual. Quando falamos em aprendizado, referimo-nos a um processo sistemático de orientação, tal como se ensina a ler, a tocar piano, a dançar. Do ponto de vista afetivo e amoroso é até possível "algum aprendizado", observando como fazem as outras pessoas, inclusive nossos pais. Aqueles que têm uma orientação heterossexual na- moram na frente dos pais, na presença dos amigos, em sociedade. As cenas de amor são veiculadas à exaustão em todos os meios de comunicação, e esse sentimento é permitido, possível, desejado, cantado "em verso e prosa". Mas, mesmo assim, quem não ficou um tanto perdido no primeiro beijo? Quem não ficou em dúvida sobre o que fazer com a boca naquele momento? Mesmo com os olhos fechados, provavelmente gastamos alguns segundos ten- tando entender como e o que estava acontecendo. A relação amorosa é aplaudida, onde quer que ela aconteça, desde que não traga consigo, explicitamente, o seu lado sexual. Dessa maneira, só temos a chance de 44 "aprender" a fazer sexo com alguém mais experiente, como as "profissionais", ou com alguém que saiba tão pouco quanto nós. Na adolescência, entre rapazes e moças que ainda não tiveram uma experiência sexual, é comum a criação das mais variadas fantasias, desproporcionais ao fato real. Para o rapaz, existe um medo difuso no sentido de que talvez, "naquele momento", ele não saiba como reagirá a sua parceira, se vai machucá-la ou não satis- fazê-la. As moças, por sua vez, criam um verdadeiro mito sobre o orgasmo, como se esse prazer fosse capaz de fazê-las "subir pelas paredes", enquanto explodiriam toneladas de imaginários fogos de artificio. Quando a primeira relação sexual acontece, muitas vezes o que poderia ter sido bom e agradável ganha os contornos da frustração. Uma sensação desconfortável de que "tudo aquilo era só isso" toma conta da pessoa. O desenvolvimento de todos os papéis da vida de- pende de aprendizado, pois não são características ina- tas nos seres humanos. Aprendemos a comer à mesa, a fazer nossas necessidades fisiológicas em local e de forma adequados, a higiene corporal é acompanhada pela mãe ou alguém de nossa família. Ninguém nasce sabendo como escovar os dentes. Numa fase posterior, aos 4 ou 5 anos, vamos à pré-es- cola, depois recebemos conhecimentos gerais no curso primário, secundário e, por fim, aprendemos uma profissão, na prática, numa escola técnica ou na universidade. Em todos os papéis da vida temos a possibilidade de assimilar os novos conhecimentos e de treiná-los na presença de alguém que ensine e nos oriente. Porém, quando chegamos à vida sexual, nada pode ser visto e nem mostrado. Como o papel afetivo-sexual se desenvolve em nos- sas vidas? Ele começa a aparecer na adolescência. Na infáncia, não se pode afirmar que já exista o desejo 45 sexual. Evidentemente, quando nos referimos a essa idade cronológica estamos considerando aquelas crian- ças que vivem num ambiente social favorável e fazem parte de uma família minimamente estruturada. A realidade brasileira coloca nas ruas uma quanti- dade muito grande de crianças que, por necessidade de sobrevivência, "amadurecem" muito cedo, motivo pelo qual a sua idade biológica nem sempre está de acordo com o seu crescimento psicológico. Ainda não existem estudos completos sobre qual pode ser a influência desse meio hostil na formação do papel afetivo-sexual. Quando a criança, menino ou menina, entra na idade da meninice, que começa por volta dos 5 anos e vai até os lO, ela passa a ter um prenúncio de sensação sexual. Essa sensação é como se fosse um tipo de energia latente que perpassa o seu corpo de maneira muito sutil, tanto que a criança sequer tem noção disso. É comum, nessa fase, os jogos considerados "sexuais", que nada têm de erótico, e que visam apenas reconhecer o próprio corpo e o do outro, quanto ao gênero a que pertencem. Não podemos falar ainda em sexualidade, propria- mente dita, uma vez que esta continua em estado de latência, e porque nesse momento outros papéis têm muito mais importãncia. A criança se percebe como filho, sobri- nho, que tem tios, avós, coleguinhas de escola. As brinca- deiras e o estudo tomam muito tempo e compõem o universo de preocupações das crianças nessa idade. Seria ideal que a educação sexual se iniciasse nessa idade, pois a criança está descobrindo como funciona o mundo e está cheia de perguntas. A quantidade de informações que ela recebe principalmente da televisão é muito grande. Mas não pode interagir, questionar, dizer que não entendeu. 46 A orientação sexual e a educação sexual precisam ser feitas com naturalidade, sem tabus nem moralismos. Infelizmente, muitos pais têm, eles mesmos, pouca ou nenhuma informação sobre sexo, "acham vergonhoso" o que fazem na cama ou não querem "correr o risco" de ensinar aos filhos aquilo que para muitos é proibido, feio ou mesmo "pecado". Aos poucos essa situação está se modificando, e hoje, na década de 90, quem tem 18 anos foi criado com um pouco mais de liberdade. Isso comparado com as gerações que nasceram nas décadas de 40 e 50. ~XVL~SÁ~I~~VITÁV~L Na realidade, a possibilidade de assumir o papel afetivo-sexual só vai se dar na adolescência, com a explosão dos hormõnios e com a transformação do corpo. Na puberdade, os caracteres sexuais primários, que se referem aos órgãos genitais, desenvolvem-se. O desen- volvimento desse papel a partir da adolescência será diferente para rapazes e moças. Nessa fase surgem também os caracteres sexuais secundários, que vão moldando o corpo do menino e da menina, transformando-os num homem ou numa mu- lher. No homem, o timbre de voz torna-se mais grave, ocorre a distribuição de pêlos pelo corpo e os ombros ficam mais largos. Na mulher crescem os seios, os pêlos se concentram em apenas algumas regiões e os quadris tornam-se mais volumosos. Também são considerados caracteres se- xuais secundários a menstruação das mulheres e a ejaculação dos homens. Quando essas transformações ocorrem, os adoles- centes iniciam a descoberta de seu corpo, das emoções que ele desperta nas outras pessoas e daquelas que os outros despertam neles mesmos. As mudanças são tan- tas e simultãneas que muitos se sentem perturbados e necessitam, tanto quanto for possível, da compreensão dos pais e dos outros adultos. 47 Nessa fase, rapazes e moças descobrem o funciona- mento de seus genitais, costumam se masturbar com maior ou menor freqüência e, na verdade, isto os levará a saber mais sobre si mesmos e nem devem bloquear essa necessidade. Na realidade, a masturbação é o primeiro passo para o desenvolvimento desse papel. A nossa cultura estimula o rapaz a desempenhar o seu papel sexual muito precocemente,
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