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cApítulo 45 INCONTINÊNCIA URINÁRIA Luciano Silveira Pinheiro Lia Pontes de Melo Foi realizada cistopexia, com correção da abertura aumentada do ângulo uretrovesical pos- terior (cirurgia de Kelly-Kennedy), amputação do colo uterino e perineoplastia com rafia e aproxi- mação dos elevadores do ânus (cirurgia de Man- chester-Fothergill). Retornou após 10 dias para avaliação ambulatorial sem queixas relevantes. B- OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM 1. Definir incontinência urinária e conhecer os fatores de risco. 2. Classificar os tipos de incontinência urinária. 3. Realizar a propedêutica da incontinência. 4. Estabelecer as estratégias terapêuticas da incontinência urinária. C- ABORDAGEM TEMÁTICA 1. Introdução A incontinência urinária é qualquer con- dição na qual ocorre perda involuntária de uri- na através do meato uretral, associada ou não à urgência miccional (desejo intenso de urinar), podendo manifestar-se como sinal, sintoma ou representar condição específica, e ser objetiva- mente demonstrada. Ocorrem duas a três vezes mais nas mulheres do que nos homens, sendo uma das principais queixas em ambulatórios e consultórios de Ginecologia, apresentando cau- sa multivariada. Essa desagradável situação, em um grande número de vezes, afeta significati- vamente a vida da mulher, causando problema higiênico, tornando-se elemento de exclusão social e interferindo na saúde física, mental e consequentemente na qualidade de vida. A- PROBLEMA L.P., 62 anos, G6, P5(vaginais), A0, tabagista, procedente de Fortaleza, procurou um ambulatório de Ginecologia com queixa de perda urinária aos esforços e exteriorização do útero. Informou que muitas vezes se sente incomodada e em situação desconfortável, ao perceber perda urinária involun- tária ao tossir, espirrar, quando ri intensamente e até ao por o seu neto menor nos braços. Devido às crises de tosse (fumante), também vem perceben- do a progressiva exteriorização do útero. Ao exame ginecológico foi observada que- da da parede vaginal anterior, atingindo o anel hi- menal ao esforço, acompanhada da descida do colo uterino, que ultrapassava esse sítio anatômico, apresentando-se epitelizado e com orifício externo em fenda transversa (figura 1, sem efetuar esforço). À manobra de Valsalva (anatomista italiano, Imola 1666-1723), não foi percebida perda urinária invo- luntária. Ao exame vaginal bidigital (toque), confir- mou-se que se tratava de alongamento do colo ute- rino, o corpo uterino encontrando-se intra-pélvico. Hipótese diagnóstica: cistocele grau 2 + rotura perineal incompleta + alongamento hi- pertrófico do colo uterino. Figura 1. Cistocele grau 2 e alongamento hipertrófico do colo uterino. Arquivo do primeiro autor. 318 Faculdade christus Capítulo 45 Segundo a Sociedade Internacional de Continência (ICS), as modalidades mais encon- tradiças na mulher são a incontinência urinária de esforço (IUE), a bexiga hiperativa idiopática e a incontinência urinária mista. Na IUE, observa- -se perda de urina aos esforços, ao tossir, es- pirrar, pular, caminhar rapidamente, mudar de decúbito e ao rir intensamente. É o tipo mais comum no sexo feminino, com prevalência de mais de 50%, a depender do grupo populacio- nal arrolado e dos critérios utilizados para diag- nóstico. A bexiga hiperativa se caracteriza por urgência miccional, acompanhada por vezes com polaciúria, nictúria e urge-incontinência. São observadas contrações involuntárias não inibidas do detrusor quando da fase de enchi- mento da bexiga, provocando a sensação de urgência miccional, desencadeando a abertura do esfíncter uretral, resultando saída de urina com baixo volume intravesical. Na incontinên- cia urinária mista, observa-se a combinação dos sintomas da IUE com os da bexiga hiperativa. Os quadros clínicos menos comuns de eliminação involuntária de urina compreen- dem a sobredistensão da bexiga, ocasionando transbordamento (útero gravídico encarcerado e prolapso uterino total) e as fístulas genituri- nárias. Nas fístulas geniturinárias, a eliminação de urina é feita de maneira contínua. As fístulas podem ser congênitas ou surgirem após cirur- gias pélvicas (histerectomia abdominal, histe- rectomia vaginal e cistopexia) ou pós-irradiação na abordagem de cânceres do endométrio e do colo uterino. As fístulas também são determi- nadas por tocotraumatismos (inadequada as- sistência ao parto, período expulsivo prolonga- do, parto a forceps, lesão de bexiga e de ureter quando da realização de cesariana e pós-rotura uterina). 2. Anatomia A bexiga é um órgão músculo-elástico capaz de apresentar grande distensão, desem- penhando função de reservatório passivo ao acumular urina (400 a 500mL) e órgão ativo ao expelí-la através de contrações do comple- xo de fibras musculares lisas, conhecido como músculo detrussor. É dividida em corpo e base, que são separados pelos orifícios ureterais. Na base, localiza-se o trígono vesical, constituído de musculatura lisa diferente do músculo de- trussor, cujos limites superiores são os orifícios ureterais e um inferior, a uretra proximal. Essa região anatômica é também conhecida por triângulo de Lieutaud, constituindo o espaço triangular da face interna da bexiga, limitado pelos dois orifícios ureterais e o colo vesical. O mecanismo de continência urinária é centrado na uretra proximal e na junção ure- trovesical, através de agentes que regulam o fechamento da uretra, suportam a bexiga e a junção uretrovesical. Esses agentes ou fatores podem ser agrupados em extrínsecos: os mús- culos levantadores do ânus, a fascia endopélvi- ca e suas fixações às paredes laterais da pelve e à uretra. E os intrínsecos, que são os músculos estriados e lisos da parede uretral (esfíncteres interno e externo da uretra), a congestão vascu- lar do plexo venoso da submucosa, a coaptação epitelial das pregas do revestimento uretral, a elasticidade uretral e o tônus da uretra mediado pelo sistema nervoso simpático. Outro aspecto importante a ser consi- derado é a posição da bexiga em mulheres continentes na situação de repouso, sua base situando-se acima dos ramos inferiores da sínfi- se púbica. Assim, pode-se considerar a medida dos ângulos uretrovesical posterior e de incli- nação uretral, na avaliação da paciente com in- continência. Esses ângulos relacionam a posição da uretra com a parede posterior da bexiga e com o bordo inferior do púbis, respectivamen- te. O ângulo uretrovesical posterior mede na mulher continente 90 a 100 graus e na mu- lher com incontinência urinária, valores muito maiores, ou até mesmo chegando a desapare- cer. O ângulo de inclinação uretral tem abertu- ra póstero-superior, sendo na prática avaliado como constituído por duas linhas: a primeira acompanhando a direção do terço proximal da uretra e a segunda, perpendicular, tangencian- do o bordo inferior do púbis, considerando-se a paciente em posição ortostática. Na mulher continente, os valores do ângulo de inclinação uretral variam de 10 a 30 graus. Na mulher com incontinência urinária, os valores superam de muito esses limites. A inervação do trato urinário inferior é proveniente do sistema nervoso autônomo simpático, parassimpático e dos neurônios do sistema nervoso somático. O sistema nervoso simpático tem origem na medula espinhal tó- raco-lombar (T1-L2 ou L3) e possui a adrenalina como principal neurotransmissor, agindo sobre os receptores alfa e beta-adrenérgicos, permi- 319 Faculdade christus Capítulo 45 tindo assim o enchimento vesical. Os recepto- res alfa estão presentes na musculatura lisa da uretra e no colo vesical, aumentando o tônus muscular e os betarreceptores se localizando no corpo vesical, promovendo o relaxamento.O sistema nervoso parassimpático se ori- gina da medula espinhal sacral (S2-S4), tendo como neurotransmissor a acetilcolina, sendo responsável pela ativação do músculo detrusor e consequentemente pelo esvaziamento vesical. O sistema nervoso somático possui a mesma origem do sistema parassimpático, inervando o assoalho pélvico e o esfíncter externo da uretra, desempenhando apenas função periférica no controle neurológico do trato urinário inferior. 3. Fisiologia Durante a fase de enchimento vesical, me- diada pelo sistema nervoso simpático, o músculo detrusor permanece inativo, permitindo a disten- são da bexiga sem grande alteração de pressão e concomitantemente ocorrendo o aumento do tônus uretral, facilitando o fechamento uretral e o mecanismo de continência (figura 2). Quando o volume de urina contido na bexiga atinge de- terminado valor, os receptores de estiramento- -volume localizados na parede vesical são sensi- bilizados e enviam sinais ao cérebro para o início da micção. O mecanismo de micção é mediado pelo sistema nervoso parassimpático, ativando o músculo detrusor e pelo relaxamento voluntário do assoalho pélvico e da uretra. É importante ressaltar que o volume limiar para sensibilizar os receptores de estiramento-volume é variável, dependendo das vias aferentes sensoriais e dos centros superiores do sistema nervoso. Assim, o limiar de micção pode ser alterado ou reajustado por várias influências. A inervação parassimpática, como relata- do acima, está concentrada em grande parte da bexiga, o neurotransmissor acetilcolina sendo responsável pela contração do detrusor. As fibras simpáticas estão distribuídas na musculatura lisa da bexiga e da uretra. O sistema alfa-adrenérgico encontra-se predominantemente na uretra, os seus impulsos produzindo contração. O sistema beta-adrenérgico inerva a bexiga e a uretra, en- contrando-se predominantemente na bexiga, os seus impulsos produzindo relaxamento. O elemento fundamental no mecanismo de micção e continência é a perfeita interação entre o sistema nervoso e as estruturas anatô- micas íntegras relacionadas à bexiga e à ure- tra. Dois importantes fatores contribuem para a continência uretral: a pressão de fechamen- to uretral e o papel desempenhado pelos ele- mentos anatômicos da região uretro-trigonal. A pressão de fechamento uretral depende da integridade da mucosa uretral, do plexo vascu- lar submucoso e das camadas de musculatura lisa e estriada que envolvem a uretra. O aumen- to compensatório da pressão uretral, quando ocorre incremento da pressão intra-abdominal, constitui a base do mecanismo de continência. Portanto, qualquer situação ou enfermidade que altere esse equilíbrio de interação poderá ocasionar incontinência urinária. Figura 2. Funcionamento harmônico uretrovesical, com ação das musculaturas lisa e estriada. Modificado de Bastos, A.C. Ginecologia, 1998. 4. Tipos de incontinência Dentre as diversas causas de incontinên- cia, estão incluídas alterações de funcionamen- to uretral e vesical, malformações congênitas e fístulas urinárias. É possível identificar clini- camente algumas situações e agrupar a incon- tinência urinária em cinco tipos: incontinência urinária de esforço, incontinência urinária de urgência, incontinência mista, funcional, transi- tória e extra-uretral. A incontinência urinária de esforço é a forma mais frequente de incontinência e bastan- te comum em mulheres jovens. A hipermotilida- de da uretra após partos transvaginais constitui a causa mais comum da incontinência urinária de esforço genuína (IUEG). Normalmente a va- gina encontra-se fixada bilateralmente ao dia- fragma pélvico, o que condiciona base estável onde o colo vesical e a uretra repousam. Essa disposição anatômica permite que incrementos na pressão intra-abdominal sejam transmitidos igualmente para a bexiga e para a uretra, man- tendo o fechamento uretral e consequentemen- 320 Faculdade christus Capítulo 45 te a continência. Nas mulheres, principalmente multíparas, com hipermotilidade uretral, existe descida da uretra proximal e do colo vesical, de forma que essas estruturas não são mais com- primidas contra a vagina durante o aumento da pressão intra-abdominal, ocorrendo perda in- voluntária de urina (figura 3). Figura 3. Uretrocele + prolapso uterino pós-histerecto- mia grau 4. Arquivo do primeiro autor. Em um subgrupo de pacientes portado- ras de IUEG, existe debilidade do esfíncter in- terno da uretra, resultando deficiência esfinc- teriana intrínseca. Nesse grupo, a incontinência urinária ocorre com mínimos exercícios físicos ou mesmo até em repouso. As causas comuns são a idade avançada, a cirurgia prévia do colo vesical e o tratamento radioterápico. Os efeitos da incontinência de esforço não são os mesmos para todas as mulheres, dependendo do meca- nismo esfincteriano, do nível de estresse físico imposto e do controle urinário da paciente. A incontinência urinária de urgência é consequência da hiperatividade do detrusor, quando a pressão de contração vesical supera a pressão de fechamento uretral, levando à in- continência e à urgência miccional. Essa forma é bastante comum em pessoas idosas e está frequentemente associada com polaciúria e nic- túria (o mesmo que noctúria, que são micções frequentes durante a noite, o volume urinário noturno superando ao ocorrido durante o dia). Dentre as possíveis causas dessa forma de in- continência, podemos citar os distúrbios neuro- lógicos, as infecções e as de origem idiopática. Pacientes que possuem insuficiência ure- tral ou alteração de sustentação dos órgãos pél- vicos, juntamente com hiperatividade do detru- sor apresentam incontinência urinária mista. A incontinência funcional se caracteriza por não estar relacionada a mecanismos miccio- nais fisiológicos e sim a fatores que impedem a mulher de chegar rápido ao banheiro, como incapacidade ou dificuldade de deambulação. Outra forma de incontinência é a transi- tória, na qual as causas dos distúrbios são cli- nicamente reversíveis. As principais causas são: uretrites, cistites, psicopatias, farmacológicas, excessiva produção de urina, restrição da mobi- lidade e fecaloma. Anomalias congênitas e traumatismos são as principais formas de incontinência extra-ure- tral, a perda involuntária de urina não se dando através da uretra. As principais causas congêni- tas são a extrofia vesical e o ureter ectópico. De causas traumáticas, a fístula vésico-vaginal é a principal, ocorrendo frequentemente na síndro- me do parto obstruído, com período expulsivo prolongado, que poderá culminar com a rotura uterina complicada. Outras causas comuns de fístulas geniturinárias são o câncer do corpo e do colo uterino, a radioterapia e procedimen- tos cirúrgicos, como histerectomia vaginal ou abdominal simples ou radical, na qual a bexiga pode ser aprisionada ou sofrer lesão acidental, sem a adequada correção cirúrgica ou ser trans- fixada por sutura. Também deve ser mencionada a existên- cia do úraco, que é um canal do feto que liga a bexiga com a alantoide. Após o nascimento, transforma-se num cordão fibroso que vai do umbigo ao vértice da bexiga (ligamento me- diano vesical). O úraco pode permanecer per- meável, a anomalia se manifestando pela saída de urina pelo umbigo intermitentemente e em quantidades variáveis. O normal é que inicial- mente no feto a bexiga se distenda até a região umbilical; com a maturação, a porção superior tornando-se delgada, dá lugar a formação tu- bular que se oblitera, constituindo o úraco ou ligamento mediano umbilical. Se esse tubo não se fecha, comunica-se a bexiga com o exterior através do umbigo, como relatado anteriormen- te. Em alguns casos, o úraco permeável pode ser encontrado associadoà obstrução uretral. 5. Fatores de risco Considerando que a incontinência uriná- ria tem grande impacto na qualidade de vida da mulher, é importante familiarizar-se com os diversos fatores de risco relacionados com essa entidade uroginecológica. 321 Faculdade christus Capítulo 45 Idade. É considerada como um dos principais fatores de risco, a incontinência urinária acome- tendo significativamente as mulheres mais ido- sas, principalmente a partir da menopausa. Esse fato pode estar relacionado ao baixo nível de estrogênio, à prevalência de doenças crônicas e ao aumento do índice de massa corpórea. Obesidade. A obesidade é um fator que con- tribui ou agrava a incontinência urinária, prova- velmente por alterar a pressão intra-abdominal. Paridade e parto. A gravidez e o parto predis- põem à incontinência urinária. O tipo de parto, especialmente o parto vaginal, não é a causa em si de incontinência. Porém, quando asso- ciado a lesões ou causadores de lesões do as- soalho pélvico, constitui fator de risco impor- tante. Após o parto vaginal, a força contratural dos músculos levantadores do ânus que sofre- ram lesões diminui, o colo da bexiga desce e os músculos pélvicos sofrem desnervação par- cial com neuropatia do pudendo, contribuindo para surgimento do quadro da eliminação in- voluntária de urina aos esforços físicos. Anestesia do parto. Fator não esclarecido e controvertido. Alguns autores afirmam que a anestesia peridural contribui para a lesão do assoalho pélvico pelo prolongamento do se- gundo estágio do trabalho de parto, aumen- tando a indicação de aplicação de fórceps. Por outro lado, autores opinam que esse tipo de analgesia promove o relaxamento da muscu- latura, prevenindo lesões durante os procedi- mentos do parto. Peso do recém-nascido. Devido a possíveis traumas do assoalho pélvico durante o parto e também por aumentar a pressão intra-abdomi- nal. A experiência sanciona que parto normal é o parto fácil e que mesmo não se evidenciando que houve laceração perineal externa, a inserção das porções terminais do pubococcígeo que confluem para o centro tendinoso do períneo podem ser danificadas, desfazendo o equilíbrio do assoalho pélvico, da estática pélvica. Menopausa. Em decorrência de ocasionar mudanças dos níveis hormonais, com o surgi- mento de hipoestrogenismo. Cirurgias ginecológicas. Além de traumas, po- dem ocasionar lesões no suporte pélvico, como no caso da histerectomia abdominal extra ou intrafascial ou na radical (Wertheim-Meigs). Constipação intestinal. A constipação pode ocasionar dilatação do reto, comprimindo a bexiga e contribuindo para retenção urinária e infecções, além de promover e agravar lesões antigas traumáticas da musculatura pélvica durante o esforço físico continuado para eva- cuar, que se acentuam com o decorrer etário. Doenças crônicas. Diabetes e doenças neu- rológicas são importantes fatores de risco. No caso do diabetes mellitus, ocorre aumento da frequência e do volume urinário devido à hiperglicemia, associando-se a alterações dos tecidos e da inervação da musculatura pélvi- ca. Os principais fatores relacionados a pro- blemas neurológicos são as contrações vesi- cais que não são inibidas. Exercícios físicos. A intensa atividade física pro- porciona aumento da pressão intra-abdominal. Tabagismo. O fumante geralmente desen- volve pneumopatia crônica, enfisema pulmo- nar, apresentando tosse crônica, frequente, desencadeando aumento da pressão intra- -abdominal e consequentemente influindo na pressão vesical. Consumo de cafeína. A cafeína tem ação diurética, aumentando o volume urinário e efeito excitante sobre o detrusor, podendo ocasionar instabilidade do músculo e conse- quentemente perda involuntária de urina. Medicamentos. O uso de medicamentos é uma das causas de incontinência transitória. Alguns medicamentos aumentam a urgência e a frequência urinária, alterando a função ve- sical, favorecendo a incontinência de esforço. Fatores hereditários. Ocorre predominân- cia da hiperatividade vesical. É comum o en- contro simultâneo de hérnias inguinais, um- bilicais, diástase dos retos abdominais com distopias dos órgãos pélvicos e IUE. O fator constitucional é relevante. 6. Propedêutica da incontinência A avaliação correta de pacientes com suspeita de incontinência urinária consiste em abordagem inicial, anamnese, exame físico, com inspeção estática e dinâmica, seguida de prope- dêutica complementar. 6.1. Anamnese Durante a anamnese devemos avaliar di- versos aspectos, como o início dos sintomas, a condição da perda (esforço ou urgência), dura- ção e frequência, gravidade (impacto na qua- lidade de vida), condições associadas (fatores agravantes), necessidade de utilizar absorven- tes ou fraldas, associação a medicamentos (diu- 322 Faculdade christus Capítulo 45 réticos), a ingestão hídrica, hábitos miccionais, cirurgias anteriores, número e tipo de partos, complicações ginecológicas e possíveis infec- ções. Assim, além da avaliação completa da paciente, dos seus sintomas e possíveis fatores causais, a anamnese permite a identificação de causas reversíveis (como uso de medicamentos) e de doenças sistêmicas que tenham relação di- reta com a incontinência, tais como o diabetes mellitus, insuficiência vascular, doença pulmo- nar crônica e possíveis distúrbios neurológicos. Mesmo diante de completa história clíni- ca, é frequente não se obter diagnóstico conclu- sivo, em virtude de muitos sintomas urinários poderem ser similares e possuírem diferentes etiologias. Isso destaca a importância do exame físico na avaliação uroginecológica da paciente. 6.2. Exame físico O exame físico deve ser direcionado a afecções clínicas que possam afetar o trato uri- nário inferior e também a problemas relaciona- dos à incontinência urinária, atentando-se para a presença ou não de insuficiência cardiovascular, doença pulmonar, massas abdominais, imobili- dade e distúrbios neurológicos, como esclerose múltipla, acidente vascular cerebral, doença de Parkinson e anomalias da coluna vertebral e da região lombar. É importante a avaliação da pre- sença de distopias de órgãos pélvicos, atrofia va- ginal e tonicidade da musculatura pélvica (eleva- dor do ânus), mobilidade uretral e lesão perineal. Alguns exames podem ser realizados de imediato, fornecendo informações importantes na avaliação da paciente. Dentre esses exames, pode-se destacar o diário miccional, exame de urina, teste de esforço com tosse, teste do coto- nete e teste do absorvente. Diário miccional. É um registro da frequência e do volume miccional da paciente durante alguns dias, juntamente com a perda urinária, atividades específicas à perda de urina e, se desejado, à ingesta de líquidos. É um ques- tionamento útil que poderá fornecer as infor- mações sobre o débito urinário, número de micções diárias e noturnas, volume médio eli- minado e capacidade vesical funcional. Exame de urina. Importante para exclusão de infecção, hematúria, glicosúria e outras anor- malidades metabólicas. Teste de esforço (tosse). As pacientes devem ser examinadas com a bexiga cheia. Durante a tosse ou ao esforço, é verificado se ocorre saída de urina pelo meato uretral, avaliando- -se a incontinência urinária. Teste do cotonete (Q-tip test). Tem por ob- jetivo verificar a mobilidade uretral. Uma das extremidades do cotonete estéril é lubrifica- da com gel anestésico e introduzida cerca de 3cm na uretra para avaliar o ângulo uretro- vesical posterior (figura 4). Nas mulheres com teste positivo, o ângulo de inclinação muda mais de 35 graus quando se utiliza a manobra de Valsalva. Considera-se então como evidên- cia decolo vesical com suporte deficiente. No entanto, não é um teste definitivo. Nem todas as pacientes com IUEG apresentam esse teste positivo. Mesmo algumas mulheres sem in- continência urinária poderão mostrar o teste com resultado positivo. Figura 4. Teste do cotonete (Q-tip-test). A) Ângulo em repouso. B) Com manobra de Valsalva ou tosse. Modifi- cado de DECHERNEY, A.H. et al., 2007. Teste do absorvente. É realizado em pacientes com a bexiga cheia e mede a quantidade de urina perdida durante algumas atividades, pe- sando-se o absorvente antes e após essas ati- vidades. O aumento de 1g ou mais no peso do absorvente é considerado como teste positivo, indicando provável incontinência de esforço. Teste de Bonney. Avalia a perda de urina em uma bexiga cheia naturalmente ou com intro- dução de 250ml de água estéril, antes e após a elevação da uretra com os dedos indicador e médio (toque vaginal), verificando-se a alte- ração do ângulo uretrovesical posterior. 6.3. Exames complementares Avaliação urodinâmica. O estudo da função da urodinâmica permite avaliar o funciona- mento do trato urinário inferior através das relações entre a pressão abdominal, vesical e uretral nas diversas fases de enchimento ve- sical. Os testes urodinâmicos podem incluir a 323 Faculdade christus Capítulo 45 urofluxometria, a cistometria, o estudo mic- cional, o pressórico uretral, o videourodinâ- mico e a eletromiografia. Urofluxometria. Permite avaliar a função de esvaziamento vesical, verificando a presença de volume residual pós-miccional e relacio- nando o volume de urina eliminado em rela- ção ao tempo. Cistometria. A cistometria avalia a função ve- sical e uretral durante o enchimento vesical, detectando contrações não inibidas do detru- sor ou alterações na complacência, capacidade e sensibilidade vesical. A cistometria constitui no enchimento vesical, para se medir a rela- ção volume-pressão. À medida que a bexiga é preenchida com líquido e vai alcançando a sua capacidade normal de 300 a 500mL a pressão interna deve permanecer baixa. A mulher tem o primeiro desejo miccional com 150 a 200mL. As pacientes com instabilidade do detrussor (ID) apresentam capacidade vesical reduzida (menos de 300mL), demonstrando incontinên- cia urinária, que se encontra associada a con- trações involuntárias da bexiga, com aumento da pressão acima da linha de base. Nas pacien- tes com IUEG, a incontinência é demonstrada quando da realização da manobra de Valsalva (tosse ou efetuando esforço). A pressão intra- vesical na qual se observa a eliminação de uri- na (perda sob esforço) é geralmente menor do que 60cm de água no caso de se fazer presente a deficiência esfincteriana. A cistoscopia deve ser realizada principal- mente nas pacientes com sintomatologia de bexiga irritável (urgência urinária, frequência e hematúria), para se descartar processo in- flamatório crônico, tumores ou deformidades anatômicas. Estudo miccional. É realizado através de me- didas simultâneas da pressão vesical, uretral e abdominal durante o esvaziamento vesical. É bastante utilizado para verificar a retenção urinária no pós-operátorio. Estudo pressórico uretral. Serve para avaliar o fechamento uretral e consequentemente a me- nor pressão em que ocorre incontinência (limite de 60cm H2O), permitindo avaliar o funciona- mento do esfíncter intrínseco uretral. A medida da pressão de fechamento uretral é a diferença entre a pressão uretral e a pressão vesical. Exame video-urodinâmico. Permite ava- liar a posição do colo vesical e a abertura da uretra proximal em repouso e ao esfor- ço, correlacionando-as com a intensidade da perda urinária. É um exame considerado de importância na propedêutica da incontinên- cia urinária de esforço. Eletromiografia. Permite registrar a contrati- lidade da musculatura estriada da uretra, ava- liando a função esfincteriana externa. Exames por imagem. Estudos ultrassono- gráfico, fluoroscópico, neuroimagem fun- cional e ressonância magnética também têm sido realizados. Exames neurofisiológicos. Consistem na in- vestigação dos reflexos sacros, do potencial evocado somatossensorial e da latência mo- tora dos nervos pudendos terminais. Mesmo diante desse armamentário pro- pedêutico diverso, os exames complementares mais simples e associados à completa anamne- se e a cuidadoso exame físico, são fundamentais no correto diagnóstico e consequentemente numa abordagem terapêutica adequada, evi- tando cirurgias inapropriadas e diversas com- plicações. 7. Diagnósticos diferenciais Dentre os diagnósticos diferenciais da in- continência urinária, podemos citar as diversas patologias que podem ocasionar esse quadro, a incontinência se manifestando como sinal ou sintoma. As causas de incontinência podem ser extrauretrais ou transuretrais, como citado no início do capítulo. Podemos citar como diagnós- ticos diferenciais: efeitos farmacológicos, ano- malias congênitas, lesões do assoalho pélvico, infecções, obstrução infra-vesical, fístulas uriná- rias, acidente vascular cerebral, poliomielite, es- clerose múltipla e lesões da coluna espinhal. 8. Tratamento A abordagem terapêutica da incontinên- cia urinária pode ser clínica ou cirúrgica, os re- sultados dependendo fundamentalmente do diagnóstico etiológico correto. 8.1. Tratamento não cirúrgico Alterações no estilo de vida. Emagrecimen- to, alterações posturais, redução do consumo de cafeína e abandono do hábito de fumar. Fisioterapia. A fisioterapia pode ser indicada nos casos de bexiga hiperativa, na reabilita- 324 Faculdade christus Capítulo 45 ção pós-parto e nas pacientes com IUE por hipermobilidade do colo vesical sem disto- pias severas (grau I). Também no condiciona- mento muscular do assoalho pélvico pode ser empregada a eletroestimulação (age por estí- mulo elétrico vaginal ou retal, de comprovada eficácia no tratamento da hiperatividade do detrusor - bexiga hiperativa, com a vantagem de apresentar baixos paraefeitos e indicada para pacientes que mostram dificuldade de contração da musculatura do assoalho pélvi- co (figura 5). Tem-se também o biofeedback (que atua por estímulo sonoro ou visual, a pa- ciente aprendendo a inibir a contração vesical de forma consciente), os exercícios perineais e o uso de cones vaginais. Figura 5. Eletroestimulador com eletrodo vaginal. Terapia comportamental e treinamento vesical. É realizada através da micção pro- gramada da paciente, juntamente com o con- dicionamento do assoalho pélvico, a fim de inibir a urgência miccional. Exercícios de Kegel. Evidências de ensaios clínicos têm mostrado que o treinamento supervisionado da musculatura do assoalho pélvico (exercícios de Kegel) constitui opção eficaz para alguns casos de incontinência urinária de esforço. Os exercícios de Kegel foram idealizados na década de 40 para o fortalecimento da musculatura do assoalho pélvico, com o intuito de tratar mulheres com incontinência urinária de esforço mani- festadas após os partos transvaginais. Con- sistem na contração voluntária dos mús- culos elevadores do ânus, realizada várias vezes ao dia. Atualmente eles podem ser também utilizados na abordagem da incon- tinência fecal não cirúrgica e para melhorar o desempenho sexual (homens e mulheres) e condicionar a pélvis para o parto normal. Tem sido relatado que esses exercícios po- dem fazer com que os homens apresentem significativa melhora na ereção peniana e na ejaculação, beneficiando também a fase or- gásmica feminina. Primeiramente deve-se ensinar às mulheres como identificar osmúsculos pélvicos envol- vidos tanto na micção como na defecação. A forma preconizada e fácil é quando da mic- ção, a paciente procurar tentar parar o jato de urina, intercalando etapas de relaxamento. Quando a paciente for praticar nos dias se- guintes os exercícios de Kegel, a bexiga deve- rá estar vazia, contraindo e relaxando a mus- culatura perineal rapidamente durante cinco vezes. Realizar permanentemente os exercí- cios de Kegel com a bexiga cheia de urina, cortando o jato, a mulher correrá o risco de desenvolver infecção urinária. Em seguida, a paciente contrai a musculatura do assoalho pélvico e mantém-na assim, contando de 1 até 5, passando a relaxá-la. O ginecologista quando da realização do exame vaginal (to- que) procurará identificar os músculos pubo- coccígeos. Para isso, afastará o dedo indicador do dedo médio, que estão repousando sobre a parede vaginal posterior, posicionando-os como se fosse uma tesoura aberta, orientan- do a paciente para contrair os músculos pu- bococcígeos. Chegará a um ponto em que os dois dedos afastados serão comprimidos e aproximados um do outro. Só se consegui- rá resultado satisfatório com o procedimento de Kegel, se esses exercícios forem continu- amente praticados e sob supervisão de pro- fissional com eles familiarizados. A literatura especializada tem demonstrado o efeito be- néfico desses exercícios nas portadoras de IUE leve (grau I), com 72% de cura a longo prazo, após conclusão do programa; as mu- lheres com graus mais severos, classificados como II e III, deverão ser encaminhadas para resolução cirúrgica. Medicamentos. Podem ser utilizados os anti- colinérgicos, antidepressivos inibidores da re- captação de serotonina e norepinefrina. O uso de estrogênio oral ou creme por via vaginal pode ocasionar algum benefício, limitado às mulheres pós-menopáusicas ou com incon- tinência mista. Atentar para os riscos do uso prolongado de estrogênio sem a proteção progesterônica. • Anticolinérgicos. São utilizadas a oxibutinina 325 Faculdade christus Capítulo 45 e a tolterodina, cujos principais efeitos cola- terais são boca seca, aumento da frequência cardíaca, constipação instestinal, turvação visual, tontura e hipotensão ortostática. Po- dem ser utilizados no tratamento da incon- tinência de urgência. • Antidepressivos tricíclicos. A imipramina apresenta vantagem na abordagem tera- pêutica da incontinência de esforço mista e na instabilidade do detrusor, por combi- nar propriedades alfa-adrenérgicas e anti- colinérgicas. • Inibidores da recaptação de serotonina e norepinefrina. A duloxetina é a droga de escolha. Pode ser utilizada tanto na incon- tinência de urgência, como na incontinência de esforço, em virtude de apresentar ação nos receptores 5-HT e a-1 adrenérgico, au- mentando a capacidade vesical e a pressão no esfíncter uretral estriado. 8.2. Tratamento cirúrgico Colporrafia vaginal anterior (cirurgia de Kelly-Kennedy). A abordagem cirúrgica re- presenta o procedimento mais comumente empregado, na dependência do tipo de IUE, baseando-se na reconstituição do ângulo uretrovesical posterior. Um dos procedimen- tos cirúrgicos muito utilizados foi a operação de Kelly-Kennedy, que consiste no preguea- mento horizontal através de sutura objetivan- do o reforço da fáscia pubocervical, tendo como ponto de abordagem cirúrgica a parede vaginal. A parede vaginal anterior é apoiada principalmente pela aponeurose pubocervi- cal. Essa aponeurose situada por baixo e ao redor da uretra é mais espessa e mais densa do que na área inferior da bexiga. Uretropexia retropúbica. Consiste na sus- pensão retropúbica do colo vesical, realizada por via abdominal extraperitonial, com aces- so ao espaço de Retzius, estribando-se na fixação da fascia endopélvica periuretral ou perivesical aos ligamentos iliopectíneos de Cooper (operação de Burch) e na suspensão e fixação da fáscia endopélvica à face pos- terior do púbis – periósteo – (operação de Marshall-Marchetti-Krantz). Todos esses pro- cedimentos cirúrgicos visam evitar a hiper- mobilidade uretral e a consequente incon- tinência urinária de esforço. Essas cirurgias têm demonstrado bons resultados na cura da IUE causada por hipermobilidade anatô- mica da saída vesical, sendo aconselhado no entanto, fazer parte do procedimento a cor- reção por via vaginal de qualquer alteração do equilíbrio do assoalho pélvico. Apresen- tam menos eficácia quando ocorre disfunção intrínseca do esfíncter. Não obstante o sucesso conseguido com a colposuspensão extraperitonial (espa- ço de Retzius) atingir percentuais de 71 a 95%, deve ser alertado, que em relação à técnica de Burch, tem sido comprovado que a simples elevação da parede vaginal ante- rior pode alterar o eixo da parede posterior, expondo-a a uma maior pressão oriunda do interior do abdome. Uma cistocele poderia tender a adquirir mobilidade, como resul- tado da elevação da parede anterior, o que condicionaria maior tendência para o des- garro do suporte de sustentação do ápice e da parede posterior, associado à falta de reparo do relaxamento do assoalho pélvico, condicionando o aparecimento mais adiante de enterocele e retocele. Retenção urinária pós-operatória e instabilidade do detrusor também têm sido relatadas. Alça (sling) pubovaginal tradicional. Nas pacientes com insuficiência esfincteriana, as técnicas de sling são mais indicadas. O mate- rial utilizado pode ser autólogo (aponeurose dos retos abdominais e fáscia lata) ou hete- rólogo (fáscia liofilizada de cadáver). Outra opção é a aplicação de uma faixa de poli- propileno por via vaginal sem tensão (ten- sion free vaginal tape- TVT), passando sob a uretra como se fosse uma tipoia, o processo de cicatrização e fibrose elevando a uretra e reduzindo o ângulo uretrovesical posterior. Deve ser salientado, que nas técnicas de alça (sling) ou de fita (TVT), existe necessidade da realização de cistoscopia intraoperatória para maior segurança do procedimento uro- ginecológico. Neuromodulação. É a implantação de esti- muladores na raiz do nervo sacro em pacien- tes com hiperatividade detrussora. Injeções de botox. Ultimamente tem sido preconizado o emprego de injeções de botox, baseado no princípio de liberação de acetilco- lina, com atuação nas terminações nervosas colinérgicas periféricas.
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